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Revista Psicopedagogia
versão impressa ISSN 0103-8486
Rev. psicopedag. vol.28 no.85 São Paulo 2011
ARTIGO DE REVISÃO
A entrevista de anamnese sob a ótica do referencial teórico psicodramático: uma contribuição para a psicopedagogia
The anamnesis interview under the optic of the psycodramatic theory: a contribution to Psychopedagogy
Maria Inês Paton Ramos
Psicóloga, Psicodramatista, Coaching de Carreira e Psicopedagoga, São Paulo, SP, Brasil
RESUMO
Para Jacob Levi Moreno, idealizador da teoria psicodramática, o indivíduo nasce em Sociedade e necessita dos outros para sobreviver, sendo apto para a convivência com os demais. E é concebido e estudado por meio de suas relações interpessoais. O presente artigo tem como objetivo abordar alguns referenciais teóricos da teoria psicodramática: os conceitos de matriz de identidade, da teoria dos papéis e do átomo social e propor esta ótica teórica ao psicopedagogo para auxiliá-lo na compreensão da história de vida do paciente, durante a entrevista de anamnese no diagnóstico psicopedagógico.
Unitermos: Anamnese. Psicodrama. Desempenho de Papéis.
SUMMARY
For Jacob Levi Moreno, founder of psychotherapy theory, the individual is born in society and he needs others people to survive, he is able to live with others people. It's designed and studied through their relationships. The present article aims to a talk about some theoretical theory of psychotherapy: the concepts of identity matrix, the theory of roles and the social atom and propose that to the optical theoretical psychologist to assist you in an understanding life history of patient, during the anamnesis interview of psychopedagogical diagnosis.
Key words: Medical History Taking. Psychodrama. Role Playing.
INTRODUÇÃO
O diagnóstico psicopedagógico é uma investigação, ou seja, é uma pesquisa do que não vai bem com o paciente em relação a uma conduta esperada ao aprender e às situações de aprendizagem. Envolve o esclarecimento de uma queixa que vem por parte do mesmo, da família e, na maioria das vezes, da escola. O psicopedagogo clínico busca obter uma compreensão global da forma de aprender do paciente e dos aspectos que podem estar dificultando o processo de aprendizagem. Tem por objetivo colher dados significativos para formular a hipótese diagnóstica. Para isso, investiga e organiza diversos aspectos.
Weiss1 sugere uma sequência diagnóstica e cita que a mesma pode ser modificada segundo as necessidades de cada caso: entrevista de anamnese, testagem e provas pedagógicas, laudo (síntese das conclusões e prognóstico), devolução (verbalização do laudo) ao paciente e aos pais.
Entendendo que a anamnese é um momento crucial do diagnóstico, por meio dessa entrevista questões relativas à história de vida do paciente, bem como normas, preconceitos, expectativas, padrões familiares e a circulação dos afetos e do conhecimento ficam evidenciados. Proponho, nesse artigo, a compreensão da anamnese à luz dos conceitos de matriz de identidade, da teoria dos papéis e do átomo social da teoria psicodramática.
MATRIZ DE IDENTIDADE, TEORIA DOS PAPÉIS E ÁTOMO SOCIAL
Para Jacob Levi Moreno2, idealizador da teoria Psicodramática, matriz de identidade é o lugar ou locus nascendi preexistente no qual a criança se insere desde o nascimento. Quando fala em lugar, o autor quer dizer que abrange: o ponto geográfico onde estão localizadas as pessoas que recebem esta criança, as condições socioeconômicas e o clima psicológico que envolve a sua presença. É na matriz que a criança irá se desenvolver.
Moreno2 também definiu a matriz como a placenta social, pois estabelece a comunicação entre a criança e as pessoas que fazem parte das relações interpessoais dos pais. Na matriz, a criança experiência dois universos.
O Primeiro Universo divide-se em duas etapas:
Matriz de Identidade Total Indiferenciada - neste período, objetos, pessoas e a própria criança são experimentados como uma coisa só, uma unidade. O eu e o tu são uma coisa só. Não existem sonhos e prepondera a "fome de atos" (grande necessidade de tomar atitudes). O tempo presente é vivido intensamente e a dimensão de passado e futuro desenvolve-se somente mais tarde;
Matriz de Identidade Total Diferenciada - inicia-se a diferenciação entre objetos animados e inanimados; entre fantasia e realidade. A "fome de atos" diminui e acontecem alguns registros de sonhos que crescem à medida que a diferenciação efetiva entre fantasia e realidade se dá.
O Segundo Universo caracteriza-se pela brecha entre a fantasia e a realidade. Se antes a criança vivia num mundo, agora passa a viver em dois claramente diferenciados por características bem distintas: um é real e outro fantasioso. Eu e o tu são percebidos como separados e distintos e a criança não se sente perturbada por essa divisão. A partir desse momento, a criança começa a desenvolver dois conjuntos de papéis: sociais e psicodramáticos.
Na história do indivíduo, os papéis começam a surgir no interior da Matriz de Identidade, a qual constitui a base psicológica para todos os desempenhos de papéis, e concordo com Moreno quando afirma: "O papel como a forma de funcionamento que o indivíduo assume no momento específico em que reage a uma situação específica, na qual outras pessoas ou objetos estão envolvidos."3
Assim, no primeiro universo da matriz de identidade, a criança vivência os papéis psicossomáticos. Moreno2 os define como unidades de conduta relacionadas às funções fisiológicas presentes desde o nascimento: o ato de comer, respirar, defecar/urinar, chorar, dormir, andar e falar. Essas funções fisiológicas são básicas para que seja possível o estabelecimento de uma relação entre a criança e o mundo a sua volta. Sendo assim, os papéis psicossomáticos são os papéis de comedor, de respirador, de chorador, de falador e outros. Esses são os primeiros papéis que a criança assume.
No Segundo Universo, caracterizado pela brecha entre a fantasia e a realidade, duas outras categorias de papéis aparecem: os sociais e os psicodramáticos. Os papéis sociais referem-se basicamente ao mundo social: ao ajuste da criança ao mundo vigente; e os papéis psicodramáticos ao mundo da fantasia, do irreal: são personificações de coisas imaginadas e que dão o colorido do mundo interno.
Sendo assim, os papéis psicodramáticos correspondem à dimensão mais individual da vida psíquica, ou seja, a dimensão psicológica do eu, e os papéis sociais à dimensão da interação social.
Na teoria moreniana, os papéis psicossomáticos, sociais e psicodramáticos são precursores do eu. Ou seja, o eu não nasce com o indivíduo, mas é construído a partir das relações que este indivíduo estabelece com o ambiente em que vive por meio do desempenho dos papéis.
O desempenho de um novo papel passa necessariamente por três fases:
Role-taking: tomada ou adoção do papel, que consiste em simplesmente imitá-lo, a partir dos modelos disponíveis;
Role-playing: é o jogar o papel, explorando simbolicamente suas possibilidades de representação;
Role-creating: é o desempenho do papel de forma espontânea e criativa.
E é somente com a integração dos papéis psicossomáticos, sociais e psicodramáticos, por volta dos três anos de idade, que a criança dispõe de uma identidade, a qual lhe permite relacionar-se como indivíduo com outras pessoas e entrar em relação mais ou menos télica com as mesmas.
Na teoria moreniana, todos os papéis são complementares. Então, a criança nas suas relações interpessoais irá interagir com papéis que complementam os seus, por exemplo: mãe e filho, aluno e professor, e outros.
A configuração destas relações interpessoais, que se desenvolvem a partir do nascimento, Moreno2 define como átomo social, que é "o núcleo de todos os indivíduos com quem uma pessoa está relacionada emocionalmente ou que, ao mesmo tempo, estão relacionados com ela."
Na construção desta configuração, inicialmente consideramos a interação da criança com seus pais ou cuidadores. Com o passar do tempo, fazem parte as pessoas que esta criança se relaciona e com as quais estabelece um vínculo de atração ou rejeição. Assim como, também, estas pessoas irão estabelecer um vínculo de atração, rejeição ou indiferença em relação a esta criança. Para exemplificar, podemos pensar numa criança que more com a mãe e avó e o pai foi embora. Supondo que a mesma não perceba de modo algum a imagem ou significado desse pai que foi embora, nem como pai ausente, então os familiares mencionados fazem parte do seu átomo social, mas o pai não. Mas vamos supor que a criança tem uma percepção de que este pai existe e que foi embora, neste caso a figura paterna faz parte do seu átomo social. E, caso este pai tenha alguma percepção dessa criança, poderá estabelecer um vínculo de atração ou rejeição em relação à mesma.
As pessoas, assim como a criança, se relacionam por meio de papéis sociais. O átomo social configura-se a partir dos papéis sociais desempenhados e do fator tele. Para Moreno4, tele é um fator inato. Implica na capacidade de perceber o que ocorre nas situações, o que se passa entre duas pessoas e na percepção interna mútua entre duas pessoas sem distorções. "... tele é empatia recíproca. Como um telefone, ela tem duas pontas."
A percepção télica pode ser experienciada pela maior parte das pessoas, mas não é possível que o fator tele predomine em todos os momentos de um relacionamento. Pois a percepção e a comunicação das pessoas podem ser influenciadas por experiências anteriores e atuais, provocando distorções e equívocos. A teoria psicodramática considera a transferência uma patologia da tele, ou seja, é a ausência da percepção télica.
Portanto, podemos afirmar que o átomo social é um fato, não é um conceito, pois é constituído de pessoas reais que compõem o mundo pessoal afetivo de cada um.
Na abordagem psicodramática, existe a técnica do átomo social (Figura 1), que visa à exploração das relações interpessoais do paciente nos diversos contextos: família, trabalho, ambiente escolar, etc.
As etapas principais da técnica são:
O paciente coloca uma almofada ou cadeira no centro da sala representando a si mesmo;
Depois, com almofadas, representa os demais membros de sua família (ou trabalho, ou escola), localizando-os espacialmente, de acordo com a distância afetiva que sente em relação a eles: quanto menor a distância em relação a si, maior a proximidade afetiva; quanto maior a distância, menor a proximidade afetiva. Na representação gráfica, essa distância é representada pelo tamanho das setas;
Posteriormente, solicita-se ao paciente que entre no seu papel e relate como se percebe no centro daqueles relacionamentos;
Em seguida, sugere-se que o mesmo troque de papel e assuma ser cada uma das pessoas em questão.
O psicoterapeuta observa a distância afetiva (sentimentos de atração e rejeição) do paciente em relação às pessoas que se relaciona e vai fazendo perguntas de acordo com os aspectos que deseje investigar e também questiona como essas pessoas reagem afetivamente em relação ao paciente (sentimentos de atração, rejeição ou indiferença).
Por meio da representação gráfica, a técnica pode ser utilizada pelo psicopedagogo durante a entrevista de anamnese, constituindo um valioso recurso ou ferramenta para auxiliar no processo de diagnóstico.
O átomo social do paciente pode ser investigado primeiramente junto aos pais e posteriormente, caso seja possível, com o paciente.
Observamos, então, como os sentimentos do paciente irradiam em várias direções, ao encontro de outras pessoas e que a ele reagem com sentimentos de atração, rejeição ou indiferença, aqui entendida como ausência de percepção afetiva. Sendo importante destacar que as pessoas que não causam no paciente impressão alguma, nem positiva nem negativa, ficam fora do seu átomo social.
Sendo assim, o conceito e a técnica do átomo social, além de mapearem as relações, oferecem possibilidade para compreender os processos subjetivos que constituem a forma que o paciente vivencia seus relacionamentos e os vínculos que estabelece. Assim, estes, inicialmente construídos na matriz de identidade, vão influenciar no desempenho dos seus diversos papéis.
E, para compreender o aprender ou o não aprender do paciente no papel de aluno, é importante que o psicopedagogo observe como ocorre o relacionamento interpessoal entre o paciente, a família e a escola e, consequentemente, o vínculo estabelecido pelo mesmo com o conhecimento e a aprendizagem que emerge dessas relações, uma vez que o ensinar e o aprender são dependentes da natureza e qualidade das mesmas.
CONCLUSÃO
No psicodrama, a teoria dos papéis define como ego-auxiliar natural aquele que atua a serviço da pessoa como um prolongamento físico da mesma, para que ela obtenha aquilo que ainda não pode conseguir sozinha. Assim, a mãe interage com a criança como uma extensão dela. Sua função materna está a serviço da criança, para provê-la de tudo que ela necessita e ainda não pode por si só.
E é na matriz de identidade que a criança começa a interagir com seus egos-auxiliares, ou seja, seus papéis complementares, sendo estes que irão atender às necessidades e estimular o desenvolvimento da mesma. Desta interação a criança começa a construir o seu eu, inicialmente por meio do desempenho dos papéis psicossomáticos e depois dos papéis sociais e psicodramáticos.
Como consequência desta interação com seus egos, ou seja, dessa complementação de papéis, ocorre as aprendizagens físico, cognitivo e afetivo-social da criança. A matriz, como placenta social, irá também estabelecer a comunicação entre a criança e as pessoas que fazem parte das relações interpessoais desses egos, ou seja, a criança irá interagir com outras pessoas além dos pais. Nessas interações, a criança irá desempenhar os papéis já desenvolvidos e também terá novas aprendizagens.
A criança começa assim a construir o seu átomo social, a princípio dentro da matriz, que depois é estendido para outras pessoas.
Portanto, a utilização dos conceitos teóricos matriz de identidade, teoria dos papéis e átomo social para a leitura das informações obtidas na entrevista de anamnese pelo psicopedagogo poderá possibilitar ao mesmo uma percepção mais global do paciente e de como vivencia as situações de aprendizagem no papel de aluno.
REFERÊNCIAS
1. Weiss MLL. Psicopedagogia clínica: uma visão diagnóstica. Porto Alegre:Artes Médicas;1992. [ Links ]
2. Moreno JL. Psicodrama. 12ª ed. São Paulo:Cultrix;1997. [ Links ]
3. Gonçalves CS. et al. Lições de psicodrama: introdução ao pensamento de J. L. Moreno. São Paulo:Agora;1988. [ Links ]
4. Moreno JL. Quem sobreviverá? Fundamentos da sociometria, psicoterapia de grupo e sociodrama. Vol.1. Goiânia:Dimensão;1992. [ Links ]
Correspondência:
Maria Inês Paton Ramos
Rua Serra de Botucatu, 309 - Tatuapé
São Paulo, SP, Brasil - CEP: 03317-000
E-mail: mariaines.psicologa@gmail.com
Artigo recebido: 11/11/2010
Aprovado: 8/1/2011
Trabalho realizado na Universidade da Cidade de São Paulo - UNICID, São Paulo, SP, Brasil. Artigo apresentado ao módulo Pesquisa em Psicopedagogia, do curso de Especialização Lato Sensu em Psicopedagogia Clínica e Institucional, sob orientação da professora Maria Cristina Natel.