SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.55 número103As nuances na e da formação do analista: uma reflexão com base na perlaboração da resistência do supereu, de Thiago da Silva AbrantesPoema índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.55 no.103 São Paulo jul./dez. 2022  Epub 08-Jul-2024

https://doi.org/10.5935/0103-5835.v55n103.16 

Diálogos

As nuances na e da formação do analista: uma reflexão com base na perlaboração da resistência do supereu, de Thiago da Silva Abrantes

Marina Kon Bilenky1 

1Psicanalista, membro efetivo da SBPSP. Ex-diretora do Departamento de Publicações e Divulgação da Febrapsi no biênio 2020-2021. Ex-editora da revista eletrônica internacional Psychoanalysis.today de 2017 a 2022. Autora do livro Vergonha, da série O que Fazer (BLUCHER). São Paulo


Armadilhas na formação

Abrantes, quando pensa sobre a formação psicanalítica, levanta uma questão bastante complexa e instigante a respeito da importância da análise do analista, considerada em relação a seu processo de perlaboração das resistências do supereu, como o trabalho necessário para a aquisição de condições de abarcar, quando conduz a análise de seus analisandos, “os paradoxos e os labirintos criados pela reação terapêutica negativa” (p. 190). Analisar suas resistências superegoicas para poder analisar estas mesmas resistências no outro é possibilitar que o analista não sucumba à atração mortífera da alienação, diminuindo “o risco de seus ideais não analisados atrapalharem a escuta” (p. 181).

O autor traz a questão vital da formação de um analista ético, capacitado a oferecer uma escuta para a alteridade radical do outro. Junto-me a Thiago para ressaltar a importância da análise do narcisismo do analista e da relação com seus ideais, pois é somente quando não estiver dominado pelas idealizações que poderá praticar uma psicanálise que viabilize o encontro do sujeito com seu desejo. Para além de ser uma ética do desejo, podemos afirmar que, em última instância, “a psicanálise é uma ética anti-supereu” (Schaffa, 2022), no sentido de que é preciso romper o circuito mortífero de um supereu que se volta contra o Eu, investido da energia gerada pelas renúncias pulsionais do Id e da dessexualização, para que a análise possa realizar-se, permitindo ao sujeito operar dentro da lógica do desejo.

Abrantes situa o analista em formação como centro de seu discurso. Em minha perspectiva, considero impossível pensar a análise de formação sem ampliar o foco e contextualizar as condições nas quais ela ocorre. Para fins deste comentário, usarei o referencial que me é mais próximo, o das instituições que seguem o modelo da IPA, nas quais a análise é conduzida pelo analista didata e dentro do ambiente institucional próprio a esse tipo de organização.

Começo sublinhando uma frase de Abrantes que me chamou especial atenção, para pensar em como o terreno das idealizações habita o analista em formação, a análise didática e a instituição psicanalítica na qual ela se insere.

Se o analista não ficar atento ao seu próprio narcisismo, identificações superegoicas com o sujeito podem ocorrer, inviabilizando uma análise. A própria situação analítica carrega uma dimensão ideal, de como deveria ocorrer, do que o analista deveria fazer, de todos os esforços que realizou para estar ali, compondo assim todo um cenário que, somado aos objetos parentais que o analista carrega em si, podem cobrir, nublar, uma análise. (p. 192)

Com esse cenário de uma “dimensão ideal” em mente, pretendo construir argumentos para pensar como as idealizações que permeiam a instituição psicanalítica provocam ruídos nos diferentes elos da transmissão da psicanálise.

