JP - Luiz, primeiro queremos lhe agradecer por aceitar o convite para esta entrevista. Gostaríamos de começar contando sobre o tema do próximo número do Jornal, “Psicanálise em (De)formação” e ouvir as associações que essa temática lhe desperta.
LM - Associações… Imagino que pensaram no meu nome devido aos artigos que escrevi sobre análise didática. Não sei o que poderia dizer de novo. Já está tudo publicado. Há um artigo básico sobre essa questão no International Journal de alguns anos atrás. O título do artigo é “Subservient analysis” (2003), e a ideia que ali proponho é a de caracterizar a análise didática como subalterna a regras externas, obediente a uma disciplina que não tem nada que ver com a psicanálise. Nesse sentido, é uma deformação, o que se ajusta ao número que vocês propõem para o Jornal. O primeiro esboço desse trabalho foi apresentado em um pré-congresso da IPA sobre análise didática. Atualmente o pré-congresso é aberto para o público em geral, mas naquela época, não. Elias Mallet da Rocha Barros ocupava uma função diretiva naquele congresso, e, sabendo das minhas ideias, das minhas críticas, convidou-me para falar. Então, eu era ali uma avis rara, por não ser analista didata. Apresentei uma espécie de esboço, embrião desse artigo que depois foi publicado no International. Para escrever esse artigo, consultei uma ampla bibliografia mesmo assim, escapou muita coisa. Fui alinhavando as críticas, pegando por vários ângulos. A situação da análise didática é peculiar porque não se encontra nenhuma publicação que a apoie ou elogie. Todos os congressos sobre análise didática são sobre críticas, mas a análise didática, propriamente dita, nunca muda. Então, os congressos são feitos como uma espécie de autocomiseração. A ideia central que apresento naquele artigo, da deformação existente na análise didática, é que ela é completamente incongruente em relação a todos os princípios e preceitos da psicanálise. A psicanálise é uma relação ancorada na liberdade, na interação, na abertura para ambos inconscientes que deve partir unicamente da relação entre o par. Nada externo deve incidir sobre ela, no entanto a análise didática é uma análise organizada “de fora”. Lá eu escrevo: “quando você começa a análise didática, você já sabe aonde vai chegar”. Quer dizer, o ponto de chegada é conhecido a partir do ponto de partida. Então, é uma análise “para chegar”. É possível, às vezes, usando a metáfora da viagem, que você aprecie a paisagem, mas você corre para chegar logo ao ponto final. Isso fica mais caricato quando se segue as regras de tempo prescritos: não sei bem, 500 horas, quatro anos?
JP - Cinco anos.
LM - Então, tem histórias lá na sociedade do sujeito que fez a quingentésima hora e tchau. É uma análise incongruente já que sua determinação é externa. O analista didata tem, entre aspas e exagerando, discípulos. Os discípulos são os seus analisandos. É a sua vitrine, não é? Então, você imagina se um analisando de Fulano começa a aprontar. Ele deve ficar apavorado. Os colegas vão começar a dizer “só podia ser, está se analisando com tal Fulano: está na cara”. Então, há os conluios para que isso não aconteça. O analisando é uma espécie de sentinela avançada do prestígio do analista didata que até pode funcionar como grife. Cria-se uma espécie de policiamento contínuo monitorado, até mesmo, pela Sociedade. Isso já foi muito mais intenso e mais profundo. Vocês devem saber que até os anos 1950, 1960 (acho que não existe mais em nenhuma sociedade), mas na Britânica eu sei que existia, havia o “report”, quer dizer, o analista didata dava uma informação ao conselho educativo, sobre a evolução da análise: então, dá para imaginar o quanto o analisando se omitia. Há um caso muito interessante que aconteceu num congresso em Barcelona. Na plateia levantou-se um senhor, um conhecido analista americano, foi para o palco e disse: “eu menti a minha análise inteira. Eu sou homossexual. Como é que eu ia dizer que eu era homossexual?” Ficou na história. Daí, foi um bafafá e começou uma mudança mais de fora para dentro, dentro das sociedades de psicanálise. Não sei o que aconteceu aqui em São Paulo. Não acho que está relacionado a isso, mas, curiosamente, aqui houve uma grande abertura. Só para pegar essa questão das discriminações, eu me lembro de uma vez ter visto, quando fiz parte da comissão de seleção, um homem extremamente competente e que tinha um companheiro há 10, 15 anos. Eu disse que era uma ótima indicação para a sociedade. Ele não foi aceito por ser homossexual. Isso mudou. Não sei se cabe dizer na entrevista, porque é uma opinião muito pessoal, mas eu diria que mudou, particularmente, por causa do trabalho de um membro da sociedade, uma pessoa extremamente competente, capaz de criar um clima social inclusivo em volta dele, que deu muitas aulas, criou grupos de estudos etc. Acredito que a relação com a homossexualidade na sociedade, a hostilidade, diminuiu e o ambiente tornou-se receptivo.
