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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál v.41 n.1 São Paulo mar. 2007

 

IPA BERLIN 2007

 

Elaborar o fim de uma civilização1

 

Elaborar el fin de una civilización

 

Working through the end of civilization

 

Jonathan Lear2

American Psychoanalytic Association (APsaA)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este é um relato de como a civilização elabora os problemas que enfrenta ao ser ameaçada de destruição. As idéias psicanalíticas têm o papel fundamental de explicar o modo pelo qual se possibilita uma resposta criativa. Dessa forma, ao focalizar nessa ameaça, a psicanálise pode encontrar novos desafios para o seu próprio desenvolvimento conceitual.

Palavras-chave: Desenvolvimento conceitual; Elaboração; Cultura; Civilização; Imaginação; Perda de identidade.


RESUMEN

Este es un relato de cómo la civilización elabora los problemas encontrados al ser amenazada de destrucción. Las ideas psicoanalíticas tienen un papel fundamental al explicar el modo por el cual se posibilita una respuesta creativa. De esta forma, enfocándose en esta amenaza, el psicoanálisis puede encontrar nuevos desafíos para su propio desenvolvimiento conceptual.

Palabras clave: Desenvolvimiento conceptual; Elaboración; Cultura; Civilización; Imaginación; Pérdida de la identidad.


ABSTRACT

Th is is an account of how a civilization works through the problems it faces when it is threatened with destruction. Psychoanalytic ideas play a crucial role in explaining how a creative response is possible. Conversely, by focusing on this threat psychoanalysis can discover new challenges for its own conceptual development.

Keywords: Conceptual development; Work through; Culture; Civilization; Imagination; Loss of identity


 

 

1. Nascimento de um conceito

O conceito da elaboração (Durcharbeitung) veio ao mundo por meio do reconhecimento pioneiro de Freud de que a verdade de seus pacientes não era suficiente para a cura. Mesmo em seus primeiros trabalhos psicológicos, como Estudos sobre a histeria (1893- 1895), Freud tinha ciência de que o paciente precisava ser capaz de vivenciar com uma intensidade emocional apropriada a memória até então reprimida, mas também de que era um mito pensar que existisse uma memória reprimida.

Não podemos esperar encontrar uma única memória traumática e uma única idéia patogênica como seu núcleo, mas temos de estar preparados para sucessões de traumas parciais e concatenações de pensamentos patogênicos. [E mesmo ao redor do núcleo] freqüentemente encontramos uma quantidade incrivelmente profusa de outros materiais mnemônicos que tem que ser trabalhada por meio da análise (Freud, 1893-1895, p. 287-288).

Na época, ele pensava que o problema consistia em tentar obter a rede massiva de conteúdos por meio do que denominava “profanação da consciência”: o fato de termos pensamentos conscientes e os expressarmos um de cada vez: “Uma vez que toda a complicada organização multidimensional tenha se tornado evidente, podemos com razão nos perguntar como um camelo como esse passou pelo orifício da agulha” (ibid., p. 291).

A história do desenvolvimento da técnica psicanalítica poderia ser contada mediante o relato do desenvolvimento do conceito de trabalho elaborativo. No célebre artigo “Recordar, repetir e elaborar” (1914), Freud se refere à “elaboração” como o processo pelo qual o analisando se torna “familiarizado” com suas resistências à medida que elas se manifestam na transferência, e posteriormente as supera no trabalho analítico conjunto entre analista e analisando.

Esta elaboração das resistências pode, na prática, revelar-se uma tarefa árdua para o sujeito da análise e uma prova de paciência para o analista. Todavia, trata-se da parte do trabalho que efetua as maiores mudanças no paciente e que distingue o tratamento analítico de qualquer tipo de tratamento por sugestão (Freud, 1915, p. 155-156).

Em um trabalho bem posterior, Inibição, sintoma e angústia (1926), Freud desenvolve a idéia da elaboração de modo a incluir não apenas resistências do ego, mas também “resistência do inconsciente”: “a atração exercida pelos protótipos inconscientes sobre o processo pulsional reprimido” (p. 159-160).

Não é novidade que analistas devam se concentrar na árdua tarefa de ajudar seus analisandos a enfrentarem suas resistências. Porém, sob uma luz mais positiva, a elaboração pode ser vista igualmente como um processo pelo qual o analisando desenvolve uma capacidade prática importante: a de reconhecer a miríade de manifestações de fantasias inconscientes assim que elas emergem no aqui-e-agora e encontrar novas e criativas maneiras de conviver com elas. Os antigos fi lósofos gregos, notadamente Sócrates, Platão e Aristóteles, concebiam que certas capacidades práticas deveriam ser consideradas como excelências humanas (aretai) – ou virtudes, como são freqüentemente traduzidas. Essas são as capacidades da psique que permitem que as pessoas tenham uma vida feliz. Por esse critério, o processo bem-sucedido de elaboração deve ser entendido como o desenvolvimento de uma excelência humana, uma certa liberdade poética com respeito à vida mental de uma pessoa.

O mesmo se pode dizer do desenvolvimento da capacidade de falar sua mente. Não é raro uma pessoa iniciar a análise com um relato verbal correto dos conflitos centrais de sua vida. Não obstante, as palavras não se ligam àquele confl ito preciso, dado que a pessoa continua a viver nele e por meio dele. Isso significa que, a exemplo de Édipo, ela conhece e não conhece o significado de suas palavras. Pode ocorrer também, até em uma análise razoavelmente bem realizada, de o analista falar de forma um pouco prematura: ainda que a interpretação seja verdadeira e percorra a verdadeira luta interna do analisando, chega antes que este compreenda seu significado textual. Além da repressão e da resistência, concorre para isso a qualidade difusa, tenaz e fractal da fantasia do inconsciente. Uma fantasia central manifesta-se não apenas naquilo que uma pessoa reconhece como o dilema central de sua vida, mas também se expressa no modo como ela abre a porta, assina um cheque, prepara uma xícara de café, escolhe um par de sapatos, se apóia no braço do passageiro ao seu lado num avião, prepara um vinagrete ou convida um amigo para assistir ao jogo da Copa. A elaboração é o processo por meio do qual o analista adquire a habilidade de reconhecer que tudo isso é o que as palavras do analista significam.3 Como é do conhecimento de qualquer analista que trabalhe bem, quando se trata de seres humanos há diferentes formas de se dizer a verdade.

Afirmei no início que o conceito de elaboração nasceu de um reconhecimento de que simplesmente falar a verdade não é suficiente para a cura. Mas agora já podemos ver que, se esta é compreendida adequadamente, colocar-se na posição de poder dizer a verdade pode ser a cura. Essa ironia está na essência do método analítico, mas não creio que já tenha sido assimilada (Lear, 2004; 2006a).

 

2. Um problema para crítica cultural

Freud legou à psicanálise não apenas uma técnica para tratar indivíduos, mas também a tradição de oferecer uma enorme gama de interpretações culturais do comportamento religioso – por exemplo, secularização, monoteísmo, anti-semitismo – e da guerra. Contudo, se o fenômeno da elaboração nos mostra quanto esforço é necessário para criar conceitos cruciais à vida, ele nos coloca diante de uma questão sobre o valor de qualquer crítica cultural psicanaliticamente informada. Considerando-se a dificuldade de ter um insight psicanalítico genuíno, qual seria a finalidade da crítica cultural em larga escala? Como se poderia evitar que a própria interpretação degenerasse em um clichê e caísse no vazio? Creio que foi isso o que aconteceu com a interpretação de Freud de crença religiosa como ilusão (Lear, 2005: 1999-219).

Freud não formulou o problema explicitamente, mas seus escritos contêm duas respostas a ele. A primeira está na idéia de que a própria história poderia ser entendida como a elaboração de alguns mitos fundamentais – particularmente os conflitos primordiais que nos deram o monoteísmo, o judaísmo, o cristianismo e, agora, o nascimento de um mundo secular. Portanto, seus trabalhos poderiam servir como uma interpretação capaz de nos ajudar a entender, e eventualmente até facilitar, esses processos à medida que se desdobrassem (Freud, 1927, p. 54-55; 1939, p. 137). A segunda resposta é que, mesmo quando a história segue inalteradamente um rumo terrível – como no decorrer de seu tempo de vida, com a ascensão do anti-semitismo na Alemanha e na Áustria –, um entendimento psicanalítico ajudaria alguns leitores a entender e enfrentar a realidade que não poderiam evitar. (Freud, 1933, p. 199-215).

