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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.98 São Paulo jan./jun. 2020

 

TEMAS LIVRES

 

O inefável sujeito do ser em nós

 

The ineffable Subject of Being in us

 

El inefable sujeto de ser en nosotros

 

L'ineffable sujet de l'être en nous

 

 

Elenice Maria Zecchin Pereira Giannoni

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e membro efetivo do GEPCampinas (GEPCAMP). Campinas / elenicegiannoni@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

A partir do relato de um sonho de uma paciente em análise e das ampliações que daí resultaram no convívio analítico, a autora faz considerações, fundamentadas em conceitos de Bion, Freud, Ogden e Winnicott, entre outros, sob a visão de Grotstein. Tais considerações giram em torno do processo de sonhar (acordado ou adormecido), utilizando-se de conceitos tais como "sonho a dois", "terceiro sujeito intersubjetivo", "espaço potencial" e "continente-contido", só para citar alguns deles.

Palavras-chave: subjetividade, intersubjetividade, sonho, reverie, sujeito inefável, sujeito fenomênico


ABSTRACT

From a report of a patient's dream under analysis and the extension that resulted from it in the analytical coexistence, the author makes considerations based on the concepts of Bion, Freud, Ogden and Winnicott. among others, under Grotstein's view. Such considerations turns around the process of dreaming (awake or asleep) using concepts such as “dream for two”, “third intersubjective subject”, “potential space” and “contained continent”, just to name a few.

Keywords: subjectivity, intersubjectivity, dream, reverie, ineffable subject, and phenomenal subject


RESUMEN

Desde el relato del sueño de un paciente bajo análisis y las ampliaciones que resultaron en la coexistencia analítica, la autora hace consideraciones, basadas en los conceptos de Bion, Freud, Ogden y Winnicott, entre otros, bajo la visión de Grotstein. Dichas consideraciones giran en torno al proceso de soñar (despierto o dormido), utilizando conceptos como “soñar a dos”, “tercer sujeto intersubjetivo”, “espacio potencial” y “continentecontenido”, solo por nombrar algunos de ellos.

Palabras clave: subjetividad, intersubjetividad, sueño, reverie, sujeto inefable y, sujeto fenoménico


RÉSUMÉ

D'après le récit du rêve d'une patiente en analyse et des élargissements construits dans la relation analytique, l'auteur formule des considérations fondées sur les concepts de Bion, Freud, Ogden et Winnicott entre autres, à partir du point de vue de Grotstein. De telles considérations tournent autour du processus de rêver (éveillé ou endormi), en utilisant des concepts tels que « Le rêve à deux », « Le troisième sujet intersubjectif », « L'espace potentiel » et « continent-contenu », pour n'en nommer que quelques-uns.

Mots-clés: subjectivité, intersubjectivité, rêve, reverie, sujet ineffable, sujet phénoménique


 

 

À guisa de introdução

Impossível não nos impressionarmos com a narração de Freud do sonho do menino morto, que acorda o pai adormecido no quarto ao lado onde acontecia seu velório!

No sonho, o menino em pé ao lado do leito do pai, puxa-o pelo braço e lhe sussurra em tom de censura: "Pai, não vê que estou queimando?" O pai acorda, vê um clarão na sala ao lado e descobre que uma vela havia caído e incendiado os braços e as roupas de seu filho morto!

Segundo a interpretação de Freud, o pai, necessitado de repouso, após a longa doença do filho, precisava dormir (prolongar seu sono), tendo sido a estimulação luminosa o disparador do sonho. Diz também que o sonho foi preferido, em vez de uma reflexão desperta (de que, afinal, era possível que uma vela acesa causasse um incêndio), porque podia mostrar a criança viva novamente (realização de desejo), acrescentando que as palavras do menino, provavelmente, eram resíduos diurnos de solicitações feitas durante a doença febril: "não vê que estou queimando?"

Freud primeiro narrou o sonho e depois o interpretou, nas páginas seguintes. Confesso que, ao virar a página, fiquei indignada com a "cientificida-de" de Freud, pois estava pela primeira vez tomando contato com o Capítulo VII da Interpretação dos sonhos (1900/1969), no início dos anos 1980.

No intuito de organizar minhas elaborações teóricas em torno de minha experiência clínica e de "dar certo corpo" ao trabalho que tenho em mente, proponho partir de algumas premissas que alicerçaram a psicanálise freudiana:

• Se nos fosse solicitado resumir numa única palavra a descoberta da psicanálise por Freud, essa palavra, sem sombra de dúvida, seria a (noção) de "inconsciente"! (Ele nos mostrou que o psiquismo não se reduz à consciência, mas que determinados conteúdos só são acessados depois de superadas certas resistências.) Postulava, assim, que a vida psíquica estava repleta de pensamentos eficientes (embora inconscientes) e que era destes que emanavam os sintomas, atos falhos, lapsos e sonhos.

• É sabido que o sonho foi, para Freud, o caminho por excelência da descoberta do inconsciente. Os mecanismos (deslocamentos, condensação, simbolização) evidenciados nos sonhos são equivalentes aos sintomas pela sua estrutura de compromisso e pela sua função de realização de desejo.

• Sabemos também que o próprio Freud deixou "aberturas" no arcabouço de sua teoria, que foram posteriormente aproveitadas pelos seus seguidores, que, expandindo a "jovem ciência", foram preenchendo lacunas, bem como, se me permitem a "figuração", enxertando "carne viva" no esqueleto imprescindível criado pelo grande mestre!

Então, iniciando pelos textos de Freud do período entre 1900 e 1915, vou introduzir outros autores (clássicos) da psicanálise (Klein, Bion, Winnicott, Ogden), que também versaram sobre os mesmos temas, contribuindo grandemente para o enriquecimento e a elucidação destes.

Um contemporâneo que escolhi como referência foi James S. Grotstein, que expôs brilhantemente suas ideias em um compêndio intitulado Quem é o sonhador que sonha o sonho?

Esse, então, é o percurso que farei para elucidar minhas ideias.

Aprende a profundidade, extensão, prejuízo e força da tua mente;
estreita total intimidade com o Estranho dentro de ti
COX

O núcleo do inconsciente consiste em representações instintivas que procuram descarregar suas catexias; ou seja, consiste em impulsos e desejos ... Entretanto, seria errado imaginar que o inconsciente permanece em descanso enquanto todo o trabalho da mente é executado pelo pré-consciente ... O insconsciente está vivo, capaz de desenvolvimento e mantém um número de outras relações com o pré-consciente, entre elas aquela de cooperação. ... Achamos que muitas formações pré-conscientes permanecem no inconsciente, embora devéssemos ter esperado que, pela sua natureza, elas poderiam muito bem ter se tornado conscientes. Provavelmente, no último caso, o ponto de atração mais forte do inconsciente, se impôs. (Grotstein, 2003, p. 193)

Considerando as citações de Freud, Grotstein deduziu que ele concebeu, a respeito do insconsciente, dois procedimentos: descargas gratuitas em sua busca incessante de prazer e alívio de desprazer e, paradoxalmente, proteção da psique por catexias que se recusam ativamente a se tornar descarregadas. Ele acredita que o inconsciente que procura descarga não está só obedecendo às necessidades atuais do indivíduo, mas também "descarregando" a fim de obter a atenção da psique (de forma dramática) para afetos urgentes e para destacar situações mentais que precisam ser reconhecidas e processadas. Por outro lado, o inconsciente que retém sua catexia de descarga faz isto fora do pacto "cooperativo" com a psique, para protegé-la de um acúmulo de revelação precipitada.

Com base nesse raciocínio, ele passa a considerar outras entidades psíquicas habitantes do "caldeirão fervilhante" que é o inconsciente - hospedeiro do Id.

Em outras palavras, o id e seu anfitrião, o inconsciente, são, em considerações mais profundas, caraterizados por uma altivez, sofisticação, versatilidade, profundidade, virtuosidade e brilho, que sobrepujam totalmente os aspectos conscientes do ego. (Grotstein, 2003, p. 25)

Ele propõe uma construção do Id, sugerindo que o interpreta, às vezes, como um "segundo self" ou "alter ego", ou como o "sujeito inefável do inconsciente".

Quando o sujeito inefável do inconsciente encontra um outro externo que calha de ser um psicanalista, então os dois juntos constituem o que os gregos chamam "psichopomp": o condutor para o reino das almas perdidas. Thomas Ogden (1994) chama isso de "o terceiro sujeito intersubjetivo da análise". Em tempos passados esta entidade era conhecida por muitos nomes: alma, espírito, presença ou, então, "demiurgo".1 (Grotstein, 2003, p. 37)

Como mencionei acima, Ogden nomeou esse conceito "terceiro sujeito intersubjetivo", aplicando-o à situação dialética da transferência-contratransferência da análise. Seria, então, o resultado da soma da subjetividade do analista, mais a subjetividade do paciente, demarcando sua função e peremptoriedade, dizendo que a dupla analítica se torna "assombrada" por esse "demônio" virtualmente constituído. Postulou, portanto, que é a subjetividade da relação, em si mesma, que define, organiza, dirige, controla, manipula e subjuga cada um dos participantes, que podem ficar confusos pela forma misteriosa com que estão se comportando, pois seguem um "script" que não conhecem conscientemente. Essa hipótese pode ser emparelhada com a de Winnicott (1971/1975), quando diz que a psicoterapia se realiza em um espaço potencial, em que se dissimulam duas zonas de jogo, a do paciente e a do terapeuta. Se o terapeuta não pode jogar, não serve para esse trabalho. Se é o paciente que não pode jogar, é preciso fazer algo (manejo) que permita ao paciente capacitar-se para o jogo. Depois disso pode-se começar a psicoterapia (Ogden, 1986/1989, p. 185).

Até esse momento estive considerando resumidamente os postulados de Freud, Ogden e Winnicott (sob o ponto de vista de Grotstein) no que se refere à dinâmica funcional do par analítico, dentro de um espaço por eles constituído e utilizado, que inclui naturalmente os fenômenos transferenciais e contratransferenciais.

A contraidentificação do analista ocorre em seu papel como "continente" (Bion, 1962) na forma de empatia, reverie, intuição e trabalho de sonho "alfa". Neste papel, o analista compartilha da dor do analisando (como objeto analítico) "sonhando-o acordado", ou seja, o analista toma o analisando em seu pré-consciente, onde a dor é decifrada por meio do uso do sentido, mito, paixão e intuição. (Grotstein, 2003, p. 37)

Para esse autor, sonhos são narrações dramáticas escritas, dirigidas e produzidas por um sonhador composto. Esse sonhador nos é desconhecido e emprega a narrativa através de cenas fantasiadas e mitos. Usa a percepção neurofisiológica (visualização) para alcançar tal propósito. Faz isso para organizar os acréscimos caóticos e fragmentados de dor mental acumulados como resíduos durante o dia. Sonhar é a absorção e transformação de dados sensuais, os quais, após terem sido "sonhados", estão prontos para "digestão" e processamento.

Então, tudo o que podemos dizer, honestamente, é que fomos privilegiados em testemunhar e experimentar uma parte de um sonho e que seria incorreto usarmos a expressão "tive um sonho a noite passada". Poderíamos dizer que somos mais completamente nós mesmos ao "sonhar sonhos que nos sonham", enquanto dormimos. Em outras palavras, nossa habilidade para sonhar, adormecidos ou acordados, pertence a uma capacidade sobre-natural2 possuída pelo funcionamento holográfico e "numinoso"3 do sujeito inefável do inconsciente, que inclui o sujeito que sonha o sonho (SSS) e o sujeito que compreende o sonho (SCS).4

Portanto, para Grotstein, o SSS e SCS (cada um sendo um aspecto do sujeito inefável do inconsciente) são "prescientes" vis-à-vis àquele que testemunha o sonho, isto é, o self-acordado ou o sujeito fenomênico.

Utilizando minha própria terminologia, eu diria que o sujeito inefável do analisando fala "reflexivamente" (por meio dos sentidos) do mito (fantasias inconscientes) e da paixão (afetivamente) para seu sujeito fenomênico, que sente, por meio do analista/continente ... para mim "o terceiro sujeito subjugador", que pode ser pensado como o dramaturgo ou coreógrafo da peça de paixão da análise, apresenta-a para ambos (analista e analisando) para que eles a terminem, compreendam e interpretem. (Grotstein, 2003, p. 37)

O impacto criado pela originalidade das ideias de Grotstein gerou um conceito distinto da estrutura psíquica e dos processos psicodinâmicos deixados por Freud, estratificando-os em subsistemas com diferentes funções na elaboração e execução das peças (cenas) oníricas que povoam nosso teatro enquanto dormimos.

A simplicidade e coragem com que narra seus sonhos e declara suas convicções (preternaturais),5 expondo-se muitas vezes a críticas e juízos cristalizados, me emocionaram e me incentivaram a partilhar uma situação que vivenciamos eu e minha jovem paciente em meados de 2019.

Vou, portanto, contar-lhes uma história, sem grande preocupação com fundamentação teórica sofisticada, mas compromissada acima de tudo com a veracidade dos fatos e dos sentimentos experimentados na ocasião.

Estávamos nós duas numa sessão de final de tarde, que se arrastava monótona e desvitalizada, não sabia por quê. Aliás, nem me tinha dado conta disso, uma vez que essa era uma paciente que geralmente contribuía pouco, intercalando suas falas "monocromáticas" (às vezes, sarcásticas) com silêncios consideráveis, em sessões que eu denominava "a conta gotas".

Faço aqui o retrospecto de uma vivência comum logo no início dos nossos encontros, manifestada pela sensação de estar acompanhando-a numa UTI, onde a vida pingava a gotículas (no condutor do soro injetado em suas veias), e o único movimento (e som) perceptível era o tique-taque do monitor que registrava seus batimentos cardíacos! Ficava ali, sem nada para fazer, a não ser "suportar" a sensação de inutilidade, diante do desamparo de uma criança prestes a morrer.

Essa reverie6 era costumeira logo no início, antes de ela me relatar que havia sido submetida a três cirurgias logo nos primeiros dias de vida, pois havia nascido com meningocele (espinha bífida), o que, segundo ela, transtornou sua mãe, que já havia criado duas filhas saudáveis.

Estamos no oitavo ano de trabalho, dividido em dois períodos de quatro anos. A primeira vez que ela veio me pedindo ajuda, estava apavorada com a experiência de abrir um cadáver com um bisturi na escola de medicina. O bloqueio foi tamanho, que ela chegou a cogitar abandonar a ideia de exercer a medicina.

Ficamos quatro anos num trabalho em que as raras associações eram permeadas de sarcasmos frequentes. Penso que tinham a finalidade (inconsciente) de me manter afastada dela e impotente diante da sensação de estar lidando com um "porco-espinho".

Pensando ter resolvido o primordial, deixou a análise sob o pretexto de que sua situação financeira não mais lhe permitia continuar esse tipo de trabalho. Ficou alguns anos afastada e voltou quando, já médica formada e estagiando num hospital credenciado da cidade, temia a possibilidade de não ser contratada após o término da sua residência. Queria também poder terminar o relacionamento, já antigo, com um colega de profissão, que mais parecia ocupar o lugar de um irmão, do que formar com ela uma parceria amorosa!

O que vou narrar ocorreu agora, depois de quatro anos desse retorno, que, a meu ver, teve mudanças significativas. No decorrer desses anos, a reverie de estar lidando com um "porco-espinho", no qual não se podia tocar, foi sendo gradativamente substituída pela sensação de que já podia pegá-la no colo, com cuidado, para não machucar seu corpinho ferido. Quando isso ocorria, ela usava expressões sarcásticas para negar, possivelmente, a dor "sensorial-inominada" que havia caracterizado sua chegada a este mundo. Lidamos com seu triunfo e desprezo pela análise, por um bom tempo! Surgiram então aspectos mais bem-humorados (abrandamento do Superego?), que a princípio me surpreenderam, mas que passaram a fazer parte dos nossos encontros subsequentes. No entanto, vez ou outra me remete novamente à reverie da UTI inicial.

Estávamos, pois, numa sessão na qual ela havia citado várias situações (aparentemente sem nenhuma associação) deixando espaços silenciosos permeando suas falas. Eu estava olhando para meu relógio, constatando que ainda teríamos dez, ou quinze minutos de sessão, sem muita esperança de que algo mais (fato selecionado?) acontecesse!... O clima era de estagnação!

De repente, ela alteia um pouco a voz e diz: Sabe?... a noite passada sonhei com você. Surpreendo-me, pois ela nunca havia dito ter sonhado comigo. Digo-lhe isso, ao que ela retorna com aparente indiferença: "sonhei que você tinha morrido" (pronto... silêncio novamente). Aquilo me causou uma sensação estranha !!!... O silêncio continu,ou, e eu fui experimentando uma sequência de sentimentos: primeiro, surpresa!... depois agredida!... depois, paralisada, vendo-me MORTA!

O sujeito sonhador do sonho, com uma intrigante intuição, imaginação e versatilidade, torna-se o "diretor de cena" do aparente teatro improvisado que constitui a sessão psicanalítica e envolve a subjetividade do analista a participar do jogo em qualquer papel do seu repertório que sinta deva ser atuado naquele momento. O palco para essa encenação teatral é o espaço potencial. (Grotstein, 2003, p. 235)

Winnicott nos chamou a atenção para a importância de uma terceira área (a da brincadeira), que se expande na vida criativa e cultural do ser humano. Essa área foi contrastada com a realidade psíquica interna (ou pessoal) e com o mundo real em que o indivíduo vive e que pode ser objetivamente percebido.

Localizei essa importante área de experiência, no espaço potencial, existente entre o indivíduo e o meio ambiente, aquela que, de início, tanto une como separa o bebê e a mãe ... o espaço potencial entre a mãe e o bebê, entre a criança e a família, entre o indivíduo e a sociedade, depende da experiência que conduz à confiança. Pode ser visto como sagrado para o indivíduo, porque é aí que este experimenta o viver criativo. (Winnicott, 1971/1975, p. 142)

Voltando agora ao relato da sessão:

Então, arranjando voz, digo-lhe: E o que mais tinha no sonho? Ao que ela responde: "nada... era você morta" (eu morta?... sozinha?!)

Uma "presença"7 da minha imagem sozinha morta... deitada num caixão flutuante, tomou conta da minha mente... uma sensação de extrema solidão apossou-se de mim!

Pensei: pronto, me matou! (estará dando fim à análise?... calando a minha voz?) Um misto de frustração e impotência tomou conta do espaço, tornando o silêncio pesado!

Ogden (1994) propôs o "terceiro sujeito intersubjetivo"8 subjugador da análise, o qual é formado pelas Identificações9 projetivas mútuas, inconscientes, do analista e do analisando, cada um tendo projetado seus próprios elementos subjetivos em uma terceira área (espaço potencial) incluindo a subjetividade (o ser personificado), onipotência, intencionalidade e ação. Esta nova entidade invisível é sentida por seus criadores como tendo assumido vida própria; um que onipotentemente dirige e controla cada um deles. (Grotstein, 2003, p. 235)

Então, provavelmente, para sair dessa paralisação mortífera, eu digo a ela: então estou morta... sozinha?! Ela diz, NÃO!! (alteia a voz) O seu velório deu ibope!!! Tinha muita gente!!... Eu: Ahhh!!... Deu ibope?? Meu velório?... Ela: É... Deu!.

Caímos juntas numa gargalhada inesperada, desarticulando aquela desvitalização reinante, com os movimentos sacolejantes dos nossos corpos e com a sonoridade das risadas!

Depois disso, ela silenciou, e eu fiquei "cabreira" pensando: o que aconteceu aqui? Repassei rapidamente a sequência dos meus sentimentos, considerando primeiro o teste sádico a que ela me submeteu (sadismo: manifestação do impulso de morte?). Imediatamente me veio a ideia de que queria me calar, pondo fim à sua análise (compulsão à repetição?). Minhas hipóteses pareciam direcionar-se para a concepção de que seria o impulso de morte perpassando a vida!

Os sonhos como formações de compromisso, segundo Cassorla, revelam e escondem ao mesmo tempo aspectos do mundo interno e do funcionamento mental. Diz ainda que o analista transferencialmente é incluído no "sonho" do paciente. As formas pelas quais essa inclusão é efetuada revelam como a realidade é processada e as vicissitudes das relações entre mundo interno e externo. Portanto, em área de funcionamento não psicótico, o paciente põe seu sonho na sessão de análise, estimulando a capacidade analítica do profissional. Este usa sua intuição para captar aspectos do sonho do paciente que, ainda que fazendo parte da rede simbólica do pensamento, foram deformados pelas defesas. "O analista então 're-sonha' o sonho, em outras vertentes, permitindo novas conexões simbólicas e ampliando significados. Analista e paciente se envolvem num 'sonho-a-dois'" (Cassorla, 2008, p. 193).

Finalmente me dou conta, pensando no desfecho da situação, de que, na verdade, foi o impulso de vida perpassando a morte reinante na nossa sessão! Foi a partir da narração do sonho dela que a sessão "pegou fogo" - ficou viva. (Isso tudo, rapidamente, como só nós, analistas, conseguimos fazer diante de uma "saia justa" desse porte.)

Então, disse a ela que parecia tranquila deitada no divã: ah! então, eu não estava sozinha? Você estava lá comigo e com muitas outras pessoas... você as conhecia?

Ela: Não... MAS ELAS CONHECIAM VOCÊ!!! Estavam tristes!... GOSTAVAM DE VOCÊ! Senti um calor percorrer meu corpo e uma sensação de alívio; e aí ela começou a associar: Sabe?..., você parecia muito tranquila... parecia que você estava levando uma parte minha que eu não quero mais... uma parte antiga.

Eu: Então, eu estava levando para o túmulo uma parte sua que você colocou em mim, pois não sabe o que fazer com ela! Ela diz que agora vê sua análise em dois momentos: o primeiro, que era o de "exorcizar" os demônios (reconhecia que era muito brava e áspera com as pessoas). Mas que sentia que essa fase havia passado e agora se sentia muito melhor... mais leve!... mais feliz!... Diz que não quer mais o primeiro momento. Digo-lhe então que ela temia que eu, viva, trouxesse de volta os demônios dos quais ela queria se livrar e os devolvesse para ela. Ela sorri. Terminamos a sessão nos despedindo, ainda sorrindo. Até terça... até!

Já passava das 9 horas da noite, e eu fui para casa jantar. Mais tarde, ao me recolher aos braços de Morfeu (este nome não é aleatório, pois, se tirarmos o F e acrescentarmos um R, fica MORREU), foi a minha vida onírica que se manifestou em um sonho que tinha dois momentos.

Freud (1900) postulou que o amálgama do instinto mais o resíduo diurno se condensam de maneira a alcançarem intensidade suficiente para impingir regressivamente sobre a tela de projeção de percepção - para descarga enquanto sonho ... O sonho que estou prestes a relatar me despertou para uma percepção de que os sonhos são, em última análise, complexas produções cinematográficas que requerem talento artístico consumado, tecnologia e decisões estéticas apuradas. O palco do sonho pode ser comparado a um continente ou pano de fundo, no qual a peça em si constitui o conteúdo ou a figura que emerge nesta situação. Ao postular dois criadores, o criador transmissor do sonho e o receptor, estou realmente propondo a existência de uma presença profunda e além do natural, cujo outro nome é o Inefável Sujeito do Ser. (Grotstein, 2003, p. 50)

Então, voltando ao meu sonho, que aconteceu em dois momentos: Primeiro momento: sonhei com um recipiente fechado (... parecia que era uma urna funerária, menor que a de um adulto) que eu podia abrir e olhar dentro... como essas baixelas de restaurante tipo self-service, de tampas arredondadas, que a gente levanta para olhar e pegar a comida. Abro... levanto a tampa e deparo com muito ratos mortos. (azulados e arroxeados) superpostos uns aos outros!

A sensação que tive no sonho, ao deparar com essa primeira cena, foi de paralisação: igual àquela que experimentamos quando chegamos a um velório e olhamos para o morto: "nada se pode fazer, a não ser ficar parado por determinado tempo (dependendo da proximidade afetiva com o falecido) numa situação de impotência, que "pede um movimento": olhar ao redor e procurar uma motivação para deslocamento (cumprimentar os conhecidos?).

Segundo momento: novamente um receptáculo, agora menos parecido com uma urna funerária (talvez mais redondo, como se fosse uma grande fôrma de pizza, que também tinha uma tampa). Abro e vejo que estava repleta de. moluscos congelados e grudados uns nos outros. A cor era rosada, embora ficasse mais escura em alguns pontos.

Em relação a essa segunda cena do sonho, a sensação era de que havia alguns moluscos vivos no meio dos mortos, que eram mais escuros. E eu tinha que separá-los, pois estavam grudados uns aos outros. Tinha que retirar os mortos com cuidado para não tirar pedaços dos vivos, e consequentemente causar suas mortes!

Observação: no sonho eu sabia que era um sonho que tinha a ver com o sonho de minha paciente, mas que algo (ou alguém) me dizia ser ele anterior ao sonho dela! Ou seja, na lógica onírica, primeiro eu sonhei, e depois ela sonhou.

O Sonhador que Sonha o Sonho é o Inefável Sujeito do Ser, o qual, enquanto registrador da dor, descontentamento ou sensação de ameaça iminente, envia uma "gritaria" na forma de mensagens imagéticas projetadas para dentro do contedor - Sujeito que Comprende o Sonho, cuja reverie, tal como aquela da mãe de um bebê, capta o tormento e o transforma em significado. A mãe continente internalizada e sua reverie se tornam o Sonhador que Comprende o Sonho... A habilidade da mãe para colocar a dor projetada para dormir é um testemunho da sua capacidade de sonhar pelo bebê... Sugeri que o Sujeito Inefável do Ser é o sensor inconsciente (não censor) do descontentamento do sonhador. Qual é o papel daquele colega mais consciente, o Sujeito Fenomênico? Durante o sonho, este participa do sono igualmente, enquanto o Inefável Sujeito nunca dorme. Pode ser que o Inefável Sujeito produza o sonho para proteger o Sujeito Fenomênico, o guardião do dia. Esta linha de pensamento estaria de acordo com a teoria de Freud (1900/1969) de que o propósito do sonho é proteger o sono ...

Tanto o SSS quanto o SCS participam de um paradoxo holográfico de com-mu-nhão e separação... São as presenças que sustentam a nossa sensação de Eu-da-de. Juntos constituem nossa sensação subjetiva além do natural, divina ou numênica de self - aquele que é apto a experimentar a Verdade de um sonho dentro de um sonho. (Grotstein, 2003, p. 61)

Quando Grotstein faz um emparelhamento do seu conceito de "Sujeito Inefável do Ser" com o conceito de "O"10 criado por Bion, sugere que partes inconscientes do psiquismo humano se alongam por territórios longínquos e desconhecidos, transcendendo espaços e "tangenciando o divino"! "Postulo que o inconsciente é talvez tão próximo à experiência de Deus, como a espécie humana jamais esperou alcançar" (2003, p. 25).

Escrevendo isso, me veio a ideia de que talvez fosse essa a alusão feita por Freud no primeiro capítulo do "Mal-estar da civilização" (1930), quando fez considerações sobre o chamado "sentimento oceânico".11

Sabemos que esse conceito não é de Freud, mas lhe foi enviado, em 1927, por um estimado colega que acreditava que uma pessoa, embora rejeitasse toda crença e toda ilusão, poderia se designar religiosa, alicerçada apenas nesse sentimento "oceânico"! Freud diz: "Não consigo descobrir em mim esse sentimento... não consegui convencer-me da sua natureza primária: isso, porém, não me dá o direito de negar que ele de fato ocorra em outras pessoas".

Ele considera que não é fácil lidar cientificamente com sentimentos; eu acrescentaria que com os sonhos também não! Freud ficou irredutível quanto a isso, mas penso que "matutou" bastante a respeito, pois os parágrafos seguintes são dedicados a clarear a dimensão e elasticidade do ego, dizendo: "O ego nos aparece como algo autônomo e unitário, distintamente demarcado de tudo o mais... Aparência enganadora!... Pelo contrário, é certo que o ego seja continuado para dentro, sem qualquer delimitação nítida, por uma entidade mental inconsciente que designamos como Id, à qual o ego serve como uma especie de fachada".

Parece que a ideia sugerida pelo amigo o levou a considerar quão misteriosa ainda é a extensão, o alcance e a função do ego no psiquismo humano. "A pesquisa psicanalítica ainda deve ter muito mais a nos dizer sobre o relacionamento do ego com o Id" (Freud, 1930/1969).

 

À guisa de conclusão

Tentarei, nestas últimas considerações, estabelecer uma correlação entre os fatos vivenciados por mim e pela minha paciente e os nossos sonhos, que sucedendo-se mesclaram-se para cumprir suas funções!

Ogden diz que, na medida em que analista e analisando geram um terceiro sujeito, a experiência de sonhar do analisando não é mais adequadamente descrita como gerada em um espaço mental exclusivo do analisando.

Uma das questões que me vinham sempre à cabeça, ao escrever este trabalho, era a necessidade de que, em algum momento, eu teria de citar o turbilhão de acontecimentos que me acometeram no período transcorrido entre meados de 2018 e 2019. Fui surpreendida pela ameaça da morte real, por duas vezes nesse mesmo período. Apesar de sobrecarregada, não interrompi o meu trabalho, exercendo minha "função analítica" com todos os meus pacientes, até mesmo com ela. Penso que, provavelmente andei "exalando" a morte, em alguns de nossos encontros, o que foi por ela "captado no ar" e reproduzido no sonho de minha morte.

Considero, então, que o "pano de fundo" do nosso palco, que, aliás, sempre foi, desde o início, trilhado sonoramente pela marcha fúnebre,12 saiu do fundo e veio para o centro da cena dramática vivenciada pela dupla: ela produziu o meu velório, e eu produzi o velório dos ratos e moluscos.

Com relação a meu sonho, vejo claramente a função elaborativa, própria do processo de sonhar, que por si só dá conta de aliviar parte da tensão acumulada, dos resíduos diurnos. Percebo, também, o meu envolvimento com a tarefa de cuidar de minha paciente, que, extrapolando a delimitação do setting analítico, vai comigo para casa, ainda trabalhando na sua função de reverie, produzindo uma cena onírica.

No meu primeiro sonho (eu como SSS) produzi uma cena pictórica, que era o velório dos ratos. E eu como SCS acolhi esta cena, comportando-me como alguém que vivenciava a paralisação produzida pela morte, não só no "morto", como em todos os que a presenciam!

Sobrando ainda muita energia a ser descarregada, produzo a segunda cena do sonho: retiro com cuidado os moluscos mortos, para não desmembrar os vivos.

Então, aparece uma terceira entidade, que "sabe" que o meu sonho tem a ver com o dela e diz que, na verdade, foi anterior ao dela. Quem é esse terceiro elemento?

Grotstein disse que o SSS e o SCS (cada um sendo um aspecto do inconsciente) são "prescientes", face a face àquele que testemunha o sonho, isto é, o self acordado. Ele chama de Sujeito Fenomênico aquele que dorme (enquanto sonha) e de Sujeito Inefável (ou numinoso) aquele que nunca dorme, pois está sempre trabalhando! Penso então que esses três juntos, numa comunhão intrapsíquica, vêm em meu auxílio dizendo: "não se preocupe, você já havia sonhado com a morte antes, ou melhor ainda: vocês duas vêm sonhando 'esse terror' há muito tempo!"

Dou-me conta, então, de que fazia tempo que eu separava Tânatos de Eros, para salvar o que havia de libido nela (impulso de vida). E que fazia isso com muito cuidado, para não a desmembrar de vez!

Termino este relato com mais perguntas do que respostas, recordando-me de uma poesia que escrevi, no início deste século, quando me "aproximava" dos pressupostos bionianos.

O encontro

O encontro acontece, às vezes com hora marcada!
E transcorre prazeroso, sem precisar de mais nada!
Às vezes ele é sonhado... às vezes, vira trombada!
Quando o outro é "abocanhado", não realiza mais nada.

O Encontro é Turbulência... melhor do que não fazer nada!
É preciso persistência pra mover água parada.
Pra transformar "a coisa" em pensamento pensado!
Pra tirar da morte muda a vida aprisionada,
Já que elas nascem juntas, desde o início fusionadas!

É preciso paciência pra pescar "peixe pesado"!
Pra confiar no método e abstrair do concreto.
E no compasso desse bailado... fisgar "fato selecionado".

Finalizo, citando mais uma vez Grotstein:

Em todo sonho (tal como anteriormente em profecias e oráculos) simetria se transforma em experiência humana assimétrica para o momento. O resultado é uma paz de mente, solução de um problema, resolução de um dilema. (Grotstein, 2003, p. 61).

 

Referências

Bion, W. R. (1980). Aprendiendo de la experiencia. Paidós. (Trabalho original publicado em 1962)        [ Links ]

Bion, W. R. (1991). A atenção e interpretação. O acesso científico à intuição em psicanálise e grupos. Imago. (Trabalho original publicado em 1970)        [ Links ]

Cassorla, R. (2009). Reflexões sobre não-sonho-a-dois, enactment e função alfa implícita do analista. Revista Latino-americana de Psicanálise, 8,189-208.         [ Links ]

Freud, S. (1969). A interpretação de sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 5). Imago. (Trabalho original publicado em 1900)        [ Links ]

Freud, S. (1969). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (T. Abreu, Trad., Vol. 21). Imago. (Trabalho original publicado em 1930)        [ Links ]

Grotstein, J. S. (2003). Quem é o sonhador que sonha o sonho? Imago.         [ Links ]

Klein, M. (1991). Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Imago.         [ Links ]

Ogden, T. H. (1989). La matriz de la mente. Las relaciones de objeto y el diálogo psicoanalítico. Continental. (Trabalho original publicado em 1986)        [ Links ]

Ogden, T. H. (1997). Reverie e interpretação [apostila]         [ Links ].

Winnicott, D. W. (1975). O brincar & a realidade. Imago. (Trabalho original publicado em 1971)        [ Links ]

 

 

Recebido em: 14/11/2019
Aceito em: 20/5/2020

 

 

1 Demiurgo: nome dado por Platão ao Deus criador e arquiteto do mundo, para distingui-lo do Deus como essência - o Deus imanente dentro de nós.
2 Por sobrenatural não quero dizer onipotente ou supernatural; quero dizer além do curso normal da natureza, excepcional.
3 Numinoso: inspirado pela deidade reinante de um lugar, divino.
4 SSS, sujeito que sonha o sonho, e SCS, sujeito que comprende o sonho.
5 Preternaturais: termo criado pelo autor para designar algo "além do curso normal da natureza", e não necessariamente sobrenatural, o que teria uma conotação de onipotência.
6 Reverie: conceito bioniano que denomina a capacidade da mãe para sonhar ou mitificar as projeções de seu filho, e não apenas lidar com elas realisticamente. Vale também para o contato que se estabelece entre o analista e o analisando.
7 Presença: a experiência de presença que é meta-humana ou sobrenatural, existe como uma potencialidade na passagem ilimitada do inconsciente (Grotstein, 2003).
8 Um sonho criado no decorrer da análise é um sonho que surge no espaço onírico analítico e pode, portanto, ser considerado um sonho do terceiro analítico.
9 Identificação projetiva: muito do ódio contra as partes do self é projetado para dentro da mãe. Isso leva a uma forma particular de Identificação que estabelece o protótipo de uma relação de objeto agressiva. Sugiro o termo identificação projetiva para esses processos. (Klein, 1946/1991).
10 Bion (1965-1970) usa o termo "O" para designar a Verdade Absoluta ou Realidade Última, aquele domínio que fica além da imaginação e além da realidade simbólica. Ele simplesmente É!
11 Sentimento que Romain Rolland usou para designar uma sensação de eternidade; um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras - oceânico, por assim dizer.
12 Adágio de Beethoven.

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