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Nova Perspectiva Sistêmica
versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363
Nova perspect. sist. vol.28 no.64 São Paulo ago. 2019
https://doi.org/10.21452/2594-43632019v28n64a02
ARTIGOS
“O menino e a abóbora”: a arte de um encontro
“The boy and the pumpkin”: the art of a meeting
Marcia Zalcman SettonI
I Instituto Sistemas Humanos, São Paulo/SP, Brasil.
RESUMO
Neste artigo, a partir da prática terapêutica, a autora relata a busca de um embasamento teórico para a compreensão de um atendimento no qual se obteve resultados surpreendentes em prazo muito curto, partindo de uma postura do “não saber”. Descreve sobre seu processo vivencial de reflexão, suas conversas internas ao longo do atendimento de um casal com uma criança que havia recebido uma suposição de diagnóstico psiquiátrico feito pela orientadora escolar. Sua preocupação foi a respeito dos efeitos desse diagnóstico na dinâmica da família. As referências teóricas baseiam-se em diversos autores que conversam com o Construcionismo Social, as Práticas Colaborativas e o trabalho com as ressonâncias da família e da terapeuta.
Palavras-chave: Não Saber; Construcionismo Social; Criatividade.
ABSTRACT
In this article, coming from the therapeutic practice, the author reports the search for a theoretical basis for the understanding of a therapeutic care in which surprising results have been obtained in a very short term, based on a position of “not knowing”. She describes her experiential process of reflection, her internal conversations, during this care of a couple with a child, who had received an assumption of psychiatric diagnosis, made by the school counselor. Her concern was about the effects of this diagnosis on family dynamics. The theoretical references are based on several authors who talk with Social Constructionism, Collaborative Practices and work with the resonances of the family and the therapist.
Key Words: Not Knowing; Social Constructivism; Creativity.
“Os problemas não são resolvidos, mas dissolvidos na linguagem.”
Anderson & Goolishian (2009, p.43)
Introdução
Quando fui convidada para escrever um artigo, logo pensei em um atendimento, no qual parecia que foi tudo “tão simples”, que precisei me aprofundar mais para compreender como conseguimos construir uma abertura, em apenas dois encontros, para algo que parecia tão complexo. Comecei então a buscar referências teóricas que me ajudassem nessa intenção.
Logo no início do seu livro Conversações, Linguagens e Possibilidades: um enfoque pós-moderno da terapia (2009), Harlene Anderson conceitua a terapia como “um sistema de linguagem e um evento lingüístico nos quais as pessoas envolvem-se em um relacionamento colaborativo e conversacional – um esforço mútuo em direção à possibilidade” (p.3).
Há conversas que reduzem as possibilidades e outras que as aumentam. Quando as possibilidades são aumentadas surge uma abertura para ação, uma sensação de que podemos tomar a atitude necessária para tratar do que nos preocupa ou nos atormenta. Manter esse tipo de conversação tem a ver com ajudar as pessoas a terem acesso à coragem e à capacidade de mover-se através dos assuntos que as preocupam.
Encontrar uma forma de estar assim com as pessoas, de desenvolver essa postura filosófica, tem sido uma linha de direção na minha experiência profissional.
Tanto na minha formação como terapeuta de família, quanto na formação universitária tradicional, a questão dos diagnósticos de transtornos mentais sempre gerou um desconforto enorme para mim.
De que posição eu poderia dizer qual a disfunção do outro que me procura? De que verdade eu estou falando? Gergen e McNamee (2010) trazem uma indagação que considero fundamental: “com base em que... podem os profissionais da saúde mental sustentar a superioridade de sua terminologia?” (p.49). Será que ao aceitar um diagnóstico, este estará sendo útil para essa pessoa, ou trazendo estigmatização, uma culpa individual, um enfraquecimento e dificultando o aprofundamento dos seus relacionamentos? Como ter mais ferramentas para ser útil para aquela pessoa, juntamente com sua família, ou sua comunidade, sem necessariamente usar uma terminologia que lhes seja estranha?
