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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.100 São Paulo jan./jun. 2021

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

Identidade de sexo e estruturação do ego1

 

Gender identity and structuration of the ego

 

 

Durval Marcondes

Durval Marcondes (1899-1981). Doutor em medicina. Professor de Psicologia Clínica na Universidade de São Paulo (USP). São Paulo

 

 


RESUMO

Constitui situação cheia de perigos a necessidade de definir uma representação mental de si mesmo em concordância com o sexo a que o indivíduo pertence. A bissexualidade psíquica original acarreta obstáculos ao perfeito acabamento da identidade de sexo, podendo trazer prejuízos para a síntese da personalidade. A tendência à clivagem desta e a correspondente ameaça à estruturação de um ego são, assim, condições inerentes à própria essência da primitiva disposição bissexual. A identidade de sexo tem seus primórdios nas relações do indivíduo com a cena primária. Para compreender os problemas que isso acarreta, é interessante estudar as várias configurações psíquicas a que dão lugar, no múltiplo jogo de fusões e cisões aí presentes, as três partes constitutivas da cena primária (mãe, pai e criança). De acordo com o material psicanalítico de psicóticos e perversos sexuais, pode-se considerar a presença de três elementos separados entre si e, ao mesmo tempo, fundidos num só conglomerado de três. Os processos opostos de identificação e diferenciação podem aí coexistir, graças a uma condição peculiar ao início do desenvolvimento psíquico, que é a ambiguidade. Esse núcleo básico da cena primária sofre desdobramentos e redistribuições que são esquematicamente descritos. O progresso no sentido do princípio da realidade conduz à formação de uma identidade de sexo e obriga ao sacrifício da bissexualidade primitiva que estava contida na concepção original da cena primária. A relativa preservação, através de certas perversões sexuais, daquilo que o autor denominou "núcleo hermafrodita primário", é uma forma de manter a unidade do ego, embora com prejuízo de um perfeito estabelecimento da identidade de sexo. Em alguns casos de homossexualidade masculina, pode se observar que, basicamente, se trata de um esforço para a conservação de uma dupla identidade, com o fim de manter um ego que, de outro modo, viria a desagregar-se. Na experiência do autor, a forma de perversão sexual em que a síntese interna dos dois sexos se acha representada mais tipicamente é o transvestismo masculino. Na esquizofrenia, a natureza mais arcaica do quadro clínico deixa transparecer mais claramente o papel defensivo da bissexualidade. Aquilo que foi exposto acentua a necessidade de estudo mais completo da maneira pela qual a perversão ou a reação psicótica restitutiva procuram, através da defesa ou da reconstituição do núcleo hermafrodita original, assegurar ou restabelecer a integridade do ego. A melhor compreensão desse assunto será de grande valor para nosso aperfeiçoamento teórico e técnico.


ABSTRACT

The necessity of defining a mental representation of one's own self in accordance to the sex to which one belongs constitutes a situation full of dangers. The original psychic bisexuality carries in it difficulties to the perfect completion of the gender identity and as so may impair the synthesis of personality. The tendency of splitting the personality and the correspondent threat to the structuration of the ego are therefore conditions inherent to the essence of the primitive bisexual disposition itself. The identity of sex has its origins in the relations of the individual with the primal scene. To understand the problems created by this fact, one should study the various psychic configurations that, in the multiple game of fusions and separations contained in the primal scene, are produced by the three constitutive parts of it (man, wife e and child). In accordance to some psycho-analytical material of psychotics and sexual perverts, one can consider the presence of three elements separate in themselves and at the same time blended in one conglomerate of three. The opposite processes of identification and differentiation may coexist, due to a peculiar condition at the beginning of the psychic development: the ambiguity. This basic nucleus of the primal scene offers unfoldings and redistributions that are schematically described. The progress in the sense of the reality principle leads to the formation of a gender identity and the sacrificing of the primitive bisexuality contained in the original conception of the primal scene. The relative preservation through sexual perversions of that which the author calls primal hermaphroditic nucleus is a means to preserve the unity of the ego, although the establishment of a perfect identity of the gender might suffer damage. In some cases of masculine homosexuality, one can observe that basically there is an effort to preserve a double identity in order to keep an ego which in other conditions would come to disaggregation. In the author's experience, the masculine transvestism is the form of sexual perversion in which the internal synthesis of both sexes is represented in a more typical way. In schizophrenia the most archaic nature of the clinical picture clearly shows the defensive role of bisexuality. This which has been exposed emphasizes the need of a deeper study of the manner through which the perversion or the restitutive psychotic reaction try through the defense of the original hermaphroditic nucleus to keep or reestablish the integrity of the ego. A better understanding of this subject will be of great value for our theoretical and technical improvement.


 

 

 

"Estou me acostumando com a idéia de encarar cada ato sexual como um processo no qual quatro pessoas estão envolvidas." É assim que, numa carta a W. Fliess e datada de 1.º de agosto de 1899 (1945, p. 289), Freud traduz, numa de suas primeiras manifestações sobre o assunto, o interesse que lhe inspirava a teoria da bissexualidade. Com essas palavras, ele punha claramente em foco um tema que considerava de grande importância na compreensão da atividade mental, mas que, até o ocaso de sua vida, seria sentido por ele como particularmente difícil.

A importância do tema foi acentuada por Freud repetidas vezes, como, por exemplo, em outra carta ao mesmo Fliess, esta datada de 4 de janeiro de 1898 (1945, p. 242), na qual declara que considerava a noção de bissexualidade como sendo a mais significativa para ele, logo após a de defesa. Não obstante, apresentou, ao mesmo tempo, forte resistência à aceitação e à elaboração da ideia. Para quem examina a situação mais de perto, a recusa de Freud provém, até certo ponto, de peculiaridades defensivas de sua personalidade. Como é sabido, o tema da bissexualidade contribuiu, de modo decisivo, para o desentendimento de Freud com Fliess, o qual teria sido provocado, segundo certa versão, pela inveja, por parte de Freud, da prioridade de Fliess na ventilação do assunto. O papel dessa inveja na resistência de Freud ao conceito de bissexualidade encontra, aliás, uma confirmação nas palavras dele próprio, quando, na Psicopatologia da Vida Cotidiana (1960, p. 143), nos conta como veio a omitir de sua memória uma afirmação de Fliess a respeito do tema. Parece, entretanto, que, nessa resistência, entra a sensibilidade de Freud ao assunto em si mesmo. A este propósito, é interessante observar que, numa das cartas a Fliess a que me referi (1945, p. 242), Freud procura negar sua aversão à ideia da bissexualidade desviando para outro ponto a ênfase de sua recusa. Ela é transferida para a identificação da bissexualidade com o bilateralismo, teoria defendida vigorosamente por Fliess e que Freud não aceitava. E, num típico mecanismo de deslocamento, ocupa-se, no correr da carta, em desmanchar a afirmação, feita por Fliess, de que ele (Freud) era parcialmente canhoto. As dificuldades de Freud, em face do tema em questão, mostram quanto este é realmente obscuro e quanto provoca forte repulsa na mente humana.

De qualquer modo, porém, a noção de bissexualidade psíquica é valioso ponto de apoio no estabelecimento de uma teoria que nos permita aprofundarmo-nos na compreensão da vida mental e de seus distúrbios. Na verdade, constitui situação cheia de perigos o fato de que obrigatoriamente, o indivíduo tenha de definir uma representação mental de si mesmo em concordância com o sexo a que pertence, com a correspondente eliminação da parte contrária. A solução do problema contido nos aspectos conflitivos da bissexualidade entra, de modo inevitável, na organização da síntese psíquica e, consequentemente, na instituição de um self. Para isso, a formação de uma identidade de sexo é ingrediente necessário. Os obstáculos naturais que a bissexualidade original acarreta à perfeita configuração dessa identidade, isto é, à aceitação de uma posição mental adequada no que respeita ao próprio sexo, são muito sérios para o desenvolvimento harmônico e sadio da personalidade. A tendência à clivagem desta e a correspondente ameaça à estruturação e à preservação de um ego são, assim condições inerentes à própria essência da primitiva disposição bissexual.

A identidade de sexo se estabelece de modo gradativo, paralelamente à diferenciação do ego, e tem seus primórdios nas relações do indivíduo com a cena primária. A diferenciação do ego se prende intimamente à elaboração da cena primária e sofre com ela as mesmas vicissitudes. Para a compreensão dos problemas ligados a essa elaboração e que decorrem do múltiplo jogo de fusões e cisões que aí se processam, seria interessante tentar-se o estudo das várias configurações a que as três partes componentes da cena primária (mãe, pai e criança) dão lugar.

