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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.52 no.97 São Paulo jul./dez. 2019
INTERFACE COM A CULTURA
Sonhar e brincar: o espaço psíquico a ser construído
Dream and play: the psychical space to be built
Soñar y jugar: el espacio psíquico a construir
Rêver et jouer: l'espace psychique à construire
Gina Khafif Levinzon
Psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Doutora em Psicologia Clínica (USP), professora do Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica (CEPSI-UNIP), coordenadora do Grupo de Estudos sobre Adoção e Parentalidade da SBPSP. São Paulo / ginalevinzon@gmail.com
RESUMO
Este trabalho examina o significado e a função do sonhar, como forma essencial de funcionamento psíquico. O objetivo do processo analítico é gerar condições para que a pessoa sonhe seus sonhos não sonhados e sonhos interrompidos. É apresentado um caso clínico que se caracterizava por extremo retraimento e pela sensação de pouca vivacidade. A paciente tinha pouco contato consigo mesma e parecia incapaz de dar vazão a seus sonhos. Ao lado da posição de inacessibilidade da paciente na análise, havia um pedido silencioso de ajuda. Foi ressaltada a necessidade da analista de levar em conta as condições possíveis da paciente para estabelecer com ela um canal de comunicação. Isso se deu por meio da série Friends, que trouxe um espaço transicional no qual a proximidade pôde ocorrer. O sonhar e o brincar foram considerados processos correspondentes, e foi discutido o trabalho clínico possível com pacientes que apresentam uma capacidade simbólica muito prejudicada.
Palavras-chave: sonhar, sonhos interrompidos e não sonhados, brincar, inacessibilidade, técnica psicanalítica
ABSTRACT
This work examines the meaning and function of dreaming as an essential form of psychic functioning. The purpose of the analytical process is to create conditions for the person to dream of his/her undreamed dreams and interrupted dreams. We present a clinical case that was characterized by extreme withdrawal and by the sensation of poor alertness. The patient had little contact with herself and seemed unable to vent her dreams. Beside the position of patient inaccessibility in the analysis, there was a silent request for help. It was emphasized the need of the analyst to take into account the possible conditions of the patient to establish a communication channel with her. This was done through the Friends series, which established a transitional space in which proximity could occur. Dreaming and playing were considered as corresponding processes and the possible clinical work with patients with a very impaired symbolic capacity was discussed.
Keywords: dreaming, dreams interrupted and not dreamed, play, inaccessibility, psychoanalytic technique
RESUMEN
Este trabajo examina el significado y función del soñar, como forma esencial de funcionamiento psíquico. El objetivo del proceso analítico es generar condiciones para que la persona sueñe sus sueños no soñados y sueños interrumpidos. Se presenta un caso clínico que se caracterizaba por extremo retraimiento y por la sensación de poca vivacidad. La paciente tenía poco contacto consigo misma y parecía incapaz de dar flujo a sus sueños. Al lado de la posición de inaccesibilidad de la paciente en el análisis, había una petición silenciosa de ayuda. Se resalta la necesidad de la analista de tener en cuenta las condiciones posibles de la paciente para establecer con ella un canal de comunicación. Esto se dio a través de la serie Friends, que estableció un espacio transicional en el que la proximidad pudo ocurrir. El soñar y el juego fueron considerados procesos correspondientes y se discutió el trabajo clínico posible con pacientes que presentan una capacidad simbólica muy perjudicada.
Palabras clave: soñar, sueños interrumpidos y no soñados, juego, la inaccesibilidad, técnica psicoanalítica
RÉSUMÉ
Cet article examine le sens et la fonction du rêve en tant que forme essentielle du fonctionnement psychique. Le processus analytique a pour but de créer des conditions permettant à la personne de rêver ses rêves non atteints et ses rêves interrompus. Nous présentons un cas clinique caractérisé par un retrait extrême et un sentiment de faible vivacité. La patiente avait peu de contact avec elle-même et semblait incapable de donner libre cours à ses rêves. Cependant, à côté de la position inaccessible du patient dans l'analyse se trouvait une demande d'aide silencieuse. La nécessité pour l'analyste de prendre en compte les conditions possibles de la patiente pour établir un canal de communication avec elle a été soulignée. Cela s'est fait à travers la série Friends, qui a créé un espace transitionel dans lequel la proximité pouvait exister. Rêver et jouer ont été considérés comme des processus correspondants et le travail clinique possible avec des patients ayant une capacité symbolique très altérée a été discuté.
Mots-clés: rêver, les rêves interrompus et non rêvés, jouer, l'inaccessibilité, technique psychanalytique
Eros e Psique
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.(Fernando Pessoa, 1934)
A poesia sublime de Fernando Pessoa mostra a magia presente no processo de sonhar. Nela há um príncipe e uma princesa numa experiência de aproximação, que podem ser entendidos como partes de si mesmo em busca de contato e integração.
Em sua magistral obra "A interpretação dos sonhos", Freud (1900/1980b) revolucionou o estudo dos sonhos. Ele mostrou que estes últimos são um caminho valioso de acesso aos conteúdos inconscientes da mente. Podem ser comparados a fenômenos de alucinação normal, em que atuam mecanismos de deformação e nos quais aparecem desejos reprimidos que escapam à censura. Para esse autor, os sonhos têm dupla função: eles são guardiães do sono e permitem que um estímulo instintual reprimido obtenha satisfação, na forma de realização alucinada de desejo (Freud, 1916-1917/1980a). Além disso, os sonhos são entendidos como "uma forma particular de pensamento, possibilitada pelas condições do estado de sono" (Freud, 1900/1980b).
Vários autores psicanalíticos (Sandler, 1976; Segal, 1991; Meltzer, 1984, entre outros) ampliaram o campo de compreensão dos sonhos e do sonhar, que deixou de ser considerado referindo-se apenas à atividade mental que ocorre no estado de sono, e passou a levar em conta também aquela que se dá no estado de vigília. Meltzer (1995) define o processo onírico como o pensar as experiências emocionais. Neste sentido, o que Freud chamou de "condições de representabilidade" pode ser entendido como a formação de símbolos e o interjogo das formas visuais e linguísticas. Da mesma forma, o "trabalho do sonho" significa as operações da fantasia e os processos de pensamento por meio dos quais os conflitos e os problemas buscam solução.
Bion (1962/1991) nos oferece um modelo de aparelho psíquico que pode ser comparado ao sistema digestivo. As impressões sensoriais brutas e experiências emocionais (Elementos Beta) são transformadas predominantemente em imagens visuais e utilizadas pela mente para a formação de sonhos, recordações, e para as funções de simbolizar e pensar (Elementos Alfa). Para isso, o indivíduo precisa desenvolver sua Função Alfa, ou seja, sua capacidade para pensar. Esta última depende inicialmente da qualidade de relação do bebê com a mãe, que lhe empresta sua própria capacidade para pensar e conter as identificações projetivas e emoções diversas. Dessa forma, há um processo de transformação do que é concreto e não se presta para pensar, sonhar ou armazenar na memória, para a matriz dos símbolos, imagens e elementos da experiência que podem ser ligados entre si. Esse processo se refere tanto ao que é consciente quanto ao que é inconsciente no pensar e sonhar, no sono ou na vigília. Aquele que não pode realizar suficientemente esse tipo de transformação não pode gerar pensamentos-sonho (seja dormindo ou acordado).
Para Ogden (2004/2010), o indivíduo que é incapaz de sonhar sua experiência emocional, ou seja, que é incapaz de elaboração psicológica inconsciente, não consegue mudar, crescer, se desenvolver. O estado psíquico decorrente da impossibilidade de sonhar é comparado por esse autor aos terrores noturnos e pesadelos, com o acúmulo de Elementos Beta não processados. Aterrorizado, o indivíduo assume um estado de imobilidade e rigidez psíquica. O objetivo do processo analítico nesses casos é gerar condições para que a pessoa possa "sonhar seus sonhos não sonhados e sonhos interrompidos" (p. 18). Para isso, é necessária a presença da mente de outra pessoa, o analista, assim como o bebê necessita da mãe que lhe dá continência e capacidade de filtragem de suas emoções.
É no Terceiro Analítico (Ogden, 1996a), na intersecção que se forma entre o psiquismo do analisando e do analista, que as transformações encontram terreno fértil para ocorrer. Tanto paciente quanto analista se propõem à tarefa de sonhar os sonhos não sonhados e interrompidos, e estes últimos serão produto de um terceiro sujeito inconsciente que é ambos e nenhum deles, paciente e analista (Ogden, 2004/2010). Os sonhos do analista são seus devaneios diante dessa situação analítica específica. Com outro paciente provavelmente seus devaneios seriam outros, assim como o paciente, atendido por outro analista, provavelmente exibiria características em certa medida diversas das que são estimuladas por esse processo particular.
O analista vai tomando consciência das experiências do Terceiro Analítico e as simboliza verbalmente para si mesmo. Respeitando o ritmo do paciente, ele pode lhe falar da experiência sobre o que está acontecendo num nível inconsciente entre os dois. Esta é uma forma de proporcionar condições para uma capacidade maior de discriminação e de pensamento consciente, que pode funcionar em consonância com o trabalho inconsciente do sonhar do paciente e facilitá-lo.
Na clínica psicanalítica encontramos casos que são especialmente desafiadores no que se refere à inacessibilidade do paciente. Há a procura por ajuda, mas ao mesmo tempo um retraimento que dificulta enormemente o contato. Não há sonhos, não há imagens, não há contato com o eu mais profundo. Temos a impressão de que a pessoa foge de pesadelos que poderiam aparecer e não serem suportados, ou, numa situação mais grave, deparamos com o vazio provocado pela falta de capacidade de sonhar. Esta é a configuração psíquica do caso clínico que será apresentado a seguir e que ilustrará a busca de um espaço para caminhar em conjunto pela dupla analítica. A necessidade de o analista considerar as condições possíveis de contato com o paciente será entendida como essencial para que se possam sonhar os sonhos não sonhados e interrompidos do paciente.
Vera
Vera, 16 anos, foi encaminhada para análise em função de um intenso estado de ansiedade generalizada. Não conseguia ficar sozinha. Agarrava-se à mãe em todas as situações. Estava com dificuldades para dormir. Evitava lugares novos. Sua vida social era pobre. Numa época em que as adolescentes se encontram, saem, namoram, Vera não saía de casa. Quando o fazia, telefonava à mãe várias vezes, sem conseguir aproveitar as situações de lazer. Esse estado tinha se agravado nos últimos tempos, em seguida a uma viagem dos pais, mas desde a tenra infância havia nela um estado de retraimento importante. Não se arrumava. Estava sempre com uma camiseta neutra, uma calça básica e tênis. Suas notas na escola, que sempre tinham sido medianas, sofreram uma baixa considerável.
O ambiente familiar de Vera era tranquilo, estável. A mãe relatou, no entanto, que quando ela era bebê haviam passado por situações de muita dificuldade. A mãe foi especialmente perturbada pela tensão decorrente desses eventos e relatou que não pôde dar à filha a atenção que esta necessitava. O pai, pelo seu lado, ficava bastante ausente em função do trabalho, o que não lhe permitia estar próximo, e sobrecarregava a esposa.
Uma mente empobrecida - onde estão os sonhos de Vera?
Em nosso primeiro encontro, Vera estava na sala de espera, agarrada à mãe, cabisbaixa, chorando. Só concordou em entrar na sala de atendimento se a mãe permanecesse ali com ela. Sentamo-nos as três, e Vera continuou nessa mesma posição. Seu choro era silencioso, e lágrimas escorriam por seu rosto. Enquanto me apresentava e falava com ela, não me olhava. A mãe explicou que a filha não queria ter vindo, mas que conversaram a respeito, e ficou claro que ela estava precisando muito de ajuda. Após um tempo considerável em silêncio no qual só se ouvia o choro da paciente, ofereci-lhe papel e lápis, e sugeri que fizesse um desenho. Vera se manteve imóvel, mas terminou por esboçar uma figura humana "em palitos", sem rosto ou qualquer outro atributo. Seu traçado era quase imperceptível, fino, frágil, pequeno, solto no ar. Ela se negou a falar qualquer coisa sobre seu desenho e continuava agarrada à mãe, cabisbaixa. Seu choro, no entanto, cessou. Propus-lhe outro desenho, e desta vez ela repetiu o traçado anterior, com uma diferença: havia uma pequena bola ao lado da pessoa "em palitos". Desta vez as associações foram fornecidas pela mãe, que explicou que a filha adorava fazer esportes.
Percebi que algo progrediu entre nós. Vera se permitiu trazer um elemento a mais, além do seu terror de fazer contato. A moça que estava ali, e que mais parecia um bebê, uma extensão da mãe, mostrava seu autorretrato na figura frágil a princípio esboçada. Por outro lado, indicava que havia uma parte sua que ansiava por movimento, crescimento, representado pela bola ao lado do desenho. Parecia-me aqui que estávamos diante do que Aberastury (1982) denomina fantasia de doença e fantasia de cura que o paciente apresenta, de modo inconsciente, na primeira sessão. Nosso trabalho analítico precisaria ajudar Vera a "alçar voo", auxiliá-la a encontrar uma forma de existência própria.
Por muitas sessões continuamos as três, Vera, a mãe e eu, procurando ampliar o canal de aproximação e a confiança da paciente no trabalho comigo. Após cerca de dois meses, pudemos finalmente ficar a sós, sem a presença da mãe. Eu sentia que era essencial me aproximar com cuidado, com paciência. Vera parecia um pequeno pássaro assustado, pronto para fugir a qualquer momento.
Aos poucos, ela pôde se permitir falar comigo. Sua atitude, no entanto, era sempre bastante retraída. Nunca me contava nada espontaneamente. Esperava minhas perguntas, minha estimulação para o diálogo. Suas associações eram pobres, superficiais. Estava sempre "tudo bem", "nada de novo", "nada especial". Mesmo quando se soltava e me contava mais livremente algo que tinha acontecido, na escola ou na família, eu tinha sempre a sensação de algo raso.
Parecia-me que nossas sessões se arrastavam, e faltava algo vivo que as preenchesse. A esse respeito vinha-me à mente o artigo de Ogden (1995) que afirma que o sentimento de vitalidade e desvitalização da transferência-contratransferência é a medida mais importante da situação analítica. Vera me parecia uma pessoa adormecida, mas sem um conteúdo onírico. Onde estavam seus sonhos? Onde estava o movimento, a bola presente em seu segundo desenho?
Segundo o relato da mãe de Vera, com a análise, seus medos diminuíram. Seu sono voltara ao normal. Aparentemente, saíra da crise que a trouxe para o trabalho analítico. Em sua vida cotidiana ela era uma pessoa adaptada ao ambiente. Fora da situação de colapso iminente por que passara poderia ser descrita como apresentando um quadro de falso self (Winnicott, 1960/1983). Havia um bloqueio extenso de uma parte nuclear de si mesma. Como afirma esse autor, o falso self se origina de uma relação inicial falha no início da vida do bebê, quando ele está erigindo as bases de sua personalidade. O lactente passa a se adaptar precocemente ao ambiente, numa época de sua vida em que deveria, pelo contrário, sentir que é a mãe e as pessoas à sua volta que se constituem a partir dele. Podemos supor que esse processo de narcisização inicial, necessário para o desenvolvimento de um indivíduo saudável, encontrou dificuldades de ocorrer de modo adequado na infância mais primitiva de Vera, em função dos graves problemas familiares ocorridos nessa época. Como afirma Winnicott (1960/1983), o falso self se implanta como real, mas "em situações em que o que se espera é uma pessoa integral ele tem algumas carências essenciais. Neste extremo, o self verdadeiro permanece oculto" (pp. 130-131). A bola sinalizada por Vera poderia ser compreendida, dentro desse contexto, como a parte mais verdadeira e criativa de si mesma, que precisava ser desenvolvida ou descoberta...
O sonhar a dois na sessão
Após as férias de verão em que, por motivos de viagem, Vera se ausentou por longo tempo, entramos num impasse. Ela declarou à mãe que tinha compreendido que a terapia terminaria com o fim do ano e queria encerrar o processo. A mãe, por sua vez, achava muito importante a continuidade da análise e insistiu para que ela comparecesse às sessões. Parecia que tínhamos voltado à "estaca zero". O retraimento e a desconfiança de Vera voltaram com força. Ela entrava na sala de atendimento sozinha, mas mantinha-se numa postura encolhida, cabisbaixa, chorando. Não falava comigo. Procurei conversar com ela sobre o que estava acontecendo. Não havia espaço para entendimento, para investigação e compreensão de seus sentimentos. Parecia-me que a separação ocorrida com as férias tinha restituído o clima anterior de desconfiança e desencontro. Na transferência, eu voltava a ser um objeto ameaçador, um seio cheio de coisas terríveis. Tínhamos regredido à época em que um bebê aterrorizado teme ser invadido por angústias intoleráveis e nesse momento interpretações verbais não tinham espaço para serem absorvidas. O passarinho assustado estava quase voando...
Vera acenou que sim com a cabeça quando lhe perguntei se de fato não queria mais vir à terapia. Procurando respeitar seu momento, eu lhe disse que ela não seria obrigada a continuar, que ela poderia dizer à mãe que conversou comigo e que eu aceitaria sua decisão. Ela negou-se a fazê-lo. Compreendi que tinha medo de desagradar a mãe e que esperava que eu o fizesse por ela. Eu lhe disse que não tomaria essa iniciativa, que não achava que seria bom falar por ela. Afinal, estávamos juntas para que, cada vez mais, ela pudesse falar por si própria! A paciente resolveu continuar a terapia. Ficaria até o final do ano, segundo o prazo combinado com a mãe.
Creio que Vera sinalizava não apenas a submissão à mãe, o que era característico da relação das duas, mas também um movimento no sentido de continuar contando com a ajuda da terapia. Apesar da resistência, havia alguma esperança de sua parte... Sua postura nas nossas sessões, no entanto, continuava a mesma. Permanecia cabisbaixa, encolhida, completamente reticente a qualquer contato mais próximo que pudéssemos ter. Ficávamos em silêncio, ou eu falava algo que não resultava em nenhuma aproximação efetiva. Essa situação se prolongou por um tempo considerável. Sessão após sessão, vivíamos um clima de estagnação.
Nossa possibilidade de sonhar juntas havia se transformado num pesadelo repetido, num impasse difícil de transpor. Senti que era necessário encontrar algum recurso que não apenas as intervenções verbais, improdutivas nesse momento, para buscar um canal de comunicação com a paciente. Lembrei-me, então, de que a mãe havia contado em nossas entrevistas iniciais que Vera era fã da atriz Jennifer Aniston e assistia a todos os seus filmes. Tomei a iniciativa de trazer para uma sessão um texto escrito sobre a atriz, com figuras, que pesquisei na Internet. Pela primeira vez em muito tempo ela dirigiu, disfarçadamente, um olhar para mim. Fui folheando as páginas, lendo em voz alta as informações sobre a atriz, e percebi que a paciente prestava atenção no que estava sendo dito. Era um sinal de que estávamos num caminho promissor!
Na sessão seguinte, diante do retraimento habitual de Vera, propus que pesquisássemos juntas no computador informações sobre Jennifer Aniston. Ela se mostrou mais receptiva, e pudemos conversar um pouco a respeito, enquanto "navegávamos na Internet". Acabamos deparando com o seriado Friends, no qual Jennifer Aniston é uma das atrizes principais e assistimos a uma parte de um episódio. Pela primeira vez em muito tempo, Vera fez um comentário espontâneo: num tom de voz quase inaudível, disse que tinha todos os cds com episódios da série. Percebi que havia aberto uma brecha para aproximação e não a poderia desperdiçar! Sugeri que, se tivesse vontade, poderia trazer esses episódios para me mostrar.
Na sessão seguinte, para minha surpresa, Vera trouxe consigo um pacote: todos os cds da série Friends. Eu lhe disse que poderia escolher o que queria que víssemos. Não havia assistido a essa série, não conhecia os personagens, nem a história. Entramos então numa nova fase da terapia: Vera vinha com seus cds, escolhia um e assistíamos juntas ao episódio. Eu ia perguntando a ela dúvidas sobre os personagens e as histórias, e ela respondia às minhas indagações. Chamava a atenção o fato de ela ficar extremamente atenta às minhas reações durante o filme (embora o fizesse de maneira disfarçada). Parecia que meu interesse genuíno, minhas risadas nos momentos engraçados a encantavam. De fato, eu estava gostando do que via e principalmente da proximidade que estava se estabelecendo entre nós. Havia algo não falado, mas sentido, que trazia uma sensação de maior intimidade.
Criou-se entre nós um "espaço de sonho". Sonhávamos juntas sobre temas como amizade, sexualidade, decepções, dores e tanto outros, com base nas histórias trazidas pelos personagens da série. O olhar que a paciente me dirigia furtivamente, para saber se eu estava acompanhando o que estava se passando, parecia buscar em mim um objeto continente e que podia sonhar com ela, sem invadi-la precipitadamente com interpretações que ela não conseguia absorver nesse momento.
Aos poucos, ao final dos episódios, foi se abrindo um espaço no qual conversávamos, dentro do possível, sobre os temas que tinham sido evidenciados na história exibida. Pudemos falar dela e de como essas questões se verificavam em sua vida. Os assuntos que surgiram referiam-se a amizade, sexualidade, namoros, fidelidade e desconfiança, maternidade, limitações, entre outros. Havia ainda uma postura defensiva por parte de Vera, mas muito mais branda. Eu procurava verbalizar os temas levantados pelas histórias que me pareciam tocá-la, seus medos, suas dúvidas.
Após um episódio em que há uma discussão entre dois personagens principais (um deles representado justamente pela atriz Jennifer Aniston) que têm uma história amorosa e se separam, digo à paciente:
A - Que difícil, parece que ela gosta dele e ele gosta dela, mas como é difícil se comunicar e se entender...
V - É mesmo... Ela não sabe como lhe falar que gosta dele...
Penso nas possíveis relações amorosas de Vera. Pergunto-me se ela gosta de algum rapaz e também não sabe como agir diante disso. Perguntar-lhe diretamente sobre isso parece-me que resultaria numa atitude defensiva por parte dela. Prefiro continuar trabalhando com base na narrativa dela. Lembro-me das palavras de Antonino Ferro (1991/1998), que diz que,
quando não são forçados, "as gavetas e os armários" tendem a abrir-se sozinhos diante do hóspede discreto, e o que sairá deles será certamente uma função da história e do mundo fantasmático do paciente, mas também da qualidade do olhar do analista. (p. 65)
A - Às vezes, sentimos coisas, mas não sabemos como dizê-las, nem o que fazer com elas... Imagino que isso já aconteceu com você.
V - Sim, muitas vezes...
Novamente me vem à mente que esse é o tema principal de nossos encontros, permitir que ela tenha acesso ao que sente e que possa encontrar formas de comunicar e elaborar esses conteúdos. E também comigo há a dificuldade de mostrar de forma mais explícita como gosta de compartilharmos juntas esses momentos na análise.
A - Que bom que nós duas estamos aqui juntas procurando entender essas coisas difíceis de serem faladas! Você gostaria de poder expressar melhor o que você sente...
Vera faz que sim com a cabeça. Continuamos a falar da relação amorosa dos personagens. Parece que é cedo ainda para que ela se sinta à vontade de falar mais claramente sobre suas fantasias amorosas e entendo que seu ritmo deve ser respeitado.
Ao final do ano, interrompemos o trabalho analítico, conforme tinha sido combinado. Considerei importante cumprir o que havia sido acordado com ela previamente. Vera estava tranquila, contente por terminar, e creio que satisfeita também pelo trabalho que foi feito. Em contato telefônico, sua mãe revelou que seus progressos tinham sido gritantes, e que estava muito feliz com os resultados obtidos. Vera estava mais independente, autônoma. Falava mais o que sentia, estava saindo mais com as amigas. Seu desempenho na escola melhorou muito, e ela não apresentava mais estados de grande ansiedade como no início da terapia.
Um fato interessante é que Vera se negou a assistir comigo ao último episódio de Friends. Pareceu-me com isso que deixava uma porta aberta para o processo analítico e que haveria ainda, talvez, uma continuação em outro momento. Eu tinha o sentimento claro de que havia ainda muito por fazer, mas entendi que havíamos caminhado o possível para esse momento de sua vida e para seu desejo de entrar em contato consigo mesma. Eu precisava lidar com minhas "ambições terapêuticas", sabendo que o caminho que podíamos trilhar juntas e o progresso a ser alcançado tinham um limite que não dependia de minha vontade.
A capacidade de sonhar e de brincar - matriz do psiquismo
A experiência clínica com Vera suscita várias reflexões. A paciente se mantinha em uma posição difícil de alcançar, seja quando se mostrava mais dócil e ao mesmo tempo superficial, seja quando se negava a interagir com a analista. Havia uma força poderosa que a mantinha distante do contato vivo, ao mesmo tempo em que clamava secretamente por ajuda. Como afirma Winnicott (1963/1983) com relação ao isolamento pessoal, "é uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser achado" (p. 169). Ficar inacessível estava a serviço de defesas poderosas, utilizadas inconscientemente pela paciente, para evitar angústias em vários níveis.
Após a situação de impasse, foi possível criar um espaço de sonho compartilhado pela paciente e pela analista. A série Friends (que em inglês significa "amigos") permitiu a criação de um espaço transicional (Winnicott, 1971/1975) com a ajuda do qual a dupla pôde-se aproximar. Para Winnicott, a psicoterapia baseia-se na superposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta. Quando o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta deve ser dirigido no sentido de trazer o paciente para um estado no qual seja capaz de brincar. O manuseio do setting por parte do analista e o holding são essenciais para auxiliar o paciente a alcançar uma maior integração.
A ligação entre o brincar e o sonhar é recíproca. Ambos dependem de uma capacidade psíquica de simbolização, mesmo que ainda primitiva, e ao mesmo tempo permitem que o indivíduo caminhe a passos largos no sentido de uma integração crescente. Gerar condições para que o analisando possa se tornar mais capaz de sonhar seus sonhos não sonhados e interrompidos (Ogden, 2004/2010) assemelha-se a ajudar o paciente a poder brincar quando não o consegue (Winnicott, 1971/1975). O papel do analista é essencial para que isso aconteça e pode ser comparado a como a mãe cria condições para que o bebê desenvolva seu próprio sentido de existência.
No caso clínico relatado, a iniciativa de buscar elementos de conexão com a paciente com base nas referências pesquisadas sobre o tema Jennifer Aniston possibilitou um movimento de aproximação. Em seguida, abriu-se espaço para um tipo de atividade - assistir a filmes na sessão -, o que não corresponde exatamente ao modelo tradicional em psicanálise de associação verbal-interpretação. A experiência clínica mostra que, em configurações muito primitivas de funcionamento mental, frequentemente o paciente não consegue absorver as interpretações realizadas, talvez por estar justamente com a capacidade de simbolização prejudicada. A esse respeito, Ogden (1996b) ressalta a importância da ação interpretativa, que se refere à capacidade de transmitir ao analisando aspectos da compreensão que o analista tem de significados transferenciais-contratransferenciais inconscientes, num momento em que essas compreensões não podem ser comunicadas ao paciente apenas sob a forma de uma interpretação verbalmente simbolizada. Ferro (1998) mostra a importância de o analista trabalhar considerando a narrativa do paciente, para não o sobrecarregar com conteúdos que este não pode compreender no momento. Foi interessante observar no trabalho realizado com Vera que aos poucos era possível um espaço para se falar de temas que diziam respeito à sua vida, em cada sessão em seguida à exibição dos episódios. O espaço não verbal abria caminho, em seu ritmo, para a simbolização e para o sonho a dois, base da constituição da mente.
Muito se passava entre a dupla analisanda-analista ao assistir aos filmes da série televisiva. Talvez o mais importante fosse a possibilidade de estarem as duas vivas, na mesma sintonia, conectadas por uma linguagem comum, possível para a paciente. Nesse sentido era como se uma bebê pudesse olhar nos olhos da mãe e vê-la interessada naquilo que lhe dizia respeito profundamente. Este provavelmente era o nível mais primitivo sendo tocado pela experiência analítica e lhe permitia desenvolver o sentimento de existir. Havia, além disso, a possibilidade de elaborar angústias num nível mais neurótico, edípico. Afinal, a série Friends trata de conteúdos relativos à sexualidade: namoros, triângulos amorosos, desencontros entre pessoas apaixonadas. Na transferência, a analista que assistia aos episódios na sua presença era uma mãe que podia compartilhar com a filha a sua sexualidade. Vera não precisaria mais esconder sua feminilidade, pouco a pouco sentida como algo natural e permitido. Poderia ser tão linda e feminina como Jennifer Aniston, a quem admirava tanto.
De minha parte, eu estava às voltas com o desafio de lidar com o novo, ao trazer uma pesquisa da Internet como busca de um elemento de intermediação com a paciente, mas ao mesmo tempo tinha consciência de que era importante conservar meu papel de neutralidade e a disciplina do desejo de ajudar a paciente. Sabemos que suportar impasses pode representar uma carga importante para os aspectos contratransferenciais do analista, e é essencial que ele esteja atento a isso. Segundo Ogden (2004/2010), "é responsabilidade do analista reinventar a psicanálise para cada paciente e continuar a reinventá-la durante o curso da análise" (p. 22). Da mesma forma, pais precisam se reinventar com cada filho, em cada fase da vida da criança e da família. Isso não quer dizer, por outro lado, que paciente e analista estão livres para fazer o que quiserem, sem considerar o enquadre estabelecido.
Cada vez mais sentimos a necessidade de ampliar nosso espaço de compreensão do ser humano, de estarmos abertos para o novo e o impensável. No trabalho analítico, procuramos o contato com o outro pelos meios de que dispomos em cada caso. O espaço para sonhar, para brincar, é essencial, matriz da vida, e é ele que se busca criar, restaurar ou conhecer no paciente, para auxiliá-lo a se desenvolver. O analista não é um mero espelho opaco nesse processo. Ele participa com seus conhecimentos, sua técnica, seus próprios sonhos, e sua personalidade peculiar. A intersecção das configurações psíquicas da dupla analítica nos traz a beleza de um encontro fértil...
Referências
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Recebido em: 1/9/2019
Aceito em: 11/11/2019