JP - O fato deste pretendente não ser aceito pela questão da homossexualidade foi uma questão explicitada ou houve um deslocamento dessa questão para outras coisas? Era dito abertamente?
LM - Não. Faz bastante tempo. A seleção é um trabalho inquietante porque você sabe que está, de certa maneira, decidindo sobre o destino das pessoas. Isso era bastante angustiante para nós, devíamos criar critérios, pois a sociedade não os fornecia. Isso é algo que sempre perguntei às comissões de seleção. O que a sociedade quer? Que tipo de gente quer formar? Qual é o espírito que deve presidir a escolha? E nunca recebi uma resposta. A gente ficava muito no escuro. Essa pessoa foi reprovada por ser homossexual, apesar dos seus atributos. Evidentemente, hoje, isso não ocorreria. Penso que isso está ligado a um aspecto colateral da análise didática ou um subtexto que reza que ela vai curar as pessoas, como se fosse uma terapia mais profunda. Ora, análise didática não é para curar ninguém. Análise didática, ou melhor, a análise de quem deseja ou decide tornar-se analista é para preparar a pessoa para ser analista: não interessa se ele é homossexual, se não é, se casou três vezes, se é solteirão. Evidentemente, há limites para o comportamento da pessoa, mas você procura saber se o sujeito é dotado ou não para se tornar psicanalista. Basta olhar, na nossa sociedade, a quantidade de “patologias”: alguns são bons analistas, escrevem e tem traços de personalidade, que facilmente seriam classificados como narcisistas, às vezes, visíveis, não é? Então, essa é uma outra deformação, como se você fizesse análise não para capacitar o sujeito a se tornar analista e continuar sua autoanálise, mas para ele “melhorar”.
JP - Em um de seus artigos você propõe a ideia da análise didática como um enactment institucional.
LM - Esse foi o último trabalho, gostei muito de escrevê-lo. Todos esses trabalhos levam um certo tempo, você tem a ideia, vai estudar um pouco, deixa na gaveta. De uns 20 anos para cá, o enactment, a ideia desse conluio entre o analista e o paciente em torno de uma questão que importunaria, para dizer o mínimo, aos dois, vem sendo estudada em extensão e em profundidade. Particularmente, no Brasil, temos um colega que publicou muito sobre isso que é o Roosevelt Cassorla. Meu artigo chama-se “Training analysis as institutional enactment”, tem um cunho didático, pedagógico, e foi escrito a convite de um colega da Alemanha chamado Peter Zagermann, que organizou um livro sobre esse tema (questões da formação analítica) chamado The Future of Psychoanalysis: the debate about the training analyst system, publicado em inglês pela Karnac. Nesse artigo, faço inicialmente um resumo das minhas críticas anteriormente descritas sobre a análise didática. Na segunda seção, falo sobre o que é uma análise habitual, o que nela ocorre comparando-a com a análise didática. Depois, faço um estudo sobre o enactment. A conclusão torna-se lógica. Se as coisas são assim, como está descrito, então, é evidente que a análise didática torna-se um enactment, um acordo que não pode ser rompido, entre o analista didata e o analisando.
