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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.55 no.103 São Paulo jul./dez. 2022  Epub 08-Jul-2024

https://doi.org/10.5935/0103-5835.v55n103.08 

Tema: Psicanálise em (de)formação

Deformando-nos… resistiremos: A metapsicologia que nos habita

Deformándonos… resistiremos

Deforming ourselves… we will resist

En nous déformant … nous résisterons

Dora Tognolli1 

1Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Atual Diretora do Instituto “Durval Marcondes” da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP. São Paulo


Resumo

O artigo apresenta o caminho incerto e inquietante no qual a análise e a formação se inserem. Interroga o papel da instituição - moldura ética e comprometida com os fundamentos da metapsicologia, marcada por pactos, histórias, restos, e ao mesmo tempo tocada e provocada pelos novos tempos e subjetividades contemporâneas, que nos assombram sem cessar, num movimento incessante de construção-desconstrução, que pedem escuta crítica e contato com as deformações que nos constituem.

Palavras-chave: inconsciente; resistência; pactos; Bildung-Umbildung; Einfall

Resumen

El artículo presenta el camino incierto e inquietante en el que se insertan el análisis y la formación. Cuestiona el papel de la institución - entramado ético comprometido con los fundamentos de la metapsicología, marcado por pactos, relatos, restos, y al mismo tiempo tocado y provocado por los nuevos tiempos y las subjetividades contemporáneas, que nos acechan sin cesar, en un incesante movimiento de construcción-deconstrucción, que llama a la escucha crítica y al contacto con las deformaciones que nos constituyen.

Palabras clave: inconsciente; pactos; Bildung-Umbildung; Einfall

Abstract

The article presents the uncertain and disturbing path in which analysis and training are inserted. It questions the role of the institution - an ethical framework committed to the foundations of metapsychology, marked by pacts, stories, remains, and at the same time touched and provoked by the new times and contemporary subjectivities, which haunt us incessantly, in an incessant movement of constructiondeconstruction, which call for critical listening and contact with the deformations that constitute us.

Keywords: unconscious; resistance; pacts; Bildung-Umbildung; Einfall

Résumé

L’article présente le parcours incertain et troublant dans lequel s’insèrent l’analyse et la formation. Elle interroge le rôle de l’institution - cadre éthique engagé sur les fondements de la métapsychologie, marqué par des pactes, des récits, des vestiges, et à la fois touché et provoqué par les temps nouveaux et les subjectivités contemporaines, qui nous hantent sans cesse, dans une incessante mouvement de construction-déconstruction, qui appellent une écoute critique et un contact avec les déformations qui nous constituent.

Mots-clés inconscient; résistance; pactes; Bildung-Umbildung; Einfall

Todos os dias, menos domingo, passo uma hora no divã do Prof. (já foram 34, no total), e a “análise” parece fornecer toda uma subcorrente para a vida. Quanto ao que está em causa, nunca tive tão pouca certeza. Em todo caso, às vezes é extremamente excitante; às vezes, extremamente desprazeroso - então me atrevo a dizer que há algo ali. O próprio Prof. é muitíssimo afável e deslumbrante feito um intérprete artístico… Quase todas as horas são transformadas num todo estético orgânico. Às vezes o efeito dramático é absolutamente devastador. Durante a primeira parte da hora … tudo é vago - uma pista obscura aqui, um mistério acolá; então isso vai ganhando espessura; você sente coisas medonhas acontecendo por dentro e não consegue fazer ideia do que poderiam ser; então ele começa a dar uma ligeira indicação; de repente, você tem um claro vislumbre de uma coisa; daí vê outra; por fim, toda uma série de lampejos te invade; ele te faz mais uma pergunta; você dá uma última resposta - e à medida que te cai a ficha de toda a verdade, o Professor se levanta, atravessa o cômodo em direção à campainha e te mostra a porta.

Carta de James Strachey para Lytton Strachey, seu irmão, em 6 de novembro de 19202 (citada em Makari, 2008)

O tema do Jornal e o gentil convite endereçado a mim pelo corpo editorial evocou diversas reflexões referentes à formação: uma oportunidade para tocar em muitos aspectos que circundam esse tema tão complexo. Vi-me diante de um solilóquio que ativou tanto textos metapsicológicos que abordam o processo analítico e suas vicissitudes, como as passagens na minha própria formação e minha função atual, enquanto diretora do Instituto.

A formação na SBPSP, no Instituto Durval Marcondes, há muito me ocupa: desde o início dos anos 2000, quando optei por ingressar na Instituição, movida por sua pujança, produtividade, pluralidade, ética, seriedade e ênfase na práxis clínica. Desamparados que somos, buscamos o tempo todo abrigo em ideias, pessoas, grupos, amores, desamores.

Nada foi muito fácil: o custo da formação; as sessões de análise quase todos os dias da semana; a conciliação do trabalho, da família, com a frequentação de seminários, encontros e reuniões; o estudo exigido cotidianamente. Mas lembro com grande alegria a fratria que foi se construindo: colegas, como eu, em busca de inserção, de espaço coletivo, de lugares éticos para diálogos significativos. E os laços afetivos que daí decorreram, que perduram até hoje.

Num primeiro momento, tendemos a pensar a formação como aperfeiçoamento, expansão, novas aquisições, possibilidades de incrementar a metapsicologia complexa que o campo psicanalítico propõe - o que de fato ocorre. Mas, sem dúvida, ela abriga outra face, que resulta na difícil tarefa de nos confrontarmos o tempo todo com o Real, com o das Ding, ou, numa linguagem mais direta, o reconhecimento do estatuto do Inconsciente, matriz que nos une e forma nosso campo, do qual ninguém escapa, motivo de angústia, estranhamentos, e trabalho, muito trabalho psíquico, quando tudo corre bem. O excerto extraído de uma correspondência de Strachey, que aborda sua análise com Freud, apresenta, de forma poética e inquietante, o que a jornada da psicanálise propõe: “há algo ali”, “cai a ficha” (Einfall), expressões que o autor utiliza nada alheias a nós, que trazem à tona a experiência de contato com o Inconsciente, tendo o analista como testemunha, suporte e presença viva.

A inquietante descoberta freudiana da pulsão sem representação e seu percurso ininterrupto de significações nos põe em contato com a ideia de um sistema psíquico que vai se tornando mais complexo, que nunca sossega, e nos desafia, desconstrói, deforma, propõe enigmas muitas vezes sem solução.

Aprendemos, desde o “Projeto” (Freud, 1895[1950]/1990), que o sujeito, em sua constituição, se desloca em cenários fantasmáticos, alimentados pelo excesso pulsional, que faz contraponto com a realidade externa e vai riscando posições diversas em seu percurso psíquico - processo de estruturação sem fim.

Pensar a perspectiva de uma formação linear, luminosa, que “desce redondo”, como prometia a propaganda de uma certa marca de cerveja, talvez não contemple o caldo fantasmático que nos constitui, matriz de toda nossa riqueza diante do mundo. Essa seria a decorrência ética de todos nós, que contamos com o Senhor Indesejado que vem a ser nosso Inconsciente.

Num certo momento, passamos a incorporar outra invenção sagaz de Freud - a pulsão de morte, cujo trabalho silencioso comparece e também se impõe ao trabalho da análise e à formação de todo psicanalista. As ditas formações do Inconsciente, entre elas, o sintoma, a resistência e a transferência, fazem contraponto com o ideal de uma formação linear e tranquila. Nesse sentido, o tema do Jornal de Psicanálise - Psicanálise em (de)formação - propõe um operador interessante, que nos ajuda a enfrentar posições superegoicas, marcadas por ideais e dogmas que prometem sossego, mas cobram um preço alto, em função dos quais nossa autonomia pode se esvair e as formações de grupo se petrificar e se tornar ideológicas, deixando de lado o mal-estar do encontro com o outro.

Sabemos que não estamos imunes à resistência que a psicanálise tão bem teoriza, em qualquer lugar e muito mais entre nós, “iniciados”. Essa mesma resistência pode estar na base de formulações idealizadas e homogeneizantes, tendentes a se enquistar nos lugares de formação. Formas que se opõem ao processo de criação, de simbolização, de circulação de novos sentidos, transformando analistas e Institutos em templos de saber, dogmáticos, não deformados por cada um que chega, dificultando os questionamentos, as indagações, a curiosidade. Mas a resistência também põe em cena a condição humana e estrutural que nos define e singulariza. Quem não resiste não existe…

A tessitura peculiar da neurose que cada um de nós porta, que nos deforma e complica, mas na qual reside a beleza de nossa singularidade, é porta-voz do eixo no qual a formação deve trabalhar: no sentido de trabalho psíquico, que incorpora o Inconsciente, em toda sua face Unheimlich.

A experiência de formação pode reativar excessos adormecidos, ideais de formação de massas, calcados em identificações alienantes, propícias ao trabalho silencioso da pulsão de morte, que, sorrateiramente, impõe silenciamentos que impedem o trabalho da palavra, do pensar, do pensar em grupo. Com base no desamparo, que nos traz de novo a um novo grupo, podemos ser acompanhados no trabalho da cultura, da troca, da complexidade que envolve uma postura ética e criativa.

Nos escritos de Freud, notamos sua reserva diante de possíveis formulações de tratados e manuais sobre técnica, guias seguros e certeiros de encarar a formação. Mesmo imbuído da missão de fundar um novo campo e propor agrupamentos zelosos de sua divulgação e implantação, ele deixa transparecer, em suas cartas e em alguns textos, as dificuldades de controlar analistas afoitos, animados demais, que precisam estar atentos a suas investidas narcísicas e ao furor curandis. Decorridos mais de cem anos, nos perguntamos o quanto estamos próximos dessas inquietações que Freud vivia… e se há antídotos para enfrentá-las. Tema interessante para ser revisitado por um instituto de formação como o nosso.

No texto “A questão da análise leiga”, em que Freud dialoga com um personagem que se apresenta como um interlocutor “imparcial” - espécie de “advogado do diabo” -, somos expostos a questões que ainda hoje nos rondam. Entre tantos diálogos saborosos, destaco aqui um deles, no qual Freud defende os analistas leigos, no sentido de não médicos:

coloco a ênfase que ninguém que não tenha sido habilitado para tanto através de uma formação específica deva exercer a análise. Se essa pessoa é um médico ou não, parece-me secundário. “Então, que sugestões específicas o senhor teria a fazer?” Ainda não cheguei a esse ponto e não sei se chegarei. (Freud, 1926/2017, p. 269)

Nem nós talvez saibamos, o que não significa que estejamos à deriva, mas sim em busca de clareiras, sempre interrogando o caminho incerto no qual a análise e a formação se inserem. E que uma moldura institucional ética e comprometida pode trabalhar nesse sentido.

E mais: no trabalho “A análise finita e a infinita” (Freud, 1937/2018), tardio e inquietante, somos mais uma vez expostos a ideias de formação que podem estar sempre na base de nossas discussões éticas e que desembocam em reflexões importantes num espaço de formação institucional. Recorto aqui uma passagem que nos convida a pensar:

É como se o analisar fosse aquela terceira das profissões “impossíveis”, em que se tem certeza de antemão do resultado insuficiente. … não podemos exigir que o futuro analista seja um ser completo … Onde e como o pobre coitado poderá adquirir aquela habilitação ideal, necessária em sua profissão? A resposta será: na própria análise, com a qual começa a preparação para sua atividade futura. … O seu trabalho estará terminado quando trouxer para o aprendiz a convicção segura da existência do inconsciente… (Freud, 1937/2018, pp. 355-356)

Os sonhos são a prova cabal do destino de todos nós, assombrados diante de uma outra cena, que surge na calada da noite, e que desafia nossa racionalidade e nos mostra o quanto somos exilados de nós mesmos. É até mesmo no livro A interpretação dos sonhos que Freud (Freud, 1900/2019b, pp. 167-197) aborda a deformação: quando fracassa o trabalho de deformação, nos processos oníricos, estamos diante do traumático da pulsão e da repetição. Sempre nos encontramos na deformação. Palavra que na língua portuguesa pode assumir um tom moral, abjeto, alvo de repulsa.

A sexualidade, os sonhos, os sintomas acabam sempre deixando restos, que mesmo assim desafiam nossa disponibilidade para a escuta e práxis analítica. E na atividade do analista vai ficando cada vez mais claro, na trajetória de Freud, e de cada um de nós, que operamos num campo distante do senso comum, o que implica a escuta da deformação, como propõe o tema deste número do Jornal.

Parece que estamos nos encaminhando para a ideia de que a formação, ancorada na metapsicologia desde Freud, implica deformação. Angústia, sintomas, resistência, transferência, enquanto formações do Inconsciente, carregam deformações. Trata-se aqui de uma dimensão mais ética do que prescritiva.

Tomo em consideração uma frase elaborada por Sandra Schaffa, em Por uma ética da formação em tempos sombrios (2022), Aula Inaugural do Instituto, a qual referenda essa perspectiva: “… nossa prática nos confronta com uma tarefa de construção teórica inerente à nossa capacidade de desconstrução - colocação em crise - das teorias estabelecidas”. Eis aqui uma possível carta de princípios, um convite ao trabalho da crítica das certezas e posições consolidadas, que transcende o espaço privado da análise e pressupõe uma pólis, um grupo - que pode ser a Instituição. Caso assim ela se ofereça. Mas a instituição somos todos nós: cabe então a nós esse trabalho incessante de construção-desconstrução: Bildung-Umbildung (Formação-Deformação).

Retomando o texto “A análise finita e a infinita”, é possível dialogar com um Freud menos otimista, diante da perspectiva de cura e da resolução da neurose. Esse texto dialoga o tempo todo com Ferenczi, autor que traz para a cena o poder do analista, sua escuta ideológica e direcionada, que muitas vezes deixa escapar as relações complexas que são revividas na análise, sob o signo de figuras de poder arcaicas, nas quais a transferência erótica impõe desafios em seu manejo. Transformações profundas e sintônicas, postas na conta das análises didáticas, nem sempre ocorrem: “mesmo um tratamento analítico bem-sucedido não protege o paciente originalmente curado de sucumbir a uma outra neurose, e mesmo a uma neurose da mesma raiz pulsional, ou seja, adoecer de um retorno do velho sofrimento” (Freud, 1937/2018, p. 324).

Restos, força pulsional, impossibilidade de o eu dominar as pulsões no que elas apresentem de força e intensidade, retorno de traumas da infância, nos convocam a visitar uma cena mais difícil do que imaginávamos, na qual a transferência se mostra e convoca a bruxa metapsicologia, sem muitas garantias: apenas, e não muito pouco, disponibilidade de escuta, “disposição para o assombro” (Nosek, 2017), amor à verdade, ética. Aqui, é convocado o próprio sistema psíquico de cada analista, que entra nesse jogo complexo ao escolher esse ofício.

A Instituição em ação

Quando ministramos aulas teóricas de Psicanálise aos nossos alunos, podemos observar quão pouco os impressionamos num primeiro momento. Eles aceitam os preceitos analíticos com a mesma frieza que outras abstrações com que foram alimentados. … Mas agora exigimos também que todo aquele que queira aplicar a análise em outras pessoas primeiro se submeta ele próprio a uma análise. Só no decurso dessa “autoanálise”, … quando eles experimentarem de fato no próprio corpo - ou melhor: na própria alma - os processos postulados pela análise, eles terão adquirido as convicções que os guiarão mais tarde enquanto analistas. (Freud, 1937/2018, pp. 223-224)

Podemos afirmar que essa é a regra que nos forma, com a qual todos parecemos concordar. A importância da análise, encarnada no próprio corpo e alma de cada um. Herdamos o modelo do tripé, que parece funcionar em todas as instituições psicanalíticas, filiadas ou não à ipa.

Sabemos, porém, que nossa prática analítica não é feita apenas de nossa experiência de análise; ela é formada, deformada, forjada, no âmbito de uma instituição, encarregada da transmissão, e na nossa postura ética diante dos pacientes e dos colegas que se encontram na mesma roda. Roda, no sentido de “roda de samba”, “roda de capoeira”, “roda de conversa”, em que o todo não é a soma das partes, e em que cada agrupamento que dança e se movimenta recria novas coreografias.

Quem se interessa pela formação, além da análise pessoal, busca mais do que aulas e teorias psicanalíticas. Parece que, junto, vem um lugar, marcado por tradições e contradições, que é experimentado de formas diversas. Certa feita, em 2006, a Associação de Candidatos, (atual amf) interessou-se em pesquisar diversas formas de inserção institucional. Fizemos então entrevistas com colegas em vários estágios da formação: candidatos (hoje membros filiados), membros associados, membros efetivos, didatas e colegas que desistiram da formação. Ficou claro que havia diversos idiomas e formas diferentes de habitar a formação: desde um sentimento oceânico de total identificação com grupos, teorias e analistas até posturas mais críticas, preocupadas com questões como elitismo, fechamento, custo da formação, critérios de ingresso, que deixavam de lado possíveis talentos etc. E mais: ouvimos também quem não se adaptou, não encontrou por aqui um lugar que atendesse a suas demandas e que muito se frustrou em expectativas. Ouvir todas essas vozes foi importante, e trouxe algumas ideias que foram compartilhadas para todo o grupo societário. Acredito que essas vozes permanecem, acrescidas de questões atuais, que nos fazem pensar: que instituição é a nossa? Como queremos que ela seja? A pergunta está no ar.

Numa entrevista de 2016 de Leopold Nosek (2017, pp. 217-235), fica claro o paradoxo da regulamentação que marca todo o instituído, que opera por leis gerais, e a nossa matéria inefável - o ser analista, singular. A conversa e o debate que sempre apontam para insuficiências e incompletudes e que se recolocam a cada tempo. A Bildung, forjada em cada um de nós, com base em experiências, amores, dissabores, talento e sorte, que transborda o que uma instituição pode oferecer e conter como projeto. Estamos sempre pensando na qualidade, nas passagens, no currículo, nas regras, nas atualizações, mas nada se completa - o que nos convida a sustentar a instância crítica, bem-humorada, o espaço de liberdade que acolhe novos circuitos que os outros, que da Instituição fazem parte, agregam.

Aqui faço uso de uma metáfora que muito me encantou, utilizada por Garcia-Roza, no livro sobre o “Projeto”: ao discorrer sobre as barreiras de contato (Kontaktshranke), conceito do qual Freud faz uso para explicar funções do aparelho psíquico, em que surge a ideia da memória, que trata de um armazenamento de ordem diversa do preconizado pela Psicologia: trabalho da memória. Sem memória, o sistema psíquico seria um mero condutor; mas, saturado de memórias, ele perderia a capacidade de receber o que chega de fora: capacidade de percepção. O autor faz uso da metáfora das lentes de um par de óculos:

Podemos comparar essa estrutura às lentes de um par de óculos. Se de cada coisa percebida as lentes mantivessem o registro, em pouco tempo não conseguiríamos perceber mais nada; é necessário, pois, que elas se mantenham permanentemente transparentes. As lentes dos óculos não podem ter memória. (Garcia-Roza, 1991/2001 p. 95)

A metáfora concerne a nós: estamos preparados para receber o novo, os novos ares, quem chega e deseja fazer parte, preparados para alcançar e tocar as subjetividades de nosso tempo? Essa é uma reflexão importante, que deve nortear nossa ética. E esse tema resvala para a questão ideológica, na qual há quem se arvore em um saber que se atribui o valor de verdade última. E ninguém está isento das ideologias: elas também nos constituem e marcam nosso agir no mundo.

Ao escrever este texto, chamou minha atenção recorrer tanto a Freud e a suas dicas e inquietações, expressas em correspondências e narrativas da história do movimento psicanalítico (Freud, 1914/2012), texto em que Freud relata desvios que poderiam pôr em risco a difusão da psicanálise e a perda de seus fundamentos, e cuja epígrafe, inspirada no brasão da cidade de Paris - Fluctuat nec mergitur -, foi traduzida com um certo terroir, por um brasileiro, Paulo César de Souza, como “Balança, mas não afunda”. Esse texto nos alerta para as turbulências que o ofício e a instituição contêm. E que a vida também contém…

Bando selvagem

Quem reconhece que transferência e resistência são o eixo do tratamento, esse já pertence irremediavelmente ao bando selvagem.

(Freud, 1933/1982, carta a Groddeck)

Lamento que o senhor tente levantar uma parede entre a sua pessoa e os outros leões do zoológico do Congresso. É difícil exercer a psicanálise isolado, pois ela é um empreendimento notavelmente sociável.

(Freud, 1924/1982, carta a Groddeck)

O humor e a ironia de Freud - ele, mais uma vez nosso interlocutor que não sossega - expressos na volumosa correspondência que ele mantém com diversos interlocutores, que se encontram, desencontram, rompem, transformam, podem servir de guias para tratarmos do tema dos grupos e das instituições. Até que ponto operamos como seita, templo, ou roda metapsicológica?

Lembramos que toda instituição ou grupo humano é porta-voz, depositário e transmissor de certas ideologias - marcas de sua constituição, de seu posicionamento político e de restos dos que dela participaram. Estamos aqui diante de um tema que lembra as mensagens enigmáticas transmitidas a todo bebê que chega ao mundo, incapaz de lê-las, que pode ficar submetido a seus imperativos. Ninguém foge dessa inflexão, que pode caminhar bem ou engessar de forma doutrinária os pressupostos que fundamentam a prática psicanalítica.

Freud, durante toda sua trajetória, parece ter se aproximado da dimensão sagrada e profana que caracteriza certos temas candentes, como a própria sexualidade. Podemos dizer que ele profanou a forma clássica de atender aos pacientes, profanou os romances familiares, encaminhando-se ao infantil, ao perverso polimorfo, à disposição de jogar, brincar, fazer a pergunta que incomoda e tratar de enigmas a que nem adultos letrados conseguem responder: o ato de profanar traz à roda algo que estava silenciado, guardado, que pode entrar na cena para compor a ação humana que restitui seu valor de uso (Agamben, 2007). As instituições parecem guardar algo do sagrado, disponível para profanações, para os jogos humanos que se reapresentam.

Nesse campo, tenho algumas experiências que gostaria de compartilhar, que ilustram a “mão invisível” da Instituição e de seus representantes, os pactos narcísicos não ditos que constituem a estrutura que sustenta a formação de grupo. Gostamos de afirmar, com orgulho, que somos plurais, diversos, atentos a cada novo que chega: mas a pluralidade, de per si, não dá conta de acompanhar tendências que ora nos abrem para o novo, ora nos enrijecem.

Recentemente, por causa da pandemia e do isolamento radical que todos vivemos, que atravessou nossos laços afetivos e prática profissional, a Instituição manteve-se fechada - mas somente seu espaço concreto, suas sedes. Prosseguindo em trabalho ininterrupto e atento. Foi uma experiência inusitada: selecionar, entrevistar e receber os novos colegas que chegaram, os novos membros filiados. Os rituais de recepção, de hospitalidade próxima, precisaram ser reinventados, e o foram.

Trago aqui um exemplo, compartilhado no final do artigo (Passagens), que contém um vídeo de boas-vindas, recheado de depoimentos de 10 colegas, trazendo mensagens interessantes que dizem respeito ao percurso institucional. Nestes depoimentos, vamos encontrar menções à fratria, aos laços de amizade e convivência, aos ritos de passagem, à pluralidade, à riqueza e liberdade que o currículo evoca, trajetórias pessoais, às diversas psicanálises que abrigamos, momentos difíceis de quase ruptura, negociações, importância da participação política, prazer no trajeto da formação, questionamentos sobre a função didática: um convite para que os novos façam parte da roda. E uma mostra de nossa pluralidade.

Também coleciono exemplos não tão agradáveis e alvissareiros: certa feita, participava de um seminário clínico, situação tensa para quem chega, na medida em que irá expor seu modo de trabalho, sua clínica íntima. E lembro que o supervisor perguntou, com certa ambiguidade: mas é assim que você fala com seu paciente?! Uma mera pergunta, vinda de um lugar de poder, de um supervisor, que se arrogava talvez a verdade que eu ainda não tinha experimentado. O efeito poderia ter sido nefasto, mas prossegui… aqui me refiro ao tema que Ferenczi abordou de modo apaixonado, que tem a ver com as relações assimétricas que também vivemos na instituição, que remontam ao infantil, ao resto, aos sintomas da formação. Para tanto, o grupo pode funcionar como lugar de encontro, de hospitalidade e de exposição de pontos de vista diversos e mal-estar, ou como lugar de poder e engessamento.

Einfall

Nada é interno; nada é externo. Pois o que está dentro está fora.

Goethe

Uma expressão corriqueira, na língua alemã, polissêmica - Einfall, queda, acontecimento, desabamento, “cair a ficha” -, é oportuna para deixarmos no ar um certo modo de estar no mundo, de se encantar, abrir a escuta, se deixar, num primeiro momento, entrar no externo que não é tão externo assim. Ao decompor essa palavra, o prefixo ein, que tem significado de movimento para dentro, ou de dentro, acrescido de Fall, queda, num jogo de tradução, teria a ver com queda para dentro, ou queda dentro. Algo cai, se desprega de um topos. Essa expressão aparece no texto “A questão da análise leiga”, quando se aproxima o tema do Eu e do Isso, e das fronteiras fluidas entre a fachada e o profundo. Um contraste entre a psicologia, que não entra em contato com a área do Isso, na medida em que privilegia o consciente como anímico, em contraponto com a psicanálise,

podemos ter ocorrências [Einfälle] que não podem ter surgido sem uma preparação. … o senhor não escapa do fato de que dentro do senhor podem acontecer atos de natureza anímica, frequentemente muito complicados, dos quais sua consciência nada fica sabendo, dos quais o senhor nada sabe. (Freud, 1926/2017, pp. 220-222)

Esse recado claro, endereçado ao senhor do diálogo construído por Freud, também pode ser endereçado a todos nós, sujeitos aos acontecimentos (Einfälle), que brotam de dentro, do outro em nós, do outro que nos busca: quase um preceito ético que nos deixa sempre próximos de quedas e abalos. Que relembra a frase de Freud segundo a qual a psicologia individual também é psicologia social (Freud, 1921/2011).

Esse recado chega à instituição, que, apesar de sua moldura ética, tecida durante tantos anos, sofre impactos dos ares que nos circundam. Dos grupos, pessoas, climas, pandemias, enroscos políticos graves da nação que apontam retrocessos e riscos numa democracia já tão frágil.

Um novo recado também nos tem chegado, que vem de uma parte do Brasil silenciada e esquecida, marcada por fortes desigualdades, privilégio nenhum, e não falamos de minorias numéricas, mas de maiorias à margem, das quais os negros, e pobres, formam grandes contingentes.

Recentemente, foi constituída a Comissão Virgínia Bicudo, que diz respeito a todos nós, Instituição, e também ao Instituto, lugar de transmissão. Seu trabalho será refletir, propor ações afirmativas, trazer recados de fora, mas que também são de dentro, para o core do grupo institucional. Parece que estamos diante de um novo desafio, que vai pôr em questão nossa porosidade e capacidade de experimentar o Einfall.

No texto “O eu e o id” (Freud, 1923/2019a), tão conhecido e mencionado por nós, o Eu nada tem de soberano: comanda, mas nada sabe… Falha quando se aproxima do recalcado; é submetido a uma tripla servidão: o mundo pulsional, de dentro; os imperativos categóricos rígidos do Supereu; e o mundo externo. Parece que somos muito treinados em identificar o mundo interno e suas vicissitudes, os imperativos categóricos ancestrais, mas quiçá nem tanto as agruras do mundo externo, em especial, quando não as vivemos na nossa pele. Esse fora de nós, que se apresenta em condições estruturais para certos grupos, precisa ser tematizado, tratado e trazido para dentro, no seu devido grau de sofrimento. Temos aprendido muito com o trabalho da Comissão Virgínia Bicudo: Fanon, Isildinha Baptista Nogueira, Abdias Nascimento… e os próprios escritos de Virgínia Bicudo, quando fala do sofrimento vivido pela condição negra, nos servem para abrir a escuta e abrir a roda. Passaram a ser nossos novos companheiros de navegação, para que o instituído não se cristalize e abra novas passagens.

No livro A cor do inconsciente (Nogueira, 2021), a autora nos mostra que o racismo estrutural contra os negros terá efeitos psíquicos ao modo de marcas mnêmicas, responsáveis por sofrimentos que portam o ódio e marcam posições identitárias dos sujeitos: essa dimensão precisa ser reconhecida, operando num espectro individual-grupal. Precisamos saber (!) que corremos o risco de superestimar o mundo interno, meramente, nessa dinâmica complexa que tem a ver com as histórias clandestinas de nosso país e de grupos que nos formaram: indígenas, habitantes da terra, e escravizados, que sustentaram a preço baixo nosso desenvolvimento. Também é muito inquietante e perturbador ler em Fanon, 70 anos depois, que “a alienação do negro não é apenas uma questão individual…” (Fanon, 1952/2008, p. 28).

O contemporâneo chega sem avisar, entra nos consultórios, na vida, nos fazendo olhar para dentro e para fora, para um país extremamente injusto que se recusa a olhar para sua história e escutar as narrativas dos que foram silenciados. O velho e bom Freud, sempre ele… já havia se dado conta de que o ofício de psicanalisar inclui a curiosidade e o contato com diversas áreas da cultura, do saber e das vivências: nada mais acontece numa sala de análise do que uma conversa… (1926/2017, p. 210), que parece tão simples e de uso fácil; traz a questão de quem escuta, e como a escuta pode recusar ou silenciar certas deformações que o sujeito veicula. Contagiado pela sua época, e tendo em vista o furor prohibendi (expressão de Freud, 1926/2017, p. 270), ao se dirigir às práticas regulamentares e burocráticas que podem adoecer as instituições psicanalíticas e seus integrantes, Freud abre todas as competências, como hoje gostamos de falar, que poderiam acompanhar um psicanalista em sua jornada, que vão muito além dos seminários e percorrem todas as dimensões do humano: história da cultura, mitologia, psicologia da religião, ciência da literatura (1926/2011, p. 284), pequena lista de Freud à qual podemos acrescentar tantas outras afinidades, que nos deixariam em contato com as realidades externas que marcam psiquismos e sofrimentos de sujeitos que nos procuram, que nos alertariam para o risco do saber único, de guetos e hordas.

Somos cientes, porém, nem tão vacinados assim, do poder desestabilizador das pulsões que nos constituem, e que nos lançam, em diversos momentos da vida, ao lugar do desamparo que acorda os esqueletos que tanto queríamos tirar de nosso campo psíquico. Parece que não há prescrição preventiva certeira, diante desse possível destino pulsional. Mas cabe a pergunta: qual o papel do outro, e aqui do outro na figura da Instituição, nesse percurso? Qual a cena que a Instituição nos oferece e até que ponto temos condições de participar dessa cena e alterar posições disponíveis para nós e em busca de serem construídas e desconstruídas, para evitarmos dogmatismos aprisionantes?

2 Tradução livre da autora.

Referências

Agamben, G. (2007). Profanações (S. J. Assmann, Trad.). Boitempo. [ Links ]

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Recebido: 08 de Setembro de 2022; Aceito: 15 de Setembro de 2022

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