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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.51 no.95 São Paulo jul./dez. 2018
PSICANÁLISE HOJE: CLÍNICA E FORMAÇÃO
O coração gelado: estratégias de sobrevivência psíquica a traumatismos severos
The frozen heart: psychic survival strategies against severe trauma
El corazón congelado: estrategias de supervivencia psíquica frente a los traumatismos severos
Le cœur gelé: stratégies de survie psychique contre les traumatismes graves
Fatima Regina Flórido Cesar de Alencastro GraçaI; Luís Cláudio Mendonça FigueiredoII
IDoutora em psicologia clínica e pós-doutoranda pela PUC-SP. São Paulo. fatacesar@gmail.com
IIPsicanalista, professor aposentado da USP e professor da PUC-SP. São Paulo. lclaudio.tablet@gmail.com
RESUMO
O presente artigo visa apresentar a ideia de congelamento como metáfora para a insensibilidade e a anestesia diante de "traumatismos precoces", no contexto da clínica da clivagem, de adoecimentos por "apassivação" e "patologias narcísico-identitárias". Para discutir o tema, é relatado brevemente o caso de uma paciente, aqui chamada Cecília, descrevendo seu adoecimento e defesas ativadas e destacando a "neutralização energética" diante de uma situação de desamparo extremo vivenciado na primeira infância. A aqui denominada clínica da cisão e dos adoecimentos por apassivação tem convocado os analistas a refletir acerca de outras estratégias terapêuticas, de modo que acompanhe não apenas as partes amortecidas, mas também os recursos egoicos de cada paciente.
Palavras-chave: anestesia, apassivação, agonia, desamparo, traumatismo primário
ABSTRACT
The present article proposes the presentation of the idea of freezing as a metaphor for insensitivity and anesthesia against early trauma, understanding it within the context of a clinic of cleavage, deterioration due to apassivation and narcissistic pathologies. As an illustration, we present the report of a case of a patient, here called Cecília, describing her illness and activated defenses, highlighting the "energetic neutralization" of Roussillon, facing a situation of extreme helplessness experienced in early childhood. Faced to what we call the scission clinic and the illnesses by apassivation, we are called to reflect on the necessary therapeutic strategies that accompany not only the cushioned parts but also the egoic resources of the patient.
Keywords: freezing, anesthesia, impotence, helplessness, primary trauma
RESUMEN
El presente artículo propone la presentación de la idea de congelación como metáfora de la insensibilidad y la anestesia contra el traumatismo temprano, entendiéndola en el contexto de una clínica de escisión, deterioro por apassivación y patologías narcisistas. A modo de ejemplo, presentamos el relato de un caso de una paciente, aquí llamada Cecília, describiendo su enfermedad y las defensas activadas, destacando la "neutralización energética" del Roussillon, frente a una situación de extrema indefensión experimentada en la primera infancia. Frente a lo que llamamos la clínica de la cisión y las enfermedades por apassivación, estamos llamados a reflexionar sobre las estrategias terapéuticas necesarias que acompañan no sólo las partes amortiguadas sino también los recursos egoicos del paciente.
Palabras clave: congelación, anestesia, impotencia, traumatismo primario
RÉSUMÉ
Cet article est de proposer la présentation de l'idée de gel comme une métaphore de l'insensibilité et l'anesthésie avant au début du traumatisme, le comprendre dans le contexte d'un clivage clinique des maladies par passivation et pathologies narcissiques identité.Comme illustration, nous présentons le rapport de cas d'un patient ici nommé Cecília, décrivant sa maladie et les défenses ont permis, en vedette dans la "neutralisation de l'énergie" du Roussillon, par rapport à une situation extrême d'impuissance vécu dans la première enfance. Transférer à ce que nous nommons que la répartition et les maladies cliniques par passivation, nous sommes appelés à réfléchir sur les stratégies thérapeutiques nécessaires qui accompagnent non seulement les parties, mais aussi les amorties caractéristiques egoic du patient.
Mots-clés: gel, l'anesthésie, la passivation, l'impuissance, le traumatisme primaire
Meu coração tropical está coberto de neve, mas
Ferve em seu cofre gelado
E a voz vibra e a mão escreve mar
Bendita lâmina grave que fere a parede e traz
As febres loucas e breves
Que mancham o silêncio e o cais
(Bosco e Blanc, 1975)
Inicio o artigo trazendo um breve relato do caso de Cecília, paciente que ainda se encontrava em atendimento em meu consultório à época da escrita deste texto. Em seguida, apresento aportes teóricos de Ferenczi, Winnicott, Roussillon, Bollas, Green e Figueiredo, de modo que subsidie a discussão acerca dos adoecimentos por apassivação e das estratégias clínicas diante desses casos.
"Socorro, eu não estou sentindo nada!"
Ser
Da neve ao fogo um só ardor
(Andrade, 2013, p. 28)
Quando chegou para o primeiro atendimento, há 15 anos, Cecília, agora com 40 anos de idade, estava deprimida, aterrorizada e com múltiplos sintomas fóbicos. Recém-casada, havia mudado de cidade há pouco e vinha se sentindo bem, até que fez uso de maconha, e isso desencadeou uma crise de angústia muito intensa. O colapso das defesas a conduziu a uma experiência de horror, levando-a a retornar ao episódio da morte do pai, quando estava com 7 anos de idade.
No início de nosso trabalho, contou-me que não reagira ao falecimento, não conseguia lembrar-se do pai nem lamentar sua morte. Na ocasião, dedicou-se à mãe, que, desamparada, entrara em depressão profunda, tentando o suicídio em várias ocasiões - voltada a si, oscilava entre depressão e acessos de fúria, sobrecarregando e aterrorizando a filha, que, agora, era colocada no papel de cuidadora, ficando impossibilitada de viver o próprio luto pela perda do pai.
O relato dessa vivência anestesiante me auxiliou a compreender o que acontecera com Cecília; pois, com o tempo, o coração gelado, distante e frio fora cedendo lugar para o emergir de um estado agônico, de desamparo e desespero, levando a vivências de dor extrema, sem que Cecília tivesse ainda recursos para sustentá-las, fossem eles internos ou externos.
Quando chega para o tratamento analítico, Cecília se apresenta, portanto, após o tempo de anestesia que experimentara desde a morte do pai. As defesas, por um lado rígidas, eram por sua vez frágeis e, na passagem para a idade adulta, aos 25 anos, enfrentando mudanças (casamento e mudança de cidade com a consequente saída da casa materna), sofreram colapso. Quando chega a mim, é em carne viva que se apresenta, não mais o coração gelado, nem a anestesia e o distanciamento diante das dores da vida.
Estamos lidando, pois, com o absoluto, com o que não tem representação, com o padecer das urgências, com o que não possibilita tempo de espera: a agonia do afogado diante da iminência da morte. O pensamento se anula pelo inundar de angústias, do que não tem saída, de desesperança e perda da ilusão de viver. Um tempo de equivocada autossuficiência se desmorona: no lugar, surgem os pedidos desesperados de ajuda, de que a analista a salve de imediato do terror que a assalta.
Se antes do colapso a apatia se situava no centro da relação de Cecília com o mundo e com a vida, reação possível ao traumatismo inicial, nos primeiros oito anos de análise, passara a se organizar em torno de angústia, depressão e pânico. Nunca mais a anestesia: a geleira ocultava um vulcão de desespero - agonia é um termo mais apropriado para descrever os estados de ser que a levavam (e ainda levam) a lançar gestos de socorro em minha direção. Desde o colapso (Winnicott, 1963), há 15 anos, emergira o sentir, os excessos, os transbordamentos de dores; um dia a dia povoado de enfrentamentos das inúmeras tarefas que a vida impõe.
Nos primeiros anos, episódios depressivos com crises de ansiedade eram testemunhados por mim. Tristeza e medos dos mais diversos eram enfrentados por Cecília: de elevador, de lugares altos, agorafobia, de contato social, de viajar, de enlouquecer, de morrer...
Sua ligação comigo era intensa: eu sustentava a esperança que se extraviava nas noites insones e nos dias de tormenta, assegurando que o abandono não se repetiria, malgrado minhas imperfeições e nossos necessários momentos de separação. Vinculava-se avidamente a mim como um náufrago se segurando nos restos do barco afundado: assim foi se tecendo, desde sempre, a confiabilidade - aquela que perdera por ocasião do trauma primário (Roussillon, 2012, p. 6), este também entendido como precoce, segundo Ferenczi (1934), a que nos referiremos adiante.
Lado a lado com a fragilidade e a ameaça permanente do terror, uma força se revelava: o emergir do sentir trouxera à tona sensibilidade e conexão com processos internos que a ajudavam a construir uma existência rica em conquistas profissionais e emocionais - incluindo, aqui, um casamento com muitas trocas afetivas. O empobrecimento do eu (Roussillon, 2012), que acompanhara suas defesas em torno da anestesia cedera lugar a uma fértil, embora doída, vida psíquica.
Mesmo com Cecília afirmando que "trocaria toda a sua sensibilidade pelo fim da agonia", eu confiava que novos caminhos, conciliando riqueza de ser com tranquilidade, fossem possíveis, apesar de seu sofrimento.
Senti-me desafiada, desde o início do processo analítico pela frente: reconstrução histórica e os insights não a tranquilizavam nem davam novos destinos às experiências de dor. Cabe aqui o título do texto de Mannoni (1973, p. 13): "Eu sei, mas mesmo assim...". Embora tivesse recursos egoicos e aspectos saudáveis, permanecia e permanece como questão central a dificuldade do que Roussillon (2013, p. 112) denominou "apropriação subjetiva".
De fato, não apenas Cecília, mas também outros pacientes demandam de nós, analistas, estratégias terapêuticas capazes de facilitar a apropriação subjetiva. Entendendo a apropriação subjetiva como vetor de transformação além da tomada de consciência, cito Roussillon, procurando esclarecer esse importante conceito, que ganha maior importância à medida que nos defrontamos com os casos ditos difíceis (podendo também ser denominados no campo da não neurose):
O tornar-sujeito não é simplesmente uma questão de consciência, é mais uma questão de apropriação, o que quer dizer que podemos nos apropriar sem haver uma tomada de consciência. O objetivo da psicanálise não é necessariamente uma tomada de consciência de tudo, mas integrar aquilo com que fomos confrontados. (Roussillon, 2013, p. 113)
Um novo divisor de águas surgiu quando Cecília engravidou: apesar de uma gestação em meio a sentimentos depressivos e severas crises de angústia, o nascimento da filha lhe possibilitou uma experiência renovadora. O inédito a visitara de outra forma: não se via capaz de estabelecer vínculo tão forte quanto aquele que agora tinha com o recém-nascido.
O contato com a filha lhe possibilitou alegria e tranquilidade que nunca vivenciara. Agora experimentava sentimentos amorosos, nunca mais se deprimira e durante toda a primeira infância da menina permanecera tranquila e sem crises de ansiedade.
A partir do nascimento da filha, Cecília passara a manter-se mais vitalizada e confiante na vida: descobrira novas formas de prazer, como passear e viajar. Seus deslocamentos geográficos, suas noites calmas depois de anos de insônia falavam da conquista de deslocamentos internos que a retiravam da fixidez do lugar de desespero existencial.
Depois dos primeiros anos, voltara a experimentar crises de angústia, mas nunca mais se deprimira. A ansiedade e o medo se tornaram pano de fundo de uma vida rica em conquistas afetivas e de vasto acesso às questões internas, mantendo-a na análise, e ouso afirmar que talvez por mais tempo, se não para sempre (comigo ou com outro analista).
Traumatismos precoces e o congelamento como tentativa de solução
O breve relato do caso de Cecília nos leva a refletir acerca do congelamento como uma rica metáfora para entendermos determinados adoecimentos psíquicos determinados em virtude da "precocidade do trauma" (Ferenczi, 1929, p. 50), ou "traumatismos primários", seguindo a linha de pensamento de Roussillon (2012, p. 272).
O coração parece se enregelar diante do desespero existencial decorrente de estados de desamparo, quando os recursos internos e externos se esgotam, "estados que vão além da falta e da esperança" (Roussillon, 2012, p. 280). Porém, antes, penso ser necessário contextualizar a que traumatismo me refiro aqui - isso porque um estado de desamparo precoce emerge do trauma sofrido, requerendo "soluções não simbólicas instauradas para tentar bloquear o retorno desse desamparo" (Roussillon, 2012, p. 271).
Sigo inicialmente o pensamento de Figueiredo (2018), que vem situar os traumatismos precoces como adoecimentos por passivação inseridos no que ele denomina matriz ferencziana (incluindo também Balint e Winnicott), em contraposição à matriz freudo-kleiniana. Ambas se distinguem no que concerne à reação ao trauma.
Na primeira tradição, por mais sérios o trauma e o estado de desamparo, por mais primitivas as angústias, sempre haverá recursos defensivos; portanto, uma resposta ativa, de modo que os adoecimentos se dão por ativação (das angústias e das defesas). Já na matriz ferencziana, o trauma ultrapassa as possibilidades de defesa ativa e assim, certos adoecimentos se dão por passivação: processo que conduz o psiquismo de volta ao não ser, isto é, à ausência de atividade.
Há ainda uma consideração da morte - consideração esta que aprofunda o que estamos ressaltando em relação à diferença entre as duas matrizes - seja a morte absoluta, quando um bebê é submetido a traumas graves e precoces (que vemos em Ferenczi (1929) em seu texto "A criança mal acolhida e sua pulsão de morte"), sejam formas de morte em vida, seja a morte temida, entretanto já acontecida (em razão de uma falha grave do ambiente ocorrida no período da dependência absoluta), mas não experimentada (como desenvolve Winnicott (1963) em seu texto "O medo do colapso").
Na matriz ferencziana, as cisões que se dão são mais radicais e graves do que aquelas referidas por Melanie Klein. A reação imediata ao trauma é a "comoção psíquica", descrita como uma vivência que se refere a uma "grande dor": uma "agonia psíquica e física que acarreta uma dor incompreensível e insuportável" (Ferenczi, 1931, p. 79).
O autor se refere a "choque", identificando-o com a aniquilação do sentimento de si. Assinala que a palavra Erschutterung (comoção psíquica) deriva de Schutt, (restos, destroços) e "engloba o desmoronamento, a perda de sua forma própria e a aceitação fácil e sem resistência de uma forma outorgada, 'à maneira de um saco de farinha'" (Ferenczi, 1932, p. 109).