Sobre o enactment há muita especulação teórica. É considerado, por um lado, impossível de ser evitado e, por outro, de possuir um efeito terapêutico. Por que isso? Porque ocorre de comum acordo, a paralisia da análise. Roosevelt usou um termo feliz: “analista e paciente se engancham” (2013); há um acerto inconsciente, entre os dois para não abordar uma determinada área que afeta a ambos. É uma área relacionada com questões recíprocas, paralelas e convergentes entre eles. Mas isso tem um limite. Cassorla chama o período em que esse acordo persiste, de enactment crônico, mas chega um momento em que a análise torna-se impossível. Emerge um sentimento de que há algo estranho e, então, ocorre um conflito aberto entre analisando e analista: é o enactment agudo. Se esse enactment agudo não vier a interromper a análise, ele consegue criar uma situação crítica que leva analista e paciente a se debruçarem sobre o que estava acontecendo: a análise se enriquece. Então, parto do princípio que isso nunca pode ocorrer na análise didática: é um enactment crônico, na qual não pode ocorrer o enactment agudo revelador do conluio existente, porque, aí, então acabaria a análise, o analista didata perderia a sua função e o analisando, todo o tempo e o esforço que empregara.
JP - Vemos muitas brigas sobre esse tema entre os analisandos e os analistas. Isso acaba se tornando um importante tema na análise didática.
LM - Me digam mais. Vocês veem muitas brigas?
JP - A questão institucional ocupa um espaço nas análises didáticas, pelo fato das condições serem impostas. Percebemos que os colegas precisam muito falar disso e, às vezes, o analista didata está na posição de receber essa crítica, essa queixa. Você não vê isso acontecer?
LM - É difícil, porque é muito persecutório. Ser muito aberto com o analista didata, deixar explícitas todas as limitações que você vê nele, na análise, as insatisfações etc., é difícil porque essa análise, além de visar, evidentemente, a introjeção da função analítica, em paralelo te impulsiona à obtenção de uma determinada posição. Eu brinco dizendo que a aspiração de todo membro associado é se tornar analista didata. Então, você faz todo o percurso para se tornar analista didata, que é a apoteose, não é?
Houve um momento aqui na SBPSP no qual ocorreu uma intervenção da IPA, por razões várias: havia um número muito restrito de analistas didatas, que tinham uma espécie de reserva de mercado e não permitiam que outras pessoas se tornassem didatas ou criavam grandes dificuldades para isso. Vou dar um exemplo pessoal. Quando voltei da Inglaterra, tinha feito o meu doutorado e minha análise, frequentado o instituto da British Society, me propus, então, a dar aula no Instituto. O grupo que decidia quem podia dar aula pediu um currículo. Mandei. Depois disseram: queremos cinco cópias (talvez, uma cópia para cada um). Aguardei um tempo, mas não vinha nenhuma resposta. Então, enviei uma carta e obtive a seguinte resposta: Você podia mandar mais 10 cópias? E chegou a 15… Era uma exclusão programada. Esse meu caso é caricato.
Voltando, então, à interdição, motivada por uma denúncia à IPA. Foi eleito um novo presidente que tinha um certo aval dos dois grupos, o doutor Chain, que era também um apreciador e colecionador de arte. Uma pessoa muito gentil, que fez a transição: ampliou-se o número de didatas e criou-se um dispositivo em que o analista didata não podia mais ter sete ou oito candidatos. Limitou-se a o número a cinco, creio. Só que a sociedade, de certa maneira, contornou a questão, inflacionando o número de didatas. Eu tenho a impressão de que, à época havia oito, 10, acho que hoje deve ter, uns 40, 50.
JP - Tem em torno de 80 didatas.
LM - Então, “resolveu-se o problema”. Imagino que muitos não devam ter pacientes em formação. Estou um pouco fora, mas, evidente, se existem 80 analistas didatas, eles representam 10% dos membros, enfim, tem 600 membros na sociedade?
JP - 700. Membros filiados em torno de 350. Mas, alguns desses, já finalizaram a análise didática. Então, certamente, desses 80, deve haver pessoas que já não atendem, porque na nossa sociedade, a função didática é vitalícia. Não é assim em todos os lugares. Gostaríamos de escutar um pouco do que não está publicado, qual foi o embrião das suas ideias e da sua crítica a respeito da análise didática? Podemos imaginar que isso parta da sua experiência na França, na Inglaterra e também na nossa instituição. lm - O meu interesse por esse problema tem várias raízes. A questão do poder, nas sociedades de psicanálise, um poder mal-usado, é um problema contínuo. Um dos elementos que afetou o mundo psicanalítico foi a proibição de psicólogos se tornarem psicanalistas. Então, São Paulo, nesse ponto, foi pioneira: Virgínia Bicudo, Lygia Amaral e dona Judith Andreucci não tinham formação médica. Houve uma série de analistas no Rio de Janeiro que, quando foi imposta essa norma, foram estudar medicina. Nunca se interessaram por medicina. Nunca exerceram, mas pagaram o pedágio.
Não sei como é em outros países, mas acho que isso tende a desaparecer, sempre há um núcleo que procura assumir o monopólio do poder. Isso, a luta pelo poder, é algo esperado em qualquer instituição. Há sempre grupos que querem alcançar posições de relevo, que querem escolher um certo rumo, determiná-lo etc. Como em toda instituição, na nossa ocorre uma luta de grupos. Isso é esperado, faz parte da dinâmica de qualquer Instituição e só se torna inquietante quando a disputa não se dá em favor da psicanálise. Banir psicólogos não era a favor da psicanálise, simplesmente visava excluir um grupo, em vez de provocar um debate de ideias. Então, voltando à questão, saí do Brasil em 1964 e tive uma bolsa para estudar e trabalhar na França, primeiro em Paris, no hospital Saint Anne e, depois, fui para Boneval, onde trabalhei com Henry Ey. Depois trabalhei em Genebra com Ajuriaguera, pioneiro de psiquiatria psicodinâmica de alta qualidade, onde trabalhei e aprendi muito. Naquela época, em Paris e Genebra a questão da teoria seguida pelo analista era muito mais importante do que a da análise didática.
O que realmente me abriu o olho para o problema da análise didática foi uma situação pessoal de um amigo, que estava fazendo uma análise extremamente exitosa e, ao longo dela, interessou-se por psicanálise. Quis se tornar psicanalista e, do dia para a noite, foi obrigado a mudar de analista. Isso eu diria que foi o starting point. Há aí algo de muito errado mesmo: como é que você impõe que análise seja de fora para dentro? Há um sujeito em análise e quando ele está em análise essa análise deveria ser prestigiada, deveria ser estimulada. Percebi que havia toda essa estrutura de poder nessa maneira de pensar, uma ideologia elencada ao status do analista didata. O analista didata está em todas as comissões, tem poder em todas as ações da sociedade, há uma concentração enorme de poder. Embora eu fale de poder, esse não é o maior problema, nem o econômico. É realmente a deformação da análise. Essa é a minha visão. O caso desse meu colega, demonstra, na verdade, que uma sociedade desrespeita a análise. Nem tempo para o desmame esse sujeito teve.
JP - Você nos contou da sua experiência na França, teve também uma passagem por Londres e sua experiência aqui no Brasil. Se jogarmos com o termo de-formação sob um aspecto não pejorativo, considerando que a formação de um analista o deforma, modifica seu contorno, lhe dá novas formas, o que você acha que, de suas experiências, te deformou neste sentido? lm - A deformação tem um sentido pejorativo, não é? Talvez, se vocês disserem reforma, reformulação… Essas experiências foram muito diferentes porque os sistemas hierárquicos são muito diferentes. No Hospital Saint Anne, o grande professor entra na sala de aula, o anfiteatro, com uma capa azul; todos os alunos levantam e o sujeito é o grande catedrático. Lá permaneci mais no campo da psiquiatria, frequentando os serviços psiquiátricos de orientação psicodinâmica, e também fiz psicodrama. Aonde tinha alguma coisa para fazer, eu ia.
Depois, trabalhei em Bonneval: o hospital era uma velha abadia reformada do século 14. Possuía uma sala com uma abóbada imensa de pedras e o Henry Ey ficava ali junto a uma enorme lareira, muito ciente de sua importância. Também era um sistema hierárquico. Percebi que todos os assistentes eram mais ou menos subalternos, subservientes, mas é o sistema para você galgar, dentro da França, postos e ser nomeado médico nos hospitais.
Em Genebra, era diferente porque fui trabalhar na universidade. Comecei a ter bastante contato com a psicanálise organizada da Suíça. Eu estava instalado lá, ganhando a vida. Aí, conheci um sujeito sensacional chamado Ernani Braga, diretor do serviço de educação médica da Organização Mundial da Saúde. Ele me chamou para conversar e disse: “Nós estamos patrocinando uma escola médica que queremos que tenha uma nova visão do ensino da medicina em Brasília. Nós estamos chegando no quarto ano e precisamos ter um professor de psiquiatria. Você não quer ir para lá?”. Eu estava tão bem lá em Genebra, mas achei que deveria voltar para o Brasil.
Então, fui para Brasília e peguei a escola no seu quarto ano de existência. Organizei todo o serviço de psiquiatria dinâmica com aquilo que eu tinha aprendido. Convidei Virgínia Bicudo para dar aula lá e ela estabeleceu o núcleo de psicanálise de Brasília. Eu já tinha feito análise em São Paulo antes, mas em Brasília fiz minha análise didática com ela. Fiz análise em Genebra com uma senhora chamada Marcelle Spira, a única kleiniana de Genebra. Virgínia ia à Brasília um certo número de dias, fazia a análise concentrada dos candidatos e voltava para São Paulo. Outros analistas iam lá para fazer supervisão e, além do curso de psiquiatria, desenvolvi um curso de relação médico paciente, influenciado pelos grupos de Balint.
Não foi fácil, por várias razões, entre elas o clima político dos anos 1970, 1971 a 1976. Chegou um momento que tive muito atrito com o reitor, que era um militar da marinha, um homem muito truculento. Minha mulher tinha se formado em arquitetura lá em Brasília e pensamos que era o momento de deixar Brasília. Consegui uma bolsa para Tavistock, em Londres, para estudar Psicoterapia de Família de orientação psicanalítica, da qual resultou meu doutorado. O trabalho em Brasília no hospital da cidade satélite de Sobradinho que servia à Universidade me alertara para a importância do estudo das relações familiares. Ela foi para fazer o seu doutorado. Frequentei os seminários e grupos de estudo da Sociedade Britânica, com Betty Joseph, Rosenfeld, Sidney Klein e fiz análise com Donald Meltzer. A sociedade inglesa já tinha passado por grandes crises, mas a questão da análise didata não era discutida. Uma das razões é que o candidato tinha uma espécie de, vamos dizer assim, status privilegiado. Quem pode falar bem disso é Liana Pinto Chaves. Você era bem paparicado, recebia pacientes da clínica, pagava-se muito menos pelas supervisões e pela análise. Mas era uma sociedade bem rígida, essas questões não eram discutidas.
JP - Você estava nesse percurso bem interessante, na psiquiatria clínica e, daí, partiu para a psicanálise. Como é que você pensaria nessa mudança da psiquiatria clínica para a psicanálise? O que, dessas experiências todas que você viveu, te levou no sentido da psicanálise ?
LM - Eu queria só frisar que essa minha fala, só têm interesse à medida que situa e descreve uma época, um momento, falar um pouco da história e da mentalidade da psicanálise. É um depoimento no qual os aspectos pessoais devem ficar em segundo plano.
JP - Achamos interessante porque você fala do lugar da sua experiência de formação. Nos parece que o estudo que você fez desde as décadas de 1980, 1990, sobre análise didática vem desse percurso anterior. E não só pela análise didática. As experiências formam. Achamos que isso conta. lm - Vocês tocaram em um ponto sobre o qual eu não me havia dado conta. Já disse antes que a minha posição crítica em relação a análise didática, meus escritos são voltados para mostrar um aspecto do funcionamento patológico do sistema. Só que o que vocês falaram agora, me fizeram pensar que isso não pode estar dissociado da minha personalidade, da minha história de vida e da minha maneira de pensar. Eu a dividiria em dois aspectos. O primeiro é uma visão sobre a injustiça do mundo que me tornou, embora o termo esteja muito desgastado, um homem de esquerda, de visão do mundo propugnando mudanças sociais, embora vindo de uma família burguesa. Eu vivia um conflito constante. De um lado essa aflição com a injustiça e, de outro lado, a minha experiência inicial com a medicina, que não foi boa. Os anos iniciais de estudo de medicina eram muito chatos e chegou um momento em que eu disse: “eu vou largar e vou estudar cinema”. Fui ao consulado italiano e pedi uma bolsa para ir para a Itália. Eu tive azar. O sujeito que dava a bolsa era amigo íntimo do meu pai. Eu não sabia… Telefonou para ele: “O teu filho apareceu aqui. Ele quer largar a medicina”. Imagina para um judeu imigrante que queria ter um filho médico…
JP - O status que é um filho médico nessas circunstâncias… lm - Aí, o meu pai veio falar comigo e me propôs um acordo. Ele disse: “você termina e se, quando terminar, for isso o que você quiser, eu pago todos os teus estudos aonde você quiser”. E o que aconteceu foi que, ao longo do curso de medicina, em paralelo, eu escrevia sobre cinema, frequentava muitos cursos de cinema e lia sobre o tema. Isso, de certa maneira, me preencheu. Eu procurava, dentro da medicina, uma especialidade que se afastasse um pouco do seu lado “mais concreto”, o que é uma injustiça porque na medicina o raciocínio clínico é muito bonito e elegante. Assim, fui para psiquiatria, que possuía uma aura de produção intelectual: a loucura, a neurose, Freud, o surrealismo, foi o que me atraiu. Comecei a fazer análise e fui casando a psiquiatria com a psicanálise a partir dessa retirada honrosa do campo médico mais habitual.
JP - Desde o início, não é? A psiquiatria e a psicanálise vieram juntas para você.
LM - A psiquiatria e a psicanálise vieram junto com o interesse, por áreas intelectuais correlatas.
JP - Eu ia brincar um pouco com a ideia de casamento da psicanálise com a psiquiatria. Além delas duas, você fala também de outros amores: arte, poesia, cinema. O quanto essas amantes, se é que podemos chamar assim, o quanto elas te formaram, o quanto fizeram parte desse casamento? lm - Muito. E isso tem que ver com o fato de ser filho de imigrante e de querer muito me inserir na sociedade por esse viés. Desde cedo eu ia à Bienal. Algumas foram extraordinárias. Guernica, que nunca saiu da Espanha para lugar nenhum, esteve aqui em São Paulo. A cidade era, naquela época, de certa maneira, provinciana. Você ia assistir um filme de arte, conhecia a metade das pessoas da plateia. Nas bienais havia ciclos de cinema polonês, tcheco, entre outros… Havia um ambiente de estímulo para quem se interessasse pelo aprimoramento intelectual, artístico, e a ideia de ler continuadamente sempre esteve presente, de certa maneira, incentivada também pelos meus pais. Não é à toa que fiquei tão interessado pelo Meltzer, um analista muito voltado para o aspecto estético do trabalho analítico. O envolvimento, a beleza (não a puramente formal), mas a emoção diante do encontro, da abertura do outro.
Eu me sentia muito ambivalente entre ter uma profissão burguesa respeitada, por ser um filho de imigrante e, ao mesmo tempo, ter uma atividade intelectual e política mais descomprometida com o perfil conservador. Isso fez com que eu me aproximasse muito de intelectuais da USP, da sociologia, da literatura, e isso se acentuou mais quando convidei o Sartre para vir para São Paulo. Uma maneira também de conseguir aliar essas tendências foi trabalhar no departamento de medicina preventiva da Escola Paulista de Medicina, dirigido por um professor muito especial: Valter Leser. Ele era uma pessoa peculiar, porque mesmo sendo conservador, protestante, era também de coração e alma, um sanitarista. Então, só tinha gente de esquerda trabalhando com ele.
JP - Voltando ao tema formação de um analista, quando olha o modelo que temos na SBPSP, quais elementos você acha que favorecem e quais atrapalham a formação de um analista capaz de enfrentar os desafios atuais? lm - É difícil dizer. É difícil encontrar, ou propor um modelo ideal. Por um lado, penso que se deveria estimular o estudo dos autores básicos e a história da evolução do pensamento analítico. Eu daria uma importância a exegese dos textos básicos. Por outro, acho que a sociedade oferece um grande espectro de cursos, o que eu considero bastante louvável. Creio que se deveria abolir a análise didática, simplesmente. Tenho uma proposta polêmica, que também nunca foi experimentada e é arriscada: as regras para a formação, a frequência, por exemplo, nasceriam do interior da análise.
A minha fé na análise me faz pensar que o sujeito que quer ser analista, irá, de modo próprio caminhar para uma análise de alta frequência. Você não precisa impor. Ele vai sentir uma necessidade, se quiser autenticamente ser analista. Se está interessado, se está atrapalhado com os seus pacientes, vai querer ter mais sessões. Então, a minha ideia é que nem se começasse com um número prescrito de sessões. Talvez seja uma proposta pouco idealizada, não é? Mas, o analista pode dizer ao seu analisando: “olha, não quero trabalhar uma vez por semana. Se quiser fazer análise comigo o ritmo é outro”. Não porque a sociedade quer. Muitos colegas dizem: “eu não fico confortável em trabalhar menos de duas vezes”; outro quer três; outro quer quatro. Acho que à formação deveria ser deixada essa liberdade cujo cerne é a aposta na análise, na transferência, na contratransferência. Mas seria contra os regulamentos da IPA. Há enormes vantagens em você pertencer a IPA e a IPA excluiria uma sociedade que fizesse isso.
JP - Mas não nos impede de pensar, de imaginar. Você tem essa crítica à análise didática há muitos anos. Ela é pública, é conhecida por muitos de nós, mas você também se manteve dentro da instituição, da ipa e da Sociedade de São Paulo. Como é sustentar esta posição de dentro da instituição? lm - Essa é uma questão bem importante e fácil de responder. O combate é dentro, não é? Eu, apesar da enorme pressão de colegas, sempre me recusei a me tornar analista didata porque, daí, eu seria obrigado a seguir as regras. Entretanto, não achei que deveria sair da Instituição, pensei que deveria colaborar para a Instituição ir se aprimorando. Então, a minha crítica à análise didática é eficaz justamente porque a faço do interior da Sociedade e, também, porque meu trabalho é respeitado.
JP - Lendo seu trabalho, percebemos que você estudou muito isso por muito tempo. Você acha que a discussão sobre a análise didática é um tabu hoje em dia?
LM - Não. Tabu não. Eu diria que é cíclica e que, nesse momento, estamos em uma época de acomodação aos três modelos da IPA: o uruguaio, que nunca entendi direito, o nosso e o francês. Houve uma espécie de acordo de cavalheiros. Então, você pode adotar um ou outro. De vez em quando, há um pico de inquietude e surgem propostas novas. Uma, que não foi adiante, é a de fazer com que, automaticamente, todos os membros efetivos pudessem ter a função didática. É uma maneira de atenuar o poder do analista didata, mas a raiz, o nó da minha crítica reside na ideia de “análise de formação”. Cria-se uma análise, paralela, com uma finalidade diferente daquela análise do comum e que se tornará antianalítica, queira ou não, no momento que recebe esse epíteto: será regulamentada, análise fora dos princípios analíticos básicos. A deformação reside em postular a existência de uma análise desse tipo.
JP - Se fizermos um exercício de se descolar das condições atuais, por exemplo, do que admite ou não. Se imaginarmos que daqui a 50 anos a psicanálise sobreviverá, como você imagina que será a formação de um analista?
LM - É muito difícil fazer uma previsão desse gênero. Veja como fomos atropelados nos últimos três anos. Os puristas que atacavam a análise feita por via remota não hesitaram em aderir a ela, entre outras razões - eu sempre digo isso, e ninguém gosta de escutar, porque precisavam ganhar a vida, ganhar o seu pão. Acho que os analistas de crianças tiveram mais dificuldade, mas mesmo os de família e de casal puderam trabalhar com mínima interrupção. Pouquíssimos analisandos recusavam trabalhar por via remota e até recebemos pacientes novos. Retornei há três semanas para o atendimento presencial no consultório: é uma alegria, um sentimento de bem-estar. Então, voltando à questão: não sabemos. A polêmica atual presente na IPA é saber se é possível, ou não, fazer análise de formação por via remota, na China, no Cazaquistão.
JP - E qual é a sua aposta, uma vez que fizemos análises remotas?
LM - Como é uma solução de facilidade, creio que, analista e analisando, vão procurar acomodações. Escrevi um trabalho sobre análise à distância no qual dou enorme valor à incidência da ausência do corpo nesse tipo de atendimento, e acentuo também como as falhas (interrupção do sinal, etc.) do próprio sistema se tornam construções defensivas do paciente (e do analista) que são incorporadas ao trabalho e não analisadas, uma vez que passam a fazer parte da rotina analítica naturalizada: congelamento da imagem, distorção da voz etc.
JP - Sim, há o atraso na fala, às vezes, você fala e o paciente não ouve instantaneamente.
LM - Há situações das mais variadas, como a do paciente que não encontra um lugar privado, adequado, então, vai para o banheiro etc. Essa situação ilustra a questão de procura de privacidade. Mas é o próprio significado da privacidade, de sua construção na relação analítica, que se perde no aspecto anedótico representado pela procura atabalhoada de um local adequado.
Então, falar como é que vai ser daqui a 50 anos é um exercício de science fiction. Observo agora a facilidade com que os pacientes viajam e pedem com naturalidade para fazer a sessão à distância. Se ficam doentes, ainda mais com covid-19, não tem outro jeito. Mas como distinguir isso de uma atuação? Há uma pressão grande para se ter, pelo menos, uma parte da análise por via remota e, se isso acontecer, acho que será uma perda, porque é uma acomodação que se tornará rotina e, com isso, perde-se o significado da opção. Então, vamos achando natural, cômodo. É uma maneira de não perder o cliente. É uma maneira de não penalizar o cliente. Esse é um bom laboratório, essa volta ao trabalho e às tentações de ambas as partes de manter esse contato à distância.
JP - Para encerrarmos, gostaríamos de dizer que foi um privilégio estar com você nessa tarde, escutar sua história e testemunhar a sua fidelidade a suas ideias. Não sei se você já ouviu isso, há um tempo se cunhou a ideia de que o Jornal de Psicanálise é uma caixa de ressonância da instituição e, assim, como pertence ao instituto e procura escutar os novos analistas que chegam, também é um veículo da instituição que publica, que conversa com analistas mais experientes. Então, quem sabe, a partir também da nossa conversa e da publicação das suas ideias, o Jornal possa servir, de fato, de caixa de ressonância para que mais pessoas conheçam o que você acabou de expor aqui, e que possamos estimulá-las a conversar sobre isso. Enfim, talvez seja esse o nosso desejo.
LM - A ideia da caixa de ressonância me é particularmente grata, porque vai chamar a atenção de colegas mais jovens para a existência dessa questão, e talvez deixem de encarar a análise didática como fato consumado. Eu gostaria de ser lido como alguém que está trazendo um problema, uma questão. Ninguém precisa pensar como eu. Mas também não precisa aceitar a analise didática como algo indiscutível. Desejo que se pense em formas variadas e imaginativas de levar alguém a tornar-se analista.
JP - Essa é a questão: manter o pensamento vivo sobre a formação, sobre a psicanálise. Você traz um exemplo que suas ideias são fiéis à psicanálise, independente de escola ou de instituições. Gostaríamos de agradecer mais uma vez pela sua disponibilidade em conversar conosco.