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Revista Psicopedagogia
versão impressa ISSN 0103-8486
Rev. psicopedag. vol.39 no.119 São Paulo maio/ago. 2022
https://doi.org/10.51207/2179-4057.20220017
ARTIGO ORIGINAL
Influência da consciência fonológica na compreensão de sentenças na alfabetização
Influence of phonological awareness on the comprehension of sentences in literacy
Cláudia da SilvaI; Ligia Morais RodriguezII
IMestre e Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista - UNESP/Marília (SP); Pós-doutorado pela Universidade Estadual Paulista - UNESP/Marília (SP); Docente do Departamento de Formação Específica em Fonoaudiologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Nova Friburgo (RJ), Brasil
IIDocente do curso de graduação em Fonoaudiologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Nova Friburgo, RJ, Brasil
RESUMO
O objetivo é verificar a influência da consciência fonológica na compreensão de sentenças na alfabetização, em escolares com e sem risco para a dislexia. Participaram da pesquisa 40 escolares, de ambos os gêneros, do 1º ano do Ensino Fundamental I, divididos em Grupo I (GI): 20 escolares com bom desempenho acadêmico e Grupo II (GII): 20 escolares de risco para a dislexia. Ambos os grupos realizaram avaliação da compreensão auditiva por sentenças, de leitura oral de sentenças e de leitura com apoio em imagens. Como intervenção foram submetidos ao programa de intervenção fonológica para escolares em fase inicial de alfabetização, composto por atividades de reconhecimento do alfabeto, rima, aliteração, análise, síntese, segmentação e discriminação fonêmica. A intervenção foi composta por 15 sessões, realizadas duas vezes por semana. A análise intergrupo identificou significância para compreensão auditiva em pré e pós-testagem, compreensão de leitura oral e por imagens em pré-testagem. Na comparação intragrupos houve aumento das médias de desempenho para compreensão auditiva e de leitura oral no Grupo I, e para Grupo II houve significância para as três variáveis analisadas. A intervenção com base na consciência fonológica influenciou positivamente no desempenho em compreensão de sentenças de escolares com risco para dislexia, possibilitando o aumento das médias de desempenho deste grupo.
Unitermos: Compreensão. Dislexia. Aprendizagem. Desenvolvimento Infantil. Leitura.
SUMMARY
The aim is to verify the influence of phonological awareness on the understanding of sentences in literacy, in students with and without risk for dyslexia. Forty students of both genders, from the 1st year of elementary school part, participated in the research, divided into Group I (GI): 20 students with good academic performance and Group II (GII): 20 students at risk for dyslexia. Both groups underwent assessment of listening comprehension by sentences, oral reading of sentences and reading with support from images. As an intervention, they were submitted to the phonological intervention program for students in the initial stage of literacy, composed for activities of alphabet recognition, rhyme, alliteration, analysis, synthesis, segmentation and phonemic discrimination. The intervention consisted of 15 sessions, held twice a week. The intergroup analysis identified significance for listening comprehension in pre and post-testing, oral reading comprehension an images in pre-testing. In the intragroup comparison, there was an increase in the performance means for listening and oral reading comprehension in Group I, and for Group II there was significance for the three variables analyzed. The intervention based on phonological awareness was able to positively influence the performance in sentences comprehension of students at risk for dyslexia, enabling the increase in the performance averages of this group.
Keywords: Comprehension. Dyslexia. Learning. Child Development. Speech. Reading.
Introdução
O ensino escolar formal no Brasil tem início nas séries pertencentes ao primeiro seguimento, identificado como Ensino Fundamental I (Brasil, 2012). Ao ser inserida nesse processo, a criança se depara com o aprendizado formal da leitura e da escrita, que, de forma gradativa, passa a exigir a aquisição e o desenvolvimento de novas habilidades (Barbosa et al., 2016).
Tais habilidades podem ser identificadas como de baixa e alta ordem dentro do processo de alfabetização. As habilidades de baixa ordem são aquelas que servem de base para o desenvolvimento de habilidades mais complexas e se referem a discriminação visual e auditiva de estímulos, ao aprendizado da relação letra/som, a formação de sílabas e de palavras compostas por estrutura silábica simples (consoante e vogal - CV) e de alta frequência. Isso permite a formação da memória lexical, via informações fonológicas, que começam a ser adquiridas e consolidadas para dar suporte a processos de alta ordem, ou seja, de maior complexidade (Petscher et al., 2019; Silva et al., 2019).
Habilidades de alta ordem são descritas como aquelas que têm origem nas habilidades base, pois necessitam destas para dar suporte a processos de maior complexidade. Nesse contexto são identificadas como fundamentais as habilidades metafonológicas, responsáveis pelo acesso e manipulação de segmentos para a formação de palavras e estruturação de sequências, a velocidade de processamento e manipulação dos estímulos, o acesso ao vocabulário expressivo e/ou receptivo via memória auditiva e visual da palavra armazenada previamente, e a extração de significado das palavras, frases e textos (Santos & Fernandes, 2016; Silva & Pereira, 2019).
Dessa forma, espera-se que a aquisição das habilidades de baixa ordem se desenvolvam nas séries iniciais, pois irão influenciar diretamente os aprendizados subsequentes ofertando subsídios para a aquisição e consolidação das habilidades mais complexas. Assim, tratam-se de habilidades consideradas como interdependentes para o processo de alfabetização, pois para o bom funcionamento ambas devem se desenvolver plenamente e se retroalimentar (Petscher et al., 2019).
Como reflexo do desenvolvimento das habilidades de baixa e alta ordem, para que o aprendizado da leitura e da escrita seja satisfatório, deve ocorrer a consolidação das vias fonológicas e lexicais, para que o acesso à informação seja amplo, preciso e capaz de expandir em termos de complexidade as informações a que a criança é exposta (Silva et al., 2019; Silva & Rodriguez, 2021). Uma vez estruturadas, ambas as vias de acesso à informação, devido à atuação da memória (fonológica e lexical), permitem o acesso à palavra e emprego adequado de forma rápida e fluente, possibilitando, ainda, o acesso ao seu significado, enquanto resultado final a compreensão (Kjeldsen et al., 2019).
Fortalecendo o processo de formação das rotas, deve ser elencada a relevância da formação do vocabulário em sua amplitude, quanto ao número de palavras adquiridas, e a profundidade, referente ao seu sentido e classificação categórica. Quanto maior o conhecimento que uma criança desenvolve para o vocabulário, melhor serão suas características de acesso à informação e extração de significado, o que torna este mais um marcador potente na análise do desempenho nos anos iniciais da alfabetização (Silva & Alves, 2021).
Tal como o aprendizado de ler e escrever, adquirir compreensão não faz parte de um processo inato, mas sim de uma prática explícita de ensino formal, que deve ser iniciada anteriormente à alfabetização e potencializada desde os primeiros anos escolares. Assim, a leitura de palavras isoladas, frases simples e/ou pequenos textos só possui representatividade para o leitor iniciante quando este é capaz de extrair significado dos mesmos (Cárnio et al., 2017; Konrad & Lorandi, 2019). Por sua vez, o processamento fonológico acrescido da percepção visual e auditiva auxiliam tanto para o aprendizado da compreensão como para o funcionamento do código gráfico, potencializando o desenvolvimento de uma decodificação (leitura) com extração de significado (compreensão de leitura) (Justi et al., 2020; Petscher et al., 2019).
Medidas interventivas podem ser realizadas com pré-escolares e escolares desde as séries iniciais, com o intuito de viabilizar melhoras, direta e indireta, em diversas habilidades. A intervenção fonológica, por exemplo, auxilia no desenvolvimento da habilidade fonológica que, uma vez desenvolvida, conduz ao acesso às rotas fonológicas e à formação lexical, enquanto preditor para a taxa de leitura (Xu et al., 2018). O trabalho com habilidade fonológica atua além da capacidade de refletir sobre os sons e aprender a manipulá-los com autonomia, na capacidade de discriminar, agrupar e selecionar de acordo com suas características de sonoridade, envolvendo, assim, aspectos de processamento auditivo da informação (Avarena et al., 2018).
No entanto, a apresentação inicial desses conceitos tem início na alfabetização, onde a base fonológica oferece subsídios linguísticos e cognitivos para o aprendizado nas séries iniciais, capacitando os escolares do 1º ano do Ensino Fundamental a realizar tais relações fundamentais para dar suporte aos aprendizados mais complexos, tanto ortográficos quanto de compreensão. Tais dificuldades podem ser indicativas de escolares de risco para o processo de alfabetização e até mesmo de risco para problemas de aprendizagem, entre eles, a dislexia (Gandhi et al., 2018).
Os escolares de risco para o quadro de dislexia podem ser identificados dentro de uma série de características direcionadas à não identificação de letras e sons do alfabeto em sequência e randomizado, alteração na identificação e discriminação de formas semelhantes, confusão para a discriminação de sons próximos, que podem interferir na formação da memória fonológica para novas palavras e também ao acesso visual para palavras frequentes; lentidão na velocidade de processamento da informação, devido à sobrecarga de memória; alteração na decodificação de palavras longas, irregulares e de baixa frequência, refletindo no déficit ao acesso do significado das palavras e enunciados; o que resulta em quebra no processo de compreensão de frases e textos (Avarena et al., 2018; Koen et al., 2018; Silva et al., 2019).
Ao entender que o risco para a dislexia pode ser identificado por meio das características obtidas na decodificação de palavras e no desempenho em compreensão, esta passa a ser mais uma ferramenta de estudo e análise para a identificação precoce desse diagnóstico. Além de possibilitar a intervenção precoce visando minimizar os danos em leitura e compreensão, uma vez que estes são aspectos conjuntos a serem ensinados no processo de alfabetização e aprofundados durante os aprendizados subsequentes (Cavallieri et al., 2016; Peng et al., 2019).
Com base no exposto, este estudo se baseou na hipótese de que a intervenção com a consciência fonológica pode ser um impulsionador no desempenho de escolares de risco para a dislexia nos anos iniciais da alfabetização, além de refletir ganhos em habilidades diretamente, como o reconhecimento de palavras e, indiretamente, para a compreensão de leitura. Assim, o objetivo dessa pesquisa se traduz em verificar a influência da consciência fonológica na compreensão de sentenças na alfabetização, em escolares com e sem risco para a dislexia.
Método
Anterior ao seu desenvolvimento, esta pesquisa foi submetida e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), com parecer favorável para sua realização, sob o protocolo número CAAE: 28739619.7.0000.5626. A coleta de dados somente teve início após a assinatura do Termo de Consentimento e Assentimento Livre e Esclarecido (TCLE e TALE, respectivamente) pelos pais ou responsáveis pelos escolares, tal como pelos participantes da pesquisa, conforme a Resolução 466/12.
Participantes da pesquisa
Este estudo contou com a participação de 40 escolares, do 1º ano do Ensino Fundamental I, de uma escola da rede de financiamento público, com idades entre 5 anos e 10 meses a 6 anos e 7 meses, sendo 17 (42,5%) do gênero feminino e 23 (57,5%) do gênero masculino, distribuídos em dois grupos (Tabela 1).
A distribuição dos grupos GI e GII estruturou-se de acordo com o descrito:
- Grupo I (GI): composto por 20 escolares com bom desempenho acadêmico, regularmente matriculados no 1º ano do Ensino Fundamental I. A composição desse grupo foi realizada com o auxílio/indicação dos professores pertencentes à escola em que a pesquisa foi realizada, seguindo o critério de desempenho satisfatório em dois bimestres consecutivos, comparados aos seus pares.
- Grupo II (GII): composto por 20 escolares de risco para a dislexia, regularmente matriculados no 1º ano do Ensino Fundamental I. A seleção da amostra desses escolares foi realizada com a identificação dos sinais para a classificação de escolares de risco para a dislexia, conforme descrito na introdução do estudo, pelo professor responsável pela turma.
Os critérios de inclusão adotados para a seleção da amostra foram escolares com acuidade visual, auditiva e desempenho cognitivo dentro dos padrões da normalidade; e escolares que nunca foram submetidos à intervenção fonoaudiológica e/ou psicopedagógica, sendo estes dados obtidos no prontuário escolar. Assim, os critérios de exclusão adotados para a seleção da amostra foram escolares com diagnóstico de Transtorno do Desenvolvimento da Linguagem (TDL), Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC), Apraxia de fala ou Desvio fonético; escolares com acuidade visual, auditiva, desempenho cognitivo e motriz abaixo dos padrões da normalidade, e presença de outras síndromes genéticas ou neurológicas, sendo estes dados obtidos no prontuário escolar.
Descrição dos procedimentos utilizados
A avaliação foi realizada com o uso de três provas que possibilitassem verificar o desempenho em compreensão auditiva de sentenças, compreensão de leitura oral de sentenças e compreensão visual com o apoio de imagens.
A compreensão auditiva de sentenças foi avaliada com frases lacunadas extraídas do instrumento Cloze, caderno I (Mauro & Bitar, 2017) e adaptadas para aplicação oral. As frases foram selecionadas de acordo com a extensão (entre cinco e sete palavras), frequência das palavras (alta) e por complexidade (frases simples). Foram selecionadas 10 sentenças lacunadas, apresentadas auditivamente, contendo duas opções de palavras semanticamente diferentes para o preenchimento das lacunas. O escolar foi instruído a ouvir e interpretar a frase para, em seguida, escolher qual palavra melhor preencheria a lacuna.
O objetivo dessa prova foi verificar o processamento da informação auditiva, o acesso ao vocabulário receptivo, a memória auditiva e a recuperação da informação acessada pela compreensão de sentenças.
Na avaliação da compreensão de leitura oral de sentenças foram utilizadas seis sentenças, sendo três simples e três compostas, em que o escolar deveria realizar a leitura oralmente. As frases foram extraídas do instrumento Cloze, caderno I (Mauro & Bitar, 2017), e adaptadas para a apresentação do estímulo frasal. As sentenças foram selecionadas de acordo com a extensão (entre cinco e nove palavras), frequência das palavras (alta), palavras com representatividade figurativa (para o preenchimento das lacunas) e por complexidade (frases simples). Após a leitura da frase completa, o escolar recebeu a mesma frase, porém, lacunada e com duas opções de figuras semanticamente semelhantes para o preenchimento da lacuna. Dessa forma, o escolar foi instruído a ler, compreender a frase, para, em seguida, selecionar a figura que melhor a completasse.
O objetivo dessa prova foi verificar o processamento da informação visual via decodificação, o acesso à memória lexical e fonológica, o acesso ao vocabulário expressivo, e a recuperação da informação para a compreensão da frase com auxílio do uso de figuras.
Para a avaliação da compreensão de leitura com imagens foi utilizada a prova de compreensão auditiva de sentenças a partir de figuras do teste Protocolo de Identificação Precoce dos Problemas de Leitura - IPPL (Capellini et al., 2017) adaptada para a compreensão leitora. Assim, ao invés de ouvir as sentenças, a criança foi orientada a realizar a leitura. Para cada frase, foi apresentada uma imagem diferente. As frases foram lidas pelo escolar que, logo após a leitura, deveria completar a frase com base na imagem correspondente.
O objetivo desta prova foi verificar o processamento da informação visual, a percepção e organização temporal para a ordenação dos fatos, e a compreensão leitora com apoio das imagens.
A aplicação foi realizada na escola, de forma individual, em sala cedida pela direção em que apenas a avaliadora e o escolar estavam presentes. A análise das respostas foi realizada atribuindo um ponto para cada resposta correta. As provas de avaliação da compreensão foram aplicadas em uma sessão, com duração média de 30 minutos.
A intervenção foi realizada com uso do Programa de Intervenção Fonológica para escolares em fase de alfabetização (Silva & Capellini, 2019), composto por 15 sessões cumulativas com enfoque na identificação dos sons e das letras do alfabeto em sequência, identificação dos sons e das letras do alfabeto em ordem aleatória, identificação e produção de rima, produção de rima com frases, identificação e manipulação de palavras, identificação e produção de sílabas, segmentação e análise silábica, identificação e segmentação fonêmica, substituição, síntese, análise e discriminação fonêmica. O programa de intervenção fonológica selecionado trabalha com complexidade crescente das atividades propostas, sistematização das habilidades, frequência e regularidade de estímulos, além de associar as atividades ao uso frequente de imagens.
As sessões da intervenção foram realizadas com aplicação individual, no âmbito educacional, com duração média de 30 a 40 minutos para cada sessão, sendo aplicadas três vezes por semana, em dias intercalados. Todos os escolares desse estudo foram submetidos aos mesmos procedimentos em situação de pré e pós-testagem, e intervenção. A coleta de dados foi realizada no segundo semestre escolar, permitindo que os escolares fossem expostos ao aprendizado formal antes de serem submetidos a avaliação e intervenção.
Análise dos dados
Os resultados deste estudo foram submetidos à análise estatística para maior confiabilidade. As variáveis quantitativas foram apresentadas por média e desvio padrão. O teste utilizado para comparação intergrupos foi o Teste de Mann-Whitney, com o intuito de verificar possíveis diferenças entre ambos os grupos estudados. O teste utilizado para comparação intragrupo foi o Teste dos Postos Sinalizados de Wilcoxon, com o intuito de verificar possíveis diferenças entre os dois momentos de observação por grupo estudado. O nível de significância adotado foi p<0,05. O programa estatístico utilizado foi o SPSS (Statistical Package for Social Sciences), em sua versão 20.0.
Resultados
Os resultados foram estruturados no formato de tabela, indicando os valores obtidos nas análises realizadas para cada prova de compreensão de sentenças. Dessa forma, a Tabela 2 apresenta a comparação intergrupos para as variáveis de compreensão auditiva de sentenças, compreensão oral de leitura de sentenças e compreensão por imagens, em situação de pré e pós-testagem. De acordo com os resultados, foi possível identificar que houve diferença estatisticamente significante para compreensão auditiva de sentenças na comparação da pré e pós-testagem, e na compreensão oral de leitura de sentenças e de compreensão por imagem em pré-testagem.
Na Tabela 3 foi possível verificar, em situação de pré e pós-testagem, na comparação intragrupo para GI, que houve diferença estatisticamente significante na comparação dos resultados obtidos para compreensão auditiva de sentenças e compreensão oral de leitura de sentenças, com aumento das médias de desempenho para ambas as provas em pós-testagem.
De acordo com os resultados obtidos na Tabela 4, torna-se possível identificar que houve diferença estatisticamente significante na comparação do desempenho dos escolares de GII em todas as provas analisadas. Assim, os resultados indicam aumento das médias obtidas na pós-testagem, em comparação à pré, em compreensão auditiva de sentenças, de leitura oral de sentenças e de leitura por imagens.
Discussão
A análise dos resultados permite verificar o desempenho dos escolares com bom desempenho acadêmico e de risco para a dislexia, em compreensão de sentenças, na comparação intergrupos e intragrupos, antes e após a submissão à intervenção de um programa com a consciência fonológica. Os resultados indicaram desempenho estatisticamente significante para a prova de compreensão auditiva de sentenças em pré e pós-testagem, e para a compreensão oral de leitura de sentenças e com o apoio de imagens em pré-testagem, quando comparados os desempenhos de GI e GII. Com base nos dados, ainda é possível verificar aumento das médias de desempenho na comparação de todas as variáveis analisadas, mesmo na ausência de resultados significantes. Assim, os estímulos ofertados na intervenção fonológica mostraram-se capazes de auxiliar na melhora do desempenho desses escolares (Hämäläinen et al., 2015; Justi et al., 2020).
A consciência fonológica apresenta como pressuposto o desenvolvimento da percepção consciente de segmentos da língua, com o intuito de direcionar a atenção auditiva para os sons que compõem as palavras, permitindo a discriminação e manipulação para a formação de novas palavras (Cavallieri et al., 2016; Lonigan et al., 2013). O direcionamento da atenção aos estímulos auditivos mostra-se presente em atividades de percepção auditiva, uma vez que para compreender auditivamente uma informação a criança necessita direcionar sua atenção ao estímulo, filtrar e reter as informações relevantes para o uso e manipulação futura (Koen et al., 2018).
Dessa forma, torna-se possível sugerir que para crianças de risco para a dislexia a intervenção fonológica, além de impulsionar a percepção para os sons da língua, presentes em fonemas, sílabas e palavras, também auxilia no armazenamento de informações auditivas para a compreensão de sentenças curtas (Park & Lomberdino, 2013).
O resultado significante em situação de pré-testagem para as provas de compreensão oral de leitura de sentenças e compreensão com apoio de imagens indica que a diferença de médias entre os escolares de GI e GII é reflexo do quadro de risco para a dislexia. No entanto, os escolares do grupo GII, mesmo com desempenhos inferiores ao GI, apresentaram aumento de médias de desempenho, o que sugere que o trabalho com a consciência fonológica influenciou na decodificação de palavras e para sentenças/frases curtas, como as utilizadas na pesquisa, apontando ganhos na retenção e recuperação da informação (Cárnio et al., 2017).
O processo de compreensão não ocorre apenas pela decodificação de palavras ou frases, compreender envolve habilidades mais específicas e que compõem, além da decodificação, o acesso ao léxico, amplo vocabulário, uso de inferências e a conexão entre as informações dentro de um processo de automonitoramento para a leitura.
Ainda nessa perspectiva, a decodificação de palavras e frases simples é um dos passos iniciais para que seja possível ensinar o processo de compreender textos. Logo, a intervenção com a consciência fonológica se mostrou uma ferramenta com alto potencial em auxiliar crianças com risco para a dislexia no aprendizado tanto da leitura como da compreensão de sentenças, por estimular habilidades que se encontram defasadas nesta população (Hämäläinen et al., 2015; Silva et al., 2019).
Na comparação das médias de desempenho intragrupo os resultados obtidos permitem verificar significância estatística em todas as provas avaliadas para GII e para as provas de compreensão auditiva e de leitura oral de sentenças para GI, sendo que, para a compreensão de sentenças por imagens, os escolares de GI mantiveram as mesmas médias em pré e pós-testagem.
Os escolares sem risco para a dislexia aparentemente foram sensíveis aos estímulos ofertados na intervenção fonológica, maximizando seus desempenhos em provas de compreensão, tanto auditiva quanto para a leitura. Os resultados sugerem a potencialização das informações via percepção auditiva e o desenvolvimento explícito da consciência fonológica como aspecto impulsionador na discriminação, armazenamento e recuperação das informações, favorecendo, além da leitura de palavras, a compreensão de frases simples. Estudos relatam o aprendizado da leitura e da compreensão como um processo progressivo, com início no aprendizado da percepção de segmentos sonoros e reconhecimento de palavras, transpostos para a representação gráfica e, posteriormente, da decodificação de palavras e frases aos textos (Kjeldsen et al., 2019; Konrad & Lorandi, 2019; Vaughn et al., 2019).
O mecanismo de conversão letra/som trabalhado em programas de intervenção de base puramente fonológica permite o desenvolvimento da percepção dos segmentos sonoros para a composição e reconhecimento de diferentes palavras, o que favorece o processo de decodificação, pois amadurece o uso da rota fonológica (Santos & Fernandes, 2016). Uma vez ampliadas as rotas de acesso à informação, a memória lexical tende a se consolidar e repercutir na leitura, consequentemente, uma leitura acurada e assertiva torna-se um dos alicerces para o aprendizado da compreensão (Xu et al., 2018).
Quando analisado o desempenho dos escolares de GII, classificados como de risco para a dislexia, sabe-se que esta população apresenta como característica alterações em habilidades de baixa ordem para o aprendizado da leitura, pois o armazenamento das letras e seus respectivos sons não é uma tarefa simples a ser realizada ou aprendida intuitivamente (Avarena et al., 2018). A intervenção de base fonológica proporciona a estimulação dessas habilidades preditoras à alfabetização, potencializando o uso da rota fonológica e o acesso à rota lexical, de forma que ambas se fortalecem mutuamente e geram ganhos no desempenho em leitura e, posteriormente, facilitam o aprendizado da compreensão (Barbosa et al., 2016; Toffalini et al., 2019).
Estudos indicam que o desempenho em compreensão inicia-se no nível da palavra, seguindo para frases, até chegar no nível textual, assim, a compreensão frasal, auditiva, por leitura oral ou com auxílio de imagens trata-se de um processo que exige menos recursos de habilidades metacognitivas quando comparado à leitura de um texto. No entanto, na medida em que se aumenta a compreensão em leitura de palavras tende-se a melhorar a compreensão de sentenças, o que oferece suporte para a compreensão de textos. Tais estudos apontam que para o trabalho com compreensão não basta ensinar a decodificar palavras, mas também a oferecer significado a elas, e que a intervenção fonológica associada à compreensão de palavras e sentenças pode ser uma ferramenta condutora nesse processo (Gandhi et al., 2018; Park & Lomberdino, 2013).
A ampliação lexical para os escolares em fase inicial de alfabetização possibilita uma leitura menos laboriosa com resultados positivos para a compreensão dos vocábulos. Sem dúvida, o desenvolvimento conjunto dessas habilidades favorece o aprendizado infantil e tende a alavancar suas experiências com a leitura, preparando para as decodificações mais complexas, como a leitura de diferentes palavras, de alta e baixa frequência, que compõem um texto (Justi et al., 2020; Koen et al., 2018; Lawton, 2016).
O desempenho em provas de compreensão de leitura por imagens é uma habilidade de compreensão que envolve aspectos como a percepção visual de estímulos (as imagens) que permite a organização sequencial, espacial e temporal dos fatos via input visual. Para que seja extraída a compreensão, o escolar deve compreender a sentença escrita e relacioná-la com sua imagem. Esta tende a ser uma prova de menor complexidade comparada à compreensão auditiva ou por leitura de sentenças, pois o aceso às imagens oferece informações que podem ser compreendidas sem a necessidade de decifrar o código escrito por completo, auxiliado por inferências (Sarver et al., 2012; Toffalini et al., 2019).
A estratégia de compreensão com apoio em imagens vem sendo relatada em estudos como um processo facilitador para escolares com dificuldades em leitura por possuir pistas concretas que, muitas vezes, esses escolares têm dificuldade em associar de forma abstrata por uma decodificação ainda precária ou em processo de aquisição. Mesmo tratando-se de uma atividade menos demandante aos escolares, a falha nessa prova sugere um déficit em acesso à informação e organização temporal dos fatos a ser melhor investigado, principalmente para escolares classificados como risco para a dislexia (Lawton, 2016; Silva & Capellini, 2019).
Com base nos resultados obtidos e discutidos neste estudo, é importante ressaltar que o desenvolvimento da consciência fonológica é considerado um importante preditor para o aprendizado da compreensão tanto de palavras quanto de sentenças e de textos. As médias de desempenho foram identificadas para os escolares de risco para a dislexia não com o intuito de conduzir o diagnóstico, mas com a proposta de verificar o potencial da intervenção no desempenho desses escolares, para o monitoramento de seus desempenhos desde os anos iniciais da alfabetização. No entanto, torna-se necessária a aplicação de provas específicas de vocabulário, memória de trabalho e compreensão textual para tornar os dados relacionados à compreensão mais robustos, assim como a ampliação da amostra, com formação de um grupo controle.
Considerações
De acordo com os resultados deste estudo, torna-se possível confirmar a hipótese de que a consciência fonológica é um impulsionador importante para o aprendizado das habilidades de leitura e compreensão de escolares de risco para a dislexia. Os resultados evidenciaram a melhora do desempenho em compreensão de sentenças para as três modalidades analisadas, sendo elas a auditiva, por decodificação e por imagens, após a aplicação da intervenção fonológica, evidenciando sua influência no desempenho dos escolares de risco para a dislexia.
Acredita-se que com o desenvolvimento da consciência fonológica houve melhora na discriminação e percepção auditiva, fortalecendo o acesso à memória fonológica, além da capacidade em decodificar segmentos como fonemas, sílabas e palavras, o que refletiu nos ganhos em compreensão de sentenças. No entanto, este estudo deve ser um norteador para novas pesquisas, com a justificativa de ampliar a amostra e realizar a correlação entre outras habilidades associadas à compreensão de leitura.
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Endereço para correspondência:
Cláudia da Silva
Instituto de Saúde de Nova Friburgo - RJ
Departamento de Formação Específica em Fonoaudiologia - FEF
Rua Dr. Silvio Henrique Braune, 22
Nova Friburgo, RJ, Brasil - CEP 28625-650
E-mail: claudia_silva@id.uff.br
Artigo recebido: 12/5/2022
Aprovado: 5/6/2022
Trabalho realizado no Instituto de Saúde de Nova Friburgo da Universidade Federal Fluminense (ISNF/UFF), Nova Friburgo, RJ, Brasil.
Conflito de interesses: As autoras declaram não haver.