Na tradição cultural do discurso de um transtorno mental, ao oferecermos um diagnóstico para uma pessoa, este pode ser um alívio, pois finalmente ela encontra um nome para aquilo que a incomoda, ou, pode torná-la indesejavelmente diferente perante sua comunidade. As causas da sua disfunção são consideradas localizadas dentro da própria pessoa, atribuindo-se assim uma falha ou fracasso, uma inabilidade. Nessa forma não consideramos outros fatores que podem estar contribuindo para a condição, como algumas possibilidades de responsabilidade relacional, ou o contexto no qual vive essa pessoa (Gergen & McNamee, 2010).
Sempre me senti desconfortável nessa posição, sem autoridade para esse tipo de declaração. Como psicóloga, procuro ver qual o significado do diagnóstico, qual o sentido no contexto de conversações daquela família, daquela comunidade.
Gergen e McNamee (2010) são autores que propõem uma maneira de substituir o diagnóstico automático dos clientes por um diálogo transformador; um diálogo que amplie o leque de vozes participativas, explorando um número ampliado de opções e possibilidades.
Tom Andersen (2002), através dos seus Processos Reflexivos, também dava atenção e valor especial para as múltiplas vozes. As posições de escuta e de reflexão, tanto da família, quanto da equipe, além de trazerem novas vozes e perspectivas para a conversa terapêutica, permitem aos clientes compreender o caráter construído das realidades em que vivem e percebê-las como mais flexíveis.
Em seu texto “Reflexões sobre a Reflexão com as Famílias” (1998), Tom Andersen cita Goolishian: “Se você sabe o que fazer, isto o limita. Se você sabe mais a respeito do que não fazer, então existe uma infinidade de coisas que podem ser feitas” (pp. 69-70).
A partir dos pressupostos apresentados por Goolishian, para Andersen, o importante é estar aberto e sensível àquilo que nos toca na “vida externa” e, ao mesmo tempo, estar aberto e sensível às nossas respostas da “vida interna”. Em outras palavras, deixar-se tocar pela vida, usando todos os nossos sentidos, para apenas depois refletir sobre como e quais respostas ofereço para as situações que se apresentam. Ele chama esse processo de intuição – partir da emoção, do sentir, para depois pensar ou teorizar, e não o contrário.
Segundo ele, a conversa “terapêutica” pode ser entendida como uma forma de busca; uma busca por novas descrições, novos entendimentos, novos sentidos, novos significados, novas nuances nas palavras e, finalmente, novas definições de si mesmo.
Nessa busca por conversas mais ricas e produtivas com os clientes, tenho estudado diversos autores construcionistas sociais, inclusive o “não saber” que, como uma postura terapêutica, tem me aberto possibilidades antes inacessíveis.
No artigo “O Cliente é o especialista” (1998), Anderson e Goolishian afirmam que a posição de não saber requer que nossas experiências anteriores ou verdades teóricas não devem limitar nossa compreensão, nossas explicações e nossas interpretações. Precisamos acompanhar o cliente em sua própria história, para compreender o significado que ele dá para ela.
Ao me deparar com essa posição de não precisar “saber” para estar com o outro, e poder ser útil “apenas” conversando com ele, um novo mundo se abriu. A possibilidade de um diálogo como impulsionador de uma transformação me trouxe inúmeras ferramentas. Tenho procurado me especializar em conversações, ao invés de me especializar em diagnósticos.
Essa postura me faz lembrar um episódio muito antigo. Minha primeira formação acadêmica foi em arquitetura. Nessa formação, tive um professor muito querido, Silvio Sawaya, que dizia que um projeto (arquitetônico) simples, às vezes, é o melhor e o mais difícil de alcançar. Essa frase ficou por muito tempo como uma incógnita, mas com a postura filosófica colaborativa, ela adquiriu um novo significado: para qualquer projeto, ou plano de ação, eu preciso estar em presença do outro, envolvida num diálogo que inclua o outro em todo o seu ser. Não necessita de uma formulação anterior, nem precisa partir de verdades universais, portanto, já prontas.
Outro aspecto que gostaria de destacar dentro da perspectiva dialógica é aquilo que diversos autores chamam de conversa interna do terapeuta. Este conceito refere-se a uma área de alcance mais ampla do que o “não saber”. “Refere-se a tudo o que o terapeuta vivencia, pensa, sente, mas não comunica durante a sessão.” (Rober, 2009, p.51).
Esse autor distingue as vozes internas do terapeuta, em vozes que refletem o seu self vivencial e vozes que refletem seu self profissional. O self vivencial é tudo aquilo que é despertado (pensamentos, lembranças, fantasias, emoções) quando ele está na presença dos seus clientes. O self profissional é o ato de o terapeuta criar hipóteses e escolher suas respostas. Dessa forma, o diálogo interno poderia ser descrito como um diálogo entre esses dois selves. “O self do terapeuta pode ser descrito como polifônico, composto por diferentes vozes internas, uma evocando a outra, em sua tentativa de entender o que acontece em uma sessão e ser capaz de ajudar a família” (Rober, 2009, p.52).
Esse momento é de crucial importância, pois o terapeuta reflete sobre suas vozes internas e faz escolhas que envolvem a responsabilidade relacional, a ética e a intenção terapêutica (Rober, 2009)
É nesse contexto que procuro descrever os diálogos internos ao longo do atendimento.
Descrição do caso
Para ilustrar essa postura, gostaria de relatar um atendimento e os diálogos internos da terapeuta. Ressalto que os clientes foram consultados, autorizando esta descrição. Todos os nomes utilizados são fictícios.
Um dia Antônio, antigo cliente, me telefonou pedindo ajuda para seu filho, Carlos, de nove anos. Contou que Carlos sempre foi uma criança tranquila, mas que nos últimos dias não queria ir à escola, não queria se separar dos pais, só chorava e não conseguia fazer nada. Estava com muitos medos.
Antônio e sua esposa, Joana, já haviam conversado na escola com a orientadora, que, bastante assustada, sugeriu um atendimento psicológico, pois ela supunha que o menino estivesse com “síndrome do pânico”.
Escutando o pedido, imediatamente foram surgindo algumas dúvidas, ou, como diria Lenzi (2017), minhas vozes internas se manifestaram num tumulto: O que significaria esse diagnóstico? O que teria significado para a orientadora? Que autoridade ela tem para nomear dessa forma o comportamento do menino? Qual seria a utilidade para o atendimento? Como esses pais estavam escutando este diagnóstico? Que consequências, que peso poderia ter na vida de uma criança?
Mas, apesar das minhas dúvidas, do meu desconforto com o diagnóstico, como eu poderia recusar o atendimento para Antônio, depois de tanto tempo de caminhadas conjuntas? A confiança que ele depositava em mim, o vínculo que nós já tínhamos construído era suficientemente forte para eu aceitar o desafio. Pensei que seria muito difícil, mas concordei em atendê-los.
Coloquei, no entanto, algumas condições: como minha formação é em terapia familiar, pedi que toda a família comparecesse. O irmão mais velho não poderia no horário disponível para nós, mas os pais podiam, para conversarmos todos juntos. Eu precisava da colaboração de todos que pudessem participar. Também, não gostaria de retirar o menino de seu meio, do seu contexto familiar. Todas as vozes eram importantes. Eu não poderia me basear em narrativas teóricas pré-assumidas.
No horário combinado, apareceram o pai, a mãe e o filho. Eles pareciam reticentes e um pouco assustados, especialmente Joana, a mãe, e Carlos, o menino, que parecia bastante tímido.
Para criar um contexto que oferecesse alguma familiaridade, procurei saber um pouco de quem são eles e de suas atividades. Joana é nutricionista e dá aula em um curso técnico de enfermagem. Antônio, teólogo e pastor, dedica-se à sua comunidade e cursa Psicologia na mesma instituição na qual Carlos estuda. O irmão mais velho estuda também na mesma instituição e tem 12 anos. Contam os pais que ele é bastante desenvolvido e independente.
Começamos a conversar. Apresentei-me para a família, pois só conhecia Antônio. Depois de algumas conversas introdutórias, de acolhimento, pedi para o menino contar o que estava acontecendo. Ele apenas falava que estava com muito medo:
Marcia – Mas, medo do quê?
Carlos – Que algo acontecesse com meus pais. (ele responde cabisbaixo)
Marcia – Que tipo de coisa?
Carlos – Que eles morressem... (fala bem baixinho...).
Marcia – E por que você acha que eles podem morrer?
Carlos – ... (silêncio e um levantar de ombros...).
Desenvolvimento
Inspirada em Anderson (1998), procurei fazer perguntas a partir das palavras do próprio Carlos – Medo. Se fosse um adulto, eu poderia continuar pedindo para descrever como é o medo, que ideias tem, que outras situações já deram medo, se já conseguiu sair delas etc.
Entretanto, as crianças não relatam sentimentos verbalmente com facilidade, então procurei uma forma de externalizar o problema, conversando nos meus diálogos internos com Michael White (2012). Segundo este autor, as pessoas acreditam que as dificuldades de suas vidas são um reflexo de sua própria identidade, ou seja, que elas são “o problema”. Fiquei então preocupada que o diagnóstico sugerido pela orientadora da escola ficasse incorporado à identidade do menino.
As conversações que White (2012) chama de externalização são aquelas que procuram objetificar aquilo que está ocorrendo, contra as práticas culturais de objetificar as pessoas. Isso permite vivenciar uma identidade separada do problema: a pessoa é a pessoa e o problema é o problema.
Marilene Grandesso, em seu artigo sobre Michael White, “Dizendo olá novamente” (2011), nos conta que o terapeuta narrativo procura pelos significados que não foram manifestados explicitamente, mas que estão presentes nas lacunas e contradições das histórias narradas. Trata-se de escutar além do que foi dito, para o não dito, ausente, mas implícito naquilo que é narrado.
Considerando que o medo era o problema, e não o menino, pedi então para que ele desenhasse esse “medo” que ele sentia como se fosse um personagem. Esta é uma forma de descrever o medo em uma linguagem não verbal. Ele concordou e desenhou algo muito escuro, junto a um portão, também escuro.
Perguntei se ele poderia dar um nome para esse medo, e ele disse que não sabia, mas que parecia um monstro. Também perguntei que portão era aquele, e ele me contou que era o portão da escola.
Comecei a explorar então como era a sua vida na escola. Minha curiosidade era a respeito de sua própria vida, como Carlos sendo o maior especialista nela.
Marcia – Você gosta da escola?
Carlos – Sim.
Marcia – Tem muitos amigos?
Carlos – Sim. (as respostas eram sempre lacônicas...).
Antônio interferiu – Ele sempre teve muitos amigos, sempre foi muito requisitado, mas ultimamente tem um menino que tem “grudado” nele. Quer sempre brincar com ele, jogar bola, não deixa muito ele ficar com todos os outros.
Marcia – Como é esse amigo? Você gosta dele?
Carlos acenou que sim com a cabeça. Não me parecia muito entusiasmado com a conversa sobre o amigo.
Perguntei então desde quando ele tinha esse medo e se este medo estava atrapalhando sua vida. Ele apenas acenou novamente com a cabeça e não conseguia falar. Estava com muito medo, cujo efeito era deixá-lo paralisado.
Minha curiosidade ficou mais aguçada.
Nos meus diálogos internos, eu não podia negar o que o menino falava, eu apenas podia entrar em sua história, explorar sua narrativa e buscar compreendê-la. O “diagnóstico” sugerido pela orientadora da escola não me ajudava a pensar nele e na sua família. Eu procurava um contexto que facilitasse que os membros da família pudessem se unir e empreender ações colaborativas para solucionar o problema.
Pensando novamente no texto “O cliente é o especialista”, de Anderson e Goolishian (1998), em momento algum duvidei do medo e da história de Carlos. Ele era o especialista no medo dele.
Concordo com esses autores de que a conversação terapêutica é uma busca e uma exploração mútua pelo diálogo entre terapeuta e cliente (seja o cliente um indivíduo ou uma família), uma troca de mão dupla, na qual novos sentidos estão continuamente caminhando em direção à dissolução de problemas.
Toca-me particularmente quando Anderson e Goolishian afirmam que o papel de um terapeuta é o de um arquiteto do processo dialógico (afinal, essa também é uma formação minha), cuja especialidade está em facilitar e criar o espaço para uma conversação dialógica. No meu entender a particularidade de um arquiteto é sua habilidade para criar espaços que sejam adequados para os seus clientes. O terapeuta é um observador e um facilitador-participante da conversação terapêutica
Entendo que o terapeuta não pode deixar de lado sua base e experiência para o encontro com o cliente, mas a postura do “não saber” se refere mais ao conjunto de suposições de significados que ele traz para a entrevista clínica. O estímulo para o terapeuta está em aprender a singularidade da verdade narrativa de cada cliente, as verdades coerentes das histórias da sua vida. Isso significa que, apesar de estar sempre com pré-conceitos por sua experiência, deve escutar os clientes de maneira que sua pré-experiência não o impeça de atingir o maior significado possível das descrições que o cliente faz de sua experiência.
Lynn Hoffman (1998), por sua vez, nos conta que os terapeutas pós-modernos não acreditam em uma essência. O conhecimento, sendo alcançado socialmente, muda e se renova a cada momento de interação. Não há interpretações a priori nas histórias ou textos. Um terapeuta com essa visão vai esperar que uma narrativa nova e preferencialmente mais útil venha a emergir durante a conversação, mas vai conceber essa narrativa como espontânea, ao invés de planejada. O autor dela será a conversação, e não o terapeuta.
Voltando à sessão:
Pedi então aos pais que ajudassem a responder a pergunta sobre há quanto tempo Carlos vinha tendo esse medo.
Joana – Desde o dia em que ficou na casa de um amigo da escola, enquanto o pai estava trabalhando em um evento.
Marcia – O mesmo amigo de quem falávamos?
Antônio – Sim. Eu conversei com os pais do menino, para saber da possibilidade de ele ficar lá, enquanto eu estava no evento.
Marcia – Carlos, como é na casa desse amigo?
Carlos – Bom... (com a voz baixa e um levantar de ombros), mas ninguém brinca... é tudo muito quieto...
Marcia – Ele tem irmãos?
Carlos – Tem duas irmãs mais velhas.
Conversamos um pouco mais sobre a casa desse amigo e fiquei sabendo por Antônio que o pai do amigo iria ser operado em algum dia próximo de um tumor cerebral. Naquela casa ninguém brincava... Pareceu-me que a morte estava à espreita.
Comecei a sentir de forma muito intensa aquilo que John Shotter (2017) chama de “sentimentos corporais”, uma responsividade corporal espontânea, uma angústia que não podia se expressar através de palavras, especialmente para uma criança de nove anos de idade. A partir desse momento, esses sentimentos se transformaram em meus guias ao longo da sessão.
Havia uma inquietude muito grande para os pais a respeito da possibilidade do “diagnóstico” levantado pela orientadora da escola. Escutei, a partir do meu “self vivencial” (Rober, 2009), que, num primeiro momento, eu precisaria dar algum conforto aos adultos de forma que pudessem dar um apoio adequado ao menino, para que ele pudesse superar os seus medos e sair da paralisia, seguindo em frente. Desta forma, me dirigi a eles.
Marcia (para os pais) – parece que Carlos é uma criança com uma percepção e uma sensibilidade muito grandes, e está transferindo a preocupação e os receios da casa do amigo, para vocês, que constituem a base afetiva de suas relações.
Naquele momento, eu estava oferecendo para os pais uma nova narrativa, uma narrativa alternativa, para substituir a história dominante, saturada pelo problema, e que pudesse ajudar a transformar o olhar da família para o menino, de uma criança com um diagnóstico, para uma criança afetiva e cuidadosa com sua família. Esta forma de encarar era algo ausente da conversa, mas implícito no contexto. Minha ideia foi de colocar luz nesta possibilidade, o que foi muito bem aceito pelos pais. Este foi um momento decisivo no diálogo para a construção de entendimento e respostas mais úteis ao problema vivido.
Eu estava me movimentando naquilo que Michael White (2012), em seu livro Mapas da Prática Narrativa, chamava de panorama de identidade. Ele fundamentou sua prática para o desenvolvimento de conversações terapêuticas sobre dois conceitos: panorama de ação e panorama de identidade. No panorama de ação, sua atenção estava voltada para as ações desenvolvidas pelo(s) indivíduo(s). No panorama de identidade (ou de consciência), sua atenção estava mais voltada para os significados atribuídos, ou para as intenções incorporadas naquelas ações. Ou seja, esse “panorama é constituído por percepções, noções, especulações e conclusões referentes a desejos e preferências dos indivíduos; características e qualidades pessoais; estados intencionais, tais como motivos e finalidades e das crenças e valores dos personagens” (Grandesso, 2011, p. 108).
De qualquer forma, precisava dar ferramentas para o menino e para a família. Considerando o contexto no qual vivemos, uma cidade grande e violenta como São Paulo, eu não poderia afirmar que nada iria acontecer com seus pais. Ele sabia que os pais não estavam doentes, mas... Tudo poderia acontecer... O seu medo estava validado.
Shotter (2017) sugere que, ao ouvirmos os enunciados de uma pessoa, podemos também escutar a concepção de mundo adotada pela pessoa, bem como a forma como cada um se relaciona com esta visão de mundo e como esta molda a entonação de suas declarações.
Pensei em como ajudar esse menino e esta família. O medo era “real”. Ele sentira a possibilidade da morte perto dele. Eu não podia negar nem desvalorizar o medo dele. A pergunta que me ocorria era como reduzir o poder paralisante do medo sobre o menino sem desconsiderar o contexto no qual ele vive. Como transformar aquela identidade afetiva e amorosa em ações práticas?
Eu procurava um caminho para que Carlos pudesse lidar com o medo dele. Citando Shotter (2017, p. 8):
o papel do que chamei de ‘meio determinante’ de nossas declarações, o ambiente (frequentemente invisível) ao qual respondemos espontaneamente ao nos expressarmos; por um lado, ele molda não apenas a entonação da fala, mas também todo o estilo, a escolha de palavras, de metáforas etc.
Deixei minha criatividade viajar longe e resolvi arriscar. Como eu me baseava no “não saber”, optei por dar voz às minhas conversas internas, tornando-as públicas. Poderia não dar certo, mas era uma tentativa.
Como diria Sandra Fedullo Colombo (2000), em seu texto “Em busca do Sagrado”, resolvi assumir o meu ser improvisador e curioso, sem respostas prontas, mas disposta a enfrentar perguntas e desafios.
Pensei em qual metáfora poderia ser útil, e me lembrei de que estávamos na semana do Halloween. De alguns anos para cá, esta passou a ser uma tradição cultural (como diriam Gergen e Gergen em seu livro Construcionismo Social: um convite ao diálogo, 2010) bastante divulgada na nossa sociedade.
Há muitos anos eu tinha uma pequena abóbora de feltro (figura 1) com que uma cliente havia me presenteado, me chamando de “bruxa”. Lembrei-me de um período de minha vida no qual brincávamos que quando conseguíamos grandes mudanças, era porque havia alguma “bruxa boa” agindo. Algo de mágico.
Figura 1
Fonte: Acervo da autora
Perguntei se ele conhecia a festa do Halloween, a tradição das bruxas e dos doces. Perguntei se ele conhecia a abóbora das bruxas. Assim eu estava me certificando de que essa tradição poderia fazer parte de um momento de referência comum na nossa comunicação (Shotter, 2017). Como ele disse que sim, ofereci a abóbora para ele, sugerindo que pediríamos às bruxas para que a abóbora oferecesse força para ele, para que não deixasse que o medo dirigisse sua vida.
As metáforas nos ajudam a abrir espaço e caminhos antes não imaginados para encarar as experiências difíceis da vida, de forma mais leve e às vezes até divertida.
Lembrei-me novamente de Colombo (2000) e do uso de objetos na linguagem metafórica que favorecem a manutenção do clima emocional vivido na sessão através da cor, de um formato concreto, como algo intermediário entre o que foi e o que se deseja ser. Pode-se dizer que a abóbora da bruxa se transformou em um amuleto.
Além desta metáfora mágica, também verifiquei com os pais a possibilidade de oferecer um celular simples para Carlos, de modo que quando ele ficasse inseguro, ele pudesse ligar para os pais. Sugeri que contassem na escola, para a professora, a respeito do nosso combinado, para que ela autorizasse o uso do celular quando necessário. Os pais concordaram. Dessa forma, eu procurava ampliar a rede de apoio e cuidados que envolvia Carlos.
Assim, não desqualifiquei o menino e o seu medo, mas procurei fortalecê-lo, mobilizando seus recursos e oferecendo uma possibilidade de reconstrução para a sua vida, através de algumas ações (panorama de ação) – usar a abóbora e o celular, e de novos significados (panorama de identidade) – algo que o ajudasse a enfrentar seus medos. Minha intenção era de que ele pudesse reassumir a autoria de sua vida.
Carlos também aceitou a abóbora de bom grado. Conversamos mais um pouco e eu ainda pedi ao pai, que é pastor, para fazermos uma oração que ajudasse as bruxas a oferecer força pela abóbora.
Naquele momento, eu estava criando um ritual que trouxesse legitimidade para a proposta feita pela metáfora, que incluísse toda a família.
Sentamos todos no chão, e Antônio fez uma oração por nós. Para Antônio fez mais sentido pedir que a abóbora fosse um símbolo no qual Carlos poderia depositar seus medos.
Depois de duas semanas, tivemos mais uma sessão, na qual eles contaram que Carlos levava a abóbora com ele para onde ia, assim como o celular, e que isso o estava ajudando a enfrentar o medo. Soube depois que ele pediu para que sua mãe confeccionasse mais uma abóbora, de reserva.
No início, também usou muito o celular, procurando saber do pai e da mãe a todo o momento. Aos poucos, foi diminuindo esse uso e ficando mais tranquilo na aula e nas suas atividades.
Se, no contexto da terapia, o medo fosse encarado como parte da identidade do menino e um obstáculo a ser superado, a possibilidade desse resultado teria sido perdida.
Segundo Lenzi (2017), “nosso self se caracteriza como relacional e composto de múltiplas vozes, internalizadas ao longo de nossas experiências vividas e que têm coerência na construção de nossa identidade e nas formas de compreensão do mundo” (p.49). Se o diagnóstico sugerido pela orientadora da escola fosse aceito como uma verdade, ele poderia ser incorporado à identidade do menino, e seria um déficit a ser combatido ao longo de sua vida.
Quando nos debruçamos apenas sobre os diagnósticos, estamos nos afastando daquilo que Sheila McNamee (2018) chama de presença radical:
Uma forma de existência completamente reflexiva na qual a atenção é direcionada para o que estamos fazendo juntos, ao nos engajarmos. Ser relacional vira nosso olhar para nossas ações, nossos contextos, nossas relações e nós mesmos em relação aos outros e aos nossos ambientes. (p. 79).
Tenho tido notícias do Carlos por seu pai. Aos poucos ele foi retomando suas atividades e voltando a ser o menino alegre e disposto de sempre. Quase um ano depois do atendimento, soube que, fazendo uma arrumação, ele retirou a abóbora da mochila, pois não precisava mais dela.
Cerca de um ano após esse atendimento, recebi o seguinte depoimento de seus pais, a respeito de todo o processo:
Diante do suposto diagnóstico emitido pela orientadora educacional, de síndrome do pânico, por conta das reações negativas em resistir ficar longe dos pais durante o período de aula e do enfrentamento de questões existenciais, em razão de uma visita à casa de um amigo cujo pai estava gravemente enfermo, fomos orientados a procurar uma ajuda psicológica para o Carlos.
É difícil descrever em palavras sobre aqueles dias quando o nosso amado filho apresentou sinais de tristeza e desânimo diante das coisas que mais gostava de fazer e medo de nos perder. E hoje sentimos gratidão a Deus, em primeiro lugar, por seu cuidado integral e pela competência técnica profissional da psicóloga Marcia no acolhimento familiar.
Começamos a sofrer junto com ele essa situação, mas tentando acolhê-lo naquele momento e procurando demonstrar que estávamos ao lado dele nesse desafio. Fomos tomados, naturalmente, pelo sentimento de medo, impotência e incapacidade de aliviar a sua dor, nos restando chorar e apresentar o Carlos a Deus com a mesma intensidade do nosso pranto e na esperança de que tudo isso iria passar.
A ajuda profissional foi muito importante porque possibilitou um acolhimento atencioso e cuidadoso e esclareceu que não se tratava de síndrome do pânico e sim de um processo natural de ansiedade por conta de algumas mudanças e o receio de perder os pais. Ressaltamos que as duas sessões terapêuticas foram suficientes para um resultado satisfatório bem como a participação carinhosa e paciente da professora Renata nesse processo.
Observando hoje o Carlos, sentimos alegria pelo seu amadurecimento emocional, por demonstrar superação frente às suas limitações e continuar lutando contra a sua ansiedade e medo. Isso nos leva a afirmar que, além do afeto familiar, o ambiente escolar favorável (professores, orientadora, inspetores e amigos) e o cuidado terapêutico se fazem necessários em caso como este.
Antônio e Joana
Notas Finais
Esse depoimento me leva a pensar na riqueza das possibilidades levantadas quando o respeito pelo “saber” do cliente é considerado como o principal recurso do terapeuta.
Não precisar saber de antemão como agir em cada momento, como se relacionar com cada problema, ou “diagnóstico” apresentado nos deixa com maior liberdade de ação, maior espontaneidade, com maior possibilidade de exercer a criatividade, “dançando” com os clientes, no ritmo que eles nos convidam para estar.
O “não saber” inclui deixar de lado a solução que o terapeuta desejaria ou imaginaria para o caso, mas, ao invés disso, acompanhar o cliente na construção do encaminhamento que ele quer dar para o seu problema.
O foco do atendimento foi na expertise da criança e da família. Isso não nega a habilidade do terapeuta, apenas reforça a ideia de que sua expertise era de construir um contexto, um espaço e um processo que, de forma colaborativa, facilitassem a dissolução do problema que os levara à terapia e não de que fosse um conhecedor hierarquicamente superior aos membros da família a respeito das questões apresentadas.
Esse atendimento, por mais “simples” que parecesse, requereu uma postura filosófica de atenção ativa e respeito total ao cliente e aos processos de se relacionar. Aquilo que Sheila McNamee chama de presença radical, que requer uma escuta generosa, sem pressa de saber, voltando o foco para “aquilo que fazemos juntos”.
Nesse sentido, tomo emprestadas as palavras de John Shotter: “O diálogo torna possível um tipo especial de criatividade, a criação ‘de repente’ de uma forma de agir em resposta a ou, em relação às singularidades do entorno de alguém”. (apresentação oral de Sheila McNamee, Salvador, 2017).
Referências
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Recebido em: 06/04/2019
Aprovado em: 17/05/2019
I Marcia Zalcman Setton: Psicóloga, psicoterapeuta individual, de casal e família. Mestre em Psicologia Clínica (PUCSP), sócia e professora de Terapia Familiar no Instituto Sistemas Humanos, São Paulo, SP. E-mail: mzsetton@gmail.com