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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.52 no.97 São Paulo jul./dez. 2019
CARTA-CONVITE
Eros
Ana Clara Duarte GaviãoI; Lidia Maria Chacon de FreitasII; Anita Aparecida Lopes; Geraldo Cutcher Galender; Mariana Eizirik; Patrícia Nunes; Péricles Pinheiro Machado Jr; Ricardo de Moura Biz; Yone Vittorello Castelo
IEditora
IIEditora Associada
No cenário mais amplo da clínica e da formação psicanalíticas - temas caros a este Jornal, justamente por se tratar de um periódico do Instituto da SBPSP -, nosso projeto editorial tem procurado revisitar noções metapsicológicas relevantes para a identidade científica da psicanálise, no sentido de reafirmar o valor epistemológico e terapêutico do modelo freudiano de mente, levando em conta os desenvolvimentos que se seguiram com outros grandes autores, incluindo os contemporâneos, como um fio da meada.
Desde Freud reconhece-se um vértice artístico inerente à investigação da mente humana pelo método da psicanálise, o que implica o aprimoramento da intuição, do contato com a experiência emocional e sua apreensão estética, admitindo a subjetividade do investigador em sua dimensão metodológica, como uma variável qualitativamente significativa. Evidencia-se, portanto, a centralidade ética da análise pessoal do psicanalista durante sua formação, e pelo tempo que puder estendê-la, conforme seu interesse e disponibilidade.
Em sua primeira proposição tópica, Freud (1900/1990a) examina a vasta literatura sobre sonhos não apenas no campo neurológico, psiquiátrico, como também no cultural, histórico, religioso, artístico, para então integrar visões do fenômeno onírico pertinentes ao novo modelo, que se mostravam um tanto fragmentadas. Ao sistematizar sua perspectiva do inconsciente como um espaço psíquico em permanente processamento de estímulos externos e internos, Freud pôde conceber a função do sonho como uma espécie de pré-pensamento contínuo, um pensamento peculiar, mais por imagens do que por palavras, um encaminhamento para a simbolização mais refinada e abstrata: "Somente ao despertarmos é que surge o comentário crítico de que não tivemos nenhuma experiência, mas estivemos apenas pensando de uma forma peculiar, ou, dito de outra maneira, sonhando" (Freud, 1900/1990a, p. 80).
É curioso que Freud tenha publicado seu modelo de mente no capítulo VII de "A interpretação dos sonhos" (1900/1990a), após uma sequência de capítulos nos quais vai elaborando gradualmente suas percepções, tendo por referência básica seus próprios sonhos. Ao exemplificar a funcionalidade técnica das associações livres, Freud se expõe pessoalmente em termos de conflitos familiares, profissionais, éticos, com transparência e metodologia de observação da mente do analista como acesso ao campo intersubjetivo e à mente do analisando, como muitos autores contemporâneos têm se posicionado clínica e teoricamente.
Mas o que mais pode interessar é o fenômeno do não sonhar, em suas manifestações primárias, impulsivas, violentas, cruéis, em variadas configurações da parte psicótica da personalidade, quando a fragilidade da estrutura psíquica impede a constituição de um continente interno capaz de ligar pulsões e afetos à linguagem simbólica. Por coerência epistemológica, é preciso considerar o impedimento psíquico para o trabalho do sonho tal como apresentado na concepção freudiana de psicose nesse mesmo livro de 1900, onde fica claro que, para o criador da psicanálise, a função dos sonhos vai bem além da "realização de desejos" ou de "guardião do sono", sendo, essencialmente, o "guardião da saúde mental":
É claro que as moções de desejo inconscientes tentam tornar-se eficazes também durante o dia, e o fato da transferência, assim como as psicoses, indicam-nos que elas lutam por irromper na consciência através do sistema pré-consciente e por obter o controle do poder de movimento. Assim, a censura entre o Ics. e o Pcs., cuja existência os sonhos nos obrigaram a supor, merece ser reconhecida e respeitada como a guardiã de nossa saúde mental... A situação é menos inofensiva quando o que acarreta o deslocamento de forças não é o relaxamento noturno do dispêndio de força da censura crítica, mas uma redução patológica dessa força ou uma intensificação patológica das excitações inconscientes, enquanto o pré-consciente está ainda catexizado e o portão de acesso à motilidade permanece aberto... A esse estado de coisas damos o nome de psicose. (Freud, 1900/1990a, p. 517, grifos nossos)
Após um percurso por temáticas associadas aos processos simbólicos e seus obstáculos, ao sonhar e não sonhar, a seus métodos de investigação, chegamos, no número anterior - Thanatos - ao enfoque da pulsão de morte e, como nomeou Leitão (2019), à "clínica da crueldade", podendo, com vários autores, apreender a destrutividade humana em suas descargas na sala de análise e em suas expressões grupais, institucionais, sociais e políticas. O contexto aparentemente civilizado pode ser visto em suas entranhas de selvageria, narcisismo patológico, estereotipias, sensorialidade excessiva e concretude obstruindo processos secundários, criativos. Na relação analítica, o psicanalista se propõe ao desafio de processar e "sonhar" seus próprios impulsos instintuais, e a "estranhar" sua própria destrutividade (Freud, 1919/1990d), o que implica grande liberdade de introspecção e empatia, gerando condições para continência interna e significação de atuações, de compulsões à repetição e enactments.
Pretendemos agora pensar sobre Eros, sem dissociá-lo das forças antivida (Freud, 1920/1990b). Nas reflexões em nossa equipe editorial, surgiram ideias e reveries inspiradoras: em tempos de Thanatos, onde encontrar Eros? De onde tirar forças para tolerar? A vitalidade e aprendizado oriundos das experiências de maternidade/paternidade podem ser referências interessantes - amar, conceber, criar e ressignificar vivências junto aos filhos. Pensamos em criar no sentido intelectual e emocional - a criatividade na clínica, a epistemofilia da libido, a psicanálise de cada dia alimentando o ser, na interface dos mistérios, no calor da companhia.
Refletimos, ainda, sobre ser tocado pelo amor como a possibilidade de entrar em contato com o que não é sensorial, com o prazer da intimidade e da gratidão, experiências estéticas de integração, nos lançando ao mundo das artes, poesias, músicas. São únicas as descobertas e redescobertas de Eros dentro de si mesmo, ou no convívio criativo e amoroso com amigos, colegas - as trocas afetivas e verdadeiras da vida, o que realmente fica, o que realmente importa. Na versão parafraseada do clássico "Recordar, repetir e elaborar" (Freud, 1914/1990e), ocorreu-nos o movimento "Reconectar, reexistir e simbolizar"...
Um achado oportunamente compartilhado encontra-se na carta de Freud a Romain Rolland, Nobel de Literatura de 1915:
Muitos anos antes de vê-lo, eu o havia exaltado como um artista e um apóstolo do amor da humanidade. Eu próprio fui um discípulo do amor da humanidade, não por motivos sentimentais ou em busca de um ideal, mas por motivos desapaixonados e econômicos, porque, sendo os nossos instintos inatos e o mundo que nos cerca o que são, não poderia deixar de considerar esse amor como não menos essencial para sobrevivência da raça humana do que tais coisas como a tecnologia. (Freud, 1926/1990c, p. 323)
Falando em tecnologia, segue uma última contribuição via link, uma imersão artística pela música "Amanhã", de Guilherme Arantes, na interpretação de Caetano Veloso: https://youtu.be/T_WFANgukUM.
Além da seção dedicada ao tema Eros, são bem-vindas as colaborações para a composição das demais seções do Jornal, sendo que o prazo de envio dos trabalhos será até 31 de outubro de 2019, seguindo as instruções e as normas de publicação da apa disponibilizadas no link "Jornal de Psicanálise - Normas de Publicação", no site www.sbpsp.org.br.
Referências
Freud, S. (1990a). A interpretação de sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicsológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., vol. 4-5, pp. 1-566). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900) [ Links ]
Freud, S. (1990b). Além do princípio de prazer. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicsológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., vol. 18, pp. 13-85). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920) [ Links ]
Freud, S. (1990c). A Romain Rolland. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicsológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., vol. 20, p. 323). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1926) [ Links ]
Freud, S. (1990d). O estranho. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicsológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., vol. 17, pp. 271-318). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original intitulado Das Unheimliche, publicado em 1919) [ Links ]
Freud, S. (1990e). Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II). In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicsológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., vol. 12, pp. 189-203). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914) [ Links ]
Leitão, V. M. (2019). A decadência do amor - A clínica da crueldade. Jornal de Psicanálise. 52(96),23-32. [ Links ]