A meu ver, a primeira razão de Freud não é uma opção para nós: retrospectivamente, parece uma fantasia progressista de desenvolvimento histórico. A segunda razão ainda é válida, mas, dado que estamos vivendo tempos tão conturbados, seria de esperar que dissesse mais sobre interpretações culturais psicanaliticamente informadas do que simplesmente que elas ajudam alguns indivíduos a encarar uma realidade mais ampla que não conseguem modificar.

 

3. Ansiedade civilizacional

Talvez possamos concordar que vivemos em uma época marcada por discordâncias. Uma época de divisão, polarização, desconfiança e ódio. Há muitas divisões profundas entre a Europa e a América, entre povos religiosos e seculares, entre grupos religiosos e dentro deles. Certamente, existem muitos motivos para isso, e não pretendo aqui minimizar quaisquer alegações conscientes de injustiça, nem oferecer uma explicação reducionista. Contudo, suspeito que as formas mais poderosas de intolerância sejam alimentadas por uma sensação amplamente difundida de que a civilização, como cada grupo a conhece, é vulnerável. Existe ansiedade sobre a globalização que se sobrepõe a culturas tradicionais, sobre a secularização que se sobrepõe a valores religiosos, sobre o islã que domina a Europa, sobre a cultura ocidental que domina o Islã e assim por diante.

Mas o que queremos dizer quando falamos de vulnerabilidade de uma cultura? Um componente da ansiedade é uma certa falta de clareza sobre o que isso significa realmente (Kierkegaard, 1990; Heidegger, 1992, p. 228-235; 2001, p. 184-191; Freud, 1926, p. 164-166). No caso, o que nos deixa ansiosos é a vulnerabilidade da civilização, mas ignoramos quase totalmente em que consiste essa vulnerabilidade. Nessas condições, utilizamos expressões como “fim da civilização”, “choque de civilizações” e “fim da história” como se soubéssemos do que estamos falando. Assim, a possibilidade de que a interpretação cultural nos faça sair dos clichês, ao invés de simplesmente nos empurrar de volta para eles, parece mínima. Acredito que as idéias psicanalíticas podem nos ajudar a entender melhor a vulnerabilidade que herdamos em razão de sermos, por natureza, animais culturais. Se a ansiedade aumenta é porque termos apenas uma vaga idéia do que ela realmente é, mas, quando a entendemos melhor, inevitavelmente vamos transformá-la em algo diferente. Acredito também que podemos recorrer a idéias psicanalíticas que nos ajudem a enxergar certas analogias nas elaborações mais amplas, pois estas ocorrem como tentativa da cultura de perceber e enfrentar os desafios à sua existência.

É difícil saber o que está em jogo, em parte porque a morte de uma civilização envolve tipicamente guerra, brutalidade, ameaças de genocídio ou catástrofes ambientais. Assim, há uma tendência natural a nos centrarmos nessas catástrofes e, conseqüentemente, no trauma e na devastação psicológica que elas geram. Por mais que isso seja importante, pode obscurecer o perigo específico envolvido na perda de uma cultura. Se estivéssemos ameaçados apenas de perder nossa cultura, o que perderíamos?

Como um modo de recordar – e com a esperança de evitar uma repetição –, retrocederei aos desafios que os índios crow tiveram de enfrentar diante da violenta investida da civilização ocidental ao longo de cem anos (1850-1950). Os crow eram uma tribo nômade que habitava as planícies ao noroeste do que hoje são os Estados Unidos entre os séculos XVII e XIX. Na primavera de 1884, a tribo mudou-se para uma reserva e abandonou seu modo de vida nômade (Hoxie, 1997; 1989; Medicine Crow, 2000; Lowie, 1983; White, 1978, p. 319-321).4

No contexto de nossas preocupações atuais, há três motivos para levarmos em consideração os desafios enfrentados pelos crow. O primeiro é que, enquanto seu modo de vida tradicional estava sendo devastado, eles não sofreram nenhum ataque, não foram derrotados em nenhuma guerra, nem houve qualquer ameaça de genocídio. Como veremos, eles tinham optado anteriormente por se aliar aos Estados Unidos e por lutar contra seus inimigos tradicionais, os sioux, ao lado da cavalaria norte-americana. Portanto, embora isso implicasse o risco se serem contagiados pelas doenças do homem branco e a terrível aniquilação de seus búfalos, a mudança para a reserva foi voluntária e cercada da aura da amizade com os Estados Unidos. Nesse caso, o que eles parecem ter perdido, antes de tudo, foi sua cultura tradicional. O segundo motivo para examinarmos o caso dos crow é que há certos aspectos desse acontecimento, e da forma como lidaram com ele, cuja compreensão requer conceitos psicanalíticos. O terceiro, é que há ainda outros aspectos que podem contribuir para o próprio desenvolvimento da psicanálise.

 

4. O fim do fim

Uma tarefa crucial de qualquer cultura robusta é proporcionar um télos ou fim para seus habitantes – o sentido de que a vida é valiosa, do que seja desabrochar como ser humano, dos conceitos centrais com os quais os membros da cultura podem entender o que é bom e o que é mau, verdadeiro e falso, útil e inútil a respeito do mundo. (Isso se aplica até para a cultura liberal moderna, embora em um nível mais alto de generalização. Embora ela não pretenda prescrever um quadro abrangente do que é uma vida boa, promove a idéia de que a vida boa consiste em ter a liberdade de estabelecer seus próprios fins.) Os crow tinham uma concepção de vida boa: caçar livremente usufruindo da existência nômade que Deus lhes concedera por serem um povo escolhido; participar de rituais sagrados de agradecimentos, apelos e preparação; gozar das oportunidades de se tornarem corajosos e de defenderem a tribo. A guerra não representava um bem em si, mas era inevitável. Portanto, demonstrar coragem, nesse contexto, era um modo culturalmente estabelecido de prosperar.

Tudo isso se tornou inviável, quase subitamente, quando se mudaram para a reserva. A luta entre tribos foi proibida e caçar fora dos limites da reserva ficou impossível não somente porque não havia mais búfalos para serem caçados, mas também porque grupos de caça nômades não tinham permissão para se afastar da reserva. Seu modo de vida, conforme o entendimento tradicional da boa vida, deixou de existir.

Gostaria de catalogar algumas perdas que os crow tiveram de suportar em decorrência disso – perdas que não conhecemos amplamente, em parte porque quando nos deparamos com catástrofes históricas tendemos a nos concentrar no fenômeno psicológico do trauma. Creio que a psicanálise só enriqueceria se incluísse essas perdas evidentes em seu campo de ação. Inicialmente, a tribo teve de arcar com uma perda de conceitos (Diamond, 1988). Com isso, quero dizer que os conceitos centrais que até então orientavam a existência desses índios tornaram-se repentinamente ininteligíveis como modos de vida.

Por exemplo, nada mais poderia ser contado sobre ir para uma caçada. Mesmo que um jovem pegasse um arco e algumas fl echas, montasse num cavalo e se esgueirasse da reserva à noite, nem isso nem qualquer outra coisa poderia contar agora sobre ir para uma caçada. A própria idéia de ir para uma caçada estava ligada ao contexto de uma vida livre, nômade, com abundância de búfalos para caçar. Quando tudo isso se tornou impossível, os conceitos nucleares daquela vida perderam sentido como maneiras de seguir em frente. Do mesmo modo, nada mais se poderia contar sobre ir para a guerra. Jovens exaltados poderiam invadir a reserva sioux e tomar alguns cavalos, mas isso não mais seria visto como uma instigação para a guerra,5 e sim como roubo, delinqüência, desordem. É um erro pensar que a questão aqui seja meramente saber que é possível contar uma história, que coragem para um homem pode significar provocação para outro. Os crow sofreram uma perda real que deve ser reconhecida em qualquer narrativa rigorosa. Se hoje um jovem crow roubasse um cavalo sioux, os próprios crow não narrariam esse fato como faziam há 150 anos. (Medicine Crow, 2000, p. 110-133; Linderman, 1974, p. 8-9 e 97; Snell,6 2000; Voget, 1995).

