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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.55 no.103 São Paulo jul./dez. 2022  Epub 08-Jul-2024

https://doi.org/10.5935/0103-5835.v55n103.10 

Tema: Psicanálise em (de)formação

Questões raciais e formação psicanalítica É tudo para ontem1

Cuestiones raciales y formación psicoanalítica: es todo por ayer

Racial issues and psychoanalytic training: it’s all for yesterday

Questions raciales et formation psychanalytique : c’est tout pour hier

Wania Maria Coelho Ferreira Cidade2 

2Membro efetivo e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), Diretora de Comunidade e Cultura da Febrapsi e editora da seção Vórtice da revista Calibán da Fepal. Rio de Janeiro


Resumo

O artigo pretende tratar de reivindicações que nasceram nos Movimentos Sociais Negros, mas que atingem as instituições psicanalíticas na medida em que tratam da exclusão dos negros dos lugares de saber e poder, e em que buscam recontar a história a partir de seus próprios conhecimentos, instalando novas narrativas que rompem com a opressão e o silenciamento oriundos do sistema colonial. O texto traz sinteticamente a história do movimento psicanalítico no Brasil para mostrar como a formação na área embranqueceu, apesar de em seus primórdios a psicanálise ter contado com a participação de precursores e pioneiros negros. O artigo visa principalmente tornar pública a necessidade de ampliação do acesso à pessoas negras no processo de formação psicanalítica.

Palavras chave: branquitude; instituições psicanalíticas; negação; racismo; colonização do conhecimento

Resumen

El artículo pretende ocuparse de reclamos que nacieron en los Movimientos Sociales Negros, pero que afectan a las instituciones psicoanalíticas en tanto se ocupan de la exclusión de los negros de los lugares de saber y poder y en las que buscan recontar la historia desde su propio saber, instalando nuevas narrativas que rompan con la opresión y el silenciamiento provenientes del sistema colonial. El texto resume la historia del movimiento psicoanalítico en Brasil para mostrar cómo la formación en el área fue, poco a poco, blanqueando, a pesar de que en sus inicios el psicoanálisis contó con la participación de precursores y pioneros negros. El artículo tiene como principal objetivo hacer pública la necesidad de ampliar el acceso a las personas negras en el proceso de formación psicoanalítica.

Palabras clave: supremacía blanca; instituciones psicoanalíticas; negación; racismo; colonización del saber

Abstract

The article intends to deal with claims that were born in Black Social Movements, but that affect psychoanalytic institutions as they deal with the exclusion of blacks from places of knowledge and power and in which they seek to retell history from their own knowledge, installing new narratives that break with the oppression and silencing coming from the colonial system. The text summarizes the history of the psychoanalytic movement in Brazil to show how the formation in the area was, little by little, whitening, despite the fact that in its beginnings psychoanalysis had the participation of black precursors and pioneers. The article mainly aims to make public the need to expand access to black people in the process of psychoanalytic training.

Keywords: white supremacy; psychoanalytic institutions; denial; racism; colonization of knowledge

Résumé:

L’article entend traiter des revendications nées dans les mouvements sociaux noirs, mais qui affectent les institutions psychanalytiques dans la mesure où elles traitent de l’exclusion des Noirs des lieux de savoir et de pouvoir et dans lesquelles elles cherchent à raconter l’histoire à partir de leurs propres connaissances, en installant de nouveaux récits qui rompent avec l’oppression et le silence venant du système colonial. Le texte résume l’histoire du mouvement psychanalytique au Brésil pour montrer comment la formation dans la région s’est peu à peu blanchie, malgré le fait qu’à ses débuts la psychanalyse a eu la participation de précurseurs et de pionniers noirs. L’article vise principalement à rendre public la nécessité d’élargir l’accès aux personnes noires dans le processus de formation psychanalytique.

Mots-clés suprématie blanche; institutions psychanalytiques; déni; racisme; colonisation du savoirs

Finalmente, é a prática que constituiu a única continuidade do passado ao presente, ou, inversamente, a maneira como o presente explica o passado … Pensar o passado contra o presente, resistir ao presente, não para um retorno, mas em favor, espero, de um tempo que virá, como dizia Nietzsche.

(Deleuze, 1988, p. 125)

É difícil sustentar a posição de psicanalista sem paixão, sem disposição para aventurar-se por terrenos insólitos, desconhecidos, sem o desejo de alteridade e, portanto, de abertura para novas experiências. Antes de ser psicanalista, uma posição no mundo que vai além da prática no consultório, que requer ousadia e que se move de acordo com nossos estudos, com nosso amadurecimento pessoal e com a cultura, sou uma mulher negra. Quando me disponho a falar a respeito de um assunto como o que estamos tratando hoje, eu o faço na perspectiva de mulher negra, psicanalista, cidadã e com posições políticas definidas, embora permeáveis à escuta.

Vivemos um momento de tensionamento no Brasil e no mundo. Uma guerra explodiu no seio do Leste Europeu, e já em seus primeiros dias somos também bombardeados com imagens tristes, nefastas, que nos dão notícias do terror presente em nossa humanidade. Em meio à guerra, que per se já é uma violência contra a nossa pensabilidade e contra a própria existência, que mobiliza o que o ser humano tem de pior, o racismo também surge virulento, exibindo nos jornais e nas redes sociais a face europeia que já conhecíamos, fachada civilizada que forjou entre nós a assimetria, os privilégios e a subalternização.

Hoje, diante do terror de mais uma guerra e do advento da Internet e dos instrumentos digitais que transmitem “fatos e fotos”, em tempo real, parece-me indiscutível a afirmação dos movimentos sociais e em especial do Movimento Negro, quando dizem que não somos todos iguais, quando marcam a branquitude e a negritude, não como opostos, mas como contraponto uma da outra. Há diferenças marcadas com cicatrizes históricas, sociais, políticas, éticas e psíquicas, e que agora a guerra escancara ao mostrar a desumanização de uma criança preta retirada do trem, que a levaria para além das fronteiras ucranianas, para o benefício de outra criança, uma criança branca. O que as difere se não a cor da pele? Nunca se tratou de passado, mas de um processo ideológico, econômico e político que visa reiteradamente deixar as populações indígena, negra e não brancas fora, excluídas, conferindo, assim, à “raça” um lugar simbólico e social independentemente do que diz a ciência.

Através dos séculos, a tensão tem-se feito presente também entre nós, brasileiros, apesar do encobrimento da angústia e da inquietação pelo Mito da Democracia Racial, mas ela ganha contornos contemporâneos na medida em que a população negra reivindica recontar a própria história. A constitucionalidade das cotas raciais e de políticas de ação afirmativa, resultado da luta do Movimento Negro, baseou-se “em critérios étnicos para promover maior acesso de pessoas negras aos bancos de universidades públicas … para corrigir distorções culturais e históricas existentes no Brasil” (Supremo Tribunal Federal, Haidar, 2012). Até então, contaram uma história sobre nós, africanos e afro-brasileiros. Queremos, entretanto, falar na primeira pessoa e ser autores da narrativa acerca da chegada de nossos ancestrais ao país e acerca de nós mesmos, como diz Grada Kilomba: é “sobre uma fome coletiva de ganhar a voz, escrever e recuperar a nossa história escondida” (2019, p. 27). A academia lidava com uma única versão da história, aquela contada pelos colonizadores, e foi assim desde que os africanos foram trazidos para cá à força, porque existiram mecanismos de abafamento e de opressão que apagaram outras vozes e outros saberes, que sempre existiram, mas fora dos domínios em que circula o conhecimento oficial, por exemplo, fora das sociedades e das escolas de psicanálise.

É desse lugar que eu gostaria de conversar com vocês, do lugar de quem olha a história em retrospectiva, de quem também é constituída por ela e que faz furo na ordem simbólica, tanto no sentido da penetração, quanto no de admitir o desamparo e a falta. Este é um tema que suscita conversas que deveriam estar nas pautas das instituições, especialmente das instituições psicanalíticas, as quais transmitem um saber subversivo, que pressupõe a escuta do diferente, e as quais, apesar dessa disposição para o outro, resistem a tornar consciente o racismo que regula as relações individuais e sociais. Consequentemente, é preciso que as instituições façam mais do que se dar conta da ausência de não brancos em nosso ambiente, pois, do contrário, reproduz-se a negação e o silêncio de uma sociedade racista. É isso que temos de enfrentar e que tem estado estampado nas tvs do mundo, quando assistimos a pessoas de origem africana, tentando sair da Ucrânia e sendo recolocadas no final das filas para que os brancos do mundo ocidental civilizado possam passar. Estas não são ocorrências estranhas a nós, que ficam lá, no campo de guerra, na Europa ou na América do Norte, elas fazem parte do nosso cotidiano e estão entre nós para serem observadas, é um assunto que tem relação com o racismo estrutural, que determinou a construção de nossa sociedade, que incorporou os valores europeus, influenciando os saberes e, até mesmo, o modo como a psicanálise chegou no Brasil, ou melhor, definiram a institucionalização da psicanálise por aqui. Acho importante fazer uma digressão e falar um pouco sobre isso.

A psicanálise entra no Brasil pelo entusiasmo do médico, baiano e negro, Juliano Moreira. Ele passou uma temporada na Alemanha, aprendeu o idioma alemão e teve a oportunidade de ler os textos freudianos no original. Em 1914, ele foi conferencista da Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal apresentando uma palestra cujo tema foi “A psicanálise de Freud” (Victer, 2017). Também são atribuídos a ele os primeiros estudos de psiquiatria em solo brasileiro, tendo lecionado a matéria, assim como introduzido a obra freudiana no curso universitário de Medicina. Em 1929, autorizou a abertura de dois consultórios de psicanálise no Hospital Nacional de Alienados, do qual, à época, era o diretor.

Tomei contato com essas informações a respeito dos primórdios da psicanálise por interesse pela história do movimento psicanalítico no Brasil. Tive acesso a uma publicação da psicanalista Marialzira Perestrello, uma das fundadoras da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, em que ela conta o percurso dos pioneiros. Segui com a minha pesquisa e tive acesso a um texto do colega Sebastião A. Salim, da sbpmg, em que ele diferencia precursores de pioneiros, definindo o primeiro grupo como os interessados pela psicanálise e o segundo como os envolvidos com a prática clínica. Neste sentido, ele considera Durval B. Marcondes o pioneiríssimo. Portanto, hoje, estamos no berço da psicanálise.

A presença negra na psicanálise teve início com Juliano Moreira, contou com Maria Manhães, José Simplício, até onde eu sei, ambos da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, mas parou por aí, o que de certa maneira comprova o processo de colonização do conhecimento em nosso país. Ou seja, embora tenha sido a presença intelectual e a mão de obra de homens e mulheres africanos que introduziram algumas tecnologias no país, os afrodescendentes não usufruíram dos bens trazidos e implantados por seus ancestrais. Depois de Juliano Moreira, alguns poucos médicos da elite do Sul e Sudeste do Brasil partiram para a Inglaterra e para a Argentina com a finalidade de se tornarem psicanalistas. Foram eles os precursores que, ao retornarem, formaram os grupos de estudos que mais tarde se tornaram as sociedades de psicanálise. Além de alguns médicos terem ido estudar fora do país, alguns europeus foram convidados a vir para o Brasil com a finalidade de transmitir a psicanálise. Acredito que, hoje, tenhamos entre nós colegas que podem expandir essas informações, pois certamente a origem das sociedades de psicanálise ocorreu de maneira particular em cada região, mas o fato é que ela tem, reconhecidamente, a sua entrada em solo brasileiro sob os aUSPícios do médico Juliano Moreira. Soma-se a esta informação outra de igual relevância, que é o fato de Virgínia Bicudo ter sido a mulher, entre as tantas pessoas que trabalharam pela difusão da psicanálise no Brasil, considerada a primeira psicanalista não médica do país e uma das primeiras a valorizar a psicanálise de crianças (Fernandes, 2020). Foi, além disso, parceira de Durval Marcondes, da equipe editorial da primeira tradução da obra de Freud e pioneira “no debate de estudos raciais”. Não por acaso, após o seu ingresso nos estudos psicanalíticos o interesse na temática racial foi aplacado (Fernandes, 2020).

Ora nada disso seria digno de nota não fosse a falta de representatividade de pessoas não brancas em nosso ambiente e não fosse a importância desses pioneiros em um país cuja abolição da escravatura ainda era frágil e violentamente atacada quando eles iniciaram seus processos individuais de formação profissional. Também é digno de nota o fato de que quando um negro faz algo que dá errado, ele representa toda a coletividade, mas quando se trata de sucesso o seu feito é apagado.

Até os anos 1980, ao menos no Rio de Janeiro e na maior parte do Brasil, a formação psicanalítica era facultada apenas aos médicos, o que contrariava o pensamento do próprio fundador da psicanálise, Sigmund Freud, dado que ele propunha que leigos se aproximassem do novo saber, podendo dele se apropriar com base no estudo persistente e no próprio submeter-se à experiência analítica. Temos igualmente o conhecimento de que diversos teóricos da psicanálise clássica, assim como psicanalistas europeus, têm origens acadêmicas distintas, externas à medicina e à psicologia.

Fiz este breve relato com a finalidade de pensar como a psicanálise distanciou-se da população periférica e, em especial, da população negra, e para relacionar essa situação com o afastamento que ocorreu, de um modo geral, nas instituições brasileiras. É sabido que o curso de Medicina é um dos mais elitizados do país e com maioria “esmagadora” de estudantes brancos. Mesmo hoje, com a política de ação afirmativa, a população branca ainda lidera o acesso aos cursos médicos. Então, retornei a esse passado com o interesse de compreender o que se passou, e que ainda se passa no presente, na tentativa de mudarmos o curso desses eventos.

Trazer a história de algumas práticas psicanalíticas … é percebermos que podemos estar participando de modos de subjetivação, de identidades e de modelos que estiveram presentes naquele passado recente e que hoje se atualizam de outras formas. (Coimbra, 2004)

Certa vez escutei Achille Mbembe dizer que as fronteiras estão cada vez mais rígidas para limitar e escolher os corpos que podem atravessá-las. Proponho que pensemos nos territórios e nas fronteiras do campo psicanalítico, o que determina que uma pessoa possa atravessá-los? Quem faz as leis que conferem o passaporte para a formação psicanalítica? O que impede que as populações indígena e negra ocupem esses espaços?

Em maio de 2016, a Comissão de Transmissão e Formação

Psicanalítica, da qual eu fazia parte, apresentou um trabalho no Congresso Argentino de Psicanálise, no qual dizíamos que as mudanças introduzidas no Modelo Eitingon estavam sustentadas, em cada caso, pelos princípios fundamentais da psicanálise, guiados, por sua vez, pela responsabilidade e pela ética. O assombro com a falta de diversidade em nosso ambiente não seria produto da responsabilidade e ética psicanalíticas? E por que ele não acontece, ou melhor, por que, 20 anos após a inclusão de ações afirmativas nas instituições públicas do Brasil, ainda há resistência ao assunto e refuta-se a ideia de implantar esse sistema em nossas sociedades? Existe alguma dúvida de que essa imobilidade esteja relacionada com a ferida colonial, cis-heteronormativa e de poder branco?

Parece-me que poucos entre nós, psicanalistas, tiveram seu futuro incerto, no que diz respeito ao acesso à educação e aos bens culturais. Isso não significa que não houve dedicação pessoal, trabalho e um exercício permanente para se sustentarem neste lugar, mas refiro-me aos bens econômicos que garantem a travessia de alguns e a exclusão dos demais. O outro lado igualmente importante dessa questão é que consequentemente o acesso a esses bens conduz o sujeito também ao arbítrio, ao pertencimento, aos direitos, às possibilidades e aos privilégios, então, não estamos falando de pouca coisa.

É necessário que haja uma disposição para enfrentar as contradições impedindo que se entre em contato com essas ideias, é preciso que aqueles que estão no poder das instituições responsabilizem-se pela desigualdade brutal que os cerca e em relação ao outro imediatamente próximo, ao outro que não é espelho; que se queira conhecer a história do Brasil, aproximar-se de autores e de intelectuais afrodiaspóricos que têm se debruçado sobre a história da colonização para recontar o que nos foi subtraído, negado, apagado e silenciado. Há que se ter disposição para a descolonização do conhecimento e para a autocrítica em relação ao “pacto narcísico da branquitude”.

é o ato de reparar o mal causado pelo racismo através da mudança de estruturas, agendas, espaços, posições, dinâmicas, relações subjetivas, vocabulário, ou seja, através de abandono de privilégios. … a consciência sobre o racismo não como questão moral, mas sim como um processo psicológico que exige trabalho. (Kilomba, 2019, p. 46)

Devemos repudiar veementemente todo tipo de guerra, incluindo, as do tempo de paz.

Referências

Coimbra, C. M. B. (2004). A psicanálise nos tempos da ditadura. Disponível em: <https://app.uff.br/slab/uploads/texto45.pdf>. Acesso em: 4/9/2022. [ Links ]

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Palestra proferida no evento “Questões raciais e formação psicanalítica: é tudo para ontem”, realizado na SBPSP no dia 22/3/2022.

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