Tudo compreender não é tudo perdoar. A psicanálise nos ensina não apenas o que podemos suportar, mas também o que devemos evitar.
Ela nos diz o que deve ser eliminado. A tolerância com o mal não é de maneira alguma um corolário do conhecimento. (Freud, 1926/1990, p. 122)
Até que o leão aprenda a falar, a história será contada pelo caçador.
(Provérbio africano)
Este ensaio/carta, negrocêntrico, segue com a pretensão de problematizar a questão do racismo e seus desenvolvimentos na ausência/presença de negros e negras em nossos institutos de formação, bem como nas sociedades psicanalíticas - tudo compreender não é tudo perdoar -, mas sim possibilidade de trabalhar por modificações. Esta meta se fará relevante, caso consiga ir além do problematizar, e sinalize caminhos para eliminar as fronteiras que nos mantêm à margem do território psicanalítico - o tornar-se analista. Aquisição que impõe o redesenhar o cenário político, com sua lógica racista, de nossas instituições, com a aspiração de tornar consciente o inconsciente, denunciando a verdade histórica desconsiderada: a brancura, com suas narrativas hegemônicas, como condição originária para vir a ser analista.
A fala vibrante do leão vem reescrevendo a história passada e brada por escrever a história presente e a futura. O epistemicídio - a destruição do conhecimento - do legado do povo negro pelo brancocentrismo, com sua herança colonial em plena vigência, encontra-se em processo de desconstrução: ruptura com o poder nefasto da história única (Adichie, 2019). Nesse sentido, o discurso inaugural sobre a psicanálise em solo brasileiro, por Juliano Moreira (1899), o preconceito de cor, de Virgínia Bicudo (1945), o mito negro de Neuza Santos (1983/2021), o pretoguês (amefricanidade), de Lélia Gonzalez (1988), o pacto narcísico da branquitude, de Maria A. S. Bento (2002), o Apartheid psíquico, de Isildinha B. Nogueira (2017), as práticas e ações, verdadeiro celeiro de resistência, de Wania Cidade (2020), tornam-se proeminentes. Nesse processo exigem-se aberturas nas muralhas narcísicas, erigidas pela branquitude no continente psicanalítico: enfrentamentos para tomar posse desse território se fazem vibrantes, num trânsito profícuo entre atos e narrativas disruptivas do que está posto. A luta antirracista nos convoca e questiona: qual o lugar que vamos ocupar nesse teatro das operações? Tempo de pensar em ações reparatórias.
Como sabemos, ou deveríamos saber, o racismo levou à escravidão do povo negro africano; e a escravidão, com sua abolição sem reparação, juntamente com o projeto nefasto de desapropriá-los das possibilidades do vir a ser um sujeito livre, compôs o racismo estrutural que configura a organização social brasileira. Racismo, como tecnologia de poder (Almeida, 2019), que implicam as normas - políticas, econômicas e subjetivas - que regem nosso peculiar jeito de ser, na vida privada e pública. Contexto determinante na hierarquia de classes, estratificações, que tem no branco seu padrão de excelência - a estética do belo, do sublime. Invenção de um território marginal, cárcere para negros e negras, governado pelo marcador social da exclusão dos bens, que o capital fomenta - aliança intrínseca com a pobreza, que leva à servidão involuntária. Também, presença de um supereu escravizante: “cair-lhe sob os seus olhos” (Freud, 1921/1996). Servidão, que tem no masoquismo narcotizante, decorrente da pulsão de apoderamento oriundo do colonizador, sua gênese psíquica, e a invenção de uma Weltanschauung negra (Fanon, 1953/2008) - a estética do horror, do repulsivo. Essa ideologia de corpos e alma expropriados está a serviço de quem? Do racismo da vida cotidiana, com suas prerrogativas superlativas, que habita o território blindado daqueles que desenraizaram e conferiram um status de sub-humano ao povo africano e sua descendência no Novo Mundo, visando explorar sua força de trabalho, verdadeiro objeto de carga. Panorama que dá sustentação à verdade histórica, decorrente da verdade material abusiva do racismo: “ser racista é o normal”, não ser, significa um intenso trabalho, para sair dessa perversa normalidade, assentada na condição delirante do universal da brancura. Nesse sentido, a advertência freudiana é um apropriado indicador para a confrontação com a barbárie do racismo: a tolerância com o mal não é de maneira alguma um corolário do conhecimento. O conhecer, como lugar de poder, e que muitas vezes é utilizado para escravizar, quando investido de um saber ético, é condição para o avanço da alienação à libertação. Quando assim o for, será um corolário para concretizar atitudes antirracistas. Atitudes que a psicanálise e os psicanalistas estão sendo convidados a perpetrar, desde de suas casas - sociedades, Febrapsi, Fepal e IPA -, como ponto de partida. Ocasião potencial para viabilizar a proposição de G. Kilomba (2008/2019), para reconfigurar a concepção do conhecimento, à luz da nossa ciência Unheimliche (Paim Filho, 2019), com base em subversivos interrogantes: Quem sabe? Quem pode saber? Saber o quê? E o saber de quem? Tempo de elaborar ações reparatórias.
Tomando por sinalizador que o racismo nos estrutura como sujeito, pertencente a uma ordem cultural, em sua dupla face, do individual ao coletivo, temos posto a necessidade de inquirir sua presença nas instituições psicanalíticas. Tecerei minhas ideias em torno de dois eixos, duas inexistências - que irromperam em definitivo no campo psicanalítico - as quais ambiciono produzam inquietantes estranhezas no coletivo branco: a quase absoluta ausência da pauta do racismo nas produções da psicanálise; e a ausência de psicanalistas negros e negras, e, por conseguinte o seu pensar, em nossas casas. Casas comprometidas, em princípio, com a transmissão e formação em psicanálise, num cenário pautado pelo exercício de um livre pensar, tomando por balizador o sofrimento psíquico, ao qual o sujeito está assujeitado em sua interdependência com outro. Segundo Freud, a mais dolorosa fonte de nosso sofrimento: relações com outros seres humanos (1930/1969b). Com destaque especial a esse outro, que se comporta como mensageiro da completude, território em que o complexo de castração não se instaurou. O povo branco, com a racialização do povo negro - Racismo é dominação racista (Gonçalves Filho, 2017) -, artifício que vai determinar para este um lugar de segunda linha, excluído do território do acesso ao conhecimento. Cenário com o qual temos uma total intimidade, o não acesso do saber psicanalítico ao universo da negritude, em particular, à clínica - o exercício do ofício de analista -, como reduto do poderio de uma psicanálise de branco, para brancos. Seria esse contexto que opera para a inexistência de instituições psicanalíticas vinculadas à Febrapsi/ipa no estado brasileiro de maior contingente de negros e negras, a Bahia? Tempo de propor ações reparatórias.
Seguindo esse roteiro, sou intimado a refletir sobre um dos destinos do racismo estrutural, o racismo institucional. Eis aí nosso ponto nevrálgico. Nossas instituições carregam consigo uma história, quase centenária, de cumplicidade com a segregação racial. O saber psicanalítico entrelaçado com o pacto silencioso e demoníaco do mito da democracia racial se faz agente ativo, não somente passivo, do racismo à brasileira - autêntica alucinação negativa coletiva. Arena da cruel cordialidade racista, com sua dissimulação mortífera, o desgarrado da pulsão de morte materializando a tragédia do destino, forjado pelo opressor. Este não falado, não nomeado, o inenarrável do sectarismo secular do racismo entre nós, dá sentido à ominosa afirmação do ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1986: o carrasco mata duas vezes, a segunda pelo silêncio (Elie Wiesel, 1986). Esse circuito tanático - falência da capacidade de escuta, de uma psicanálise não implicada - vai dar fundamentação teórico-clínica para fazer do racismo mera questão psicopatológica, pelo viés de quem o sofre e raramente pelo viés de quem o executa. Essa proposição, reducionista, faz valer a máxima que propõe: o racismo é um problema singular, que remete ao autoconceito dos afrodescendentes, com seus incrementos paranoides e ambivalentes, afinal, o inconsciente não tem cor. Não tem? Se assim o for, temos a psicanálise atrelada ao pacto narcísico da branquitude - supremacia do Eu-prazer-purificado (Freud, 1915) -, que destitui o negro de seu lugar de sujeito de forma coletiva, e, ao mesmo tempo, via o desmentido, o faz viver o terror do racismo de forma solitária - o crime perfeito, nas palavras de Kabengele Munanga (2017). Somos habitados por atravessamentos tanáticos - montados pelos ideais da branquitude - que impedem a percepção/consciência do traumático constituído pelo sistema de silenciamento do racismo, estabelecido na república “democrática” brasileira e, provavelmente, na América Latina. Seguindo nesse mesmo enquadre, Eliane Brum propõe: “Por mais éticos que nós, brancos, possamos ser no plano individual, a nossa condição de brancos num país racista nos lança numa experiência cotidiana em que somos violentos apenas por existir” (2021, p. 18). Tais afirmações precisam, imperiosamente, ser assumidas e trabalhadas, pelos não negros, percurso indispensável para avançar da vergonha, com suas origens narcísicas, para a culpa, com suas repercussões melancólicas, e dessa para a responsabilidade, com sua implicação no labor do luto, condição necessária para desnaturalizar o racismo e efetivar a nossa contribuição em prol de uma psicanálise empenhada com uma genuína democracia racial. Afinal, a psicanálise nos ensina não apenas o que podemos suportar, mas também o que devemos evitar, e, mais, agrega Freud, ela nos diz o que deve ser eliminado, em nosso caso, o racismo estrutural e seus desdobramentos nas sombrias dobras institucionais. Tempo de concretizar ações reparatórias.
Rascunhando caminhos…
Pensar, elaborar, propor e concretizar ações reparatórias, no território psicanalítico, requer sair de nosso lugar de privilégios, que nossa ciência, oriunda do eurocentrismo, nos propiciou - topos de uma herança material e simbólica acrítica. Seguindo por essas rotas disruptivas, como psicanalistas, somos convocados, diante de uma temporalidade traumática, constante e ininterrupta, em um processo de significação e ressignificação, a ingressar no universo de negros e negras e no racismo que ele revela. Nesse sentido, é fundamental, segundo o professor José Damico (2020), agregarmos ao quarto pé do tripé da formação analítica - a instituição (Rodrigues et al., 2007) -, em seus procedimentos sempre inconclusos, o letramento racial crítico. Momento primeiro para uma efetiva abertura, para trazer o branco para o centro das questões que envolvem o racismo, do qual ele é o grande protagonista, e assim torná-lo objeto de investigação - viver na própria pele a dor de ser o que se é. Branco, qual a sua raça? Convite para tomar posse de sua branquitude crítica (Cardoso, 2017). Essa que se comporta de forma antirracista na vida pública, mas pode se manter aferrada às benesses do ser branco na vida privada. Contexto condizente com a realidade cotidiana de nossas sociedades? Padecemos de um existir violentamente (Brum, 2021, p. 17)? Portanto, tal discurso requer um confrontar-se com o conflito entre o desejo narcísico e a ética do desejo ordenado pela alteridade. Tempo de criar, recriar e corroborar novas subjetividades.
Letramento racial, expressão cunhada pela antropóloga afro-americana France Winddance Twinw (2006), que consiste na reeducação individual sob uma ótica antirracista. Segundo Lia Schucman (2014/2020), desenvolvendo essa proposição, temos cinco indicadores, que perpassam o reconhecer e se envolver com o processo de não mais validar a herança racista que constitui de forma objetiva e subjetiva o mundo do imperialismo branco. Diante dessa constatação temos: primeiro, a obrigação de assumir a branquitude e as benesses decorrentes dessa racialização; segundo, compreender o racismo como um problema contemporâneo, com uma longa história que segue se perpetuando na vida cotidiana do povo negro; terceiro, que as teses raciais se aprendem em casa, na escola, na universidade (agregaria nas instituições psicanalíticas); quarto, a necessidade de dialogar e tomar posse de uma gramática e um vocabulário racial; e, por fim, o quinto indicador, desenvolver aptidão para revelar e denunciar os códigos e práticas racistas. Recordemos o fato de a linguagem transportar de forma emblemática os preceitos racistas, com suas verdades coloniais e patriarcais - o mundo conceitual branco. Tempo de pôr a perspectiva negra em foco, criando novas palavras, novos pensamentos, estímulos para a permanência vital do eterno fantasiar metapsicológico (Freud, 1937/1969a).
De posse desses elementos, que remetem à branquitude crítica, com seus conflitos inerentes, como identificador e propulsor inicial de transformações psíquicas individuais e coletivas, na capacidade analítica de cada um de nós, teremos as condições mínimas para ocupar o lugar singular que requer a tarefa de se comprometer com a formação analítica da população negra - o exercício da clínica como lugar de pertinência - em seus três segmentos: análise, supervisão e seminários. As ações reparatórias, ou ainda afirmativas, para se tornarem viáveis, produtivas e geradoras de pluralidades permanentes - novos cenários políticos -, demandam tomadas de posição em duas frentes, além da educacional, com suas ressonâncias nos divãs: política, legislar de forma clara e precisa os instrumentos ordenadores dessas ações junto à população negra e branca, estabelecendo como referência a importância de um pensar decolonial, visando um contrapoder, em relação à consolidação de ideários racistas; e econômica, criar meios financeiros que viabilizem o tripé, não como concessão, mas sim como um direito histórico de reparação, que lhes foi negado, desde o desterramento - a diáspora forçada africana. Afinal, como expõe Fanon (1953/2008), o branco inventou o negro, e o negro criou a negritude. Criação referendando que o racismo não é uma questão moral, mas sim uma questão ética. Tempo de expandir a expressão vitalizante: #negritudeocupapsicanalise.
A execução desse projeto exogâmico, em direção ao universo intelectual negro renegado, contempla, por um lado, reparação e, por outro, fomenta uma revitalização do ser analista na terra brasilis. Nesse projeto, desenham-se potenciais caminhos pelos quais a psicanálise brasileira possa galgar condições de alavancar a construção das especificidades do nosso pensamento psicanalítico - possibilidades de descolonizar a psicanálise -, falar a nossa própria língua, por exemplo, em congressos internacionais. Tempo de racializar, paradoxalmente, a psicanálise, pelo vértice do povo negro, não assimilado: no início foi o ato (Freud, 1913/1969d), depois veio o verbo. O tornar-se negro (Santos, 1983/2021), com sua força libertadora, construindo acessos para o tornar-se analista de negro e negras.
Finalizando, deixo um recorte do pensar de Gonçalves Filho, de seu texto “A dominação racista: o passado presente”, juntamente com a interrogação: estamos dispostos a trabalhar, com determinação, entre história, subjetividade e objetividade, para pagar, sem apagar, a dívida que o racismo à brasileira ou, ainda, latino-americano estruturou em nossas instituições?
Uma psicanálise que não tenha aprendido a compreender a pulsão, o desejo, e a sexualidade humana, fenômenos eminentemente histórico-subjetivos, serve ao racismo, … que sempre abrigou ficções eugenistas. Em contrapartida, uma psicanálise que tenha descoberto a dialética entre história e subjetividade faz um grande serviço … para superação do racismo. (2017, p. 157)
Eu tenho um sonho… de que o dia esperado, desejado e pelo qual lutou Martin Luther King (1963) seja realizado no hoje - em nome de ações reparatórias -, com seu compromisso de ser mais um vetor para a superação do racismo.