Seguindo o raciocínio de Abrantes, para que o analista em formação faça uma análise que o habilite a superar suas reações terapêuticas negativas, ele precisará de um analista que, por sua vez, tenha tido a possibilidade de passar por esse mesmo processo de perlaboração. Proponho o exercício de pensar qual é o caminho para o didata chegar e permanecer nesse lugar e os atributos necessários para que ele possa conduzir essa análise. Para atingir a condição de oferecer uma escuta ética, o didata pôde trabalhar a relação com seus ideais em sua(s) análise(s) pessoal(is), reviu posições ideológicas, relativizou suas aspirações ideais e conquistou um modo pessoal de ser analista. Ele aprendeu a perceber que o poder que lhe é atribuído na relação transferencial é intrínseco à situação analítica, e não um atributo narcísico próprio. Durante seu percurso, ele pôde apropriar-se do conhecimento adquirido ao longo dos anos e desenvolveu um raciocínio clínico livre o suficiente para possibilitar a criação de teorias a respeito do funcionamento de seu analisando e do que se passa na transferência, teorias que são testadas, ampliadas ou abandonadas de acordo com o desenrolar da análise de cada um de seus analisandos em particular. Esse analista está sempre em busca de aperfeiçoamento no processo interminável de vir a ser analista e tem a capacidade de perceber entraves no campo transfero-contratransferencial que indiquem a necessidade de ele buscar um terceiro para conversar ou, quando encontra dificuldades pessoais com seus analisandos, fazer uma reanálise. Está especialmente atento para notar quando está identificado com o Ideal do Eu de seu analisando e não se deixa seduzir narcisicamente por essa posição. Está em contato com diversas teorias e modos de pensar a psicanálise para evitar ficar aderido exclusivamente a algum tipo de saber, além de cuidar para não deixar que seus próprios ideais e relações de fidelidade institucional interfiram em sua atuação e funcionem como ruído que impeça a escuta da alteridade daquele que ele analisa, fator que levaria a impasses ou conluios inconscientes.

A análise didática ocorre dentro de um contexto maior. A realidade da instituição de que estamos tratando traz complexidades que podem criar uma série de armadilhas que funcionam como obstáculos para que os analistas possam atingir as metas acima descritas.

Na análise de formação, a dupla analítica está inserida na mesma instituição, em que um aspira a ser reconhecido como analista, enquanto o outro já ocupa um lugar de destaque, o que funciona como mais um elemento que reforça a idealização. Lembremos que o analista didata fez sua análise pessoal com outro didata e assim sucessivamente, e que todos continuam frequentando os mesmos espaços depois de encerradas as análises. Nessa condição, as idealizações e transferências geradas nas análises e supervisões circulam no interior da instituição e podem ser reinvestidas e perpetuadas pelo convívio. Tais relações endogâmicas reforçam e reproduzem laços transferenciais, que determinam escolhas dos analistas em formação identificados com seus analistas e funcionam como forças que concentram com maior ou menor intensidade o poder de determinados analistas e respectivos grupos que convivem no mesmo ambiente. Esse poder, que é alimentado pelas relações institucionais, pode reforçar o narcisismo de alguns analistas, que poderão identificar-se com ideais neles projetados e produzir respostas que levam à alienação.

Piera Aulagnier (1979/1985), ao tratar do tema da paixão na transferência, afirma: “Cada vez que um analista terminou sua própria análise preservando-se um investimento passional em seu próprio analista, esta vivência transferencial tem grandes chances de se repetir naqueles que analisará” (p. 219). Ou seja, restos transferenciais não analisados de membros mais velhos podem ser reproduzidos nas análises que eles conduzem, e, consequentemente, idealizações, crenças e pontos cegos podem ser transmitidos aos novos analistas, perpetuando relações de poder e ideologias por gerações de analistas.

O convívio entre didatas e seus analisandos dentro da mesma instituição pode trazer outras consequências para a escuta durante a análise de formação. Em seu artigo de 1982, Puget e Wender discorrem sobre a dificuldade que o analista encontra para manter a atenção flutuante e a escuta psicanalítica quando a realidade vivida pelo paciente e veiculada em suas associações se justapõe às vivências próprias do analista. Segundo os autores, e comprovado na prática por muitos analistas, quando isto ocorre, a escuta fica contaminada pelas próprias associações do analista, que desvia sua atenção do fluxo associativo do analisando. Puget e Wender tratam de situações de crise, guerras ou pandemias, mas podemos usar essas ideias para pensar na questão discutida aqui. Quando o analisando traz suas experiências da formação para a análise, ele necessariamente tocará em vivências e questões do didata, que poderá perder o foco da escuta, distrair-se, misturar-se ou precisar defender-se de algumas das ideias. Isso pode resultar em sérias dificuldades para o analista, que, se não vier a sucumbir, precisará esforçar-se para manter o equilíbrio e a neutralidade que lhe for possível.

Para acrescentar mais um ingrediente ao intrincado jogo de forças das idealizações, devemos considerar aquela que circula no conjunto das instituições ligadas à IPA pelo fato de esta última ter sido fundada por Freud. É como se fazer parte dessa “linhagem”, pertencer a uma instituição fundada pelo pai da psicanálise, atuasse, em muitos analistas, como um selo de qualidade que garante sua superioridade em relação aos psicanalistas formados por outras instituições. Associadas a outras marcas transferenciais vividas institucionalmente, essas idealizações, que se perpetuam ao longo dos anos, podem cristalizar-se e constituir crenças e ideologias que circulam institucionalmente, sem que sejam questionadas. Aqui, esbarramos em posições ideológicas, filiações, fratrias que podem favorecer a alienação quando determinados ideais e referências deixam de ser elaborados de maneira pessoal, para se tornarem prescrições autoritárias.

Durante minha formação tive a oportunidade de observar um exemplo caricato e triste desse tipo de adesão ao outro idealizado. Frequentei o seminário clínico de um analista didata que, sistematicamente, identificava o paciente apresentado como um feto ou um bebê recém-nascido. A cada semana, um novo caso, mais um paciente, e a interpretação se repetia, gerando perplexidade no grupo. Recentemente, tomei conhecimento da grande repercussão de uma interpretação de Bion, durante uma de suas famosas supervisões, em que ele trouxe a ideia de o analisando ainda estar na fase de desenvolvimento análoga à de um feto. O supervisor em questão repetia a genialidade de Bion alienadamente. Em casos mais leves, idealizações e transferências não trabalhadas podem permanecer na instituição e serem reproduzidas sem que sejam identificadas enquanto repetições não pensadas.

O apego a determinadas teorias e a reunião de grupos em torno das ideias de determinados autores psicanalistas, com a exclusão de outros, são exemplos da força dos eventos que marcaram a história daquela instituição específica, força gerada por intensidades transferenciais que seguem sem elaboração. As teorias reproduzidas sem o trabalho de assimilação do conhecimento pelo sujeito levam à reificação de algumas ideias, que passam a ser consideradas a verdade daquele saber.

Quando, dentro da instituição, criam-se grupos de analistas que se opõem a outros, e cada grupo reivindica o reconhecimento de que sua psicanálise é mais verdadeira, as trocas entre os diferentes pontos de vista ficam empobrecidas, o que reforça idealizações e a necessidade de repetir e copiar conhecimentos, e isso é o inverso do que esperamos de uma formação ética de psicanalistas livres para desenvolver seu estilo pessoal e ter autonomia de pensamento.

A aderência a teorias e a determinados grupos dentro da instituição é uma forma de escapar da angústia que a situação de incerteza e desconhecimento na condução das análises necessariamente provoca no analista.2 Cada análise traz o risco de reatualizar conflitos internos, despertar conflitos do Eu com seus ideais e exigir a elaboração de restos não analisados. Na tarefa de conduzir suas análises, o narcisismo do analista é constantemente posto à prova, e isso necessariamente traz sofrimento. Pertencer a um grupo, aderir ideologicamente a uma teoria, identificar-se com um ideal como forma de obter certezas e escapar da angústia é uma solução que aliena, mas mitiga a dor narcísica. A desconstrução dessa posição é trabalho para a vida toda.

Voltando à formação propriamente dita, retomo uma ideia que elaborei enquanto frequentava as atividades curriculares e a análise de alta frequência durante minha própria formação:

O movimento em direção ao crescimento é paradoxal, regredir para progredir, depender para tornar-se autônomo. Aliado a isso, as dúvidas, incertezas e dificuldades que inevitavelmente nos assaltam na prática da psicanálise e durante o processo de formação também alimentam os riscos de alienação e infantilização que estão sempre presentes. (Bilenky, 2005, p. 254)

O risco da alienação habita cada análise, devido às próprias condições necessárias para ela se desenvolver. E a infantilização pode ser alimentada pela própria instituição, quando não permite que o analista em formação ocupe lugares de fala e participe de decisões que dizem respeito a seus interesses.

Falando sobre as alianças inconscientes, René Kaës aponta para questões que levam a novas considerações:

No decorrer de minha quarta análise, eu descobri que, quando a posição ideológica do analisando é secretamente sustentada pelo analista, então uma aliança inconsciente é concluída, o analista encontrando em um pacto denegativo a ocasião de manter fora do campo da análise seus próprios ideais, suas identificações comuns com o analisando. Ela oferece, assim, a esse último, um potente suporte metadefensivo. As alianças inconscientes que operam então no campo transfero-contratransferencial devem, em primeiro lugar, se desatar no analista. Esse trabalho de desvinculação é uma das razões para a presença do analista de controle. (Kaës, 2016, p. 221)

Nesse “depoimento”, Kaës reforça a ideia de que a análise em si não garante a saída e a resolução dos problemas postos pelos perigos da alienação que atravessam o campo psicanalítico e convoca outros dispositivos institucionais para lidar com esse tipo de situação. É preciso que o terreno dos ideais seja constantemente pensado e analisado em todos os âmbitos da organização e em todas as suas camadas, o que dificilmente ocorre na prática.

Entrar em contato com uma diversidade de psicanalistas, de teorias, com diferentes perspectivas nas leituras teóricas, manter trocas entre pares, é abrir a possibilidade para a percepção de que não há uma forma ideal de ser psicanalista ou uma condição ideal para conduzir uma boa análise. Esse contato com diferentes saberes pode dar maior consistência ao desenvolvimento de um pensamento próprio menos sujeito a ser dominado pelo terreno dos ideais, e ao entendimento de que cada análise é a análise possível naquele momento e para aquela dupla em particular.

Diluir as transferências circulantes dentro das organizações psicanalíticas, geradas pelas análises didáticas, retirando dos didatas a função de exclusividade em relação à condução de tais análises, também poderia dissipar algumas das dificuldades aqui tratadas. Abrir a porta da instituição para a interlocução com outros saberes, outras instituições e grupos diferentes também é uma maneira de receber um olhar de fora, que traga novas perspectivas e questione verdades institucionais que se naturalizaram e circulam sem ser notadas por seus membros.

No que diz respeito à análise pessoal e seu poder de libertar o sujeito do jugo superegoico alienante, volto a Abrantes para dizer que ele apresenta, nas entrelinhas de seu trabalho, o que considero a solução mais significativa. Para além do conhecimento que ele tão bem desenvolve visando o entendimento e a superação da reação terapêutica negativa na análise, é em sua busca pessoal de estudar e se apropriar do tema que o assombra que ele aponta o caminho efetivo. A esperança de vencer a luta contra as idealizações paralisantes e a alienação que delas decorre está na responsabilização pessoal de cada psicanalista pelo cuidado de perceber as armadilhas existentes no próprio psiquismo, presentes em cada análise e que circulam dentro da instituição psicanalítica.

Quando Abrantes se debruça sobre seu tema, ele se responsabiliza pela própria análise e pelo desenvolvimento de sua escuta e descobre vias para vencer resistências alienantes. Ele oferece uma teoria e orientações técnicas que servem para seu trajeto pessoal e para o trajeto dos psicanalistas de modo geral. Ele se torna ativo e sujeito de sua própria superação.

A escuta responsável e ética dirigida no sentido de ajudar o sujeito a encontrar-se com a verdade de seus próprios desejos é algo a ser buscado continuamente no trabalho cotidiano de qualquer psicanalista, independentemente de sua experiência e tempo de exercício profissional. A responsabilização por tal escuta precisa acontecer em todas as camadas, começando pelo funcionamento da instituição como um todo, passando pelos diferentes espaços institucionais e chegando a todo psicanalista que pretenda conduzir uma análise que liberte o sujeito dos grilhões alienantes de seus ideais.

2 “O desejo de alienar assim como o desejo de autoalienação não têm apenas como única fonte a esperança de tornar menos insistente, menos frequente, menos dramática, a experiência da dúvida e do conflito resultante entre o Eu e seus ideais … O que visam estes dois desejos - objetivo que revela a sua desmesura - é a exclusão de qualquer causa de dúvida, de conflito e de sofrimento. Para preservar esta exclusão, o Eu se vê obrigado a condenar à morte as partes de sua própria atividade de pensar que lhe permitem distinguir-se do que seria apenas uma atividade de repetição, de memorização e de retomada em eco de um ‘já-pensado’ de maneira definitiva por um outro” (Aulagnier, 1979/1985, pp. 12-13).

Referências

Aulagnier, P. (1985). Os destinos do prazer. Imago. (Trabalho original publicado em 1979) [ Links ]

Bilenky, M. K. (2005). Formação ou formatação. Jornal de Psicanálise, 38(69), 251-258. [ Links ]

Kaës, R. (2016). A ideologia é uma posição mental específica. Ela nunca morre (mas se transforma). Jornal de Psicanálise, 49(91), 207-223. [ Links ]

Puget, J. & Wender, L. (1982). Analista y paciente en mundos superpuestos. Psicoanálisis, 4(3), 503-522. [ Links ]

Schaffa, S. (2022). Sobre a ética da formação psicanalítica. gep Rio Preto e região, comunicação oral em evento on-line, ocorrido em 17/9/2022. [ Links ]

Recebido: 06 de Outubro de 2022; Aceito: 10 de Outubro de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.