Tal modalidade extrema de cisão - a "clivagem narcísica" (Ferenczi, 1932, p. 114) -, em que uma parte morre ou deixa-se morrer para que outra sobreviva, encontra-se vinculada diretamente a traumas precoces. Pela clivagem, a busca é apartar-se da vivência traumática e conter uma dor insuportável.
Continuando com Figueiredo:
A morte, nos processos descritos por Ferenczi, se insinua duplamente: de um lado, a parte traumatizada fica em um estado de assédio, silenciosa e encolhida (um verdadeiro self protegido e engaiolado, mas também amortecido e mortificado). De outro, a parte eficaz e operativa (o falso self), às vezes muito diligente e esperto, na verdade funciona, em casos extremos, quase como um autômato, como um inorgânico em atividade, como um orgânico mineralizado. Sua pseudomaturidade é também uma pseudovitalidade. Daí a sensação de não vida, de não realidade, de vazio, de não nascimento que Winnicott descreveu tão bem ao falar dos pacientes esquizoides do tipo falso self. Estas diversas modalidades de retorno à quase morte como forma de manutenção da vida, seja pelo mimetismo puro, pela identificação com o agressor, pela autotomia (em que partes são descartadas para que o resto sobreviva) e pela autoanestesia, sempre estiveram no foco ferencziano em seus trabalhos clínicos com os pacientes traumatizados e em suas teorias a respeito. (2002, p. 919)
Um processo de passivação emerge em decorrência do trauma precoce, determinando uma condição de passividade e de retorno ao inerte. Trauma severo e cisão radical que conduzem a uma condição de desamparo de ser e se encontrar num estado extremo de falta de defesas.
Aqui, vale ressaltar, como já mencionamos, que o trauma na matriz ferencziana e a noção de clivagem podem ser relacionados a fenômenos que acontecem no reino animal: muitas espécies reagem com enrijecimento e congelamento (freezing) a perigos extremos.
Estabelecemos, portanto, uma primeira associação do mecanismo de congelamento nas espécies animais com a anestesia, o congelamento afetivo e psíquico resultante da clivagem pós-traumática - esta busca, na verdade, algum apaziguamento diante de uma dor insuportável, de um desespero existencial.
Entretanto, para evadir-se do estado de aflição, nomeadamente da "agonia", o indivíduo deixa de sentir: eis um coração gelado, um núcleo frio que leva a uma evitação dos investimentos de objeto como proteção contra a reativação do "desamparo primário" (Roussillon, 2012, p. 279), como vinha ocorrendo com Cecília.
Para sobreviver, para proteger-se da catástrofe psíquica, o indivíduo aparta-se da sua vida subjetiva. "Não sente mais o estado traumático, não sente mais o desamparo, não se sente mais no lugar onde está, descentra-se de si mesmo, afasta-se de sua experiência subjetiva" (Roussillon, 2012, p. 280). A insensibilidade situa-se no centro do que advém após o trauma, e não precisamos nos restringir ao freezing animal para introduzir aqui a metáfora do congelamento.
No caso de Cecília, podemos pensar no choque tal qual descrito por Ferenczi (1934, p. 110): uma insensibilidade anestesiante dominava a reação à perda do pai. Além disso, uma exposição a um "terrorismo do sofrimento" (Ferenczi, 1933, p. 105) e à violência materna nos direciona ao pensamento teórico-clínico do mesmo autor.
Penso que o estado gelado-anestesiado de Cecília fora uma tentativa de solução de manter a clivagem; ou seja, como a vivência traumática sempre ameaça retornar, o eu recorre a diversas dessas tentativas de solução contra esse retorno da experiência clivada.
Complementando o pensamento de Ferenczi, seguimos agora com Roussillon (2012), que nos auxilia na compreensão do que ele denomina "traumatismo primário", próximo da noção ferencziana de "traumatismo precoce". O autor se refere a sofrimentos narcísicos-identitários, ou seja, sofrimentos narcísicos que atingem a identidade do indivíduo, caracterizando-se mais pela falta de ser do que pela falta no ser.
Em contraposição ao "traumatismo primário", o "traumatismo secundário" é o território das neuroses, do recalcamento, do retorno do recalcado - território este que coincide com o espaço representativo.
Para a compreensão de um grande número de sofrimentos narcísicos, no lugar do recalque e do retorno do recalcado, lidaremos com a clivagem e com o retorno do clivado e com as noções de "traumatismo primário" e "desamparo primário", as quais ocupam o centro do entendimento dessas patologias.
No "traumatismo primário", dá-se um esgotamento dos recursos internos do sujeito diante de uma experiência de transbordamento, incorrendo num estado de "desamparo primário" (Roussillon, 2012, p. 278) que se traduz como estado de desprazer intenso, sem saída interna, sem esperança, sem representação.
Daí decorre que a experiência subjetiva traumática não é passível de ser integrável na subjetividade, sendo clivada, mas sempre ameaçando retornar, levando o eu a procurar soluções para a manutenção da clivagem primária. Vale ressaltar que, em contraposição ao "traumatismo primário", o "traumatismo secundário" é o território das neuroses, do recalcamento, do retorno do recalcado - território este que coincide com o espaço representativo.
A noção de "traumatismo primário" se aplica com propriedade a traumatismos precoces, e aqui vemos uma sobreposição à matriz ferencziana. O modelo apresentado por Roussillon (2012) também se estende a qualquer experiência de desamparo ante um transbordamento, incluindo aqui traumas ocorridos numa idade mais tardia.
A confusão temporal e o desespero de Cecília
Roussillon (2004) relaciona o não conhecimento infantil do limite, do relativo e do tempo (um presente eterno) com a reativação na transferência do mesmo caráter absoluto, atemporal. Os telefonemas no meio da noite que recebia de Cecília atestam a impossibilidade de espera, a temporalidade extraviada: o sem tempo, sem fim, sem esperança. Se o infantil aqui comparece em toda a sua radicalidade, apresenta-se "uma organização da temporalidade que não contém indício temporal, sinal de fim, saída" (Roussillon, 2004, p. 28).
Um presente eterno, que pode equivaler a um morrer para sempre, requer do analista uma reintrodução do tempo - o passado, que ficara congelado, precisa ganhar representação na transferência.
O desespero advém da experiência vivida como presente, atual, atemporal, e não como reedição do passado. Entendo que minha função como analista de Cecília era realizar um trabalho de historicização, de perseguir a emergência primária da agonia, para protegê-la dessa confusão temporal e da inundação de angústias sem nome e sem possibilidade de significação.
Parto do entendimento da dor de Cecília articulando-a aos adoecimentos por passivação e às patologias narcísico-identitárias - onde falta o objeto de recurso, daí advém a falta de ser. É necessário assim relacionar tais estados narcísico-identitários ao fracasso do objeto em responder à expectativa da criança: apresenta-se inatingível, insensível, indisponível.
Se Cecília fora primeiramente invadida pela morte do pai, a inacessibilidade da mãe, absorta em seu eterno luto, lançara-a num estado de desamparo extremo. Primeiramente se refugiara em seu "cofre gelado"; depois, o desespero absoluto fez sua aparição ante o desabar das defesas.
Aqui, podemos identificar a clínica da clivagem e do traumatismo precoce/primário como a clínica do não acontecido: do desencontro severo com o objeto, do que não foi sentido, do que não foi sofrido. Dessa forma, se a problemática da negatividade se situa no centro tanto da modalidade dos estados narcísico-identitários como da forma de transferência, referida por Roussillon como paradoxal:
a questão é mais do não advindo em si do que da perda, o paradoxo do processo de luto sendo o confronto do sujeito com o fato de ter de renunciar mais ao que não pôde ser seu do que àquilo que foi e ficou perdido. (2012, p. 276)
Na transferência narcísica, o sujeito solicita que o analista seja o espelho do negativo de si: que este viva o que o paciente não pôde viver e forneça um vínculo entre o que não foi integrado no passado e o momento atual.
Não há como deixar de articular tais patologias com uma reflexão sobre as estratégias terapêuticas necessárias. A vivência de um mundo sem saída que Cecília me apresentava no descrever de suas horas de aflição, nos dias de interminável desesperança, no contato inquieto e de intensa clemência comigo, requeria um "acompanhar afetivamente desta descida ao inferno, deste encontro com o fundo traumático enquistado que é subjacente às agonias psíquicas reatualizadas na transferência" (Roussillon, 2004, p. 21).
A agonia precisa tornar-se tolerável, e o caminho que vislumbrei para auxiliar Cecília é, como afirma Roussillon, "o compartilhamento do afeto" (2004, p. 23), já que estamos no campo do inanalisável. Entretanto, não descuidaremos de, quando possível, tornar a agonia, embora não interpretável, inteligível.
Ampliando essa perspectiva, recorro a Bollas (2013). Considerando que esses pacientes adoecidos por passivação apresentam tanto aspectos desvitalizados como vitalizados e uma dimensão de congelamento - um campo em que morto e vivo se entrelaçam -, o autor propõe uma clínica que acompanhe não apenas as partes amortecidas, mas também as habilidades exigidas para viver no mundo externo.
Como estamos lidando com pacientes desesperançados e dominados por vivências de morte, é grande o risco de perderem de vista seu ser saudável e vital; se essa situação persistir, os recursos egoicos poderão se perder numa regressão maligna, gerando um enfraquecimento existencial que pode se cronificar e durar a vida inteira.
Se o trabalho do objeto primário é fazer nascer originalmente o self, tendo ocorrido falha - seja por invasão ou abandono -, cabe ao analista tentar ressuscitar o paciente de seu estado mortífero, encaminhando o processo terapêutico de modo que constitua um terreno de jogo ali onde o deserto é dominante.
Assim, se por um lado acompanhei a "descida ao inferno", tal como Roussillon (2004, p. 21) afirma, busquei, seguindo Bollas (2013), apresentar os recursos egoicos de Cecília, cuidando para que ela não perdesse contato com seus aspectos vitalizados. Situei-me, pois, numa posição paradoxal: dispondo-me a me deixar afetar e a afetar tanto as partes perturbadas quanto as partes regenerativas do self.
A neutralização energética
A partir do caso de Cecília, busquei compreender melhor como se dá a clivagem pós-traumática e a tentativa de solução para tentar impedir o retorno do estado de desamparo. Entretanto, como esclarece Roussillon (2012, p. 281), o "apartar-se dos traços da experiência traumática não faz com que esta desapareça. Só a faz desaparecer na subjetividade consciente, mas não na subjetividade inconsciente no sentido da clivagem, que conserva seu traço".
O eu fica assim ameaçado com o retorno da experiência traumática, do desamparo, da agonia e do clivado. Assim como o clivado não se situa no registro da representação, também o retorno do clivado não é de natureza representativa, apresentando em ato seus efeitos.
Os traços do traumatismo primário estão além do princípio de prazer-desprazer: aqui é o domínio da compulsão à repetição. A experiência traumática foi vivenciada, deixando traços mnésicos - ou seja, a experiência foi registrada apenas no nível da representação perceptiva, mas não foi apropriada subjetivamente nem simbolizada.
Para tentar bloquear o retorno do clivado, novas defesas (modalidades de ligação não simbólica) serão ativadas, defesas estas que caracterizarão as várias formas dos adoecimentos narcísico-identitários.
Com a finalidade de garantir a sobrevivência psíquica - na tarefa de impedir que estados primitivos de desamparo façam sua reaparição - busca-se, segundo Roussillon:
neutralizar o retorno do clivado através de uma organização do conjunto da vida psíquica destinada a restringir tanto quanto possível os investimentos de objeto e as relações que possam reativar a zona traumática e o estado de falta que a acompanhou. (2012, p. 284)
Dessa forma, limitam-se a área vital e de enriquecimento das possibilidades do eu do sujeito traumatizado.
Dá-se portanto, um empobrecimento psíquico que pode ser mais ou menos manifesto, entretanto, sempre presente. Quando ele é predominante no quadro clínico, caracteriza a ligação não simbólica/tentativa de solução para o traumatismo primário denominada por Roussillon (2012) como neutralização energética. Outras ligações não simbólicas são destacadas: via sexualização (masoquismo e fetichismo), solução somática, soluções grupais e institucionais, bem como a solução delirante.
Não é proposição deste artigo o estudo dessas outras soluções, considerando que a neutralização energética - que tem como consequência uma organização da vida psíquica de modo que restrinja as ligações objetais com o fim de preservar o sujeito da reativação da falta e do traumatismo - está muito próxima do que Ferenczi (1934) descreve como reação anestesiada pós-traumática, do congelamento, da insensibilidade defensiva. Na verdade, a neutralização energética, que aqui relaciono à anestesia pós-traumática de Ferenczi, ganha destaque à medida que faz parte da maioria dos quadros clínicos da clivagem.
Além disso, percebemos em Cecília o recurso a esta modalidade de defesa (anterior ao irromper do desespero, do retorno do pavor clivado): a paciente descrevia um quase permanente estado de apatia, além do bloqueio afetivo, da "frieza" que experimentava, o que gerava um empobrecimento, uma restrição severa na capacidade para viver.
Não apenas as ligações com o desprazer, mas também com o prazer estavam obstruídas: o imprevisível - tendo-a assaltado com violência em sua infância - era evitado, e as oscilações da vida e do mundo eram sentidas como ameaças do retorno do pavor inicial. Essa tentativa de solução não impedira, entretanto, o desmoronamento psíquico posterior.
O sofrimento, a vivência traumática, não desapareceram da subjetividade; mantinham-se clivados. Se Cecília permanecia em vigília constante para impedir o contato com o clivado, o usufruir da vida em suas dimensões de prazer ficava impedido: um desconhecimento a respeito do que "gostava", uma impossibilidade de escolhas prazerosas dominava seu funcionamento psíquico.
Um rígido rearranjo subjetivo era acionado mediante a restrição dos investimentos objetais: a evitação das intensidades e de laços afetivos, a obstrução da curiosidade eram tentativas de impedir a reativação do transbordamento das intensidades que primitivamente a lançaram num estado de não saída e falta de esperança.
O funcionamento como um autômato, em nível de mínima adaptação, surgia como derivado desse cenário de amputação de partes fundamentais do ser: aquelas ligadas às dimensões do afeto, da criatividade, da espontaneidade. A neutralização energética determina, portanto, uma "experiência emocional de desvitalização", como destaca Ogden (2013, p. 39), "uma limitação da capacidade pessoal de estar plenamente vivo como ser humano".
