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Nova Perspectiva Sistêmica
versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363
Nova perspect. sist. vol.28 no.65 São Paulo set./dez. 2019
CONVERSANDO COM A MÍDIA
O Silêncio dos Homens
Frederico A. S. O. MattosI
Todo homem tem um silêncio. Como terapeuta em começo de carreira, quinze anos atrás, eu ignorava essa dimensão da masculinidade; ingenuamente imaginava que havia uma simplicidade no psiquismo masculino, ainda que eu mesmo, homem, heterossexual, branco tivesse uma imensidão de questionamentos sobre a vida.
Com o amadurecimento pessoal na terapia eprática clínicafui tirando um véu sobre a identidade estereotipada do homem. Não havia nada de simples e muito menos pragmático na vivência da masculinidade.
Tomando cada vez mais contato com as ideias feministas eu fui novamente convidado a colocar o lugar de homem numa caixa que carregava apenas machismo e comportamentos abusivos. Com o feminismo que amadureceu dentro de mim fui notando que as coisas eram mais dinâmicas e profundas na construção da masculinidade que transcendia o lugar de opressor.
Ao olhar mais de perto, os homens são muito plurais, ainda que bebam dos mesmos condicionamentos sociais entre si. Debaixo das camadas rasas de força, praticidade, habilidades exatas, senso de sacrifício por uma missão e outros clichês existem facetas sensíveis, confusas, temerosas e cheias de curiosidade por outros modos de viver.
O documentário “O Silêncio dos Homens” tem o objetivo de descascar esse pepino em tempos onde a voz do homem está colocada em questão o tempo todo. Ouvimos variadas críticas legítimas dos movimentos feministas sobre homens interrompendo mulheres, redizendo o que elas dizem, explicando-aspara elas mesmas, quase as infantilizando. Como assim, os homens estão em silêncio?
Uma coisa que se aprende como homem atendendo homens (com mais frequência do que vejo colegas mulheres relatarem) é que o discurso aparente nunca é sobre sofrimentos atrozes, são sempre coisas “pontuais” e de fácil resolução. O tecido sutil do discurso vem recheado de medos, inseguranças, sentimentos de impotência e fracasso, ainda quando são vitoriosos nos jogos sociais.
O machismo é esse tipo de pai abusivo que os filhos defendem mesmo quando fazem mal. É essa capa protetora de potenciais ofensas, bullyings e descréditos que fica difícil abandonar, mesmo sabendo que ela mais machuca do que protege.
Ao se reconhecer machista, o homem que se dispõea desconstruir as suas limitações segue cheio de ambivalências.Sentir-se cavalheiro com as garotaspermitiu-lheconquistar a pessoa amada, a obsessão por status e poder proporcionou conquistas materiais e viagens, a casca grossa emocional impediu tiração de sarro de colegas de trabalho. Como abandonar ideias que o tornaram vitorioso?
No documentário um dos entrevistados fala sobre o desafio diante da paternidade. Ele não queria reproduzir aquilo que viveu com o seu próprio pai. Nessa hora, como expectador, percebi a travessia que eu próprio precisei fazer como pai em relação ao meu pai. Apesar de dizer que eu era alguém mais forte pelo jeito mais duro, notei que eu tinha ficado mais rígido comigo mesmo e segui justificando essa dureza por achar que ela supostamente tinha me feito um homem melhor. Diante do nascimento de minha filha eu ainda sentia os efeitos nocivos desse silêncio interno; precisei me perguntar se a lei e a ordem eram mais importantes que a conexão e o afeto.
O privilégio masculino vem com esse fardo secreto, a mesma impenetrabilidade afetiva quepermitiu superar um pé na bunda arrotando superioridade é a mesma que sufoca os sentimentos mais vulneráveis de um luto familiar. Na mesma medida que conquista bônus recheado de dígitos também se sente incapacitado de descansar e diminuir o ritmo. Ao se tornar um workaholic ele perde o aniversário de um ano do filho.Aofocaro dinheiro ele se esquecede viver aqui e agora as horas banais e deliciosas do cotidiano.
Quando entramos no território da masculinidade não heterossexual e não branca a prisão triplica a sua potência. Para o homem gay a masculinidade é quase que vetada simbolicamente; só é possível o estereótipo do cabeleireiro afeminado (sem nenhum demérito nisso). Os cabeleireiros precisam ser barbeiros “porreiros” e barbados para não serem confundidos. É um temor de tudo aquilo que escape do troglodita mordedor de vidro. Ser gay eainda assim serhomem é quase uma jornada que se precisa transpor socialmentecom muita luta e supressão de comportamentos ditos homossexuais.
Quando o documentário passou pela reflexão dos homens negros minha garganta deu outro nó. Havia um cenário ainda mais sombrio da perspectiva social que eu, como homem branco, jamais conseguiria conceber. Eu não fui educado a não correr de um policial e agir de forma bem submissa para não sofrer violência ou ter que parecer mais dócil em contextos sociais para não amedrontar pessoas na rua. Machucou ouvir esse tipo de relato. Para os homens negros a ferida é cruzada, há o peso de ser homem, a sobrecapa do macho sexualizado e avantajado ao mesmo tempo em que pesa o estigma social e o passado histórico da escravidão, hoje atrelada com a criminalidade e o trabalho serviçal. É quase uma surpresa imaginar um homem negro, letrado e ético, mesmo que ninguém admita em voz alta. A comprovação acontece sempre quando se cruza com alguém assim numa calçada ao final da noite.
Apesar de os homens terem o privilégio de andar nas ruas sem o temor de serem estuprados, eles são impedidospor si mesmosde transitar pelos terrenos de sua subjetividade. É verdade que os homens não morrem como as mulheres pela quantidade lamentável de feminicídios. Ele próprio se encarrega do suicídio, por motivos também ligados ao silêncio emocional. A recusa por viver com limitações físicas, de ter dívidas impagáveis, de buscar ajuda para transtornos mentais.
Quando esse homem chega no consultório é preciso muito cuidado da parte do terapeuta para não recuar a uma simplificação da experiência que se apresenta. Já ouvi muitos homens se queixarem de outras experiências terapêuticas onde se sentiram julgados e pouco confortáveis para abrir questões sensíveis. Já ouviram coisa como “ah, mas você é homem”, “como homem você deveria aguentar mais” e coisas do gênero sobre o gênero. As terapeutas mulheres não estão isentas de seus pontos-cegos, em especial quando os assuntos caem por terrenos lamacentos da moralidade masculina. Quando um homem fala de traição, costuma ser um assunto indigesto, alguns já relataram uma sequência de falas moralizantes e psicoeducativas de ex-terapeutas mulheres como “a verdade no relacionamento acima de tudo”, “você deveria parar de ter esses comportamentos”. Como homem, que passou pelas mesmas construções sociais, eu consigo ser menos reativo a princípio, sei que a moral masculina sobre sexo é carregada de permissividade. Isso não é um gatilho para mim, eu consigo ouvir o que está sendo dito sem a afobação para corrigir ninguém. Essa tranquilidade de deixar que a própria fala do homem encontre os seus caminhos o leva a perceber as suas contradições. E isso é libertador para os homens no consultório.
Ao trazer à tona o silêncio dos homens numa plataforma como o YouTube, os realizadores do “Papo de homem” tiveram um desafio de dar voz não ao que se pode falar com a boca, mas ao que se nega ao coração sentir e manifestar.
Para terapeutas, em especial com uma visão sistêmica, é fundamentalnão perder de vista esses recortes sociais, pois o silêncio é essa presença ausente, não é descaradamentealgo no discurso verbal, mas nas coisas não ditas pelo homem sobre si mesmo.
* Documentário disponível pelo YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=NRom49UVXCE
Produção: Papo de Homem e Instituto PdH.
Ano: 2019
I Frederico A. S. O. Mattos: Psicólogo clínico, terapeuta de adultos, casais e família. Formação no Instituto de Terapia Familiar de São Paulo. Autor de livros, entre eles, Relacionamento para Leigos (Ed. Altabooks), e um dos autores do site “Papo de homem”. E-mail: blogsobreavida@gmail.com