SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.54 número100Identidade de sexo e estruturação do egoHistória de uma regra não escrita: a proscrição da homossexualidade masculina no movimento psicanalítico índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.100 São Paulo jan./jun. 2021

 

RESENHAS

 

What is sex?

 

 

Lucas Hangai Signorini

Psicanalista, membro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP) / lucashangai@hotmail.com

 

 

 

Autora: Alenka Zupančič
Editora: The MIT Press, 2017, 154 p.
Resenhado por: Lucas Hangai Signorini

Por enquanto, eu não estou trepando, eu lhes falo, muito bem!, eu posso ter a mesma satisfação que teria se eu estivesse trepando.

(Lacan, 1964/1996, pp. 157-58)

Quando comecei a ter alguma aproximação da obra de Jacques Lacan, levei uma bronca de meus companheiros freudianos mais ortodoxos. A acusação era precisa: como poderia eu, tão debruçado no debate sobre a sexualidade, ter interesse pela obra do autor que havia dessexualizado a psicanálise? Como uma espécie de prova dessa argumentação, mostravam-me uma coleção de passagens retiradas dos diferentes volumes de O seminário, incluindo o pequeno trecho citado acima.

Pouco mais de dez anos depois, deparo com a mesma citação na abertura do belíssimo What is sex?, de Alenka Zupančič, cerne desta resenha.1 Ironicamente, é por meio do ensino de Lacan que a autora pretende "ressexualizar" a psicanálise, ou melhor, defender "que algo a respeito da sexualidade é constitutivamente inconsciente" (Zupančič, 2017, p. 11, grifo da autora).2 O modo pelo qual Zupančič sustenta essa tese consiste em situar a sexualidade como uma espécie de curto-circuito entre a ontologia e a epistemologia, ou seja, "é por causa do que está faltando na estruturação significante do ser que o inconsciente, como forma de conhecimento, se relaciona à impossibilidade de estar envolvido e 'transmitido' pela sexualidade"3 (Zupančič, 2017, p. 141).

Essa empreitada, como é possível supor, torna o texto dessa filósofa eslovena consideralvemente difícil, não apenas porque ela lança mão de autores cujas concepções são complexas (Kant, Hegel, Deleuze, por exemplo), mas também pela seleção de conceitos e noções lacanianas que passaram pelo constante reexame de Lacan ao longo de seu ensino. As poucas páginas que o livro dispõe podem despertar em quem lê certa dificuldade em depreender qual a intenção de Zupančič, ou melhor, aonde ela pretende chegar. Se, entretanto, as barreiras de um texto que foram erguidas em terreno freudo-lacaniano forem ultrapassadas, isto é, se não se deixar capturar pela complexidade de termos como "significante", "objeto a", "Real", "Gozo", entre outros, What is sex? pode servir justamente para tornar mais palatáveis muitos desses conceitos.

Essa proposição pode ser facilmente constatada considerando o percurso que Zupančič faz ao trazer, já em seu primeiro capítulo, a problemática da sexualidade para Freud no embrião do movimento psicanalítico, logo expandida conceitualmente como sexualidade infantil. O texto de Laplanche (1970/2015), "Sexualidade e apego na metapsicologia", que, aliás, temos disponível em português, serve como um importante ponto de partida para a sustentação do prazer como "sexual", já que o universo infantil é constantemente invadido por mensagens inconscientes e sexualmente carregadas dos adultos, ou seja, "não é o prazer ou a satisfação como tal, mas o inconsciente que torna o prazer sexual"4 (p. 10). Essa sexualização não ocorre, com base na teorização lacaniana, tendo a concepção de um excesso; pelo contrário, ela se faz por uma ausência, já que as mensagens são enigmáticas para os adultos também. Essa negatividade (-) é fundante, na medida em que o inconsciente, "entra assim em nosso horizonte como o inconsciente do Outro; ele não começa com a primeira coisa que recalcamos, mas começa (para nós) com o recalque como forma significante pertencente à discursividade como tal"5 (p. 11). Subjaz a essa ideia o aforismo de Lacan:

"o sujeito é o que um significante representa para outro significante". E este é um dos três sobre os quais Zupančič parece debruçar-se. Os outros dois são os polêmicos "a relação sexual não existe" e "A Mulher não existe".

Ainda que Lacan tenha feito mudanças em relação à centralidade do significante a partir do ano de 1964, a autora de Whats is sex? reivindica a negatividade, já que o inconsciente é o conceito de uma ligação inerente entre o ser e o conhecimento em sua própria negatividade, ou, como Lacan formula com base em Freud, o conhecimento inconsciente é um conhecimento que não conhece a si mesmo.

É particularmente interessante o modo pelo qual Zupančič propõe que a problemática da sexualidade pode ir um passo além, ao mesmo tempo em que diz dos limites da teorização lacaniana, já que o ensino de Lacan (apenas) conceitualiza a maneira pela qual um impasse fundamental do ser está em ação em sua estruturação. É nesta seara que surge a afirmação "a relação sexual não existe". É sempre prudente lembrar que o original em francês (Il n'y a pas de rapport sexuel") traz a palavra rapport, que, embora também possa ser traduzida para o português como "relação", confere à afirmação lacaniana uma noção subjacente de complementaridade, e isto marca um paradoxo interessante: é justamente pela inexistência da relação que é possível abrir espaço para o laço, ou seja,

A não-relação dá, dita condições de que nos amarra, ou seja, não é uma ausência simples e indiferente, mas uma ausência que curva e determina a estrutura com a qual aparece. A não-relação não é o oposto da relação, ela é a (il)lógica inerente (um "antagonismo" fundamental) das relações possíveis e existentes.6 (Zupančič, 2017, p. 25)

É interessante como Zupančič enfatiza que essa proposição concebe um modelo conceitual original do espaço discursivo como gerado fora e ao redor de um elo que faltava na cadeia ontológica de sua própria realidade. Ainda assim, a não existência da relação sexual traz uma associação direta com outro aforismo lacaniano (A Mulher não existe), que incide sobre uma das temáticas mais importantes do texto da filósofa eslovena: a diferença (ou divisão) sexual, que também se origina nesse déficit ontológico, ou seja, é aqui, ela argumentará, que a complementaridade é impossível.

A argumentação é apresentada com base em duas concepções psicanalíticas da diferença sexual, sendo uma delas a que reintroduz a dualidade dos sexos na própria fundação, como, por exemplo, a noção de Jung de dois princípios complementares (yin-yang), e a outra começa com a pura multiplicidade, como enfatizado por Freud, cuja noção de sexualidade perversa polimórfica é retomada por Lacan de modo original. Para o psicanalista francês, de acordo com Zupančič, a sexualidade "que se divide em dois é exatamente o 'que falta', o menos... É assim que poderíamos ler as 'fórmulas da sexuação': como duas maneiras pelas quais o menos constitutivo da ordem significante é inscrito e tratado nessa ordem"7 (p. 49). Zupančič reitera ainda a função fálica como operador que marca o menos (-) constitutivo da inauguração do sujeito. Ao percorrermos toda a argumentação, somos levados a concluir que a impossibilidade de relação diz respeito ao fato de as duas posições compartilharem a mesma função (fálica), e, portanto, não é possível uma relação de complementaridade entre elas.

Embora a autora pudesse terminar com esse conjunto de argumentações, é no quarto e último capítulo que ela mergulha profundamente nas conjecturas do dualismo, e apresenta seu pensamento mais rebuscado, e, portanto, demanda do leitor uma leitura mais cuidadosa. Ao elencar a discussão sobre a pulsão (de morte), Zupančič toma emprestadas de J.-A. Miller algumas concepções sobre as quais pondera a respeito da relação entre o gozo e a sexualidade. A sexuação e, portanto, a negatividade, como pudemos apresentar, não correspondem ao que se chama sexualidade propriamente dita, pois a negatividade precisa obter uma existência positiva em objetos parciais envolvidos na topologia da pulsão, mas curiosamente eles não são satisfações como objetos, "eles funcionam ao mesmo tempo como figuras ou representantes dessa negatividade"8 (p. 104), e é justamente com base nesse movimento que passamos da sexuação para a sexualidade propriamente dita, ou, como a autora prefere dizer, uma sexualidade de seres falantes. Isso posto, é apenas por esse movimento que Lacan pôde afirmar que, ao falar, sua satisfação é de alguém trepando, tal qual abrimos este texto.

Por último, no prefácio do livro, Žižek explica por que "Short circuits" ("curto-circuitos") é o título dessa série de livros da mit Press do qual "What is sex? faz parte. Afirma que esse termo alude a uma confrontação de um texto clássico com seus pressupostos ocultos para tornar a leitora ou o leitor ciente de outro (perturbador) "lado de algo que ele ou ela sabiam todo o tempo" (p. VIII). Desse modo, o texto de Zupančič é um verdadeiro curto-circuito, que demanda atenção e cuidado. Ele não se presta a um mero exame da sexualidade como um fato ontológico, mas justamente a toma para pôr em questão a própria ontologia.

 

Referências

Lacan J. (1964/1996). O seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar.         [ Links ]

Laplanche, J. (2015). Sexualidade e apego na metapsicologia. In J. Laplanche, Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano 2000-2006. Dublinense. (Trabalho original publicado em 1970)        [ Links ]

Zupančič, A. (2017). Whats is sex? The MIT Press.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 6/4/2021
Aceito em: 10/4/2021

 

 

1 As traduções realizadas nesta resenha são de minha responsabilidade. O texto original, em inglês, será transcrito nas notas de rodapé.
2 That something concerning sexuality constitutively unconscious.
3 It is because of what is missing ("fallen out") from the signifying structuring of being that the unconscious, as a form of knowledge, relates to the impossibility of being involved in, and "transmitted" by, sexuality.
4 It is not pleasure or satisfaction as such, but the unconscious that makes a pleasure "sexual".
5 The unconscious thus enters our horizon as the unconscious of the Other; it does not start with the first thing we repress, it starts (for us) with repression as the signifying form pertaining to discursivity as such.
6 The non-relation gives, dictates the conditions of, what ties us, which is to say that it is not a simple, indifferent absence, but an absence that curves and determines the structure with which it appears. The non-relation is not the opposite of the relationship, it is the inherent (il)logic (a fundamental "antagonism") of the relationships that are possible and existing.
7 What splits in two is the very "one that lacks", the minus, the with-without. This is how we could read Lacan's "formulas of sexuation": as two ways in which the constitutive minus of the signifying order is inscribed in this order itself, and dealt with.
8 They function at the same time as figures or representatives of that negativity. It is only with this double movement that we progress from sexuation to sexuality proper (a sexuality of speaking beings).

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons