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Revista Brasileira de Psicodrama
versão On-line ISSN 2318-0498
Rev. bras. psicodrama vol.26 no.2 São Paulo jul./dez. 2018
https://doi.org/10.15329/2318-0498.20180029
ARTIGOS INÉDITOS
Conversas de um psicodramatista com Nietzsche
Conversations between a psychodramatist and Nietzsche
Conversaciones de un psicodramatista con Nietzsche
Luiz Contro
Psicólogo. Psicodramatista didata supervisor pelo Instituto de Psicodrama e Psicoterapia de Grupo de Campinas/SP (IPPGC FEBRAP). Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade de Campinas (Unicamp). E-mail: contato@luizcontro.com.br
RESUMO
O autor resgata, em sua trajetória profissional, as origens de seu interesse atual por ideias do filósofo Friedrich Nietzsche. Em seguida, mediante a descrição de instantes significativos acontecidos no seio de um processo psicoterapêutico, explora articulações com o método psicodramático, em especial entre as noções de vontade de poder e espontaneidade. O procedimento genealógico, as proposições de eterno retorno e de perspectivismo são outras contribuições do filósofo das quais o autor tem se valido em sua prática, permeada por uma concepção trágica de mundo. Alerta, no entanto, para os cuidados necessários ao se fazer interlocuções entre diferentes campos de saber, sob o risco de se descaracterizar conceitos. Por fim, avalia que as conexões têm se mostrado fecundas.
Palavras-chave: Nietzsche, vontade de poder, psicodrama, espontaneidade, psicoterapia
ABSTRACT
The author rescues, in his professional trajectory, the origins of his current interest in some ideas of the philosopher Friedrich Nietzsche. Then, through the description of significant moments that took place in a psychotherapeutic process, he explores articulations with the psychodramatic method, in particular between the concepts of will to power and spontaneity. The genealogical procedure, the propositions of eternal return and perspectivism are other contributions of the philosopher of which the author has used in his practice, permeated by a tragic worldview. He alerts, however, to the necessary care when making interlocutions between different fields of knowledge, under the risk of mischaracterizing concepts. Finally, he evaluates that the connections have been fruitful.
Keywords: Nietzsche, will to power, psychodrama, spontaneity, psychotherapy
RESUMEN
El autor rescata, en su trayectoria professional, los orígenes de su interés actual por ideas del filósofo Friedrich Nietzsche. En seguida, a través de la descripción de instantes significativos ocurridos en el seno de un proceso psicoterapéutico, él explora articulaciones com el método psicodramático, en especial entre las nociones de voluntad de poder y espontaneidad. El procedimiento genealógico, las proposiciones de eterno retorno y perspectivismo son otras contribuciones del filósofo de las cuales el autor se ha valido en su práctica, permeada por una concepción trágica de mundo. Por fin, él evalúa que las conexiones se han mostrado fecundas.
Palabras clave: Nietzsche, voluntad de poder, psicodrama, espontaneidad, psicoterapia
APROXIMAÇÕES INICIAIS
Em 1989, Alfredo Naffah publicou o livro Paixões e questões de um terapeuta. Nele, o então psicodramatista nos oferece suas incursões pelo universo de Friedrich Nietzsche (1844-1900), Deleuze e Guatarri, e as reverberações causadas no seu fazer psicoterápico.
No ano de 1996, participei de uma mesa-redonda, cujo tema era Psicodrama e arte.A reflexão coletiva produzida foi registrada na RBP no ano seguinte (Contro et al., 1997). Ali, busco Nietzsche para fundamentar a importância da dramatização no método psicodramático. Por meio dela, temos a constituição de uma realidade suplementar, responsável maior por nossa intersecção com o universo artístico. Comento que, em O nascimento da tragédia (Nietzsche, 2007), o filósofo alemão afirma que a arte suplementa a realidade. Ou seja, no palco psicodramático, a relevância de construirmos uma realidade suplementar habitada por imagens, cenários, personagens e enredos se dá pelo fato de que, com isso, podemos enriquecer de novos ingredientes e perspectivas uma realidade do contexto social que se apresenta repetitiva e conflituosa.
Saltamos para 2009, ano em que meus estudos miravam a literatura (Contro, 2012), fonte de retratos de dinâmicas relacionais que podem iluminar nosso ofício. Nesse campo, retomo Fernando Pessoa (Contro, 2018), com quem mantenho diálogos até hoje, sendo o poeta um dos responsáveis por me reapresentar Nietzsche, uma vez que foi influenciado por algumas obras do alemão (Ryan, Faustino & Cardiello, 2016). Identifiquei então que havia ainda muitas interfaces a explorar com o filósofo. Não à toa, Jonathan Moreno (2016, p. 86), ao relatar sobre os primórdios do surgimento do psicodrama, comenta acerca do "impacto de Friedrich Nietzsche sobre essa geração de intelectuais de língua alemã", na qual estava inserido seu pai.
As leituras e discussões feitas daí por diante têm me estimulado em alternativas que já se fazem sentir em minha prática. É sobre isso que discorro aqui. Trago trechos de um processo de psicoterapia psicodramática em que o vínculo com o cliente também é atravessado por meus diálogos com Nietzsche.
SOLILÓQUIOS DO TERAPEUTA
Joel e eu nos encontramos algumas vezes e abordamos certos temas, dentre aqueles que o trouxeram à terapia. Principalmente sua insatisfação com o trabalho, por apenas suportá-lo, e com o relacionamento amoroso, um tanto sem viço. Numa sessão mais adiante, eu já tinha como perceber algo como recorrente:
- Você tem repetido uma postura corporal em que teus ombros estão arcados, tua voz tem volume baixo... você me parece desvitalizado. Esteve sempre assim?
Sabemos, como psicodramatistas, que os papéis, as dinâmicas relacionais, as institucionalizações de uma cultura e sociedade expressam-se como conservas, também por meio da singularidade do corpo. Este, como "ser em relação", como ente inserido e participante da rede social, mostra-se com sintomas dos dramas ali vividos. Fundamentado nisso é que fiz a pergunta acima, a pesquisa rumo a possíveis revelações de encadeamento de acontecimentos que podem ter gerado um incorporar, ao que parece, domesticado. Nas matrizes, locus e status nascendi dos fluxos relacionais, busco os porquês e como originaram um corpo cansado, na tentativa de expandir suas forças de se estar em relação.
Mas, enquanto Joel confirma os sintomas e entramos em contato com episódios de sua vida passada e recente que se relacionam com isso, sou, simultaneamente, atravessado por pensamentos do nosso filósofo em pauta.
Nietzsche identificou que a complexidade da vida pede mapeamentos e ações multifacetadas. Essa compreensão o impulsionou, inclusive, a se comunicar de diferentes maneiras, na tentativa de delinear suas reflexões e chegar ao leitor, seja pela dissertativa, pelas imagens poéticas ou por aforismos. Uma visão de mundo plural que também se refletiu na noção de que o homem é composto da diversidade. Um assunto nada fácil e que me faz ecoar esses versos, por mim já antes escritos:
versar
um bom verso
com poucas palavras
pode grafar
um universo
o inverso
com todas palavras
pode manchar
o que se versa
um ótimo verso
com suas palavras
pode vicejar
um multiverso
verso sobre um universo
pretendendo que seja
um multiverso
mas compreendendo
ser mera versão
Assim, nós nos constituímos, em nossa singularidade e como grupos, não por uma exclusiva tendência, mas por jogos de forças, conscientes e inconscientes, em fluxo e refluxo, partindo das mais simples e calmas e atingindo as mais complexas e ardentes, muitas vezes em conflito, extrapolando os enquadramentos reducionistas que se dão via limitada perspectiva de gênero, crença, valor ou moral. Era isso que Nietzsche entendia por concepção trágica de mundo, tendo bebido da fonte dos gregos pré-socráticos. Estes vislumbravam a heterogeneidade do mundo, tomando a vida sempre como um vir a ser, processo em constante movimento, em que principalmente a arte é que ocupava o lugar central, por poder dar conta de aglutinar diferentes e diversos sentidos.
Mas, a partir do século V a.C., a noção de verdade introduz a ideia de que tudo tem uma essência. Nessa linha, por meio do pensamento lógico é que se atingiria essa verdade. Passamos então a desenvolver uma forma dicotômica de olhar a vida, na qual o certo e o errado, o bom e o mau, entre outras tantas, é que conformaram nossas lentes. Segundo o filósofo, essa ruptura ocasionada, vinda de Parmênides mas estruturada principalmente por Sócrates e Platão - e que mais adiante as religiões judaico-cristãs vão dela se apropriar -, nos imprimiu a compreensão de que a vida, e portanto o mundo, está dada e que cabe ao homem dela se apropriar por meio da razão. Toda obra nietzschiana é então erigida para retomar o caminho pré-socrático, onde se concebe que o universo não foi criado por alguém a partir de determinado momento e que não existe céu e inferno, mas que o homem é quem vai, com seu corpo, intuição, pensamentos e sentimentos, se construir. O mundo está por se fazer. E que seja da forma mais bela. Portanto, a finalidade estética da vida é que vai constituir o ideal trágico da filosofia nietzschiana (Faustino & Cardiello, 2016).
Foi influenciado por Schopenhauer (1788-1860), também filósofo alemão, que já postulava que a vontade de viver - essência única de todos os seres, vontade cega e, assim sendo, inconsciente - habitaria o campo da intuição, e não da razão, levando a uma filosofia da vida, do querer viver, a uma filosofia na qual, mesmo existindo os necessários conceitos abstratos, eles não preponderassem. Dizia que o filósofo não é uma cabeça de anjo alada, mas um corpo. Dessa maneira, a vontade, esse impulso e encadeamento de desejos, se manifesta no corpo. São nos atos, no corpo em ação, que se manifesta a vontade de viver. Mesmo o conhecimento seria intuitivo: quero, logo sou. A primazia da vontade em relação ao intelecto. Uma vontade que produz um corpo que produz um intelecto. E até a metafísica, segundo Schopenhauer, seria vivida pela experiência que é sempre corporal.
Sob essas marcas, Nietzsche buscou contornos que pudessem captar esse sujeito múltiplo, e sujeito múltiplo como processo, não como produto. Um constante devir, como já dito. Marcha ininterrupta essa alavancada pela força motriz da vontade de viver schopenhauriana que se transmutará, em Nietzsche, em vontade de potência ou vontade de poder (2014, pp. 147-151; 2004, §36), afeto primário que se dá ao nível do organismo. Toda célula, tecido e órgãos, toda natureza quer expandir-se, quer mais potência. São as forças ativas que criam, que olham para o novo, que dão outros sentidos para as coisas existentes. Estão em luta permanente com as reativas, as que conservam ou que aprisionam um passado. Mais tarde, negando qualquer metafísica, renega Schopenhauer. Diz que precisamos curar a "doença de Platão", um dos responsáveis por cindir o mundo em dois, o físico e o metafísico, e criar o idealismo na filosofia.
Ao mesmo tempo que esse conhecimento me perpassa, observo Joel enquanto discorre os fatos e me pergunto como lidamos com nossa vontade de viver, com a vontade de potência. Penso que suprimindo-a, uma vez que vai de encontro a determinadas normas e valores estabelecidos; afirmando-a, por ir ao encontro dos impulsos mais originais. No mais das vezes, alternamos ou combinamos essas duas respostas.
VONTADE DE POTÊNCIA E ESPONTANEIDADE
Um tanto mais distanciado da cena com Joel, enquanto escrevo essas páginas, dou passos iniciais na reflexão sobre possíveis conexões entre as concepções de vontade de potência e a de espontaneidade, já que me recordo que, etimologicamente, o termo espontaneidade vem do latim sponte, significando "por livre vontade" (Fox, 2002, p. 86). Ou seja, a noção de vontade é comum entre as duas postulações. O que há de semelhante? O que pode distingui-las quando inseridas na filosofia nietzschiana e no método psicodramático?
Articulações ou paralelos entre ingredientes oriundos de diferentes áreas de saber sempre requerem cuidados, uma vez que podem descaracterizar os conceitos ao se fazer uma interlocução forçada. O trabalho aqui é facilitado ao sabermos que Nietzsche é referendado como autor, por vezes, inserido na linha divisória entre a filosofia e a psicologia, por ter se preocupado com assuntos que almejam o bem viver, mesmo que nunca desconsiderando as agruras que o constituem. Como um dos exemplos, defendia que nossa fisiologia, como resultante momentânea entre as forças em nosso corpo, é que vai influenciar nossos estados emocionais. Por sua vez, Moreno e os psicodramatistas contemporâneos, além de também transitarem pela psicologia, frequentemente recorrem ao intercâmbio com filósofos, exatamente pela justaposição de temas de interesse. Na abordagem que estamos fazendo, Moreno e Nietzsche se debruçaram sobre a tentativa de esclarecer a respeito dessa espécie de energia que move o homem. Desse modo, já vimos um pouco sobre o que o termo vontade de potência tem a dizer. Moreno, entre outros trechos, se posicionou assim ao considerar a espontaneidade como sendo essa força motora da vida:
Deve existir um fator com que a natureza generosamente dotou o recém-chegado ... que o habilita a superar-se a si mesmo, a entrar em novas situações como se carregasse o organismo, estimulando e excitando todos os seus órgãos para modificar suas estruturas a fim de que possam enfrentar as suas novas responsabilidades. A esse fator aplicamos o termo espontaneidade. (1993, p. 101)
Outro elemento comum entre a filosofia nietzschiana e o psicodrama diz respeito a importância que a arte e a criação ocupam para ambos, estabelecendo, assim, mais uma zona de intersecção onde podemos exercitar conexões entre alguns de seus pontos de vista. Para Nietzsche, pela mirada da arte é que mobilizamos nossas forças que dão novo sentido às coisas.
Consideremos apenas mais um. Podemos argumentar, inicialmente, que a vontade de potência ou a vontade de poder se localizaria no âmbito exclusivo da individualidade - o que por si só já seria questionável, uma vez que nossas forças interagem com forças de um outro também - enquanto a postulação do fenômeno da espontaneidade melhor teria se desenvolvido na seara do relacional. Advogaríamos, assim, contrariamente a viabilidade desse experimento. A meu ver, entendo que essa dicotomia, apesar de seu valor didático, não dá conta de abarcar a linha porosa entre o individual e o relacional, cuja transitoriedade inerente entre um e outro condiz com a concepção trágica de mundo, tanto nietzschiana, como vimos, quanto é o psicodrama que compartilho com outros autores (Santos, 1990). Ou seja, a vida, o homem e o mundo são constituídos por forças contraditórias e complementares, e não por dualidades excludentes. Mais especificamente sobre o que se trata aqui, há componentes tanto individuais quanto relacionais seja na concepção de vontade de potência seja na de espontaneidade. O pesquisador é que estabelece o foco sobre o qual vai se debruçar.
Concluindo sobre a viabilidade do intercâmbio a ser feito, pressuponho que o núcleo singular da filosofia é circundado por um campo constituído, quem sabe entre outros fatores, pela psicologia, pela arte e pela visão trágica de mundo. E que o mesmo se dá com o núcleo psicodramático. Forma-se então uma zona de interdisciplinaridade fértil sem que se descaracterize a especificidade de cada núcleo (Contro, 2011a).
Como se não bastassem essas fundamentações, das quais tenho me utilizado para justificar a coerência em articular o psicodrama com outros campos de saber, como a análise institucional (Contro, 2011b) e a literatura, relendo alguns trechos de Moreno identifico que ele próprio, ao discorrer sobre espontaneidade, tomando-a por "vontade de criar", já havia esboçado um princípio de interlocução com a noção de vontade de poder (Moreno, 1993, p. 165). No entanto, em seu enfoque abordou-a como um dos fatores responsáveis pelo surgimento das conservas culturais, fazendo uma leitura do termo que, a meu ver, se distancia daquilo que foi propugnado por Nietzsche. Vejamos o que escreve Moreno:
O homem criou um mundo de coisas, as conservas culturais, a fim de produzir para si mesmo uma semelhança de Deus. Quando o homem se deu conta de que fracassara em seu esforço para a criatividade máxima, separou da sua vontade de criar uma vontade de poder,1 usando esta última como um meio indireto pelo qual realizaria as finalidades de um deus. Com a desesperada ânsia de uma águia ferida que não pode alçar voo com suas próprias asas, o homem apegou-se à oportunidade que lhe era oferecida pelas conservas culturais e as máquinas, com a deificação das muletas como consequência.
Se tomarmos afirmações anteriormente feitas nesse texto de que Nietzsche se empenhou em captar o sujeito múltiplo, este compreendido como processo, e não como produto, um constante devir alavancado justamente pela força motriz da vontade de poder, chegamos a uma incoerência quanto ao que foi defendido por Moreno. Nietzsche não estimula nem prioriza um ponto de chegada. Ao contrário, a vontade de potência ou a vontade de poder são entendidas como forças propulsoras de um estado constante de suplantação do homem, para além dos valores institucionalizados e insuspeitáveis. Na verdade, a vontade de criação, trazida por Moreno, e a vontade de poder seriam faces de um mesmo fenômeno, seja na direção do homem espontâneo seja do "para além do homem"; o homem que tem crítica ao que é determinado e passa a criar, e não a repetir valores: "O homem é uma corda estendida entre o animal e o alémhomem" (Nietzsche, 2014, p. 17). A ideia aqui é de superação.
Apesar de não citar o filósofo nesse trecho reproduzido, é bastante provável que tenha se referido à proposição nietzschiana de vontade de poder. Mesmo porque, até onde eu saiba, não há outro autor que tenha sugerido a mesma concepção, configurada no mesmo termo. Além disso, há que se levar em conta a influência de Nietzsche no pensamento da época de Moreno, como vimos, demonstrando que o psicodramatista dele sabia. Mas não apenas isso. A figura da águia é significativa na obra Assim falava Zaratustra. Desde o prólogo e em diversos outros capítulos, forma par com a serpente e em determinadas passagens cuidam desse personagem trágico nietzschiano, Zaratustra, após suas crises; lhe servem de guia e a dupla é recomendada aos homens por ele para que as escutem. Simbolizam variadas interpretações que não vem ao caso nesse momento. E mais, Assim falava Zaratustra é um texto escolhido por Moreno para uma peça teatral, para demonstrar uma das formas antecessoras do Teatro da Espontaneidade, o Teatro de Conflito (Moreno, 1984, pp. 35-41). Ou seja, os indícios são razoáveis e sinalizam que Moreno sabia do postulado nietzschiano de vontade de poder, uma vez que também nessa obra a essa ideia consta (Nietzsche, 2014, pp. 147-151).
A citação do psicodramatista faria mais sentido se ele associasse conservas culturais às forças reativas, estas sim entendidas como mantenedoras do já conhecido. Embora, para Nietzsche, as obras produzidas pela humanidade - na filosofia, na arte, na ciência, nas religiões - sejam vistas como sintomas da configuração das diferentes forças que atravessam os indivíduos e os povos, e não como resultado da ação de apenas uma.
Ainda por outra perspectiva, a afirmação de Moreno encontraria eco na proposta nietzschiana de niilismo (niil, do latim, significa "nada") diante da modernidade, ou, grosso modo - não é nosso objetivo explorar esse tema nesse escrito -, ao negar a vida metafísica instituída pelo platonismo, o homem moderno estabeleceu a ciência, o conhecimento no lugar de Deus, frustrando-se do mesmo modo, deparando-se novamente com o vazio. Os produtos humanos, as conservas abordadas pelo psicodramatista, poderiam encontrar ressonâncias aqui.
Já que visualizo que a vontade de poder e a vontade de criação são complementares, ao invés de concepções antagônicas, retomemos então a articulação na direção que tínhamos nos proposto: entre vontade de poder e espontaneidade. Recordemos a ideia de espontaneidade como "livre vontade", destacando, primeiramente, apenas a expressão "vontade" em função de ser comum nas denominações nietzschiana e psicodramática. Essa "vontade" enunciada pelo filósofo, descrita como fluxo de forças vitais que nos atravessam, pode ser tomada por instinto, como vimos mais acima. E quanto à espontaneidade? Seria também um instinto?
Essa discussão não é nova. Naffah (1997, p. 62) já havia resgatado essa citação de Moreno: "É útil distinguir entre espontaneidade instintiva e espontaneidade criativa". A distinção se evidencia ao associarmos espontaneidade instintiva a necessidades vitais de preservação cultural, social ou biológica. Ou seja, estaria a serviço de nos proteger, de conservar. Espontaneidade criativa seria aquela que busca a transformação. Daí muito associarmos a espontaneidade com o ato criador.
Penso que a palavra instinto, por si só, dá conta de retratar esse ingrediente dionisíaco - expressão da ordem dos impulsos e dos sentimentos, aproveitando-me de outra representação usada por Nietzsche (2007) - que nos habita, não sendo necessário cindirmos espontaneidade em duas. Tenho para mim que o instinto é uma das faces integrantes do que chamamos por espontaneidade, mas essa não se reduz a ele. Fatores apolíneos - da ordem da forma e da razão - se fazem complementares. O próprio Moreno já observou:
Pensa-se, equivocadamente, que a espontaneidade está mais estreitamente ligada à emoção e ao movimento do que ao pensamento e ao repouso ... a espontaneidade pode estar presente em uma pessoa quando ela está pensando, da mesma forma que quando ela está sentindo, quando está em descanso tanto quanto em ação. (Fox, 2002, p. 86)
Parece-me que a frase moreniana destacada, discernindo entre espontaneidade instintiva e criativa, coube num contexto de tentativa de apropriação do conceito. Como, do mesmo modo, nos serviu aqui. Podemos então ficar com o entendimento de que vontade de potência ou vontade de poder e espontaneidade apresenta um componente de conectividade, qual seja a face comum da intuição. Se tomarmos a noção inicialmente estruturada por Moreno, tendo por base a existência de uma espontaneidade pertencente à criança, mas que com sua inserção no meio social temos um balizamento desse - chamemos assim - fluxo de forças, na medida em que se depara com o institucionalizado, concluímos tratar-se de uma denominação que procura dar conta de fenômeno semelhante ao abarcado por Schopenhauer e, posteriormente, Nietzsche: trata-se de forças naturais, vitais, a constituir nossos corpos que, na relação, na confluência e no embate com forças emanadas pelo outro, pelo social, compõem resultantes ora mais ao centro, ora mais para uma das vertentes. Interação por vezes simples, por vezes intensa, por vezes arrebatadora ao elevar o tom e tencionar os corpos. Fenômenos simultaneamente individuais e coletivos.
Como mais um paralelo entre as duas concepções, retomemos agora a expressão completa de "livre vontade" associada à espontaneidade. Por se tratar da vontade de poder de busca por vida e expansão, podemos conceber que o significado de liberdade também nela se encontra. Paradoxalmente, no entanto, há que se questionar que liberdade ou livre arbítrio é esse, uma vez que a noção de inconsciente - muito antes de Freud já citada nominalmente por Nietzsche e outros filósofos seus antecessores (Ffytche, 2015) - nos alerta que nossas atitudes e escolhas não são tão autônomas como imaginamos que sejam. O que faz com que vontade de poder e espontaneidade sejam familiares também quanto ao inconsciente que as permeia.
A vontade de potência parece estar mais ligada ao dionisíaco, ao instintivo, ao desejo, à disponibilidade e à disputa, a uma constante e multiforme luta por poder, por sobrevivência, por expansão, pelo domínio interno e externo rumo ao "para além do homem".
Cores essas com as quais a espontaneidade não exclusivamente se pinta. A ação espontânea, inclusive, pode ser de recuo, se assim for o mais condizente com a avaliação de determinada situação, o que não significa que estejam preponderando as forças reativas, de conservação no sentido do repetitivo. Além dessa importante função de preservação, a espontaneidade também se coloca como movimento rumo à abertura para novas possibilidades. Fenômeno complexo, pois engloba a capacidade de apreciação multifacetada de situação inusitada, buscando recuperar e/ou angariar novos sentidos e posicionamentos, maior liberdade. E para examinar, nossa corporeidade - entendida aqui como eixo articulador entre o corpo físico e o contexto de mecanismos cognitivos ou fenomenológicos - lança mão de repertório, tanto dionisíaco como apolíneo, seja da percepção, da memória, do pensamento, do inconsciente, do coinconsciente, da consciência corporal, da atenção, da motivação, da criatividade, dos sentimentos, das sensações, dos instintos, enfim, de toda nossa capacidade. Trata-se da tentativa de compreender de modo multidimensional o acontecimento em que se está envolvido e produzir uma escolha de ação - interna, externa e/ou ambas -, compreendida como satisfatória, transformadora, positiva em algum sentido presumido e/ou acordado.
Por enquanto, fiquemos com essas reflexões entre essas duas noções e voltemos a corporeidade de Joel.
CONSTATAÇÕES
- Sempre fui o menino certinho, nunca briguei com ninguém. Tímido, meu irmão mais velho, extrovertido, ocupava o espaço. Meus amigos eram os amigos dele.
Joel está entre aqueles que se encontram muito bloqueados e ofuscados por circunstâncias da vida, o que é demonstrado num corpo retraído e nos fatos inscritos no roteiro de sua história. Uma autoproteção - obviamente não construída à toa - que evita conflitos e procura se balizar entre o certo e o errado, entre o bem e o mal e entre outras tantas dicotomias que tentam nos enquadrar, determinando, julgando e condenando a quem delas tenta fugir, não compreendendo que esses aparentes antagonismos são intrinsicamente conectados, pois, lançando mão do conceito de espontaneidade, da concepção trágica de mundo e do pensamento nietzschiano, uma força só vai se desenvolver quando interage numa contraposição a outra, quando encontra resistência. É justamente na interação entre os opostos que podemos nos aprimorar, e não na mágica eliminação de um dos lados.
Não dar a devida importância à espontaneidade, ou sucumbir nesse jogo de forças inerente ao processo do viver, ocasiona que se prepondere conservas, que vigore valorações impostas, que possamos ser guiados por pastores, tornando-nos parte de um rebanho, na linguagem nietzschiana. Numa das muitas expressões figurativas que usa, Nietzsche (2014, pp. 31-33) apresenta esse animal de rebanho como o camelo, aquele que, em função de uma vida nula ou com pouco sentido, carrega valores alheios. Mas que, numa atitude ativa, pode se fazer valer de seu lado leão ao questionar o que é dado como natural, ao enfrentar o que tenta nos subjugar. Assim, poderia renascer como criança. Desse modo, se aproximaria do olhar da primeira vez - em busca similar ao que se propõe uma das perspectivas psicodramáticas -, da postura de enxergar o mundo como eterna novidade, desenvolvendo amor fati, amor pela vida, uma vez que passa a vivê-la com intensidade. Também a noção de encontro que permeia a obra moreniana, bem como o desejo de ser reconhecido como aquele que trouxe alegria à psiquiatria, e, ainda, a categoria de instante significam uma procura pela vida na sua plenitude e intensidade. Novos paralelos com o que é proposto como amor fati? Será preciso outro escrito para explorálos.
Voltando à busca pelo resgate da intensidade perdida por Joel, penso num instrumento a proporcionar o olhar crítico diante do que é naturalizado. Nietzsche teve a intuição de um referencial, de modelo a ser utilizado: imagine que sua vida assim como está, da forma como você a tem vivido, fosse se repetir eternamente. É isso o que se deseja? Caso não seja, totalmente ou em parte, o que é necessário transformar? Essa espécie de circularidade em que tudo retornaria, servindo também como boa provocação a auxiliarmos em nossas autoavaliações, denominou por Eterno Retorno (Nietzsche, 2012, §341).
Quanto mais o homem consegue vislumbrar e efetivar aquilo que realmente o realiza, se permitindo o estado criança, mais estaria também na direção do além-homem, como vimos, que pode ser similar à representação de um estado espontâneo e criativo, de força, de maior liberdade, de abertura, de superação.
Em minha relação com Joel, o desafio no qual me cabe boa parcela de participação passa por contribuir para chegarmos nesse "estado criança", nesse além do homem que se diferencia do rebanho por se colocar em contato com suas vontades de potência, com seus desejos um tanto mais livres das formas limitantes e conservadas. Retomando essa tipologia característica do pensar nietzschiano, dentre outras, preciso passear com Joel por paisagens mais dionisíacas que apolíneas, uma vez que essas últimas ele já as visita frequentemente.
GENEALOGIA: EM BUSCA DAS MATRIZES
Acontece que não se tira do nada uma vontade de potência. Não basta uma simples autodeterminação. E aqui realço outra contribuição significativa de Nietzsche, principalmente para os métodos psicoterápicos, mas que podem e devem se estender - a meu ver e dentro do que for possível e viável - a outros trabalhos compreendidos na seara do desenvolvimento de pessoas. Nosso autor, filólogo inicialmente, aprendeu a transitar por fontes da literatura, da história e da linguística, que o permitiram, via procedimento genealógico, examinar o surgimento e a evolução da linguagem. Daí ter transposto essa experiência ao campo da filosofia, ao fazer, por exemplo, uma Genealogia da moral (Nietzsche, 2009), título de outra de suas obras. Utilizando o termo moral como indo além da ética e dos bons costumes, abrangendo sentimentos, pensamentos e atos, nesse livro a discorre como fato não inerente ao homem. Não nasce com ele nem é imutável, não é uma essência e não corresponde a algo metafísico. Ela vai sendo construída na história da civilização, influenciada pelos muitos jogos de forças e relações de poder que se configuram nas diversas épocas e entre os múltiplos povos e culturas. Assim, podemos tomar a moral, quando considerada por Nietzsche, como uma "doutrina das relações de poder" (2004, §19). Ou seja, ele foi precursor de um dos métodos que utilizamos para nos perguntar a partir de qual perspectiva surgiram os valores, as ideias, as sensações, os sentimentos. Para cartografar a gênese, o aparecimento, o desenvolvimento e a institucionalização das dinâmicas relacionais, acrescento eu, em função do atendimento psicodramático aqui em questão. De posse desse tipo de instrumento é que podemos mapear e entrar em contato com as matrizes de muitos dos sofrimentos gerados.
Desse modo, em nossos encontros posteriores, revisitamos, Joel e eu, os contextos, os personagens e as dinâmicas que, de diferentes maneiras, contribuíram para que se repetisse nele essas impressões de que lhe cabe transitar apenas pelos bastidores, deixando os espaços de linha de frente a outros, como já havia acontecido na relação com o irmão. Alerta ao fato de que atingir a consciência dos jogos de forças que nos aprisionam corresponde a uma etapa importante do movimento em espiral de idas e vindas que constitui a construção do processo terapêutico, mas, que ele não se resume a essa apropriação, lembrei-me novamente de Nietzsche e resgatei a noção de eterno retorno.
HORA DE AGIR: E O ETERNO RETORNO?
Na intenção de estimular novas escolhas e perspectivas, agora que ele tem mais consciência do enredo até então construído em sua vida, repasso a provocação nietzschiana:
- Joel, imagine que você teria que repetir sua vida como ela está hoje, com o trabalho que tem, com sua vida afetiva, amigos, pensamentos, emoções, tudo..., repetir indefinidamente num eterno retorno, você desejaria que assim fosse?
Depois de refletir, ele disse que transformaria algumas coisas, mas que ainda não sabia como. Mas está, com essa resposta, oferecendo um mapeamento que nos norteará em muitos de nossos encontros, uma vez que sua consciência de necessidade de mudança sinaliza algumas direções. Agora podemos centrar nossas energias no contato com sua vontade de potência de vida para enfrentar os modelos aprisionadores das dinâmicas estabelecidas, escolhendo, no seu caso, posicionamentos mais ativos. Buscamos vacinas contra a passividade, em favor da leveza do riso, do desejo, de estados espontâneos e criativos, bem como do homem trágico, aquele capaz de reconhecer suas inevitáveis contradições para melhor com elas lidar.
Vivenciamos então novos avanços e recuos, repassando cenas já vistas e articulando-as com as mais recentes. Transitamos pela espiral onde, mesmo revisitando o já vivido, podemos sempre atualizá-lo com novos olhares. Alguns meses depois, Joel, feitos os cálculos e também estimulado pela mulher, pediu demissão do emprego que apenas suportava para se lançar em outras oportunidades. Foi o primeiro passo ousado na vida. Está melhor. Essa decisão em conjunto, entre outros aspectos abordados, foi mais um elemento que revigorou seu relacionamento amoroso. Um pequeno movimento, mas em outro sentido. Mais uma vez aparece Nietzsche, pelo fato de ele muito abordar a questão do niilismo. Nesse caso, um niilismo ativo, e não passivo. Ou seja, João se permite o contato com o nada, no papel profissional, mas para poder com mais intensidade mirar novas e melhores alternativas. Afinal, "é necessário ter um caos em si para poder dar à luz uma estrela bailarina" (Nietzsche, 2014, p. 19).
INTERVALO
Apenas um intervalo, pois minhas conversas com Nietzsche não se encerraram. Além de influenciar sua época, continua presente na nossa, suscitando concordâncias, discordâncias e muito pouco neutralidades. De minha parte, tenho-o como provocador que convida a me reposicionar e, assim, considerar algum outro ângulo antes não explorado. Desse modo, meu psicodrama se percebe inoculado por novos agentes, como visto, que fazem germinar reações que vou conhecendo aos poucos. Foi um tanto disso que compartilhei aqui. Novas possibilidades de articulações se insinuaram. Cenas para outros capítulos.
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Recebido: 17/09/2018
Aceito: 07/12/2018
1 Itálicos de Moreno.