O desinvestimento em seus próprios recursos, assim como nos objetos, que caracteriza essa modalidade defensiva, atinge o cerne do sentir-se vivo: sensações de vazio, de paralisia, de morte dominam o cenário desse quadro clínico.
O frio que preserva a vida
Se o congelamento serve como metáfora para a insensibilidade e a anestesia, equivalendo a um congelamento psíquico e afetivo e associado ao "frio da morte" e à experiência de desvitalização, paradoxalmente, existe uma dimensão do potencial de "conservação do gelo". Se a parte clivada se mantém congelada, impossibilitada de atividade/movimento psíquico, podemos também pensar que existe uma espera/esperança de que a parte sobrevivente ou o outro que se apresenta em socorro degele o que ficou amortecido, apartado do movimento próprio das encaloradas agitações vitais.
Destaco aqui o conceito de regressão de Winnicott (1954), conceito este que se insere na tradição ferencziana, como afirma Figueiredo (2002). A regressão em Ferenczi precede o conceito de "regressão à dependência" de Winnicott (1954, p. 471) - em ambos se estabelece uma positivação da regressão, contrapondo-se à ideia de Freud da regressão a pontos de fixação. Em Ferenczi (1933)se estabelece a relação entre a regressão e o trauma; entretanto, os traumas se tornam patogênicos quando não há regressão possível, em razão do desmentido do adulto, da desautorização do que foi vivenciado pela criança.
Contudo, o que aqui pretendo destacar refere-se à preservação de "instintos vitais organizadores", à "preservação de uma possibilidade nova, ainda que adormecida, no sujeito traumatizado" (Figueiredo, 2002, p. 919), o que sua paciente borderline (Elizabeth Severn) chamou de "Orpha" e "forças órficas". Pela convocação de "Orpha", o ser brutalmente agredido sobrevive, embora à custa da atomização da vida psíquica. Também com o auxílio de Orpha, sustenta-se a possibilidade de o encontro terapêutico trazer à vida a parte que sobreviveu ao trauma.
Portanto, se de um lado a criança é exposta a uma grande dor e a uma experiência de quase morte, as "forças órficas" tentam desesperadamente a sobrevivência, embora à custa da destruição de uma parte de si: a autoclivagem narcísica, assim denominada por Ferenczi (1931, p. 77), que se compõe de uma parte sensível, entretanto destruída, e de outra que sabe tudo, mas nada sente.
O entendimento de Ferenczi acerca do trauma e da regressão e de Winnicott sobre regressão à dependência nos permite relacionar "os instintos vitais organizadores" à ideia winnicottiana de "congelamento da situação de fracasso" (1954). Em ambos, a esperança de cuidado e a revitalização das partes adormecidas se sustentam mediante certas condições - o congelamento se apresenta aqui como condição para a regressão.
Se, para Winnicott, regressão significa inversão de progresso, deve haver no indivíduo uma organização que a permita. Destaco aqui duas condições para a regressão: um ego altamente organizado que possibilite a crença na correção do fracasso inicial e a capacidade de o indivíduo defender seu self da falha ambiental primitiva por meio de um "congelamento da situação de fracasso" (1954, p. 464).
Aqui, o congelamento é destacado como uma maneira de lidar com fracassos que ocorreram na infância precoce; funcionando como recurso para a preservação de partes clivadas, estará associado a:
Uma assunção inconsciente (que pode se tornar consciente) de que mais tarde surgirá a oportunidade de uma experiência renovada na qual a situação de fracasso será degelada e reexperimentada, estando o indivíduo em um estado regredido e em um estado regredido em um meio ambiente que esteja fazendo a adaptação adequada (Winnicott, 1954, p. 464).
Com tais considerações do congelamento, busco ampliar sua função defensiva de inacessibilidade (apoiada no freezing animal), introduzindo sua relação com "instintos vitais organizadores", uma complexa organização de ego, e por fim, com a esperança de uma nova experiência propiciadora da retomada dos aspectos clivados.
Corações insensíveis e a mãe morta
Quando os pacientes adoecidos por anestesia nos procuram, são trazidos pelo self ama-seca (Winnicott, 1960) - a parte que sobreviveu enunciando o pedido de socorro para trazer à vida a outra, que se encontra enrijecida, apartada da possibilidade de sentir; única saída possível para garantir a sobrevivência psíquica.
Também podemos lançar mão aqui da mãe morta de Green (1988): uma imago na psique da criança, em consequência da depressão materna. A mãe, antes objeto vivo, "fonte de vitalidade da criança" (p. 247), transforma-se em figura distante, inanimada, que permanece viva, entretanto psiquicamente morta aos olhos infantis.
Aquilo que Green (1988) denomina "complexo da mãe morta" corresponde a uma depressão, esta repetição de uma depressão infantil causada não pela separação de um objeto, mas ocorrendo na presença da mãe, ela mesma absorta em um luto: em primeiro plano, apresentam-se a tristeza e o desinteresse da mãe pelo filho.
Diante do desinvestimento brutal da mãe, vivido como catástrofe, em um primeiro momento a criança vai buscar uma vã reparação da mãe enlutada. Depois, serão postos em ação dois tipos de defesa: o desinvestimento da mãe e a identificação inconsciente com a mãe morta.
Entretanto, o filho vai se manter prisioneiro dessa mãe morta que não acaba de morrer: "Na dor psíquica, é impossível tanto odiar quanto amar, é impossível gozar mesmo da forma masoquista, impossível pensar. Existe apenas o sentimento de uma captura que despossui o eu dele mesmo e o aliena numa figura irrepresentável" (Green, 1988, p. 260). O centro do Eu esburacado é ocupado pela presença soberana que impede que novos objetos sejam investidos.
Se a ambivalência é fundamental nos depressivos, no complexo da mãe morta o ódio é uma consequência: o que vem à frente é o amor gelado pelo desinvestimento; "o objeto está, de certa forma, hibernando, conservado no frio" (Green, 1988, p. 263, grifos meus).
Green (1988) se refere várias vezes ao frio, ao gelo, afirmando inclusive que tais pacientes sentem muito frio (Cecília também se queixava de frio, mesmo no verão, e precisava manter os pés aquecidos com meias felpudas) até em tempo de calor. Um núcleo frio - no centro do Eu - que "queima como o gelo e anestesia como ele" (p. 264).
O paciente tem seu amor hipotecado à mãe morta, possuído por uma paixão de que ela é o objeto; daí seu luto tornar-se impossível: nutrir a mãe morta, perpetuamente embalsamada - eis sua fantasia fundamental:
O objeto está "morto" (no sentido de não vivo, mesmo se não tiver ocorrido nenhuma morte real); carrega por isto o Eu para um universo deserto, mortífero. O luto branco da mãe induz o luto branco da criança, enterrando uma parte de seu Eu na necrópole materna. Nutrir a mãe morta significa então manter em segredo o mais antigo amor pelo objeto primordial, sepultado pelo recalcamento primário da separação malsucedida entre os dois parceiros da fusão primitiva. (Green, 1988, p. 276)
Penso que Cecília se mantinha em radical fidelidade ao objeto primordial. O amor gelado da mãe morta - por sua ausência como um objeto vivo e significativo - deixa marcas inexoráveis no centro do Eu: um núcleo frio, como diz Green (1988); um estado de congelamento afetivo, que incorreu num congelamento da própria atividade psíquica.
A impossibilidade de amar para além do objeto primário, a restrição de investimentos para além da paixão por ele determinam, como já vimos, um empobrecimento do eu; empobrecimento este que associamos a áreas mortas, desertos glaciais. A alma, um deserto frio. O frio aqui associado à insensibilidade, aos calafrios fúnebres, ao desamparo dos inícios; mas também o frio que conserva, o frio que anestesia e queima.
Considerações finais
Nas águas rumorosas da memória
Contigo acabo agora de nascer
(Andrade, 2013, p. 32)
Para finalizar, retomo as estratégias terapêuticas utilizadas no trabalho com Cecília: nos primeiros anos, a dor era tão intensa que os atendimentos se centravam no compartilhamento do afeto (Roussillon, 2004, p. 21), na experiência de contato comigo, de modo que procurava ir ao encontro das necessidades do eu de minha paciente, amparando seus movimentos regressivos.
Na regressão, ela vivera pela primeira vez o colapso já acontecido (Winnicott, 1963), agora sustentado por minha presença. A depressão cedera lugar ao experimentar aspectos do self até então cindidos, especialmente os ligados ao desejo e ao prazer. Ainda hoje permanece, entretanto, o medo - tudo pode ser perigoso e prenúncio de catástrofe, seguindo o idioma familiar que ditou e continua a enunciar mandatos em que a morte, mais que a vida, tem lugar, e o prazer se mantém proibido.
Novos modos de cuidar têm sido oferecidos por mim: se a infância fora revisitada no início, agora o que penso ser necessário é a oferta de intervenções assinaladoras de seus movimentos de diferenciação da mãe e da história familiar, mostrando-lhe seus aspectos saudáveis, que permaneceram por tanto tempo ocultos pela dor lancinante que atravessava sua vida. Delineia-se, assim, uma proposta de reinventar-se a partir da separação de sua mãe e de seus antepassados.
Quando Cecília chega aos nossos encontros assombrada com seus medos tão conhecidos (embora nada que se compare ao horror inicial), ofereço dados de realidade, propondo tranquilização, aquela que a mãe, alarmada com os movimentos da vida e desvitalizada, não pôde lhe oferecer. É como se eu dissesse: "Vai passar." ou "divirta-se!". Se o passado fora tão traumático, agora é tempo de esquecer. O esquecimento inaugurando uma memória menos pesada, que possibilite a ampliação de sua capacidade de viver no presente com mais leveza e sonhar com um futuro com bons presságios.
Referências
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Recebido em: 22/4/2018
Aceito em: 26/9/2018