Tomando como ponto de partida a cena primária, tal como se mostra no material psicanalítico de psicóticos e perversos sexuais, pode ela considerar-se, primeiramente, como sendo a presença de três elementos separados entre si e, ao mesmo tempo fundidos numa só representação constituída por um conglomerado de três (os pais e a criança). Nessa situação, os processos opostos de identificação e diferenciação coexistem, graças a uma condição peculiar a essa fase inicial do desenvolvimento: a ambiguidade. Nesse nível evolutivo, não prevalece o princípio da contradição. Não se firmaram ainda os critérios, para nós predominantes, de discriminação nas relações com o mundo e com partes de si mesmo. A ambiguidade mereceu minucioso estudo de J. Bleger (1967), que a relaciona com uma organização psíquica por ele denominada "posição gliscro-cárica" (glischros: viscoso; karion: núcleo), a qual seria cronologicamente anterior à posição esquizoparanoide de Melanie Klein.

Esse núcleo básico da cena primária (conglomerado de três e, ao mesmo tempo, três separados entre si) desdobra-se concomitantemente em dois outros, que são constituídos, por um lado, pelos pais ligados em cópula (sem a criança) e, por outro lado, pela criança em si mesma.

Pelo que ficou dito, podem-se descrever esquematicamente quatro fontes de angústia, contraditórias entre si e representadas da seguinte maneira:

1) Fusão da criança com os pais unidos.

2) Separação da criança em relação aos pais unidos.

3) Fusão dos pais entre si.

4) Separação dos pais, em relação um ao outro.

Embora de modo divergente, todas essas situações podem concorrer para o desmantelo dos traços iniciais do ego nascente. No primeiro caso (fusão com os pais), dão-se a absorção e a dissolução na figura combinada dos pais e o resultante desaparecimento como ser autônomo e diferenciado. No segundo caso (separação em relação aos pais), dá-se a expulsão para fora do conglomerado onipotente constituído pelos pais em cópula, com o estancar de todo suprimento libídico e, consequentemente, sensação de ser aniquilado. Nos outros dois casos (fusão dos pais entre si e separação dos pais em relação um ao outro), o ego da criança que é sentido apenas como simples duplicação da figura dos pais, pode, respectivamente, desmoronar-se pela destruição mútua dos pais em cópula (absorção de um pelo outro) ou pela fragmentação da poderosa unidade que eles representam.

No progresso em direção ao princípio da realidade, a criança passa a discriminar de modo mais objetivo os componentes da cena primária (os pais) e a identificar-se, conforme as circunstâncias, com um ou com outro. A configuração daí resultante pode ser o conjunto mãe-criança em posição sexual para com o pai ou vice-versa, o conjunto pai-criança em posição sexual para com a mãe. Essa discriminação já denuncia o esboço da formação de uma identidade de sexo e obriga ao sacrifício da bissexualidade primitiva que se achava contida na concepção original da cena primária. O indivíduo se vê, assim, forçado ao abandono de partes preciosas de si mesmo, referentes a disposições psíquicas do sexo oposto, que precisam ser substancialmente eliminadas, a fim de que ele possa adaptar-se ao papel que suas condições biológicas e sociais determinam.

A solução final é aquela descrita por E. Weiss (1958), na qual o ego incorpora as tendências de seu próprio sexo, colocando as do sexo oposto nas representações dos objetos desejados. O indivíduo se sentirá "completo" à medida que isso se realize. Por outro lado, quanto mais ele falha neste particular e inclui em seu ego aspectos correspondentes à anatomia e à fisiologia do sexo oposto, tanto mais se sentirá mutilado. Essa descrição de Weiss corresponde, porém, à solução mais habitual. Conforme o nível e as condições em que os fatos se definem, o sentimento de completitude fica mais acentuadamente preso a suas origens remotas e força a composição de situação diferente. A preservação daquilo que, em trabalho anterior (Marcondes, 1967), chamei "núcleo hermafrodita primário da estruturação do ego" complica, às vezes, o desfecho do processo evolutivo e onera a formação da identidade de sexo, imprimindo-lhe feições muito variadas.

A relativa preservação desse núcleo hermafrodita, através de certas perversões sexuais, é uma forma de manter a unidade do ego, embora com prejuízo de um perfeito e acabado estabelecimento da identidade de sexo. Em casos de homossexualidade masculina, pode-se observar que, basicamente, se trata de um esforço para a conservação de uma dupla identidade, com o fim de manter um ego que, de outro modo viria a desagregar-se. Embora a homossexualidade tenha base etiopatogênica muito complexa, evidencia-se frequentemente essa disposição bissexual, que opera numa camada psíquica mais profunda. A homossexualidade não é, porém, a forma de perversão sexual na qual a síntese interna dos dois sexos se acha representada de modo mais típico. Segundo minha experiência, essa síntese é mais expressiva no transvestismo masculino, que permite uma composição mais próxima da unidade hermafrodita original. Creio que esse modo de ver é semelhante ao de R. J. Stoller (1966). Minha opinião encontra também apoio nas conclusões de M. M. Segal (1965), as quais acentuam a significação da dupla identificação sexual no transvestismo e o papel deste na integração do ego e na preservação do equilíbrio psíquico.

Na esquizofrenia, a natureza mais arcaica do quadro clínico deixa transparecer mais claramente a função defensiva da bissexualidade. Num de meus casos, a situação bissexual primitiva da cena primária estava reproduzida num entrelaçamento simbiótico do paciente com a irmã, com a qual mantinha uma interrelação emocional em nível de comunicação muito profundo. Na proporção em que as condições da vida real foram impondo a dissolução desse vínculo, o paciente se identificou cada vez mais com a irmã, assumindo psiquicamente algumas de suas qualidades, com as quais recuperava a parte feminina perdida. A luta pela integridade do núcleo bissexual interno assumiu, nesse caso, variadas formas de expressão, entre as quais, por exemplo, a recusa de tomar um vermífugo para expelir uma tênia, que é um ser hermafrodita cuja destruição o paciente encarava com imenso terror.

Freud (1961, p. 33) assinalou o papel de bissexualidade nas introjeções decorrentes do desfecho da situação edipiana e o fato de que o superego resulta de duas identificações (com o pai e com a mãe) unidas entre si. Pode-se, em vista disso, apontar, ao lado de outros fatores, a repercussão tardia da bissexualidade na estruturação definitiva e mais recente do superego. Este, que é o resultado final do processo de solução da crise edipiana, representa, pois, uma última tentativa de conservar, dentro do ego, o pai e a mãe ligados na cena primária.

Em face do que ficou exposto, acentua-se a necessidade de estudo mais completo e minucioso da maneira pela qual, através da defesa e da manutenção do núcleo hermafrodita original, a perversão procura assegurar a integridade do ego. E, ainda, da maneira pela qual, utilizando o mesmo recurso, o esforço restitutivo psicótico empreende igualmente a tentativa de reconstituir essa integridade. A melhor compreensão do assunto será, sem dúvida, de grande valor para nosso aperfeiçoamento teórico e técnico.

 

Referências

Bleger, J. (1967). Simbiosis y Ambiguedad. Paidós.         [ Links ]

Freud, S. (1945). The Origins of Psychoanalysis. Basic Books.         [ Links ]

Freud, S. (1960). The Psychopathology of Everyday Life. In S. Freud, The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (Vol. 6). Hogarth Press.         [ Links ]

Freud, S. (1961). The Ego and the Id. In S. Freud, The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (Vol. 19). Hogarth Press.         [ Links ]

Marcondes, D. (1967). Anotações para a compreensão psicanalítica da mania. Revista Brasileira de Psicanálise, 3,351-364.         [ Links ]

Segal, M. M. (1965). Transvestitism as an Impulse and a Defence. The lnternational Journal of Psycho-Analysis, 46,209-217.         [ Links ]

Stoller, R. J. (1966). The Mother's Contribution to Infantile Transvestic Behavior. The International Journal of Psycho-Analysis, 47,384-395.         [ Links ]

Weiss, E. (1958). Bisexuality and Ego Structure. The International Journal of Psycho-Analysis, 39,91-97.         [ Links ]

 

 

1 Publicado na Revista Brasileira de Psicanálise, 1(4),468-475,1968.

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