SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.51 número94A polêmica em torno da interpretação: a psicanálise, as humanidades e a formação do analistaAtitude psicanalítica índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.94 São Paulo jan./jun. 2018

 

AULA INAUGURAL DO INSTITUTO DE PSICANÁLISE

 

Augúrios de boa colheita, de desenvolvimento, de encontro íntimo com a profundidade do ser. Fé no método. Esperança nas transformações!

 

 

Alicia Beatriz Dorado de Lisondo

Membro efetivo, analista didata e docente do GEPCampinas e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Campinas. alicia.beatriz.lisondo@gmail.com

 

 

No quiero decir que al médico siempre le resulte fácil mantenerse dentro de las fronteras que la ética y la técnica le prescriben.

(Freud, 1914/1976)

Aos colegas que hoje ingressam formalmente no Instituto da SBPSP:

Atitude analítica implica se fazer responsável pela própria caminhada, sem guias, nem mapas, com muitas descobertas em nosso ser – através da análise – e nos pacientes, com quedas e tropeços, para, deles, muito aprender. O desafio exige disciplina para observar atentamente o terreno e pesquisar, a cada passo, o canto onde se apoiar provisoriamente, para alcançar um equilíbrio sempre instável, na escuridão das incertezas, sem saber a priori, aonde esse esforço levará. Mas a cada palmo conquistado, como um aventureiro, reavivar a esperança que desta forma, com fé neste método de exploração, é possível encontrar com alegria, novidades, surpresas, novas bifurcações, picadas, terrores, fabulosos monstros, entre os pedregulhos e riachos, subidas e descidas.

As conhecidas trilhas tradicionais, de dura terra batida, caminhos já percorridos, oferecem aparente segurança na tradição cartesiana. Mas o reflexo da iluminação, com seu espelho brilhante, ofusca a percepção do caminhante, sem permitir-lhe alcançar profundidades. Trilhas idolatradas muito transitadas, endurecidas com supostos saberes categóricos, matam os novos brotos, o imprevisível e o potencial da criação.

É importante conciliar a fidelidade à tradição psicanalítica, ao espírito dos nossos grandes pensadores, equilibrados nos seus ombros, com a possibilidade de enxergar outras dimensões, outras paisagens, ousar outros métodos, nos apropriando do poder criativo dos mestres e sua incessante capacidade de questionamento.

A construção permanente da subjetividade profissional depende da cultura institucional, a própria experiência clínica enraizada na análise pessoal e nos acontecimentos de nossa vida.

A predição, o prognóstico como estigma do destino, o presságio, o vaticínio – poderes do sacerdócio – são perigosas tentações para um psicanalista. O determinismo, a relação unívoca entre causas e efeitos, a busca do logos cartesiano inebriam de onipotência e corroem a essência da psicanálise.

Como nas crianças, a sábia ignorância é nossa aliada para transitar entre paradoxos e talvez alcançar o não representado, portal da criação.

No espírito do analista, para iniciar sua incrível aventura – em cada momento da sessão, com cada paciente – e não correr riscos desnecessários, é preciso dispor de capacidade de questionar a vocação para ser psicanalista.

A vocação para ser psicanalista

Sempre é pertinente a indagação a si próprio sobre a profissão escolhida e escolhê-la momento a momento. A autorização para tentar ser e devir psicanalista precisa nascer das entranhas.

Todos aqui estamos porque fomos, um dia, aprovados no processo de seleção desta casa. Mas o questionamento a que me refiro é íntimo, ontológico, existencial. Por que desejo vir a ser psicanalista?

A mente em análise, reanálise e autoanálise

Se nossa mente, nosso ser, está implicado na relação com o paciente e faz parte do campo analítico (Baranger & Baranger, 1961-1962), é preciso maturidade psíquica para observar, perceber e monitorar os sinais que nossa alma nos oferece no trabalho com a singularidade de cada paciente.

Sonhos, pesadelos, psicossomatizações, mal-estares, preocupação, atuações, lapsos, encantamento, apatia, quando analisados, podem ser portais para aceder a certos derivados do inconsciente em jogo no profissional, no paciente, na relação.

Paixão

Na acepção de Bion (1963), é uma emoção compartilhada de mente a mente, com profundo respeito e consideração pelo objeto, que integra os vínculos de amor, ódio e conhecimento, harmonicamente; sem possessão nem violência. Sejamos analistas apaixonados pela beleza do método (Meltzer, 1971/1997), e inspiremos o paciente a ser também nosso melhor e apaixonado aliado (Bianchedi et al.,1999).

Estado de mente do analista com abertura e receptividade para o outro. A fé é uma experiência subjetiva de contato verdadeiro com o outro (Silva, 2018). Uma atitude de busca com encontros transitórios com a verdade, com a beleza, com o conhecimento.

Coragem

Para dizer verdades com firmeza amorosa, no momento oportuno, mesmo que dolorosas. Coragem para não evitar e/ou sufocar o ódio (Winnicott, 1949), a raiva, a destrutividade, o ressentimento, a apatia, o cansaço em nós, no paciente, em rotas de fuga. Entre elas, destaco as atitudes sedutoras e/ou educativas, as conversas amistosas, as confissões, as orientações, opiniões, induções, racionalizações. Das tormentas e trovões na sala de análise pode surgir certa luz.

Humildade

Já que somos apenas homens, mesmo que analistas,nosso saber será sempre limitado e imensa nossa ignorância diante da incognoscível alma humana. Por isto, ante os impasses e turbulências com um paciente, aproveitar a oportunidade preciosa de aprendizado, sobre nós mesmos, trabalhando a situação em análise e reanálise, consultando um colega para perceber o que de nós está nesse emaranhado nebuloso. Claro que há limites e é preciso poder reconhecê-los, sem desistir de nossa função. O analista encontrará outro paciente, mas nem sempre o paciente voltará a se permitir outra experiência de análise. Não se trata de ter que prosseguir uma análise para garantir nossa onipotência e narcisismo. A questão é indagar se foi realizado todo o possível para compreender a interrupção anunciada.

Escrita detalhada das sessões, observação atenta de nossas próprias emoções, pictogramas, ideias, lembranças que aparecem na nossa mente; sonhos e pesadelos; a procura de um interlocutor para ter um segundo olhar, a escuta da escuta podem transformar os impasses em oportunidades para encontrar outros níveis de profundidade e sentidos na relação desfalecente e ameaçada.

Responsabilidade

Compreendida como a sublime tentativa de reparação na Posição Depressiva (PD), bem diferente da culpa ante a perda do objeto e da previsibilidade.

A esperança de poder compreender a um outro na alteridade e transformar seu sofrimento se aninham na profundeza do psiquismo humano (Puget, 2015). Responder ao paciente na situação analítica implica assumir o compromisso ético de cumprir a função proposta, enraizada na verdade e na realidade.

Não é para induzir o paciente a seguir o "bom caminho", numa linha adaptativa, na contramão da psicanálise. Trata-se de favorecer que desse encontro inédito, estético, misterioso, entre o analista e o analisando, ambos, por estarem visceralmente implicados, possam aceder às transformações no ser, para Bion, em O.

Cada espaço da constituição subjetiva do analista precisa ser respeitado naquilo que tem de próprio.

Assumir com responsabilidade a formação e a filiação a esta instituição implica dela participar ativamente:

a) Politicamente, nos espaços legitimados para o debate das diferenças, divergências, confrontos, novas ideias, com profundidade, para aprimorar nossa ciência-arte, em todos os sentidos, e não para planejar um alpinismo político à procura de cargos e status, para sucumbir nas águas do narcisismo. Um exercício para respeitar o outro, sem anular os efeitos da diversidade e esterilizar o diálogo.

A fragilidade na inserção institucional, posturas acríticas, o desinteresse, o isolamento, o conformismo, a apatia, o anonimato, a indiferença, "para que me meter...; tudo seguirá igual...; eles que resolvam...", não colaboram para forjar uma postura analítica que visa a transformação de todos os membros desta casa e dos pacientes. A cultura nos atravessa!!! Somos seres sociais e políticos, de preferência, engajados para não cometer pecados éticos. A tocha ainda acesa da vivacidade psicanalítica, mesmo que trêmula por fatores históricos, socioculturais, e também por nossos erros, é hoje por vocês recebida. Não a apaguem!!!

b)Cientificamente, a SBPSP oferece, através da Diretoria Científica, atividades variadas, seja com convidados estrangeiros, seja com colegas, que esculpem nossa identidade numa formação continuada. Todas as escolas de pensamento têm seu espaço nesta casa. O confronto com o diferente, o estranho, pode criar novas oportunidades para mapear convergências, divergências e abrir o portal para o novo.

Os Grupos de Estudo abertos a todos os colegas são também espaços privilegiados para aprofundar temas e autores. IPA, fepal e febrapsi nos oferecem inúmeras possibilidades de interlocução para aprimorar nossa formação.

c) Socialmente, seja nos encontros espontâneos, em que podem surgir amizades, seja na criação de uma cultura acolhedora e crítica, continente das diferenças, seja na procura de convívio no lazer, nos encontros culturais e festivos, seja nos laços de solidariedade, nas horas de dor. Posso testemunhar que a SBPSP foi uma companhia viva na ocasião de meu acidente.

Paciência

Tanto o caos quanto a turbulência emocional assustam, perseguem, são difíceis de tolerar. Eles despertam os fantasmas e angústias da posição esquizoparanoide (PS). Ser capaz de tolerá-los constitui o que Bion (1973) chama de paciência.

Ter paciência ante o caos é angustiante e requer muita fé na verdade que lhe subjaz, mesmo que desconhecida. A onipotência, onisciência, os refúgios na memória, no desejo, na compreensão, na evidência dos sentidos, são perigosas tentações ante o desconhecido. Paciência não é complacência, no dizer de Britton.

Liberdade

Para não se submeter ao paciente, a líderes carismáticos, aos autores consagrados, às necessárias instituições, ao próprio analista. Assumir nosso desamparo e solidão no consultório, onde é de desejar que sejamos nós mesmos com o paciente, sem nos sufocar com os ideais das autoridades científicas, as teorias.

Os grandes mestres da psicanálise, com suas obras exemplares, não esgotaram a alma humana. Nossos analistas, professores, supervisores são limitados. Importa poder pensar por nós mesmos!!!

 

Palavras a dizer

Não transitem por esta casa contando os minutos para cumprir os cinco anos de análise conforme o que reza o Estatuto, ou fazendo exercícios aritméticos para acabar com os créditos obrigatórios e eletivos. Não desperdicem as oportunidades que a SBPSP oferece!!

Deixem-se atravessar pela experiência, e lutem para atravessá-la com assombro, vigor, curiosidade, sem confundir acumulação de conhecimentos com verdadeiro enriquecimento pessoal.

Aquilo que traz o paciente para iniciar uma análise, antes de entrar na nossa sala, a ele pertence; mas o vínculo imanente1 (Moreno, 2016) – do qual somos plenamente parte – que com ele conquistamos é também de nossa responsabilidade. Esse encontro de subjetividades, cenário de desenvolvimentos conectivos, que coagula o viés científico, artístico e ético, que maravilha e espanta, é potencialmente transformador!!!

Atitude analítica implica fidelidade, e disciplina exigente com o método na construção do objeto analítico.

Com o cantor e compositor Raul Seixas, lhes auguro um árduo e fascinante percurso para vir a ser um analista vivo, comprometido e criativo, com disponibilidade para investir no paciente (Mendes de Almeida, 2008), motivo da existência da SBPSP, que hoje abre as portas a esta nova geração. Que nosso foco seja como fazer da psicanálise uma ferramenta mais profunda e verdadeira para investigar e aliviar as dores da alma humana!!

Eu já fui de vários jeitos
Jeitos que não eram eu
Demorei a encontrar meu caminho
Trilhando caminhos que não eram o meu
Mas ao longo dos caminhos
Encontrei muitas flores
E também muitos espinhos
Descobri vários amores
Enfrentei vários temores
Pelas beiras dos caminhos
E eles foram se fundindo
Todos em uma coisa só
Os caminhos, os amores
E os temores
Tudo o que encontrei
Tentando ser o que não era eu
Transformou-me no que eu sou
E formou o caminho
Que finalmente era o meu...
(Seixas, 1991)

Agradeço à Vera Fonseca o convite, que muito me honra.

Uma alegria compartilhar este compromisso com a querida Rahel.

 

Referências

Baranger, M. & Baranger, W. (1961-1962). La situación analítica como campo dinâmico. Revista Uruguaya de Psicoanálisis, 4,3-54.         [ Links ]

Bianchedi, E. T. et al. (1999). Bion conocido/desconocido. El psicoanalista apasionado o aprendiendo de la experiencia emocional (pp. 187-198). Buenos Aires: Lugar Editorial.         [ Links ]

Bion, W. (1963). Obra completa.         [ Links ]

Ferro, A. (2017). Tormentos de almas. Paixões, sintomas, sonhos. São Paulo: Blucher.         [ Links ]

Freud, S. (1976). Puntualizaciones sobre el amor de transferencia (nuevos consejos sobre la técnica del psicoanálisis, III). In S. Freud, Obras completas (Vol. 12, p. 172). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1914)        [ Links ]

Meltzer, D. (1997). Sinceridad: un estudio en el clima de las relaciones humanas. In A. Hahn (Ed.), Sinceridad y otros trabajos. Buenos Aires: Spatia. (Trabalho original publicado em 1971)        [ Links ]

Mendes de Almeida, M. (2008). O investimento desejante do analista frente a movimentos de afastamento e aproximação no trabalho com os transtornos autísticos: impasses e nuances. Revista Latino-Americana de Psicanálise, 8,169-84.         [ Links ]

Moreno, J. (2016). El psicoanálisis interrogado. De las causas al devenir (Caps. 11 e 12). Buenos Aires: Lugar Editorial.         [ Links ]

Puget, J. (2015). Subjetivación discontinua y psicoanálisis. Incertidumbre y certezas (Cap. 9). Buenos Aires: Lugar Editorial.         [ Links ]

Seixas, R. (1991) Eu já fui de vários jeitos. Recuperado em 18 fev. 2018, de https://www.youtube.com/watch?v=pQgQCuVyQPA.         [ Links ]

Silva, M. P. e. (2018). O absurdo da fé. Apresentado no GEPCampinas, 24 de fevereiro de 2018.         [ Links ]

Winnicott, D. (1949). Hate in the countertransference. International Journal of Psychoanalysis, 30,69-75.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 27/2/2018
Aceito em: 27/2/2018

 

 

1 Propriedade pela qual uma determinada realidade permanece fechada em si mesma, esgotando nela todo seu ser e seu atuar (Moreno, 2016).

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons