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Barbaroi
versão impressa ISSN 0104-6578
Barbaroi no.34 Santa Cruz do Sul jun. 2011
ARTIGOS
Como os professores percebem a violência intrafamiliar1
As the teachers notice the violência intrafamily
Tássia Brenner MachadoI; Cristiane BottoliII
ICentro Universitário Franciscano - UNIFRA - Brasil
IICentro Universitário Franciscano - UNIFRA - Brasil
RESUMO
Esta pesquisa, de cunho qualitativo, objetivou compreender a forma como os professores dos anos iniciais percebem a repercussão da violência intrafamiliar no desenvolvimento dos seus alunos. Foram entrevistadas três professoras que já fazem parte de um projeto de capacitação para lidar com a temática da violência intrafamiliar na escola e outras três que não participam. Todas elas, com mais de dois anos de experiência com anos iniciais, residentes em Santa Maria -RS. A coleta de dados deu-se através de uma entrevista semi-estruturada. Após utilizou-se, como procedimento, a análise de conteúdo. Os resultados demonstraram que as entrevistadas compreendem bem o conceito de violência e violência intrafamiliar, diferenciando-os. Quatro professoras relataram perceber a violência intrafamiliar na escola e duas não. Sobre o enfrentamento dessa situação, todas as entrevistadas responderam que sondariam a situação, comunicariam a escola e entrariam em contato com os conselhos tutelares. Quanto às influências no desenvolvimento infantil da criança, com relação aos pares, foi bastante enfatizada. Em relação à figura do professor, somente três entrevistadas trouxeram dados referentes a isso e, ainda, no tocante a participação ou não de projetos de capacitação, não houve diferenças significativas.
Palavras-chave: Violência intrafamiliar. Professores. Desenvolvimento infantil.
ABSTRACT
This qualitative research intended to understand how teachers at first years of school perceive the impact intrafamily violence has on their students' development. Six female teachers have been interviewed: three participate in a project which aims at enabling professionals to handle intrafamily violence issues in the school environment; the other three do not take part in the project. All six teachers have experience teaching the first years and reside in Santa Maria - RS, Brazil. Data were collected by means of a semi-structured interview. Afterwards, as a procedure, content analysis was carried out. The results obtained demonstrate that the interviewed teachers understand and distinguish the concepts of both violence and intrafamily violence. Four of the teachers reported having observed intrafamily violence at the school, whereas two have not. When concerning handling such situation, all interviewees responded they would investigate it, communicate it to the school and contact guardianship organizations. With regards to the facts that influence child development, the relation amongst peers was emphasized. Only three interviewees brought up data referring to the role teachers play in the teacher-student relation. Furthermore, no significant differences relating to the teachers' participation or nonparticipation in the project were found.
Keywords: Intrafamily violence. Teachers. Child development.
Introdução
Com o passar dos anos é possível observar os diferentes tipos de violência que ocorrem no mundo e no Brasil, dentre elas, a violência intrafamiliar, que se dá entre os membros da própria família, entre pessoas que têm grau de parentesco ou pessoas que possuem vínculos afetivos, sendo que seus maiores alvos são crianças e adolescentes. Este tipo de violência acaba repercutindo no âmbito escolar, onde a criança passa a maior parte do seu tempo e, possivelmente, isso ocasionará dificuldades no desenvolvimento, na aprendizagem e no relacionamento com colegas e professores.
As crianças dos anos iniciais, que têm os primeiros contatos diretamente com os professores, fora do ambiente familiar, contam com a ajuda deles para ter um ambiente transformador, que possibilite uma socialização, abarcando os ensinamentos que devem ser passados. Esse papel dos professores se dá tanto na Escola pública quanto na privada, onde contam com subsídios técnicos para lidar com a temática da violência e outros não.
Quando a violência intrafamiliar interfere nas atividades da escola, o professor, muitas vezes, percebe o que está acontecendo, em função das atitudes e comportamentos das crianças. No entanto, não sabe o que fazer ou age de forma inadequada, ou ainda, se sente impotente, por observar interferências desta, no desenvolvimento infantil. Assim, percebe-se a necessidade de haver pesquisas mais voltadas para a repercussão da violência intrafamiliar, fora do lar, em contextos como a escola, para que seja possível compreender se a criança está demonstrando de alguma forma os atos de violência que sofre em casa, neste ambiente.
Devido ao interesse de conhecer como as professoras dos anos iniciais percebem a violência intrafamiliar no ambiente escolar, e como são os desdobramentos disso no desenvolvimento infantil de seus alunos, com relação aos pares e o vínculo com o professor, esta pesquisa buscou responder: como a violência intrafamiliar repercute no desenvolvimento infantil, a partir da percepção das professoras dos anos iniciais?
Constatou-se que existem inúmeras pesquisas que tratam da violência intrafamiliar, abordando as formas como ela pode se instala. Por outro lado, observou-se também que há uma carência de pesquisas acerca do recorte proposto nessa pesquisa, que consiste em saber como se dá à repercussão da violência intrafamiliar no contexto escolar, e dos desdobramentos da mesma no desenvolvimento infantil, com relação aos pares e à figura de professor de Escolas Públicas e Privadas.
Além disso, destaca-se a importância da Psicologia na Escola, onde o psicólogo é, cada vez mais, solicitado para tentar mediar as relações entre escola, família e violência, como um suporte para que os professores possam encontrar uma maneira de lidar com tais situações.
Assim, essa pesquisa teve como objetivo principal a compreender como os professores dos anos iniciais percebem a repercussão da violência intrafamiliar no desenvolvimento dos seus alunos. Para tanto, os objetivos específicos buscaram conhecer o que os professores pensam sobre violência intrafamiliar; verificar como os mesmos percebem situações de violência intrafamiliar vivenciadas por seus alunos; conhecer também quais as formas utilizadas pelos professores para enfrentar tais situações; identificar estratégias que os professores acreditam ser mais adequadas e eficazes diante de situações de violência intrafamiliar; perceber, através da fala dos professores, como se caracteriza o desenvolvimento infantil a partir da relação e da influência dos pares e da figura do professor em um contexto de violência intrafamiliar e identificar se há diferenças, entre as opiniões dos capacitados para lidar com a temática em questão e os que não são capacitados.
Marco Teórico
Conforme publicação da Organização Mundial da Saúde (2002), em um relatório acerca da violência e saúde, conceitua-se violência como o uso intencional da força física ou do poder em forma de ameaça contra si ou contra outra pessoa, grupo ou comunidade, o que ocasiona, ou tem grande probabilidade de ocasionar, lesão, morte, dano psíquico, alterações no desenvolvimento ou privações.
Segundo Faleiros e Faleiros (2007), todo poder implica a existência de uma relação, mas nem todo poder está associado à violência. O poder é violento quando se caracteriza como uma relação de força de alguém que a tem e exerce-a visando a alcançar objetivos e obter vantagens (dominação, prazer sexual, lucro), previamente definidas. A relação violenta, por ser desigual, estrutura-se em um processo de dominação, através do qual o dominador, utilizando-se de coação e agressões, faz do dominado um objeto para seus "ganhos". Com isso, acaba por negar os direitos do dominado e desestrutura sua identidade. O poder violento é arbitrário ao ser "autovalidado" por quem o detém e julga ter o direito de criar suas próprias regras, muitas vezes contrárias às normas legais.
Ao considerar o contexto da violência no Brasil, Brito et al. (2005) apontam que ela está presente desde a década de 1970 como uma das principais causas de morbi-mortalidade, despertando, no setor saúde, uma grande preocupação com essa temática que, progressivamente, deixa de ser considerada um problema exclusivo da área social e jurídica para ser também incluída no universo da saúde pública.
Devido a grande diversidade de formas de violência, alguns pesquisadores da área da saúde, apesar da falta de integração e escassez de dados, inferem que as várias modalidades de violência ocorridas no ambiente familiar podem ser responsáveis por grande parte dos atos violentos que compõem o índice de morbi-mortalidade (MINAYO, 1994).
Silva (2002) afirma que entender a violência intrafamiliar implica ter uma compreensão histórico-pessoal do indivíduo e da família, como ocorrem as interações entre os membros da casa e a forma de relacionamento interpessoal familiar.
Constatou-se que alguns autores (MAIA; WILLIAMS, 2005; FALEIROS; FALEIROS, 2007; ASSIS, 2005) utilizam o termo violência intrafamiliar, enquanto que outros (BRITO et al., 2005; VAGOSTELLO et al., 2003; MALDONADO; WILLIAMS, 2005) utilizam violência doméstica. Neste trabalho será empregado o conceito de violência intrafamiliar, que se refere à violência contra a criança ou adolescente dentro do contexto familiar.
A violência contra crianças e adolescentes, que pode ser cometida tanto por adultos (de ambos os sexos) como por outros adolescentes, é correntemente classificada como intra ou extrafamiliar. A análise da realidade das situações de violência tem revelado que essa classificação é demasiado genérica, não dando conta da diversidade dos autores e atores envolvidos nessas situações (FALEIROS; FALEIROS, 2007).
Segundo os mesmos autores, nas violências classificadas como intra e extrafamiliar, chamadas por eles de privadas, é importante identificar os atores que se encontram implicados. A violência intrafamiliar pode ser praticada tanto por pais ou responsáveis, como por parentes mais ou menos próximos dos vitimizados, tais como irmãos, avós, cunhados, tios, primos, entre outros. Evidentemente, o mais importante é estabelecer nem tanto o parentesco civil, mas sim o grau de autoridade do violentador sobre a vítima.
Assis (2005) cita que os tipos mais habituais de violência intrafamiliar, tradicionalmente estudados, são: o abuso físico, sexual, psicológico; a negligência e o abandono.
Souza e Jorge (2006) conceituam abuso físico como todo ato violento com uso da força física de forma intencional, não acidental, praticada por pais, responsáveis, familiares ou por outras pessoas, com o objetivo de ferir, lesar ou destruir a criança ou adolescente, deixando ou não marcas evidentes em seus corpos e, muitas vezes, provocando a morte.
Para os mesmos autores, o abuso sexual constitui todo ato ou jogo sexual com intenção de estimular sexualmente a criança ou o adolescente, visando a utilizá-los para obter satisfação sexual. O abuso psicológico consiste em toda forma de rejeição, depreciação, discriminação, desrespeito, cobranças exageradas, punições humilhantes e utilização da criança ou do adolescente, com intuito de atender às necessidades psíquicas do adulto. A negligência é o termo internacionalmente adotado para nomear as omissões dos pais ou de outros responsáveis pela criança ou adolescente, quando estes adultos deixam de prover as necessidades básicas para seu desenvolvimento físico, emocional e social. O abandono é considerado uma forma extrema de violência.
De acordo com Faleiros e Faleiros (2007), quando se discute a violência contra crianças e adolescentes é comum focar-se exclusivamente nos autores, adotando uma visão binária violentador-violentado. No entanto, a violência ocorre em situações nas quais outros atores participam. Normalmente, há pessoas que têm conhecimento da violência e silenciam, permitindo que a mesma se mantenha ou, até mesmo, colaborando para que ela ocorra. Neste contexto também situa-se o ambiente escolar, como um espaço onde essa violência intrafamiliar pode aparecer, através da criança ou do adolescente, das mais variadas formas.
A primeira, e talvez a mais fundamental tarefa da escola, é facilitar o processo de diferenciação e individuação da criança, oferecendo-lhe uma forma de introdução à vida social fora do âmbito doméstico e, com isso, acelerar o processo de clivagem entre o indivíduo e sua matriz familiar de origem, o que é indispensável para o seu crescimento e amadurecimento, tanto para crianças quanto adolescentes (OSORIO, 2002).
A escola deve ser continente adequado às vicissitudes dos alunos no transcurso de seu processo de aprendizagem, sem recorrer à família, para a solução de problemas que devem ser dimensionados e resolvidos no âmbito escolar. Assim, costuma-se dizer que a família educa e a escola ensina, ou seja, à família cabe oferecer à criança a pauta ética para a vida em sociedade; já à escola cabe instruí-la para que possa fazer frente às exigências competitivas do mundo, na luta pela sobrevivência (OSORIO, 2002).
Segundo Ries (2001), o período escolar corresponde a uma fase de superação do egocentrismo, onde a cooperação favorece o diálogo e o respeito às regras que foram combinadas em grupo. Desta forma, a interação cooperativa favorece a autonomia moral, ao mesmo tempo em que propicia o exercício da liderança e solidariedade.
A experiência das crianças na escola afeta é afetada por todos os aspectos do seu desenvolvimento, tais como cognitivos, físicos, emocionais e sociais. Além das características da própria criança, cada nível do contexto de suas vidas influencia seu desempenho escolar, desde a família até o que acontece em sala de aula (PAPALIA; OLDS, 2000). Com relação a estes aspectos é possível pensar acerca das repercussões da violência intrafamiliar no ambiente escolar.
Estudos realizados por Vagostello et al. (2003) mostram que algumas escolas, embora sejam capazes de identificar casos de violência entre seus alunos, ainda apresentam muitas dificuldades para abordar este assunto, que, quando não é negado ou ocultado, acaba sendo equivocadamente tratado.
Conforme Gonçalves et al. (2005), existe grande perplexidade da parte do professor que, muitas vezes, fica sem saber como agir para resolver ou prevenir os múltiplos conflitos que surgem no cotidiano escolar. O que se observa é que, geralmente, ele tem muitas dificuldades de trabalhar as situações de conflito e propiciar ao aluno experiências educativas de interação social construtiva, que favoreçam a sua formação ética e minimizem a violência na escola.
Com relação ao desenvolvimento das crianças na fase escolar, entre seis e oito anos, Papalia e Olds (2000), postulam que neste período o desenvolvimento físico não é tão rápido e nem tão significativo, e que os meninos são levemente maiores que as meninas no início, mas as meninas crescem mais rápido quando entram na adolescência. Além disso, o desenvolvimento cognitivo permite que as crianças formem sistemas representacionais, que são mais equilibrados e realistas do que antes, e elas gastam menos tempo com os pais do que com os pares.
Então, por meio das brincadeiras, as crianças estão em contato físico e social com os outros, adquirindo confiança em suas habilidades e usando mais a imaginação. As brincadeiras oferecem modos socialmente aceitáveis de competir, gastar energia e agir de modo agressivo. O declínio do egocentrismo e o crescimento das habilidades cognitivas permitem que as crianças em idade escolar interajam de modo mais significativo com os amigos (PAPALIA; OLDS, 2000).
Segundo as mesmas autoras, neste período as crianças se beneficiam de diversas formas. Ao brincar com seus pares, desenvolvem habilidades necessárias para a sociabilidade e a intimidade, fortalecendo os relacionamentos e adquirindo o senso de pertencer. Também são motivadas a realizar e adquirir um senso de identidade e também de liderança, além de habilidades de comunicação, cooperação, papéis e regras. As crianças que geralmente brincam juntas têm a mesma idade e vivem no mesmo bairro, sendo os grupos divididos pelo sexo, somente formado por meninos ou por meninas.
Ries (2001) refere que no início da escolarização as interações amistosas normalmente não evidenciam segregação sexual, isto é, na escolha de amigos, é comum a criança nomear "amigos" de ambos os sexos. Mas, posteriormente, observa-se uma progressiva tendência à segregação sexual nas relações amistosas.
Na sala de aula, com relação aos professores, é mais adequado que esses pensem de maneira espontânea, em termos didáticos (o que e como vão explicar, o que vão perguntar), sabendo que é bom ou desejável manter uma boa relação com os alunos na classe. Também compreender a classe como um lugar de relação, onde, inevitavelmente, se relacionam com os alunos (MORALES, 2006).
Assim, para o mesmo autor, pensar na sala de aula como lugar de relação, pode abrir para os professores um horizonte de possibilidades, inclusive didáticas e que, talvez, não estejam utilizando em todo seu potencial. O modo como se dá essa relação com os alunos pode e deve acontecer positivamente tanto no aprendizado deles, e não só na transmissão das matérias, como na própria satisfação pessoal e profissional.
Para Cerqueira (2006), o professor desempenha um papel na sociedade em que é necessário compreender que é essencial conhecer como se dá a aprendizagem, isto é, como acontece o desenvolvimento humano e como deveria ser o processo educativo. Também deve, ajudar os alunos a entenderem a realidade em que se encontram, tendo como mediação para isso o conhecimento, já que o espaço de sala de aula é um lugar privilegiado para isso, uma vez que nela se encontram professores e alunos que participam de ambientes sociais diversificados, que necessitam estabelecer uma convivência.
Para Novais (2004), na instituição escolar, uma pessoa, investida da função de professor, adquire o poder de determinar as ações dos alunos, que legitimam esse poder, pois, ou trazem de casa ou aprendem rapidamente, que ele é autoridade. Porém, o modo como o professor exerce a sua autoridade em sala, de forma autoritária ou liberal, é vital para o estabelecimento (ou não) de uma situação de disciplina em sua turma.
Entretanto, para a autora, tradicionalmente, a autoridade vem sendo confundida nas instituições escolares com autoritarismo. Assim, ter autoridade é igual a ser autoritário com os aprendizes, não lhes dando direito de se posicionarem em relação a diversas questões que ocorrem no contexto escolar. De acordo com essa visão, o aluno se cala, não por crer na autoridade do professor, mas por temer as punições e ameaças (implícitas ou explícitas) dele. Dessa forma, a relação professor-aluno vai enfraquecendo diariamente nessa batalha desigual, onde o primeiro tem todas as armas contra o segundo.
Morales (2006) evidencia que a qualidade das relações interpessoais manifesta-se de muitas maneiras, tais como: na dedicação de tempo à comunicação com os alunos (sendo que assim eles também se comunicam com o professor); na manifestação de afeto e interesse; no gesto de elogiar com sinceridade; na interação prazerosa com os alunos. Também recorda que o oposto seria a rejeição, à distância, a ignorância a respeito dos alunos, o desinteresse. É preciso, então, saber criar um ambiente, uma atmosfera de segurança, de maneira que os alunos possam sentir que na escola se deve trabalhar, da melhor forma possível essas realidades.
O autor também destaca que não é só o professor que influencia os alunos, mas que esses, por sua vez, influem no professor. Neste sentido, cria-se um círculo que não deveria ser vicioso e, sim, potencializador de uma boa relação professor-aluno e de um bom aprendizado.
Assim, chega-se diante de uma situação em que a escola e o professor estão envolvidos diretamente, pois muitas vezes, é no ambiente escolar que são percebidos indícios de violência intrafamiliar, muitas vezes acobertados pelos membros da família.
Metodologia
Esta pesquisa foi de cunho qualitativo, sendo um estudo acerca do universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes das pessoas (MINAYO, 2008).
Para Denzin e Lincoln (2006), a pesquisa qualitativa é uma atividade situada, que localiza o observador no mundo e consiste em um conjunto de práticas materiais e interpretativas, que dão visibilidade àquele. Essas práticas transformam-no em uma série de representações, incluindo as notas de campo, as entrevistas, as conversas, as fotografias, as gravações e os lembretes. Com isso, a pesquisa qualitativa envolve uma abordagem naturalista e interpretativa, do mundo. Isso significa que os pesquisadores estudam os dados em seus cenários naturais, buscando entender ou interpretar os fenômenos, em termos dos significados que as pessoas lhes conferem.
A técnica utilizada foi da entrevista semi-estruturada, que exige o planejamento e a construção de um tópico-guia baseado no referencial teórico, que é composto de um conjunto de títulos em progressão lógica rumo ao tema, considerando os objetivos da pesquisa e possibilitando uma compreensão detalhada das crenças, atitudes, valores e motivações, em relação aos comportamentos das pessoas, em contextos sociais específicos (BAUER; GASKELL, 2005).
Participaram da pesquisa 3 (três) professoras ligadas a um projeto de capacitação para trabalharem com a temática da violência intrafamiliar na escola e 3 (três) professoras que não participam desse projeto. As mesmas têm experiência na docência de anos iniciais, de 2 (dois) anos ou mais, e trabalham com crianças do 1º ao 4º anos.
As professoras residem na cidade de Santa Maria -RS e foram selecionadas, por conveniência, tanto as da escola pública quanto da privada. A amostra, por conveniência, também é chamada de amostra por acessibilidade e foi utilizada, porque, segundo Gil (2006), em pesquisas qualitativas não há um rigor estatístico e nessa forma de escolha o pesquisador seleciona como participantes as pessoas às quais tem acesso, à medida que estas representem os critérios de participantes para a pesquisa.
A fim de investigar como as professoras dos anos iniciais percebem a repercussão da violência intrafamiliar no desenvolvimento infantil dos seus alunos, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com perguntas abertas que tratavam de como as participantes entendiam o conceito de violência e de violência intrafamiliar, se percebiam situações de violência, como enfrentavam essas situações no ambiente escolar e se geravam influências no desenvolvimento infantil dos alunos. Além desse instrumento, foi entregue às participantes o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
O número de entrevistas variou de acordo com o critério de saturação das respostas. Para Fontanella, Ricas e Turatto (2008), o fechamento de amostra por saturação é uma ferramenta bastante utilizada em pesquisas qualitativas. A avaliação da amostra exige uma análise dos dados coletados durante toda pesquisa; assim, a suspensão de novos participantes se dá quando o pesquisador avalia que, no conjunto de informações, os acréscimos de elementos vão ficando raros. Para isso, os mesmos autores apontam para a importância de o pesquisador avaliar se os objetivos da pesquisa foram respondidos com aquela amostra, uma vez que diferentes objetivos específicos serão saturados em diferentes momentos do estudo. Sendo assim, há uma previsão do número de participantes, mas isso só será determinado a posteriori da coleta de dados.
Após o projeto ter sido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa - UNIFRA, conforme o parecer nº 370.2009.3, foi realizado um contato com um dos responsáveis pelo Projeto de Capacitação sobre Violência Intrafamiliar para Professores, através do qual foram sugeridos os nomes de professoras participantes da pesquisa. As professoras contatadas sugeriram outras colegas, que não participavam do projeto, mas que se enquadravam neste estudo, seguindo o critério bola de neve, que, de acordo com Minayo (1996), é uma técnica, em que o entrevistado indica outros possíveis interlocutores e, assim, sucessivamente, criando-se confiabilidade no trabalho.
O primeiro contato com as professoras foi efetuado por telefone, de modo individual. Através desse, verificou-se que havia interesse em participar da pesquisa e foram esclarecidos os objetivos da mesma e garantidos os direitos de sigilo.
Após esta etapa, combinou-se um local para encontro, onde foi entregue o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que foi assinado pelas participantes. O termo garante cuidado nas questões éticas, o anonimato das participantes devido à utilização de nomes fictícios, em respeito aos procedimentos éticos para Pesquisas em Psicologia com Seres Humanos, contidos na Resolução n. 016/2000, do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e do Conselho Nacional de Saúde.
Em um terceiro momento, foram efetuadas as entrevistas individuais, que foram gravadas em MP3, sem tempo estimado, para garantir a fidedignidade das informações e a fluência da comunicação. Após a transcrição, o material gravado foi destruído.
Ao término da coleta dos dados, ocorreu a análise e interpretação dos mesmos, através da análise de conteúdo, que é um conjunto de técnicas de análise das comunicações que visam a obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, a produção/recepção (variáveis inferidas) dessas mensagens (BARDIN, 1977).
Resultados e discussão
As participantes da pesquisa, todas do sexo feminino, são caracterizadas abaixo:
A partir da análise dos dados, foram elaboradas seis categorias de análise, contemplando a fala das participantes acerca do tema da pesquisa: Conceito de violência; Conceito de violência intrafamiliar; Percepções no ambiente escolar; Enfrentamentos; Influências no desenvolvimento das crianças quanto aos pares e a aprendizagem, quanto ao professor; Existe alguma diferença? -que serão discutidas a seguir, à luz da teoria relacionada.
Conceito de violência
Quanto à fala das professoras, o conceito referente à violência mostrou-se muito semelhante, como é possível observar,
"Violência é todo tipo de agressão eu entendo, todo tipo de agressão, seja ela física, psicológica [... ] física, psicológica, simbólica qualquer tipo de agressão[...]" (A1).
"Violência é todo e qualquer ato que vá te ferir de alguma forma, seja física, seja emocional, seja sequela psíquica, enfim esse tipo de violência assim" (A3).
"Acho que violência é quando tu invade o espaço do outro com agressão verbal ou física né, mas que tu faz uma consequência com a tua ação " (B1).
"Violência pra mim é qualquer tipo de agressão né, física ou verbal, pra outra pessoa, independente de ser adulto ou criança" (B2).
Em relação ao conceito de violência a Organização Mundial da Saúde (2002) e Faleiros e Faleiros (2007) afirma que essa resulta do uso intencional da força física ou do poder em forma de ameaça contra si ou contra outra pessoa, grupo ou comunidade, sendo desigual, em que o dominador, se utiliza de coação e agressões, fazendo do dominado um objeto para seus "ganhos", desestruturando assim, sua identidade.
Percebe-se, então, que a violência foi tratada e entendida igualmente pelas professoras entrevistadas. Para elas, é considerada violência, tanto a física, como a emocional, pois ambas deixam sequelas (marcas), não apresentando, assim, nenhum fator de discrepância de modo geral.
Conceito de violência intrafamiliar
Com relação ao conceito de violência intrafamiliar as professoras demonstraram o mesmo entendimento, conforme a transcrição das entrevistas:
"Quanto à violência intrafamiliar o que eu entendo, é aquela violência que acontece com a criança ou o adolescente dentro do seu meio familiar [...]" (A2).
"A intrafamiliar a que ocorre no seio da família, e com membros que estão próximos, tipo tios, avós [...] então assim tudo que seria intrafamiliar eu acho que envolveria né as pessoas que estão, de alguma forma, ligadas ao que eles consideram contexto família né, o que seria o contexto, família deles" (A3).
"A violência intrafamiliar é, no caso, a violência que acontece na família, mas que se reflete nas atitudes no dia-a-dia da criança" (B1).
"É a violência que acontece entre os pares da família em relação às crianças, ou pai e mãe, ou avós, os componentes que integram o grupo familiar" (B2).
Faleiros e Faleiros (2007) definem o conceito de violência intrafamiliar como ato praticado tanto por pais ou responsáveis, como por parentes mais ou menos próximos do vitimizado -irmãos, avós, cunhados, tios, primos, entre outros. O mais importante é para o entendimento desta realidade, estabelecer o grau de autoridade do violentador sob a vítima.
Conforme o esperado, quanto à definição do conceito de violência intrafamiliar e o conhecimento que os professores possuem sobre essa temática, constatou-se que a maioria das entrevistadas apresentou as mesmas características, isto é, que é aquela que acontece entre os familiares. A esse respeito não houve diferenças entre a definição apresentada pelas professoras participantes do Projeto de Capacitação e aquelas que não participam.
O conhecimento que o professor tem é adquirido a partir dos erros e acertos que sua experiência pedagógica proporciona, ampliando seus conhecimentos, transformando sua sala de aula num lugar prazeroso e dinâmico (CERQUEIRA, 2006).
Dentre as entrevistadas uma delas apresentou um aspecto não evidenciado pelas demais, acerca da dificuldade de perceber esse tipo de violência e de entendê-la como violência:
"A intrafamiliar é a mais mascarada, [...] porque normalmente a maioria dos tipos de violência acontece dentro das famílias e a dificuldade maior é como tu conduzires, porque os pais se acham no direito de pais [...] muito difícil lidar com a mãe que nega[...]" (A1).
Em relação à dificuldade de perceber a violência intrafamiliar, Zuma (2004) postula que, as famílias que vivem situações de violência tendem ao isolamento, seja por sua iniciativa, pelo sentimento de vergonha que a situação gera, ou pelo preconceito de outros em relação à problemática. No interior da própria família, o silêncio sobre o tema se impõe, por medo, pela impossibilidade de acharem uma solução ou para evitar reviver o sofrimento.
Vale destacar que essa professora (A1) constatou um dado novo, ao dizer que a violência intrafamiliar é mais mascarada, pois, como acontece dentro de uma estrutura familiar, ela é escondida por vários motivos. Mas, mesmo assim, ela refere que a criança deixa algo perceptível, muitas vezes, quando se torna arredia, com medo de ser tocada, ou ao fugir da companhia dos colegas, ao agredi-los e através de várias outras manifestações visíveis. Assim, mesmo sendo mascarada, através da atitude dos pais, alguns aspectos ainda podem ser percebidos.
Percepções no ambiente escolar
Quando questionadas quanto à percepção de situações em que as crianças demonstravam ter vivenciado algum tipo de violência intrafamiliar, quatro participantes relataram:
"Dá pra perceber sim, na escola pública muito mais do que na privada, eu tenho pouco tempo na escola pública, mas já dá pra perceber que é gritante assim [...]. Nas brincadeiras, nas relações com os colegas, com os pais, na relação com o professor, porque é difícil tu estabelecer uma relação de confiança [...]" (A1).
"[...] perceber a criança tímida, que pouco falava, cada vez que eu me aproximava ela se retraía, foram situações que começaram a gerar preocupações, aí eu fui investigar, conversei com o aluno, ele disse que o pai era muito agressivo e aí a gente fez um trabalho acompanhando essa família né, pelo bem da criança" (B1).
Diante do que percebem, nestes casos, existe grande preocupação das professoras, em resolver e prevenir os múltiplos conflitos que surgem no cotidiano escolar, embora fiquem sem saber como agir. Na maioria das vezes, o professor tem muitas dificuldades para tratar com estas situações de conflito e propiciar ao aluno experiências educativas de interação social construtiva, que favoreçam sua formação ética e minimizem a violência na escola. A escola, por sua vez, deveria possibilitar um espaço em que o indivíduo pudesse vivenciar, de modo intencional e sistemático, formas construtivas de interação, adquirindo um saber que propicie as condições para o exercício da cidadania (GONÇALVES et al., 2005).
Por outro lado, duas participantes relataram não ter percebido nenhum indício de violência intrafamiliar:
"[...] não, eu não percebo isso, a família é bem presente [...] a gente vai trabalhando, a gente vai cuidando isso, pra ver se a gente capta alguma coisa [...]" (A2).
Com relação a não-percepção de casos de violência, pode-se inferir que, em alguns casos, esteja havendo uma naturalização dos mesmos. Conforme Zuma (2004), é preciso desnaturalizar a violência, pois é fácil identificá-la e condená-la nas suas manifestações mais grotescas, mas é também fácil vesti-la como ato de educação ou de proteção, em suas manifestações sutis. Só a partir da conscientização de que a violência é toda ação que desconsidera a legitimidade da diferença, e que tenta impor ao outro o que será realidade para ele, é que poderemos vislumbrar o que será uma cultura da paz.
Para uma professora, a presença do pai na escola pode ser percebida de outras formas:
"[...] tem outra situação que a gente acha que o pai abusa da menina, porque é sempre ele que vem, não quer que chame a mãe sempre é tipo, 'não, é sempre comigo, eu que trato dessas questões', e a menina fica assim quando o pai vem na escola, ela fica assim meio que engessada, numa rigidez assim muito grande, ela tá na 7º série, não tem como nós verificarmos, ela não abriu, mas a gente tem quase certeza que o pai tenha feito algum tipo de abuso"(B2).
Como meio de prevenir a violência, portanto, torna-se relevante sensibilizar a população para que não reitere a violência ao menosprezar, ridicularizar ou negar a problemática da violência intrafamiliar. As atitudes de menosprezo ou de negação são ainda mais indesejáveis no caso de profissionais inseridos em serviços públicos ou em atividades de educação e saúde. Por isso, esses profissionais precisam estar capacitados para identificar essas situações e lidar com os envolvidos, devem ser sensíveis para as nuanças da problemática e estar atentos para a importância da articulação entre os serviços e ações, para obter-se eficácia (ZUMA, 2004).
Nesta categoria, percebeu-se certa divergência entre as entrevistadas a respeito da não percepção de violência em sala de aula, que pode ter sido influenciada pelo pouco tempo de docência; a negação de fatores relevantes que demonstrassem haver violência na turma, o que pode ter sido motivado pela falta de conhecimento, referida pela própria entrevistada, ou pelo processo de naturalização, tão típico nesses casos. Desta forma, um ponto que deve ser verificado é a naturalização da violência, a partir da qual professor não está preparado para perceber se ela existe ou não.
Outro ponto a ser trabalhado é a questão da família presente, que muitas vezes se torna presente para ocultar o que possivelmente pode acontecer no lar, conforme citação da participante B2.
Enfrentamentos
Diante dos questionamentos sobre como elas enfrentariam, que atitudes seriam tomadas quando ocorressem casos de violência intrafamiliar, as seis participantes foram pelo mesmo caminho.
"[...] eu sempre acho que o trabalho em equipe é melhor pra mim, porque não se expõe o professor, não se expõe só a escola, não se expõe só o diretor, mas sim um grupo que trabalha, então quando vai chamar o responsável, primeira coisa é o diálogo, tem que chamar a família pra tentar conversar meio que indiretamente, assim né, tentar averiguar o que tá acontecendo [...]" (A1).
"[...] primeira coisa faria uma sondagem e entraria em contato com a coordenação da escola, conversaria sobre o que eu observei e imediatamente me colocaria a disposição, junto com a escola, que eu tenho certeza que a escola onde eu trabalho também tomaria alguma atitude e nós procuraríamos o conselho tutelar ou o juizado da infância e da juventude, com certeza nós procuraríamos sanar essa lacuna" (A2).
"[...] então o mais acertado seria isso, tentar descobrir o que ta acontecendo e encaminhar pra a orientação educacional" (B3).
Abordar o fenômeno da violência e as experiências de rede de proteção ou rede de prevenção significa investigar menos sua configuração e muito mais o quanto ela oferece, em potencial para intervir, interromper, tratar ou superar a violência a que estão submetidas milhares de crianças, adolescentes, mulheres, idosos e demais grupos de risco. Sem deixar de abstrair o desenho dessas redes sob o prisma de sua institucionalidade e efetividade, é necessário, em um primeiro momento, tentar assimilar o quanto elas incorporam de parcerias e interconexões que possam viabilizar o encaminhamento, o atendimento e a proteção às vítimas da violência e suas famílias. Em um segundo momento, investigar as diversas possibilidades de desenvolvimento de ações de prevenção (ASSIS et al., 2006).
As entrevistadas demonstraram, em um primeiro momento, amplo conhecimento sobre as redes de proteção existentes, através das quais elas podem se amparar-se e que caminhos seguir, pois assim elas se sentem mais seguras, tendo o respaldo, em primeiro lugar, das direções das escolas, para conduzir as questões pertinentes à violência. Porém, pode-se questionar quanto à existência real do potencial apresentado por Assis (2006), já que uma das entrevistadas fez uma ressalva com relação ao trabalho dessas redes.
Há possibilidade de reflexão sobre estes aspectos, pois, para Assis (2006), a construção de redes, por ser uma estratégia de ação nova, exige investimentos em capacitação e incentivo dos participantes, para que todos possam se comunicar de forma ágil e clara. Este é um grande e permanente desafio a ser enfrentado, que requer a participação de amplos setores sociais como, por exemplo, a mídia, a educação, a saúde e os movimentos comunitários. Trata-se de prover informação que possibilite a transformação, não somente por meio da aquisição de conhecimento formal sobre a violência, mas, principalmente, por intermédio da promoção da cidadania como forma de enfrentamento da violência.
Influências no desenvolvimento das crianças
Quanto aos pares e a aprendizagem
Quando questionadas sobre como percebem a influência dessas situações, as professoras referem que a relação que as crianças estabelecem com os pares está associada ao que elas vivenciam no meio familiar, transferindo essas ações para o ambiente escolar, assim,
"[...] uma criança tratada com violência, normalmente nas brincadeiras ela vai revivendo, com os colegas ela vai resolver os conflitos com violência, ela é aquela criança intempestiva, que resolve tudo no tapa ou no empurrão, no grito" (A1).
"Bom, uma coisa muito nítida assim que a gente vê, a questão das brigas entre eles, eles reproduzem o tipo de situação que eles conhecem, que é a violência né. Então existem brigas,[...], às vezes, até de ofensa moral e aí vai pra parte da violência física né" (A3).
"Agressão no caso, quando tu saía pro recreio ou pra fila, era direto chute, empurrões né, direto, às vezes sem motivo algum, 'porque ele olhou pra mim', já era motivo de dar um chute né, então é uma situação que a criança reflete aquilo, é também uma defesa dele, talvez com medo que os colegas fossem fazer uma coisa, já agredia antes mesmo de deixar o colega chegar perto" (B1).
Também, na fala das professoras, cinco delas destacaram as dificuldades de aprendizagem:
"Bom, as influências são nítidas em todos os sentidos, aprendizagem, uma criança que sofre uma agressão ela não se sente motivada a aprender, ela perde o estímulo pra vida, eu penso assim, apesar dela, a criança não ter esse discernimento, as atitudes dela falam, por isso é bem complicado. A aprendizagem é defasada, o relacionamento é muito complicado [...]" (A1).
"[...] a aprendizagem dele vai se complica né, ele não vai aprender, porque ele vai ta sempre ligado naquilo que tá esperando ele em casa, [...] a aprendizagem dele a gente nota nos desenhos a agressividade, a gente nota até na aprendizagem ele não consegue aprender porque ele ta pensando no que aconteceu [...]" (B3).
Crianças que foram expostas à violência familiar apresentam sintomas internalizantes - ansiedade e evitação, e externalizantes - agressividade, delinquência (OSOFSKY apud BENETTI, 20052). Da mesma maneira que a criança pequena, as crianças nesse grupo também manifestaram dificuldades no sono, agitação, jogo prejudicado e muitas queixas somáticas. Também, a adaptação à escola, o baixo desempenho escolar e relacionamentos com colegas são situações de dificuldades para a criança proveniente de um ambiente violento (STILES apud BENETTI, 2005).
Assim, a relação agressiva com os pares e a difícil aprendizagem dos alunos foi apontada por todas as entrevistadas, pois eles reproduzem o que vivenciam em seus lares, ocasionando uma baixa concentração e grande irritabilidade na escola, consequências estas, muitas vezes, da violência intrafamiliar.
Quanto ao professor
Em relação ao relacionamento, três participantes da pesquisa trouxeram que, inicialmente, a criança precisa ter confiança no professor, podendo assim, abrir-se:
"[...] primeiro passo a criança não estabelece, ela tem um recuo nem com o professor nem com os colegas, eles não se misturam muito, não se sentem com liberdade, com carinho do grupo, não tem uma integração, depois dependendo da relação que o professor vai estabelecendo eles vão projetando essa figura materna no professor, 'ah eu queria que tu fosse a minha mãe!'" (A1).
"[...] até eles tem o professor como um local pra desabafo e abrem essas questões, mas morrendo de medo que o professor não guarde, então é difícil, essa questão da confiabilidade também, até que ponto eu posso contar pro meu professor?" (B2).
Conforme Duarte (2004), a aceitação ou a consideração positiva é a confiança básica no organismo humano e a crença de que o outro é, de alguma maneira, digno de confiança. Trata-se da aceitação do outro indivíduo como uma pessoa separada, que tem valor por si. Um professor assim respeita o aluno e envolve-o em um clima de confiança, que não pode ser confundido com piedade ou atitude paternalista. Essa atitude, em sala de aula, ajuda a substituir o clima autoritário pelo de confiança, de segurança, que é muito menos ameaçador para o aluno. Muito embora o clima autoritário seja substituído, deve ficar claro que a autoridade do professor não desaparece.
As outras entrevistadas não referiram aspectos quanto ao relacionamento com a figura do professor; uma delas relatou que, para ela, falta a parte prática:
"eu sei da parte técnica, mas a parte emocional eu acho que pra mim me falta pra lidar eu como professora, falta esse conhecimento de como lidar com esse tipo situação porque ou às vezes tu pode ajudar ou piorar a situação, então é bem complicado, hoje em dia é muito complicado, porque as famílias velam muito tudo o que fazem (B3)".
O relacionamento com a figura do professor foi enfatizado, pela maioria das professoras, com exemplos referentes à conduta com os colegas, não apresentando a sua visão específica da situação professor-aluno, com relação às questões ligadas à violência intrafamiliar. Destacaram, também, a confiabilidade que o aluno apresenta, em relação ao professor, e que só a partir disso é que o aluno tornar-se-á mais receptivo e confiante perante o professor. Pode-se inferir que este é um aspecto que aparece como significativo, com relação à facilidade, ou não, de a criança expressar questões suas ligadas a violência intrafamiliar que possa estar passando.
Existe alguma diferença?
Inicialmente tinha-se a ideia de haver diferença na percepção da violência intrafamiliar na escola, em relação à participação e a não participação em Projeto de Capacitação sobre a temática da violência. O projeto visa à promoção e a defesa dos direitos de crianças e adolescentes, além do enfrentamento e prevenção das violências no contexto escolar. Após a realização das entrevistas, constatou-se que, com relação ao Projeto não houve diferenças significativas, o que leva a crer que os que não participam de projetos de capacitação também buscam e encontram alternativas, muitas vezes pessoais, para solucionar problemas de repercussões da violência intrafamiliar na escola.
Conforme relato da entrevistada B3, somente a parte prática, a técnica não consegue suprir as dificuldades em relação à temática da violência,
"[...] e eu vou te dizer que eu como professora, eu sei da parte técnica, da parte prática, mas a parte emocional eu acho que pra mim me falta pra lidar, eu como professora, falta esse conhecimento de como lidar com esse tipo situação, porque ou às vezes tu pode ajudar ou piorar a situação, então é bem complicado, hoje em dia é muito complicado, porque as famílias velam muito tudo o que fazem" (B3).
Para Bueno (2002), é preciso pensar a formação do professor como um processo, cujo início situa-se muito antes do ingresso nos cursos de habilitação, ou seja, desde os primórdios de sua escolarização (até mesmo antes) e, depois destes tem prosseguimento durante todo o percurso profissional do docente.
Nóvoa (1995) afirma que a formação deve estimular uma perspectiva crítico-reflexiva, que forneça aos professores os meios de um pensamento autônomo e que facilite as dinâmicas de autoformação participada. Estar em formação implica em um investimento pessoal, um trabalho livre e criativo sobre os percursos e os projetos próprios, com vista à construção de uma identidade, que é também uma identidade profissional.
A formação não se constrói por acumulação (de cursos, de conhecimentos ou de técnicas), mas sim, através de um trabalho de reflexidade crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente de uma identidade pessoal. Por isso, é tão importante investir na pessoa e dar um estatuto ao saber da experiência (NÓVOA, 1995).
Desta forma, não foram percebidas diferenças, pois cada professor tem um jeito singular, sua própria subjetividade e, a partir daí, as alternativas vão sendo construídas ao longo da sua vida e, assim, quanto ao enfretamento diante dessas situações o professor age segundo suas vivências.
Considerações Finais
Com o desenvolvimento dessa pesquisa, realizada com professoras da rede pública e privada, dos anos iniciais, percebeu-se que a violência intrafamiliar está presente no contexto escolar e que esta afeta diretamente o desenvolvimento infantil dos alunos, com relação à figura do professor e a convivência com os pares, porém, tanto a manifestação desta realidade quanto a própria observação por parte do professor se dão de forma diferenciada. Neste sentido, os objetivos da pesquisa foram atingidos.
Inicialmente, tinha-se a ideia de que a participação em projetos de capacitação sobre violência, apontaria para um diferencial no entendimento do professor acerca de como trabalhar e tratar com a temática da violência intrafamiliar em sala de aula, mas o que foi constatado é que, todas as participantes desta pesquisa, tanto as professoras que participam desses projetos como as que não participam, tiveram a mesma forma de perceber, entender e tratar a questão violência.
A partir desses aspectos, entende-se que a percepção da violência exige mais que um simples conhecimento teórico, pois os livros indicam um caminho, mas para trabalhar com essa temática o professor acaba agindo segundo a sua subjetividade, as suas crenças, o aprendizado que adquiriu enquanto professor durante toda sua trajetória de vida, e devido também ao respaldo que ele recebe da instituição escolar onde atua. Destaca-se também a existência do processo de naturalização, através da qual se passa a acreditar que o que ocorre no contexto escolar é natural, justamente por ser de uma temática, talvez, tão difícil de tratar, que a negação impera nesses casos. Outros fatores relevantes a serem considerados são o medo de estar fazendo a coisa errada, por acreditarem ter poucos subsídios para afirmar isso, e também o envolvimento pessoal, o que tal constatação acarretaria, fazendo com que estes não se sintam seguros para expressar o que sentem no ambiente de sala de aula. No entanto, mesmo assim o professor e a escola não podem se eximir do seu papel de denunciar casos de violência percebidos e muitas vezes revelados no ambiente escolar.
Percebeu-se que, com relação ao papel desempenhado pela figura do professor, que esse tem que passar confiança frente aos seus alunos, para que eles consigam falar sobre suas dificuldades. Isso gera uma identificação com o professor, que, a partir daí, consegue ter acesso ao dia a dia do aluno, através da avaliação de seus comportamentos, das conversas com os colegas percebendo o que está ocorrendo tanto na escola como em casa. Desta forma, o aluno tem o professor como uma projeção de figura de identidade, e este tem que propiciar os subsídios que lhes faltam em casa, pois, a escola pode ser o espaço para a construção de uma subjetividade diferente da que eles vivenciam no ambiente familiar.
Com os pares, evidenciou-se a ocorrência da repetição dos modelos de relação estabelecidos em casa. O que, muitas vezes, leva o aluno a agir com violência frente aos colegas, não possuindo limites, tendo uma aprendizagem bastante defasada, não conseguindo se concentrar para realizar as tarefas, sendo, assim, necessário criar capacitações para tentar solucionar esses problemas, pois fica evidente que o professor, muitas vezes, não sabe o que fazer.
Para a realização dessa pesquisa, também foram encontradas algumas dificuldades relacionadas à disponibilidade dos professores em participar dela, devido à falta de tempo, pois muitos trabalham em mais de uma instituição, e outros não se disponibilizaram em participar, por outros motivos. Pode-se inferir que, além da falta de tempo, a dificuldade na coleta deu-se porque este é um tema que mobiliza os professores, devido às suas próprias dificuldades, tanto pessoais quanto no manejo profissional em situações desencadeadas pela violência.
A partir desses aspectos, conclui-se que o papel do Psicólogo, no contexto escolar, é de fundamental importância, pois este auxilia e possibilita um suporte aos professores, construindo um trabalho em conjunto com a instituição, prezando o bem-estar da mesma. Assim, dá mais segurança ao trabalho desses professores, que, muitas vezes, se sentem inseguros para enfrentar os problemas, neste caso, da violência intrafamiliar. Através do trabalho da Psicologia Escolar, há a possibilidade de uma escuta diferenciada sobre a questão da violência, instrumentalizando os professores com relação a forma mais adequada de lidar com estas situações, possibilitando a articulação de projetos para que os mesmos possam refletir criticamente sobre as repercussões da violência intrafamiliar no contexto escolar.
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Data de recebimento: 28/05/2010
Data de aceite: 12/07/2010
Sobre os autores:
Tássia Brenner Machado, Formação em Psicologia pelo Centro Universitário Franciscano-UNIFRA. E-mail: tassia_brenner@yahoo.com.br.
Cristiane Bottoli, psicóloga, mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria, docente do Centro Universitário Franciscano. E-mail: cbottoli@hotmail.com
1 Trabalho Final de Graduação, do Curso de Psicologia do Centro Universitário Franciscano-UNIFRA.
2 Os artigos originais encontram-se em inglês em http://www.icyrnet.net/UserFiles/vol9no3Art3.pdf e http://www.aafp.org/afp/2002/1201/p2052.html.