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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.52 no.96 São Paulo jan./jun. 2019
INTERFACE COM A CULTURA
Considerações para uma formação política do psicanalista
Considerations for a political formation of psychoanalyst
Consideraciones para una formación política del psicoanalista
Considérations pour une formation politique du psychanalyste
Débora Ferreira Leite de Moraes
Psicóloga, mestre e doutora pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora-colaboradora da Universidade de Brasília (UNB). Professora do Centro Universitário do Distrito Federal (UDF). Brasília. deboraflmoraes@gmail.com
RESUMO
Este artigo, que se inscreve na interface entre a psicanálise e as ciências sociais, pretende interrogar sobre a formação do psicanalista para além do setting clínico tradicional. Partimos de algumas anotações sobre a racionalidade neoliberal que iluminam a interpretação da cultura contemporânea no que diz respeito à competição como norma de conduta e à empresa como modelo de subjetivação. Uma articulação entre competição, desempenho e "autocriação de si" alinhavada a uma crescente instrumentalização dos afetos e do outro tem apontado para novos ideais no campo do imaginário social e para consequências do ponto de vista da economia psíquica. Seguimos essas pistas neste trabalho, considerando que, se os sintomas revelam os movimentos do desejo, se comprovam a atemporalidade do inconsciente e a singularidade de cada narrativa, também, potencialmente, denunciam as contradições de cada tempo da cultura. É dessa perspectiva que questionamos se o posicionamento ético do psicanalista não é, incidentalmente, político.
Palavras-chave: psicanálise, racionalidade neoliberal, formação, política
ABSTRACT
This article, enrolled between psychoanalysis and the social sciences fields, aims to question the formation of the psychoanalyst beyond the traditional clinical setting. We start from some notes about the neoliberal rationality that illuminate the interpretation of the contemporary culture in which the competition is the norm of conduct and the company is the model of subjectivation. An articulation between competition, performance and "self-creation of the self" aligned with an increasing instrumentalization of emotions and of the other, has pointed to new ideals in the social imagery field and to consequences from the psychic point of view. We follow these clues in this work, considering that if the symptoms reveal the movements of desire, if they prove the timelessness of the unconscious and the singularity of each narrative, they also potentially denounce the contradictions of each culture time. It is from this perspective that we question whether the ethical position of the psychoanalyst is not, incidentally, political.
Keywords: psychoanalysis, neoliberal rationality, formation, politics
RESUMEN
Este artículo, que se inscribe en la interfaz entre el psicoanálisis y las ciencias sociales, pretende interrogar sobre la formación del psicoanalista más allá del setting clínico tradicional. Partimos de algunas anotaciones sobre la racionalidad neoliberal que iluminan la interpretación de la cultura contemporánea en lo que se refiere a la competencia como norma de conducta y a la empresa como modelo de subjetivación. Una articulación entre competencia, desempeño y "auto creación de sí mismo" alineadas a una creciente instrumentalización de los afectos y del otro han apuntado a nuevos ideales en el campo del imaginario social y para consecuencias desde el punto de vista de la economía psíquica. Seguimos estas pistas en este trabajo, considerando que si los síntomas indican los movimientos del deseo, se comprueban la atemporalidad del inconsciente y la singularidad de cada narrativa, también, potencialmente, denuncian las contradicciones de cada tiempo de la cultura. Es desde esa perspectiva que cuestionamos si el posicionamiento ético del psicoanalista, no es, incidentalmente, político.
Palabras clave: psicoanálisis, racionalidad neoliberal, formación, política
RÉSUMÉ
Cet article, qui s'inscrit dans l'interface entre la psychanalyse et les sciences sociales, prétend interroger la formation du psychanalyste au-delà du setting clinique traditionnel. Nous partons d'un certain nombre de remarques concernant la rationalité néolibérale, qui mettent en lumière l'interprétation de la culture contemporaine par rapport à la compétition comme norme de conduite et à l'entreprise comme modèle de subjectivation. Une articulation entre compétition, performance et "autocréation de soi", associées à une instrumentalisation croissante des affects et de l'autre, a mis en relief de nouveaux idéaux dans le domaine de l'imaginaire social et des conséquences du point de vue de l'économie psychique. Nous suivons dans ce travail ces pistes de réflexion, en considérant que si les symptômes soulignent les mouvements du désir, ils révèlent l'intemporalité de l'inconscient et la singularité de chaque narrative, et dénoncent également potentiellement les contradictions de chaque moment de la culture. C'est par cette approche que nous nous demandons si le positionnement éthique du psychanalyste n'est pas, incidemment, politique.
Mots-clés: psychanalyse, rationalité néolibérale, formation, politique
Três profissões impossíveis são educar,
curar e governar
(Freud, 1925, p. 347)
O presente artigo pretende interrogar a psicanálise em sua vocação política, dado que, na atualidade, estamos diante de desafios que implicam o psicanalista não só nos contornos do setting psicanalítico tradicional, mas também nos posicionamentos éticos e, incidentalmente, políticos a que somos chamados no cotidiano de nossa prática e formação.
Não estou me referindo apenas aos perigos, sempre à espreita, de tomar a prática clínica em sua dimensão adaptativa ou normalizadora, mas à distância, que muitos preferem manter - em nome de uma prescrita neutralidade e abstinência -, das questões que assolam a contemporaneidade e que denotam especificidades e desafios próprios, diferentes daqueles do século XIX que marcaram a inauguração do campo psicanalítico.
É certo que podemos considerar a atemporalidade da vida psíquica inconsciente e, desse ponto de vista, pensar que o modelo mental proposto por Freud seguiria essa atemporalidade, mas também é certo que devemos - a depender do momento sócio-histórico-político -, depreender e explicitar as texturas dos novos laços sociais: "se as estruturas clínicas variam, as condições de adaptação dos neuróticos ao seu meio social dependem inteiramente da cultura". (Kehl, 2009, p. 24)
Consideremos que na contemporaneidade a norma de conduta é a competição (Dardot & Laval, 2016) atrelada, de forma bastante específica, como demonstraremos mais adiante, às questões relativas ao desempenho (Han, 2017).
Ora, nesse contexto cultural, a lentidão aparece como emergente a ser erradicado por meio de medicamentos ou de terapias também voltadas para a rapidez do resultado. Se "o que motiva a lentidão do depressivo não é uma intenção política, o efeito de sua incapacidade de colocar-se em sintonia como a urgência contemporânea acaba por oferecer resistência às modalidades de gozo oferecidas" (Kehl, 2009, p. 18).
Se a cada tempo da cultura correspondem novas modalidades de laço social, a cada um também deverão, por essa linha de raciocínio, corresponder novas modalidades de sintomas, já que a adaptação dos neuróticos ao meio social é função das interdições e dos modelos que se originam desse meio.
O sintoma, segundo essa perspectiva, pode ser entendido como uma expressão de desacordo em relação à normatividade social e também como denúncia, em suas entrelinhas, de contradições desse contexto do qual é oriundo. Desse ponto de vista, entendemos que a formação social e política do psicanalista deveria ser condição para sua prática clínica.
Se no século XIX as histéricas compunham um grupo social incômodo que revelava as contradições daquele momento, também o aumento das depressões e dos casos de suicídio hoje expressam, como sintoma social, o mal-estar do século XXI.
Há uma convergência na interpretação da depressão como denunciadora dos males da atualidade, tanto entre autores que se debruçam sobre a temática no campo da psicanálise propriamente dito, a exemplo de Kehl (2009) e Roudinesco (2000), quanto no campo das ciências sociais: Dardot e Laval, (2016), Han (2017) e Ehrenberg (2010). Voltaremos a esses autores mais adiante.
Para os propósitos deste preâmbulo cabe pensar que os depressivos, mesmo que sejam escutados em sua singularidade, um a um, no setting clínico tradicional, revelam, em seu conjunto, o alcance da interpretação da cultura à luz da psicanálise e, mais que isso, apontam as implicações éticas e políticas do psicanalista em sua prática clínica.
Para Freud (1921/2011c, p. 14), "a psicologia individual é também, desde o início, psicologia social". Podemos retomar aqui a herança freudiana, especialmente a partir dos clássicos textos "Psicologia das massas e análise do eu" (1921/2011c), "O futuro de uma ilusão" (1927/2014), "O mal-estar na civilização" (1930/2011a) e "Novas conferências introdutórias à psicanálise: acerca de uma visão de mundo" (1933/2010) que, para além de abordarem questões que envolvem a cultura, convergem para uma afirmação importante, presente nesta última obra:
se olharmos a relação entre o processo cultural da humanidade e o processo de desenvolvimento ou educação do indivíduo, sem muito hesitar decidiremos que ambos são de natureza muito parecida, se não forem o mesmo processo realizado em objetos diferentes. (Freud, 1930/2011a, pp. 87-98)
A competição, o desempenho e a "autocriação de si"
Em 24 de abril de 2018 o blog do jornal O Estado de S. Paulo noticiou o suicídio de dois estudantes do Colégio Bandeirantes, em São Paulo. De acordo com a coordenadora, Estela Zanini, "Nós temos expectativas de alto desempenho dos nossos alunos, mas também desenvolvemos muito o lado humano" (Cafardo, 2018).
A instituição, reconhecida e tradicional na capital paulista, até pouco tempo atrás separava os alunos em salas de aula de acordo com suas notas (Cafardo, 2018). Um ranking é sempre baseado em duas condições fundamentais: desempenho e competição. Guardemos essa questão. Na semana seguinte, em 1º de maio de 2018, foi veiculada uma notícia pelo portal uol intitulada "Empresas na China adotam bonés para vigiar emoções de trabalhadores" (Cruz, 2018). Trata-se de sensores acoplados em capacetes "capazes de medir" o estado emocional dos funcionários.
Há uma promessa de aumento de produtividade, uma vez que o ritmo de produção poderia ser ajustado, pelo gestor, de acordo com os níveis de estresse de cada trabalhador. A reportagem traz, dentre outros exemplos, a State Grid Zhejiang Electric Power, que diz ter aumentado seus lucros em cerca de 2 bilhões de yuans (US$ 315 milhões) desde que começou a utilizar a tecnologia de vigilância emocional em 2014 (Cruz, 2018).
Mais do que pensar se a detecção das ondas cerebrais é de fato capaz de informar sobre os nossos afetos, o que está em jogo aqui é uma instrumentalização crescente da afetividade nos novos moldes da racionalidade neoliberal, conforme abordaremos na sequência. Na Universidade de Brasília, em 4 de junho de 2018, uma estudante de ciências sociais, Letícia, de 22 anos, jogou-se da caixa d'água de um dos prédios de aula do campus Darcy Ribeiro. Uma publicação no Facebook da estudante, noticiada por alguns jornais, dizia o seguinte: "Parabéns a vocês que ficam. Só os fortes sobrevivem aqui. Sintam-se vitoriosos" (Delgado, 2018). Em 9 de setembro de 2018 a Folha de S. Paulo publicou uma matéria intitulada "Colégios oferecem atividades para fazer alunos lidar com as emoções". De acordo com a reportagem, a dicotomia entre cognição e afeto vem sendo substituída por uma preocupação em aumentar as atividades que fazem "o estudante lidar com as emoções - já que saber trabalhar em grupo e ter empatia, por exemplo, são qualidades buscadas pelo mercado" (Tieghi, 2018). A serventia ao mercado e as condições de adaptação às normas de conduta contemporâneas ficam evidentes pelo título e por citações dos coordenadores pedagógicos ao longo da notícia. Mas o que há em comum entre o ranking do colégio tradicional em São Paulo, a mensagem da estudante da UNB, os capacetes na China e as atividades de trabalho em equipe nas escolas?
Se em um primeiro momento nos parecem narrativas distantes entre si - e certamente o são em suas singularidades -, podemos encontrar denominadores comuns que emergem da cultura e nos fazem enfrentar, como psicanalistas, as contradições da contemporaneidade.
Para Han (2017), passamos de uma sociedade disciplinar, caracterizada pela proibição, pelo mandamento, pela repressão e pela coerção para uma sociedade do desempenho, em que se preza o projeto, a iniciativa individual, o poder ilimitado do sujeito, tomado como empreendedor de si.
Segundo esse autor, o paradigma da disciplina dos séculos XIX e XX dá lugar, no século xxi, ao paradigma do desempenho e ao discurso condensado na expressão publicitária "Yes, we can!". Ehrenberg (2010) localiza a depressão justamente nessa passagem da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho e valida suas considerações com base nos discursos esportivo e empresarial, ambos ancorados no desempenho e na competição.
Dardot e Laval (2016) radicalizam essas proposições e enfatizam que estamos atravessados, na contemporaneidade, por uma racionalidade neoliberal, caracterizada pela competição como norma de conduta e pela empresa como modelo de subjetivação.
Fundamentar o neoliberalismo como uma racionalidade parte do pressuposto de que possa ser pensado como um "conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência" (Dardot & Laval, 2016, p. 17). Pensar em racionalidade neoliberal é generalizar a lógica de mercado como lógica normativa desde o Estado, a escola etc. até as relações mais íntimas no âmbito familiar.
Sobre o neoliberalismo norte-americano, Foucault (1979/2008, p. 315) nos ensina que "o simples tempo de criação, o simples tempo de afeto consagrado pelos pais a seus filhos, deve poder ser analisado em termos de investimento capaz de constituir um capital humano".
Nos novos moldes do capitalismo flexível, se de um lado os acionistas investem capital monetário, do outro os trabalhadores são convocados a investir capital humano. Para fazê-lo, a exigência não é somente de desempenho técnico, mas também de desempenho comportamental, moral e afetivo.
Não é à toa que as escolas têm se preocupado com a instrumentalização dos afetos por meio de atividades que prezam as mesmas qualificações exigidas no mercado de trabalho: cooperação, por exemplo, passou a ser uma exigência no discurso empresarial (embora na prática se exija, contraditoriamente, competição).
Também não é sem justificativa que as fábricas na China tentam controlar e medir as emoções de seus trabalhadores por meio de capacetes. É o reduto afetivo que tem se mostrado necessário para a produção de riqueza no pós-fordismo, já que na era do conhecimento, na era do imaterial (Gorz, 2005), a inovação é decorrente de uma mobilização total do sujeito. Se no fordismo o trabalhador podia entrar no processo de produção levando apenas sua marmita ou seu uniforme,
os trabalhadores pós-fordistas, ao contrário, devem entrar no processo de produção com toda a bagagem cultural que eles adquiriram nos jogos, nos esportes de equipe, nas lutas, disputas, nas atividades musicais, teatrais, etc. É nessas atividades fora do trabalho que são desenvolvidas sua vivacidade, sua capacidade de improvisação, de cooperação. É seu saber vernacular que a empresa pós-fordista põe a trabalhar, e explora. (Gorz, 2005, p. 19)
O discurso gerencial das empresas é claro ao apelar para a devoção ao trabalho como propósito ou jornada pessoal, e o discurso pedagógico segue a mesma tendência. Programas de coaching infantil1 para crianças de 2 anos corroboram a ideia de que se deva investir no capital humano desde a mais tenra idade com o objetivo de colher os dividendos de um sujeito empreendedor de si, altamente competitivo. Compreender as especificidades desses discursos-práticas, dessa rede formada pelos novos ideais no campo do imaginário social, em cujas texturas tecemos nossa subjetividade, deveria ser tarefa do psicanalista.
A prática dos rankings - no âmbito da educação, conforme o exemplo do Colégio Bandeirantes - revela uma imbricação entre desempenho e competição que arremessa o outro para a posição de rival, e isso não acontece sem consequências para a economia psíquica. As relações na atualidade parecem privilegiar, em detrimento da importância da alteridade, os processos psíquicos narcísicos, seja por meio da identificação, como lógica de funcionamento que pressupõe uma regressão narcísica, seja por meio de uma idealização de onipotência do eu.
Em decorrência desse destaque dado ao narcisismo, "desenvolve-se um tipo de laço social que privilegia o funcionamento perverso,2 tendo em vista a coerção a negar a alteridade do outro e o dever de instrumentalizá-lo" (Menezes, 2012, 161).
A instrumentalização do outro assume faces marcadamente violentas na atualidade tanto por meio da lógica da competição como por meio do banimento da diversidade. Intolerância e hostilização de grupos minoritários, por exemplo, poderiam ser pensadas com base no que Freud denominou de narcisismo das pequenas diferenças: "sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade" (Freud, 1930/2011a, p. 60).
Em 1921 Freud já tinha alertado para a constituição das massas justamente por uma regressão narcísica de identificação - não cessam de aparecer desdobramentos contemporâneos dos mecanismos teorizados por Freud no século passado. Os muros dos condomínios (Dunker, 2015), por exemplo, expressam nossa incapacidade de lidar com as diferenças.
Para Birman (1999, p. 25), a solidariedade só seria possível se o "sujeito reconhecesse o outro na diferença e singularidade, atributos da alteridade". A aparente impossibilidade da solidariedade se articula aos novos ideais presentes no campo do imaginário social, já que a
ideia de que supostamente somos capazes de nos administrar, e [de] que existe uma escolha sobre como lidamos com nossas emoções, está ligada à percepção do "eu" que domina a sociedade no capitalismo tardio. Hoje, o verdadeiro "eu" é cada vez mais autoconstruído e, mais do que isso, um projeto individual. (Salecl, 2012, p. 15)
Se o sujeito na contemporaneidade ainda acredita, por um lado, na sua onipotência narcísica como forma de atingir os novos ideais e de existir em um mundo sem garantias, por outro lado, paradoxalmente, sente-se órfão porque está submetido e condicionado às sujeições mais alienantes da ideologia da "autocriação de si". Lembremo-nos das palavras de Letícia: "Parabéns a vocês que ficam. Só os fortes sobrevivem aqui. Sintam-se vitoriosos" (Delgado, 2018).
Psicanálise como subversão?
Ainda que possamos encontrar, e criticar, os vestígios da cultura patriarcal do século XIX na teoria freudiana (e não haveria de ser diferente, já que a escrita é produzida pela e na cultura), é indiscutível que Freud inaugurou um método revolucionário a partir da escuta do outro.
Se de um lado a psicanálise sempre privilegiou os movimentos pertinentes ao campo do desejo, na singularidade de cada narrativa, sobremaneira, denunciou, no conjunto daquilo que foi escutado, as contradições de cada tempo. Ora, se na cultura contemporânea a norma de conduta é a competição e se o outro passou a ser instrumentalizado, escutar o outro, na atualidade, é por si só um ato de contravenção.
O dispositivo da clínica psicanalítica talvez seja um dos poucos, na atualidade, capazes de promover a narrativa por meio de um tempo distendido que não se alinha à urgência contemporânea; talvez seja um dos poucos espaços que se mantêm na contramão do desempenho exigido no campo do imaginário social.
É dessa perspectiva que podemos pensar na inclinação subversiva da psicanálise na atualidade, pelo menos potencialmente. É desse ponto de vista que devemos, como psicanalistas e de acordo com uma ética própria do nosso campo, "transformar essa prisão da alma que o Ocidente construiu como meio de sobrevivência e proteção e que doravante exibe seu desastre" (Kristeva, 2002, p. 39).
No caminho inverso ao crescimento do consumo dos livros de autoajuda (Salecl, 2012) e das terapias cognitivo-comportamentais que corroboram a ideologia da "autocriação de si", na contramão da medicalização que teve crescimento alarmante a partir da década de 1950 (Roudinesco, 2000), a psicanálise se recusa à prescrição, e é nesse sentido que sua vocação política e de transgressão aparece como uma de suas condições de permanência.
Não é, portanto, na adaptabilidade à demanda contemporânea que a psicanálise vai se fincar, mas justamente nas possibilidades de interrogar a cultura e as novas formas de subjetivação. É na pergunta que o psicanalista encontra seu lugar, e não nas respostas prontas que a atualidade insiste em demandar.
Mas se "a emergência do paradigma da depressão realmente significa que a reivindicação de uma norma prevaleceu sobre a valorização do conflito, isso também quer dizer que a psicanálise perdeu sua força de subversão" (Roudinesco, 2000, p. 25). A provocação é proposital e nos endereça para uma consideração final: a formação do psicanalista deveria incluir uma formação especificamente política, de modo que o entendimento das texturas do laço social, em cada tempo da cultura, nos imunizasse, em tese, do perigo de nos contentarmos com o efeito terapêutico da clínica, esquecendo-nos da força de subversão da psicanálise.
Referências
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Recebido em: 17/10/2018
Aceito em: 6/4/2019
1 Esse tema vem sendo explorado na minha pesquisa de pós-doutorado (em andamento) na Universidade de Brasília (UNB).
2 Não é minha intenção tematizar a questão da perversão neste trabalho, mas cabe pensar nesse modo de funcionamento psíquico como adequado aos novos modos de subjetivação da contemporaneidade. Como afirma Birman, "o mal-estar na atualidade assume uma direção marcadamente perversa. Com efeito, se considerarmos a dimensão traumática que o desamparo do sujeito assume nas condições atuais do mal-estar na civilização, as modalidades perversas de construção psíquica são as formas por excelência pelas quais o sujeito recusa a sua condição de desamparo, uma vez que não consegue constituir destinos eróticos e sublimatórios para este" (2006, p. 53).