SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.53 número99DiferençasSó... Solidão...: Fronteiras entre a curva e a reta índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.99 São Paulo jul./dez. 2020

 

DIÁLOGO COM UM JOVEM COLEGA

 

Meu caro candidato...1

 

Dear candidate...

 

Mi querido candidato...

 

Mon cher candidat...

 

 

Roosevelt Cassorla

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Campinas (SBPCAMP). Professor titular da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Campinas/ roocassorla@gmail.com

 

 


RESUMO

Trata-se de uma carta, hipotética, de um analista sênior a um colega candidato em que se discutem vicissitudes da formação e da função analítica, comparando-se diferentes épocas. A carta foi, originalmente, escrita para um livro dirigido aos candidatos da IPA.

Palavras-chave: formação analítica, supervisão, instituição psicanalítica, candidatos


ABSTRACT

It is a hypothetical letter from a senior analyst to a fellow candidate in which vicissitudes of training and the analytical function are discussed, comparing different times. The letter was, originally, written for a book addressed to IPA candidates.

Keywords: analytic training, supervision, psychoanalitic institution, candidates


RESUMEN

Se trata de una hipotética carta de un analista senior a un compañero candidato en la que se discuten vicisitudes de la formación y función analítica, comparando diferentes momentos. La carta fue escrita originalmente para un libro dirigido a los candidatos de la IPA.

Palabras clave: formación analítica, supervisión, institución psicoanalítica, candidatos


RÉSUMÉ

Il s'agit d'une lettre hypothétique d'un analyste senior à un collègue candidat dans laquelle sont discutées les vicissitudes de la formation et de la fonction analytique, comparant différentes époques. La lettre a été initialement écrite pour un livre adressé aux candidats de l'ipa.

Mots clés: formation analytique, surveillance, institution psychanalytique, candidats


 

 

Outro dia, eufórico, você me contou que um dos avaliadores de teu relatório clínico disse: "Teu texto está perfeito. Não tenho nada para perguntar ou acrescentar". Você estava orgulhoso, e sei que estava dividindo tua alegria comigo.

Você estranha que eu não me mostrasse feliz e, como temos uma relação de confiança, pergunta-me o que teria acontecido. Inicio este diálogo através da escrita, mas estou certo de que o aprofundaremos quando nos encontrarmos.

Tua percepção estava correta. Me senti impactado e constrangido, e não pude, naquele momento, pôr em palavras meus pensamentos. Explico: um trabalho psicanalítico "perfeito", mas que não estimula questionamentos e problematizações, não pode ser um bom trabalho. Não existem sessões analíticas ou textos impecáveis. Já me defrontei com situações em que me pareceu que o apresentador maquiou suas intervenções. A maquiagem esconde, mas também revela. O ouvinte psicanaliticamente treinado duvida de que o relato seja verdadeiro.

Como te conheço, estou certo de que você se apresentou de forma genuína. Não temos como saber os motivos que levaram teu avaliador a não poder "sonhar" teu material e ampliar significados.

Lembro-me de uma situação em que o trabalho de um candidato foi reprovado. O avaliador principal disse que não conseguira ler o trabalho até o final, porque lhe dera sono. Acrescentou que a correlação com a teoria estava pobre e que o trabalho deveria ser refeito. Não quero cansar-te com detalhes, mas a instituição percebeu que a reprovação era injusta e refletia problemas pessoais. Os candidatos se articularam, e contribuíram para que se mudasse o regulamento daquele Instituto de forma a prevenir situações perversas. Esse episódio fez parte de vários outros que, pouco a pouco, foram democratizando as instituições. Orgulhamo-nos, como candidatos, por termos contribuído para essa transição.

Imagino você curioso querendo saber como isso foi conseguido. Não sei exatamente, mas foi um momento em que - em algumas Sociedades - se constituíram grupos unidos que souberam argumentar de forma potente, controlando os arroubos agressivos da juventude. Como você sabe, em qualquer grupo humano é a geração mais jovem que identifica e revela conluios que se repetem de forma esclerosada, sem que a geração mais velha se dê conta do que está se passando.

Não é fácil avaliar o que ocorre em volta de nós, menos ainda quando fazemos parte do que vivenciamos. O psicanalista é observador e também participante do campo analítico. Ele tenta objetivar sua subjetividade. Tanto na clínica como nos grupos institucionais o candidato participa de um emaranhado de identificações projetivas cruzadas que influenciam sua forma de perceber os fatos. Por isso, é importante que os grupos pensem sobre o que está se passando.

Percebo que, nos últimos parágrafos, tento estimular o teu envolvimento com a instituição psicanalítica. Existe um amplo espaço para isso, e, se não existisse, ele deveria ser conquistado. Penso que o candidato pode e deve fazer política, no sentido de agir para o bem-estar da polis. Vivenciar esses fatos enquanto se está em análise pessoal auxilia no desenvolvimento pessoal, das instituições e da própria psicanálise. Proponho mais: ir além da instituição e envolver-se com a sociedade, buscando formas de tornar a psicanálise útil para mais pessoas.

Você poderá refutar isso. E dizer-me que a verdadeira psicanálise somente pode ocorrer nos consultórios, com análise de alta frequência, o que envolve o atendimento de pessoas privilegiadas financeiramente, pelo menos em nosso meio. Mas tenho certeza de que o conhecimento psicanalítico também é útil em trabalhos com a comunidade, nas instituições de saúde, educação, com pessoas desvalidas, violentadas etc. Nosso desafio é ampliar o uso da psicanálise. Não me preocupo com o que é "verdadeiro" ou "falso", quando essa dicotomia se aproxima do pensamento fanático.

Não sei se o que você está lendo te interessa. Esse é um dos problemas da comunicação unidirecional. Também da escrita psicanalítica. Tenho notado a dificuldade de alguns candidatos em escrever seus relatórios e primeiros textos científicos. Um fator, óbvio, é a ação de um superego severo impedindo que se escreva qualquer coisa que não seja "perfeita". Outro fator, relacionado ao primeiro, é a dificuldade em elaborar lutos. O autor quer escrever "tudo" e tem dificuldades em escolher quais os aspectos que importam. A escrita criativa, assim como a vida, depende da capacidade de elaborar lutos.

Não é fácil tomar consciência de nossas limitações. Nunca seremos os psicanalistas que, idealizadamente, queremos ser. Nossas análises nunca serão "completas", porque nossa mente é infinita, e está em permanente transformação. Não será possível conhecer todas as teorias e acompanhar seus desenvolvimentos. E temos que nos lembrar de que a vida não é só psicanálise. Se for, algo de errado está acontecendo.

Isso me leva a teu incômodo com a palavra "candidato". Você me conta, com humor, de um paciente que te disse que você havia sido rebaixado: de "phd em Psicologia" tornou-se um simples "candidato". Você e teus colegas se preocupam com a possibilidade de que prováveis pacientes desconfiem da capacidade e experiência profissional do "candidato". Lembro-me de que essa palavra vem do latim candidus, que significa branco e, por extensão, pureza e inocência. Era a cor da toga com que se vestiam os postulantes a uma função pública. Imagino que, em Roma, se esperava que os candidatos, uma vez escolhidos, trabalhassem pelo Estado com honestidade. Como você vê, a idealização dos candidatos e das instituições já vem de longe. Sei de situações em que a argumentação dos candidatos fez com que se mudasse a denominação para "membro filiado".

A instituição, por vezes, desconfia das reivindicações dos candidatos e passa a "analisá-las". Penso que essa é uma perversão do conhecimento psicanalítico. A análise do candidato acontece no setting adequado, com seu analista.

Lembre-se de que ser candidato da IPA é um privilégio. Além do conhecido tripé - análise de treinamento, trabalho clínico supervisionado e estudo aprofundado da teoria -, valorizo o quarto eixo: o pertencimento à instituição. Percebo que você não está suficientemente informado das variadas atividades que a IPA, a ipso, as Federações Regionais estão oferecendo aos candidatos. Intercâmbios, supervisões e grupos de discussão com analistas de diferentes sociedades, bolsas de auxílio financeiro, working parties etc. Muitas dessas atividades são efetuadas em forma virtual. A IPA é, com certeza, uma das instituições globais que mais se aproveitam disso criativamente.

As instituições psicanalíticas têm se mostrado mais generosas, transparentes e criativas. Além de fatores socioculturais, penso que essas mudanças refletem também os desenvolvimentos do conhecimento psicanalítico. Valoriza-se o que ocorre no campo analítico, entre os membros da dupla, aquilo que cada um "provoca" no outro. Estudam-se minuciosamente os movimentos em que os membros da dupla se encontram e desencontram. Esses movimentos revelam/escondem as formas pelas quais a mente foi se constituindo, e também seus déficits. Essa ênfase técnica e teórica levou a se reconsiderar a pessoa do analista, suas capacidades intuitiva e imaginativa. Seu setting interno. O analista, diante de situações difíceis, é estimulado a fazer experimentos, enquanto observa cuidadosamente suas consequências. Percebo que os analistas estão mais livres para observar e pensar, abandonando ideias rígidas. Essa liberdade faz com que o candidato se beneficie, ainda mais, de sua análise pessoal.

Dessa forma se observa a diminuição do pensamento dogmático e da adesão acrítica a uma determinada teoria psicanalítica, por vezes considerada a única verdadeira. É preciso lembrar que teorias são construções hipotéticas que buscam dar sentido à experiência clínica. Essas teorias podem e devem ser alteradas ou substituídas por construções mais compreensíveis. Felizmente o aspecto religioso da psicanálise vem se desfazendo. A identidade do psicanalista não recebe mais o adjetivo de um autor clássico (Klein, Kohut, Bion e outros). Ele é quem ele é, tem uma identidade própria em que, sem ser eclético, aproveita aquilo que lhe faz sentido, desenvolvendo sem cessar sua capacidade criativa. Que bom ser candidato nesse momento do desenvolvimento da psicanálise!

Há que ficar alerta para os populismos e fanatismos que vêm se infiltrando nas democracias atuais. Sabemos como governos autoritários dificultam o desenvolvimento da psicanálise. Corre-se o risco de que as próprias instituições psicanalíticas se tornem repressivas, ainda que parte dos analistas resista. Lembro-me de um colega tcheco nos contando sobre o uso clandestino da psicanálise durante o regime comunista. O professor de Psiquiatria mais conceituado do país afirmava que a psicanálise era um bom tratamento. Mas fazia uma ressalva: desde que se jogasse fora tudo o que Freud havia escrito! Infelizmente êxodos de psicanalistas têm sido comuns. O pertencimento à IPA tem tornado menos difícil a inserção dos colegas em outros países.

Você não viveu essas situações e talvez não as possa imaginar. Intuo, porém, que você e os teus colegas terão que se haver com elas. Como você sabe, Eros e Tânatos estão sempre em luta, e isso nunca termina.

Acolhemos o diferente, o estrangeiro que bate à nossa porta, aceitando-o como ele é. A psicanálise nos ajuda a desenvolver a hospitalidade, tanto para o outro como para partes de nossa mente. Hospitalidade e ética se interpenetram, e sem elas não seremos psicanalistas (nem seres humanos dignos). O trabalho psicanalítico com o hóspede inicialmente indesejável nos ajuda a desenvolver criatividade amorosa entre hóspede e hospedeiro. Isso nem sempre é possível, e há que ficar alerta para fantasias de onipotência paralisante.

Os mais velhos costumam dizer que não se arrependem do que fizeram em sua vida. Aquilo que parece sabedoria me parece - muitas vezes - uma defesa resignada. Não é meu caso: sinto ter-me deixado contaminar com a "peste" psicanálise (nas palavras de Freud) de tal forma, que corria o risco de sacrificar outros aspectos da minha vida. Pelo que te conheço, você está correndo um risco similar, não é? Pude perceber o que estava acontecendo comigo através da mesma psicanálise. A "peste" se transformou em remédio...

Ser psicanalista é fascinante. Temos o privilégio de ser desafiados, todo o tempo, a dar sentido a tantas vidas (e também à nossa). E isso nunca termina. Que você possa usufruir de tudo o que a formação analítica te oferece.

Forte abraço

Cassorla

 

 

Recebido em: 8/9/2020
Aceito em: 9/9/2020

 

 

1 Texto modificado de capítulo do livro Dear candidate, editado por Fred Busch e publicado pela Routledge em 2020.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons