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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.38 no.115 São Paulo abr. 2021

https://doi.org/10.51207/2179-4057.20210002 

ARTIGO ORIGINAL

 

descompassos e relações entre leitura e escrita em crianças falantes do português: um teste parcial da teoria de UTA frith

 

Mismatches and relationships between reading and spelling in Portuguese-speaking children: A partial testing of Uta Frith's theory

 

 

Carolina Saito MochizukiI; Patricia Silva LucioII

IDiscente do 4o ano em Psicologia pela Universidade Estadual de Londrina e bolsista de iniciação científica pela Fundação Araucária, Londrina, PR, Brasil
IIDoutora em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo. Professora Permanente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil. Professora Colaboradora do Programa de Pós-graduação em Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem da UNESP/Bauru, Bauru, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A teoria do desenvolvimento de Uta Frith prevê descompassos entre a leitura e a escrita, sendo que em alguns pontos da aquisição dessas habilidades a leitura mostra-se mais sofisticada e favorece o desenvolvimento da escrita, enquanto em outras fases ocorre o contrário. Apesar de sua influência, este ponto de vista nunca foi testado empiricamente. Objetiva-se, a partir de um estudo transversal, realizar um teste parcial do modelo de desenvolvimento da leitura e escrita de Frith em crianças falantes do português brasileiro. A partir da teoria, duas hipóteses foram geradas: (1) se o desenvolvimento da fase alfabética na leitura depende da maestria da fase alfabética escrita, então crianças de 7 anos que estão na fase alfabética da leitura (1a) não podem ter adquirido conhecimento ortográfico na escrita e (1b) tenderão a apresentar melhor desempenho na escrita do que na leitura; (2) se o desempenho na fase ortográfica na escrita depende da maestria do desempenho ortográfico na leitura, então crianças entre 7 e 10 anos que se encontram na fase ortográfica na escrita (2a) devem, necessariamente, encontrar-se na fase ortográfica na leitura e (2b) tenderão a apresentar melhor desempenho na leitura do que na escrita. As hipóteses foram testadas por grupos de casos a partir de amostra de 72 crianças de 2º ao 5º ano de uma escola pública. Os perfis de desempenho obtidos na amostra corroboraram apenas a primeira hipótese. Investigações longitudinais devem ser conduzidas no futuro para esclarecer as relações entre a leitura e a escrita nas fases mais avançadas.

Unitermos: Desenvolvimento. Leitura. Escrita. Fase Ortográfica. Fase Alfabética.


SUMMARY

The development theory of Uta Frith predicts mismatches between reading and spelling, and in some points of the acquisition of skills, reading is more sophisticated and favors the development of spelling, while in other phases the opposite occurs. Although its influence, this view has never been empirically tested. Our objective is to carry out a partial testing of the Frith's reading and spelling development model trough a cross-sectional study in Brazilian-Portuguese speaking children. From the theory, two hypotheses were generated: (1) if the development of the alphabetic phase in reading depends on the mastery of the written alphabetic phase, then children of 7 years who are in the alphabetic phase of reading (1a) might not have orthographic knowledge in spelling and (1b) will tend to perform better in spelling than in reading; (2) if the performance in the orthographic phase in spelling depends on the mastery of the orthographic performance in reading, then children between 7 and 10 years old who are the orthographic phase in spelling (2a) must be necessarily in the orthographic phase in reading and (2b) will tend to perform better in reading than in spelling. The hypotheses were tested by groups of cases from a sample of 72 children from the 2nd to the 5th year of a public school. The performance profiles obtained in the sample corroborated only the first hypothesis. Longitudinal investigations should be conducted in the future to clarify the relationship between reading and writing in the most advanced stages.

Keywords: Development. Reading. Spelling. Alphabetic Phase. Orthographic Phase.


 

 

INTRODUÇÃO

A aprendizagem da leitura e da escrita tem sido extensivamente estudada pelas abordagens da psicologia e da educação. Nunes1 descreve que, nos sistemas de escrita alfabético, a aprendizagem dessas habilidades passa pela descoberta, por parte da criança, da sua natureza fonológica. Dito em outros termos, a criança percorre diversas etapas de aprendizagem, nas quais é fundamental o (re)conhecimento de que as palavras refletem aspectos da fonologia e não do significado que encerram (i.e., de que são sistemas simbólicos).

Em diversos trabalhos conduzidos em língua portuguesa, a análise dos erros na leitura e na escrita nos ajudam a entender os processos utilizados pelos aprendizes nas fases iniciais de aprendizagem (por exemplo: Nunes1, Pinheiro2, Zorzi3). A conclusão de Nunes1, para a escrita, é de que os erros das crianças não possuem uma configuração randômica, sendo que elas parecem utilizar seu conhecimento semântico e fonológico para escrever as palavras. Já Pinheiro et al.4 demonstraram que, na leitura de palavras reais infrequentes, os erros das crianças sinalizam, em sua maioria, o uso majoritário de processo fonológico.

Embora os processos de leitura e escrita operem sobre o mesmo código (i.e., a palavra impressa), suas relações são complexas e indicam o uso de mecanismos cognitivos diferentes pelo aprendiz. Este tema foi extensivamente investigado por Frith5, que buscou responder questões relacionadas aos descompassos entre os desempenhos na escrita e na leitura de crianças, formalizando uma teoria que pressupõe a existência de várias fases nesse processo.

Segundo a autora, o desenvolvimento da leitura e da escrita passaria por três habilidades sequenciais, que se distinguem pelo uso de diferentes estratégias para ler/escrever: logográfica, que se baseia no reconhecimento de um padrão visual, apoiando-se em pistas contextuais ou pragmáticas; alfabética, que corresponde ao conhecimento e uso de fonemas e grafemas individuais e suas correspondências, permitindo pronunciar palavras novas e sem sentido, não necessariamente de forma correta; e ortográfica, caracterizada por uma análise instantânea de palavras em unidades ortográficas sem conversão fonológica.

Investigando, então, como acontece o processo de transposição de uma habilidade para outra (i.e., logográfica para alfabética e, desta, para ortográfica), Frith5 argumentou sobre a existência de seis etapas distintas que ocorreriam durante aquisição de leituras e escritas maduras. Estas seis etapas seriam compostas pelo desdobramento das três habilidades subdivididas de dois a três níveis de amadurecimento.

Dito em outros termos, a análise das relações entre a aquisição das habilidades de leitura e escrita por Frith5 mostra que podem existir divergências e convergências entre o desempenho nas habilidades de ler e escrever pela criança, ou seja, nem sempre elas leem e escrevem dentro de um mesmo nível de maturidade. A Figura 1 é uma adaptação do modelo apresentado por Frith5 em seu estudo original.

 

 

Na primeira etapa de aquisição, na leitura, a criança passa pela fase logográfica em dois níveis de amadurecimento (1 e 2), enquanto se mantém na fase simbólica na escrita (uma fase rudimentar caracterizada por escritas de caráter metalinguístico, como "palavra" e "frase"). A fase logográfica somente aparece na escrita quando a mesma é alcançada para leitura em nível 2, pressupondo que crianças nessa fase de desenvolvimento somente adquirem habilidades para a escrita quando houver alguma maturidade na leitura.

Na etapa de aquisição seguinte (etapa 2), a habilidade alfabética é primeiramente adotada para a escrita, ao passo que a leitura tende a continuar com estratégia logográfica em nível 3. Assim, somente quando a estratégia alfabética alcança o nível 2, na escrita, é que ela passa a ser adotada para a leitura (já inicialmente em nível 2). Essa última afirmação é justificada, segundo Frith5, pelo fato de o alfabeto ser "feito sob medida" para a leitura (i.e., as irregularidades são maiores para escrever do que para ler).

Por fim, a etapa 3 novamente é invertida e a estratégia ortográfica inicia-se com a leitura como precursor, mas ainda não ocorre na escrita. Consequentemente, quando a leitura atinge o nível 2 na estratégia ortográfica, temos representações ortográficas suficientemente fortes para serem usadas para o ditado, em uma transferência das palavras para o sistema de saída ortográfica. Na infância, não se identifica um terceiro nível na fase ortográfica ou na alfabética. Respectivamente, as idades cronológicas para as crianças em cada fase são distribuídas em: 3 a 5 anos (logográfica), 5 a 7 anos (alfabética) e 7 a 9 anos (ortográfica)6.

O modelo de seis fases de Frith5 foi criado para crianças falantes e escreventes da língua inglesa. Nesse sentido, é possível argumentar se tal modelo possui validade para crianças expostas ao português. Na literatura produzida na área no Brasil, a maioria dos estudos têm se limitado a realizar uma descrição das relações entre a leitura e suas correspondências com as fases logográficas, alfabéticas ou ortográficas7-9. O único estudo que investigou simultaneamente os processos de leitura e de escrita foi o de Capovilla et al.10. Entretanto, os autores se limitaram a investigar o desempenho de crianças do segundo ano do Ensino Fundamental. Ademais, investigaram as estratégias propostas por Frith5 somente na leitura, tendo apenas realizado correlações com o desempenho das crianças na escrita.

Diante disso, verifica-se que nenhum estudo buscou investigar os descompassos entre leitura e escrita em falantes do português, mediante a teoria de Frith5. Os resultados da busca apresentados anteriormente sugerem que a validade deste modelo para o português não tem recebido atenção de pesquisadores da área de educação e da psicologia do desenvolvimento. Este fato é injustificável, dada a relevância e aplicabilidade das ideias da autora para o ensino da leitura e da escrita, assim como para a análise dos fatores que causam problemas em seus processos de aprendizagem.

Analisando a aplicabilidade do modelo de Frith5 para a dislexia do desenvolvimento, Kuerten et al.11 afirmam, mediante revisão da literatura, que a teoria da autora é atualmente uma das mais influentes no campo da alfabetização. Ainda que proposta há mais de três décadas, o modelo é comumente referenciado e utilizado nos dias atuais*. Nesse sentido, vantagens como a facilidade para o professor identificar e monitorar o progresso da criança, assim como identificar problemas de aprendizagem, são pontos fortes do uso deste modelo12.

Nessa direção, a partir da análise apresentada por Frith5 é possível criar hipóteses sobre os processos envolvidos nas relações entre a leitura e a escrita de crianças em diferentes fases de desenvolvimento falantes do português. Caso a teoria, embora debruçada na língua inglesa, aplique-se para nosso idioma, um perfil de desempenho dissonante na leitura e na escrita deve ser observado, dependendo da faixa etária em que a criança se encontra, assim como seu desempenho objetivamente avaliado.

Nesse sentido, o presente trabalho busca, a partir de estudos de série de casos retirados de uma amostra de crianças do 2o ao 5o ano do Ensino Fundamental, investigar as diferenças e relações nos processos de leitura e de escrita português brasileiro, tendo por base o estudo original de Frith5. Partindo da análise da Figura 1 reproduzida nesta introdução, são traçadas as seguintes hipóteses:

1) Se o desenvolvimento da fase alfabética na leitura depende da aquisição/maestria da fase alfabética escrita (fase 2b), então crianças de 7 anos que estão na fase alfabética da leitura (a) não podem ter adquirido conhecimento ortográfico na escrita e (b) tenderão a apresentar melhor desempenho na escrita do que na leitura.

2) Se o desempenho na fase ortográfica na escrita depende da aquisição/maestria do desempenho ortográfico na leitura (fase 3b), então crianças entre 7 e 10 anos que se encontram na fase ortográfica na escrita (a) devem, necessariamente, encontrar-se na fase ortográfica na leitura e (b) tenderão a apresentar melhor desempenho na leitura do que na escrita.

 

MÉTODO

Amostra

O estudo faz parte de um projeto maior, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos (parecer n. 3.057.004, de 4 de dezembro de 2018). A coleta de dados foi realizada em uma escola pública de uma cidade do interior do estado do Paraná, Brasil. Uma turma de cada ano (2o ao 5o) foi convidada a participar da pesquisa. Dos 120 Termos de Consentimento Livre e Esclarecido entregues, 84 foram assinados, aos quais foram aplicados os seguintes critérios de exclusão: (a) histórico de retenção escolar; (b) não decodificar palavras (i.e., não ter adquirido o princípio alfabético); (c) suspeita ou diagnóstico de dificuldades de aprendizagem ou transtornos comportamentais. A partir desses critérios, 78 crianças foram avaliadas.

Instrumentos

Tarefa de leitura de palavras irregulares

A atividade foi composta por duas listas de palavras de Alta Frequência (AF) e de Baixa Frequência (BF) - contendo 18 palavras cada - de acordo com a contagem realizada por Pinheiro13. A lista de palavras de BF foi elaborada para conter itens de dificuldade alta, média e baixa, a partir do estudo de Lucio et al.14, que analisaram 323 palavras retiradas do corpus de Pinheiro13.

Já as palavras de AF foram emparelhadas às palavras BF em termos do número de letras e sílabas e semelhança estrutural (p. ex., AMPOLA e ABELHA são trissílabas, começam com A e a irregularidade consta na sílaba tônica). A validação desta lista foi apresentada em outro estudo15, sendo aqui apresentadas na sequência do emparelhamento AF/BF (no estudo principal, foram divididas em duas listas separadas por frequência, escritas em fonte Times New Roman 40, em letras minúsculas e dispostas aleatoriamente**): 4coelho/15colete; 11modelo/1novelo; 14existe/5exceto; 9escola/16estojo; 7abelha/9ampola; 16pessoa/8colcha; 10gola/12tola; 12hora/18boxe; 2fogo/10foco; 3mesa/11roxa; 5nova/2cova; 1povo/17cego; 15agora/6aceso; 6terra/3presa; 17festa/7forca; 18desenho/4palhoça; 13caderno/13catorze; 8parcela/14sarjeta.

Tarefa de ditado de palavras irregulares

A tarefa de ditado de palavras irregulares foi criada para avaliar o conhecimento ortográfico a partir da direção de classificação fonema-grafema (direção da escrita) de acordo com Parente et al.16. É composta por 30 itens, metade de cada frequência de ocorrência, conforme a contagem de Pinheiro13***.

Primeiro, eram ditadas as palavras de AF e posteriormente as de BF. As palavras selecionadas possuíam de 4 a 7 letras/grafemas que constituíam mais de uma possibilidade de representações múltiplas de fonemas caso a criança utilizasse regras de conversão grafema-fonema para escrever. As palavras foram apresentadas no contexto de frases, de modo a retirar a ambiguidade por possível homofonia17, porém, as crianças deveriam escrever apenas as palavras isoladas em cartão fornecido pela pesquisadora. O Anexo 1 apresenta as palavras, as frases e as instruções de aplicação.

Procedimento de aplicação e correção

As crianças foram avaliadas em dois momentos: avaliação individual e avaliação coletiva. Na avaliação individual, foram realizadas tarefas de leitura de palavras e pseudopalavras e vocabulário (nesta ordem). As tarefas foram gravadas para posterior cômputo dos erros. A tarefa de ditado foi realizada de forma coletiva, com todas as crianças da turma. Para fins desta pesquisa, foram utilizados apenas os resultados nas tarefas de leitura de palavras e de ditado. Os dados das crianças na tarefa de ditado que não foram autorizadas à participação não foram utilizados na presente pesquisa (foram apenas informados à escola, como parte da devolutiva, a pedido).

Como critério de acerto na leitura, definiu-se que as crianças não poderiam soletrar/decodificar as palavras, devendo ler de forma fluente com a pronúncia padrão ou de acordo com o dialeto local. Para acerto na tarefa de ditado, a criança deveria escrever de acordo com o padrão da língua, sem apoio na oralidade (por exemplo, escrever CHOQUE com <x> ou com <i> no lugar do <e> foi considerado erro). Independentemente de quantos erros fossem cometidos na leitura ou na escrita, o escore foi de 0 ou 1 por item.

Procedimento análise e de classificação das estratégias de leitura e escrita

Os dados foram analisados por meio de estatísticas descritivas (percentis nas tarefas e porcentagens de acerto). A estratégia de verificação será dada por meio da análise de casos e de grupos, i.e., daqueles participantes que, a partir de critérios pré-definidos, estivessem seguramente utilizando as estratégias de interesse na leitura ou na escrita e da média apresentada por seus pares.

Assim sendo, para a hipótese (1), as crianças foram identificadas como apresentando desenvolvimento característico da fase alfabética na leitura se apresentassem escore de zero na tarefa de leitura de palavras de AF (i.e., decodificaram todos os itens, mesmo os que deveriam ser conhecidos). Dito em outros termos, como pelo critério de participação na pesquisa as crianças deveriam pelo menos saber decodificar, um escore de 0 indicaria que todas as palavras foram lidas desta forma, caracterizando explicitamente leitura alfabética.

Esse critério foi criado porque um estudo mostrou que os erros de substituição de palavras reais por outros itens lexicais sinalizam uso de processo fonológico na leitura de crianças falantes do português brasileiro4. Assim, dificilmente, nesta faixa etária, encontrar-se-iam crianças com leitura logográfica. Ademais, não foram observadas respostas de substituição por palavras reais genuínas na amostra4.

Já para a hipótese (2), determinou-se que as crianças que apresentaram teto na tarefa de ditado de palavras de AF certamente apresentariam estratégia ortográfica na escrita. Como as palavras são irregulares, um teto entre esses itens seria indicador do conhecimento (lexical) dos mesmos. Para determinar a estratégia ortográfica na leitura, determinou-se percentil 50 nas palavras de BF. Este critério deveu-se à alta proporção de acertos que tradicionalmente se observa nas tarefas de leitura de palavras isoladas mesmo entre leitores iniciantes e em itens de baixa frequência13.

 

RESULTADOS

Estatísticas Descritivas

A Tabela 1 apresenta as estatísticas descritivas para as variáveis do estudo (percentis na proporção de acertos nas tarefas de leitura de palavras AF e BF e ditado de palavras AF e BF).

Hipótese 1

A Tabela 2 apresenta os resultados dos participantes de 7 anos que apresentaram escore de zero na leitura de palavras de AF, sendo duas crianças do 2o e uma do 3o ano. Conforme esperado, todas as crianças apresentaram baixo desempenho na leitura de BF, realizando a leitura de todas as palavras por meio da decodificação.

Corroborando a hipótese (1a), nenhuma das crianças apresentou desempenho ortográfico na escrita, pois, conforme Tabelas 1 e 2, não apresentaram sequer o percentil 50 para o ano em questão, nem mesmo entre os itens AF (todas apresentaram percentil 25 ou menos). Corroborando a hipótese (1b), mesmo tendo obtido escore zero na leitura de ambos os estímulos AF e BF, as crianças apresentaram em conjunto melhor desempenho na escrita, pontuando nas tarefas de ditado AF e BF. Chama-se especial atenção para a criança ID2, que apresentou desempenho médio inferior na escrita BF (alcançou pontuação para atingir o percentil 25). Tomados em conjunto, os resultados reforçam a hipótese de Frith5 de que na Fase 2 é o desenvolvimento da escrita alfabética que alavanca o desenvolvimento da leitura alfabética.

Hipótese 2

A Tabela 3 apresenta os resultados dos participantes que apresentaram escore de 100% na tarefa de ditado de palavras AF, independentemente da idade (pois, conforme o modelo da Figura 1, a partir dos 7 anos as crianças podem oscilar entre as Fases 2 e 3). Todas as crianças que adquiriram pontuação de teto na tarefa de ditado AF eram do 4o ou do 5o anos.

Para avaliarmos o desempenho ortográfico na leitura de crianças mais velhas, é necessário avaliar o desempenho tanto entre as palavras AF quanto BF (por terem mais contato com a leitura, tendem a obter teto nas tarefas AF). Todas as crianças parecem ter atingido o conhecimento ortográfico na leitura, exceto a criança ID110 que apresentou desempenho aquém do esperado na leitura BF, com percentil 25 na tarefa, classificado como médio inferior (a criança ID115 também apresentou P25 na tarefa de leitura de AF, mas o desempenho muito satisfatório entre os itens irregulares pode indicar problemas com adaptação para as tarefas, pois as palavras AF foram lidas antes no estudo).

Observando-se as proporções de acertos dos anos anteriores, é possível afirmar que a criança ID110 apresenta desempenho típico de crianças do 3o ano, ou seja, dois anos de atraso na leitura de palavras BF. Dito em outros termos, a criança pode estar enfrentando dificuldades em formar vocabulário visual de palavras menos frequentes, em comparação com as crianças da mesma idade. Este resultado contradiz a hipótese de Frith5 de que as crianças que estão na fase ortográfica da escrita devem, necessariamente, encontrar-se na fase ortográfica na leitura (na nossa hipótese, 2a).

Avaliando-se a nossa segunda hipótese (2b), observa-se uma tendência de as crianças apresentarem melhor desempenho médio na escrita do que na leitura (comparando-se as palavras BF). Apenas uma criança ID104 apresentou maior proporção de acerto na leitura BF do que na escrita AF. Esses resultados também contradizem a nossa segunda predição de que as crianças na fase ortográfica da escrita tenderão a apresentar melhor desempenho na leitura do que na escrita.

 

DISCUSSÃO

O estudo demonstrou que a avaliação cognitiva dos processos de aprendizagem relacionados à leitura e à escrita de modo convergente é uma importante ferramenta para identificar os mecanismos relacionados ao desenvolvimento normal e atípico dos processos de aprendizagem destas habilidades.

De maneira qualitativa, observou-se que, pelo menos parcialmente, a teoria de Frith5 pode ter validade para falantes do português brasileiro e que suas contribuições teóricas ressaltam de maneira objetiva os descompassos entre leitura e escrita em leitores/escritores iniciantes. O método empregado para investigar as duas hipóteses propostas na tentativa de validar esta teoria mostrou-se promissor, ainda que em um estudo transversal.

Assim sendo, corroborando com a teoria, demonstrou-se que a escrita antecede, em termos de desenvolvimento, a leitura na Fase 2b da aprendizagem, mas, contrariando as expectativas, na Fase 3b a escrita permaneceu sendo maior fonte de influência para o desempenho na leitura, e não o contrário.

Conforme apontam Wimmer & Frith18, a execução e aquisição fonológica (i.e., conversão grafema-fonema) é diferente em cada língua, consequentemente, adquirir o processo alfabético também. Isso implica que ortografias com menor transparência, como o inglês, proporcionam maiores dificuldades aos leitores iniciantes do que ortografias menos transparentes, como o alemão ou o português. Este fato penalizaria mais os leitores com dificuldades de decodificação aprendizes dos idiomas mais opacos.

Nesse sentido, torna-se necessário estudar as manifestações das teorias, como de Frith5, em contextos outros que não o originalmente criado (i.e., para a língua inglesa). É o que fizemos neste trabalho, utilizando uma metodologia que combina estudos de casos com estudos de grupos.

No presente estudo, foram realizadas predições a partir da teoria que foram testadas em amostras de crianças cursando os anos iniciais de escolarização. Por meio da hipótese 1, buscou-se avaliar se a fase alfabética da escrita antecede o desenvolvimento desta fase na leitura, o que foi confirmado pelo fato de que crianças classificadas como alfabéticas para a leitura não apresentaram estratégia ortográfica para a escrita (i.e., apresentaram percentil 25 ou menos nas tarefas de ditado AF e BF) e possuíram melhor desempenho na escrita em contraste com a leitura (Tabela 2).

Esse procedimento foi adotado porque as palavras AF são as que as crianças mais encontram no cotidiano da leitura, sendo mais provável que elas estejam armazenadas no léxico2, isto é, não ler palavras de AF corretamente, mesmo que irregulares, implica provavelmente não conhecer esses itens.

Já a hipótese 2 buscou avaliar se as crianças que se apresentam na estratégia ortográfica na escrita também apresentariam, necessariamente, estratégia ortográfica na leitura (Fase 3b; Figura 1). O teste desta hipótese encontrou resultados contraditórios quando debruçados sobre a teoria de Frith. Nesse sentido, as crianças que estavam em fase ortográfica na escrita (i.e., crianças com escore total na tarefa de ditado de AF) não necessariamente apresentam-se na fase ortográfica da leitura, o que seria previsto pela teoria.

Assim como na hipótese 1, o critério usado para definir se a criança estava na fase ortográfica na escrita foi determinado pelo acerto nas palavras irregulares de AF, pois, para tanto, devem ter os itens guardados na memória, sendo um escore de 100% caracterizando explicitamente o conhecimento ortográfico entre esses itens.

Como resultado, as crianças em geral não apresentaram melhor desempenho nas tarefas de leitura comparadas às tarefas de ditado, sendo que apenas uma criança apresentou resultado dentro desta expectativa (ID104, Tabela 3). De particular interesse é que uma criança (ID110) apresentou resultado na leitura de palavras BF aquém do esperado para a série (percentil 25), indicando a possibilidade que não tenha adquirido plenamente a estratégia ortográfica na leitura (em negrito na Tabela).

Pelo nosso conhecimento, esse é o primeiro estudo conduzido no Brasil que tentou demonstrar as complexas relações entre a leitura e a escrita desde a proposição da influente teoria sobre o desenvolvimento desses processos por Frith5. Apesar dessa relevância para a psicologia e para a educação, este estudo apresenta algumas limitações sobre o alcance de seus resultados.

De acordo com a autora, a transposição de uma fase para outra não se dá de modo aleatório ou contínuo, de acordo com a idade cronológica da criança apenas. Essa transposição ocorre de modo resultante da maturidade biológica e cultural - sendo aqui inserida a variável "ensino" - do indivíduo. Esse pressuposto traz dificuldades à tentativa de categorizar e mensurar as fases e, assim, encontrar resultados mais objetivos.

Dessa forma, apesar dos critérios que criamos para enquadrar as crianças nas fases em questão terem sido baseadas na literatura (por exemplo, Pinheiro et al.4e Lucio et al.14), outras abordagens mais qualitativas devem ser utilizadas em estudos futuros, de maneira a determinar com maior precisão sobre esse aspecto. Ademais, a teoria de Frith prevê que a criança possui a possibilidade de se encontrar em duas fases ao mesmo tempo, por conta de ainda não ter se adaptado à estratégia anterior. Isso limita nossas hipóteses ao tentarmos analisar as fases separadamente e por meio de um estudo transversal.

Desse modo, o teste da hipótese deve ser realizado de forma mais completa por meio de investigações longitudinais ou de estudos experimentais em ensino da leitura e da escrita de palavras novas (por exemplo, Wang et al.19). Ademais, é importante incluir faixas etárias mais tenras (por exemplo, 3-5 anos), de modo a investigar diretamente se os descompassos entre a leitura e a escrita também ocorrem na transição da fase logográfica para a alfabética. Espera-se que este estudo sirva de inspiração para futuras pesquisas que busquem compreender as redes complexas que envolvem a aprendizagem da leitura e da escrita por crianças.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo realizou um teste da validação do modelo Uta Frith para a leitura e escrita de falantes do português brasileiro. Por meio de um conjunto de hipóteses, testamos as predições esperadas para as fases 2 e 3 do modelo em um grupo de crianças alfabetizadas (i.e., pelo menos decodificadoras). Nossa conclusão é de que, conforme esperado pela predição da teoria, a escrita alfabética favorece o desenvolvimento da leitura alfabética (fase 2a), mas não foi possível corroborar a hipótese de que a leitura ortográfica favorece a escrita ortográfica (fase 3b). Futuras pesquisas devem realizar um teste mais global da teoria, o que envolve estudos longitudinais e uma faixa etária mais ampla, composta por crianças pequenas (i.e., supostamente na fase logográfica).

 

AGRADECIMENTO

Bolsa de iniciação científica da Fundação Araucária da primeira autora.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
Carolina Saito Mochizuki
Universidade Estadual de Londrina
Rodovia Celso Garcia Cid, PR-445, Km 380 - Campus Universitário
Londrina, PR, Brasil - CEP 86057-970

Artigo recebido: 24/11/2020
Aprovado: 31/1/2021

 

 

* Adelman, 2012; Beaton, 2004; Hulme & Snowling, 2013; apud.
** Os números a frente de cada palavra informam a posição da mesma na lista de estímulos de AF ou BF.
*** Por um erro na aplicação da tarefa, um item de exemplo (palavra RUA, que é regra para a escrita) foi aplicado no lugar de um dos itens de AF (CAIXA). Desse modo, as análises que se seguem foram baseadas em proporções de acertos de 14 itens de AF.
Trabalho realizado na Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil.
Conflito de interesses: As autoras declaram não haver.
1 Frase original foi com a palavra caixa. Ver nota da Tabela 1. CAIXA . Frase: O filhote era tão pequeno que coube em uma caixa de sapatos. Escreva CAIXA.
2 Frase original foi com a palavra trouxa. TROUXA. Temos que lavar roupa porque a trouxa está bem grande. Escreva TROUXA.

 

 

Anexo 1

 


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