Os crow sofreram também uma perda de acontecimentos. Se não havia mais nada a contar sobre ir para a guerra ou para uma caçada, tampouco se poderia contar sobre preparar-se para a guerra ou preparar-se para uma caçada. Isso incluía todos os rituais e praticamente todas as atividades da tradicional vida crow. A Dança do Sol, por exemplo, era um ritual que antecedia uma batalha, e servia para buscar inspiração e pedir a ajuda divina. Obviamente, as pessoas ainda podem fazer os mesmos movimentos de braços e pernas e os mesmos sons que faziam quando dançavam a Dança do Sol, mas não é mais possível fazer a Dança do Sol (Rawls, 1967; Lear, 2006b; White, 1991). De fato, os crow deixaram de realizar a Dança do Sol e ela caiu no esquecimento por sessenta anos. Quando quiseram reavivá-la, após a Segunda Guerra Mundial, não se lembravam mais dos passos. Tiveram que importar uma Dança do Sol de uma tribo vizinha que outrora fora sua inimiga, os shoshone (Voget, 1984; Yellowtail, 1991). Hoje ela é realizada, por exemplo, para pedir um resultado favorável na cirurgia de uma criança. Conheço descendentes da tribo que se recusam a dançar nesse ritual porque não o consideram sufi cientemente crow.

Consideremos agora uma atividade tão trivial quanto preparar uma refeição. Imaginemos que estamos em 1850. Alguém está passando por uma tenda num acampamento crow e ao ver uma mulher mexendo um pote pergunta a ela: “O que você está fazendo?” Ela responde: “Estou aprontando meu marido e as crianças para a caçada de amanhã”. Ou, simplesmente: “Estamos indo para uma caçada”. Mesmo uma atividade tão simples como preparar uma refeição não era apenas isso. Agora imaginemos a mesma cena em 1920: já não seria possível ouvir a mesma resposta. Preparar uma refeição era apenas isso (Anscombe, 2000; Th ompson, 2006).

A propósito da transferência para a reserva, Two Leggings, um dos chefes da tribo comentou: “Nada aconteceu depois disso. Apenas vivemos. Não houve mais grupos de guerra, capturas de cavalos dos piegan ou sioux, nenhum búfalo para caçar. Não há mais nada para contar” (Nabokov, 1974, p. 197). E Plenty Coups,7 o último grande chefe crow, disse a respeito desse período: “Depois disso, nada aconteceu” (Linderman, 1962, p. 308- 309). É tentador, especialmente para psicanalistas, pensar em temos de uma interpretação psicológica dessas palavras enigmáticas, ou seja, que talvez eles estivessem deprimidos. Mas é uma tentação a que se deve resistir – pelo menos até investigarmos outra possibilidade; isto é, a de que Two Leggings e Plenty Coups testemunharam uma perda real, a perda de algo que poderia ser contado como um acontecimento, conforme o tradicional entendimento crow acerca de eventos. É preciso entender melhor a natureza dessa perda para examinar a variedade de estados psicológicos que uma pessoa pode experimentar em relação a essa perda.8

Os crow sofreram igualmente uma perda de estados mentais. Nada mais se poderia contar sobre pretender ir para a guerra, pretender realizar a Dança do Sol. Esses estados mentais são excluídos como conceitualmente impossíveis. O que resta é a mera possibilidade de desejar: pode-se ainda desejar poder ir à caçada, pois é parte do conceito de desejo que considerações realistas, mesmo considerações de possibilidade, não o afetem necessariamente. Mas existem limites lógicos na abrangência do desejo. Por exemplo, alguém poderia dizer simplesmente: “Quero ir a uma caçada de búfalos, como meus ancestrais faziam”. O que seria interpretado por um terceiro como: ele não quer realmente ir para tal caçada de búfalos, ele deseja poder ir. Qualquer pessoa que pense que a diferença entre uma vontade e um desejo será descoberta algum dia na neurofisiologia do indivíduo deve ponderar sobre este exemplo (Anscombe, 2000; Burge, 1979).

Finalmente, os crow foram, no mínimo, ameaçados de perda de identidade. Eles não apenas deixaram de ter coisas para fazer como deixaram de ter coisas para ser. Se pensarmos, por exemplo, nos papéis tradicionais – particularmente se tratando de uma cultura de guerreiros e chefes – por meio os quais os crow se entendiam, hoje não está claro o que seja assumir esses papéis. Essas identidades foram forjadas no período de caçadas e guerras entre tribos nômades, e na reserva já não se sabe como continuar isso. Há outros papéis, como o de homem e de mulher da medicina, que parecem estar menos ameaçados, pois as necessidades de aconselhamento espiritual, cuidados médicos, orientação às famílias ainda permanecem. Ainda assim, esses papéis se constituíram no contexto daquela cultura. A legendária mulher da medicina da nação indígena crow, Pretty Shield chegou a declarar: “Estou tentando viver uma vida que não compreendo” (Linderman, 1974, p. 8).

Como psicanalistas, precisamos refletir mais profundamente sobre os efeitos psicológicos de tais perdas. Por exemplo, o que é fazer o luto da morte de conceitos? O que seria não conseguir fazer o luto? O que seria elaborar tal perda? Penso que é um erro tentar simplesmente reduzir a ampla variedade de fenômenos psicológicos que emergem dessa perda ao conceito de trauma. Se é que faz algum sentido falar sobre trauma aqui, trata-se fundamentalmente um trauma para uma cultura, e não existe ninguém que relacione esses traumas aos estados psicológicos de seus habitantes. A psicanálise tem a árdua tarefa de descobrir mais sobre a variedade dos efeitos psicológicos em indivíduos que sofrem tal perda cultural. Um motivo que conduz naturalmente a enfocar o trauma psicológico é que os psicólogos e psicanalistas, cada vez mais, tratam pessoas que, além da perderem sua cultura, estão sendo brutalizadas, estupradas, torturadas ou feridas - eventos tipicamente traumatizantes. Mas, e se então tentarmos enfocar os efeitos psicológicos decorrentes da perda de uma civilização? Não creio que já se tenha uma resposta a essa questão. E essa é apenas uma das razões pelas quais uma interpretação cultural psicanaliticamente informada pode ser útil, pois, para investigar a miríade de repostas psicológicas individuais à ameaça cultural, é preciso entender o conjunto mais amplo de significados em que essas respostas são formadas.

Nesse contexto, deve-se ter em mente que embora os crow tivessem um entendimento claro da possibilidade de genocídio, faziam apenas uma vaga idéia sobre as perdas que teriam de suportar quando se mudaram pacificamente para a reserva. Durante todo o século XIX, constituía parte da memória viva da tribo o ataque de surpresa realizado a um acampamento crow por mil guerreiros sioux, no início da década de 1820, em que, de acordo com a tradição oral, metade da população foi morta.

Assim, os crow certamente concebiam a possibilidade de serem massacrados, e de mulheres e crianças serem forçadas à escravidão. O que lhes faltava era entender o que significaria permanecerem fisicamente ilesos, mas, em contrapartida, perderem sua cultura. Penso que isso é algo que ainda não compreendemos muito bem. Creio também que conceitos psicanalíticos podem oferecer um insight sobre o modo peculiar como os crow encararam circunstâncias radicalmente novas.

 

5. O sonho profético

Como os psicanalistas, os crow acreditavam que os sonhos tinham significados que às vezes decorriam de uma estrutura de significados que estava oculta da consciência desperta.

Diferenciavam quatro tipos diferentes de sonhos: os chamados “sem relato”, em que apenas se via um incidente; sonhos “desejosos”, em que se via um evento desejado tornar-se realidade; sonhos “de propriedade”, em que a pessoa via cavalos, cobertas ou outros itens que iria adquirir e, o que nos diz respeito, “sonhos medicina”, ou visões-sonhos (Nabokov,1967, p. 61; ver também Irwin, 1994, e Wallace, 1972).

No caso específico da visão-sonho, os crow acreditavam que seu verdadeiro significado não provinha da superfície, mas necessitava ser interpretado por um grupo especial de homens e mulheres talentosos, experientes e sábios.

Obviamente, há diferenças significativas entre os métodos de interpretação de sonhos dos crow e os dos psicanalistas – os crow não trabalham com concepções de processo primário ou de trabalho onírico. Porém, retrospectivamente, parece claro que Freud deu ênfase excessiva a certas diferenças entre seu método e todos os anteriores para reforçar a originalidade de sua contribuição. Ele dividiu todas as formas anteriores de interpretação de sonhos em duas classes: interpretação simbólica de sonhos e método de decodificação (Freud, 1900, p. 96-100). Quanto ao método simbólico – que trata o sonho em seu conjunto e busca substituir seu conteúdo por um conteúdo análogo que ele pressagie –, Freud dizia de que era impossível ensinar um procedimento para tal interpretação. Quanto ao método de decodificação, considerava-o atomístico demais por procura interpretar cada item do sonho, parte por parte. Mas, ao mesmo tempo em que afirmava isso, parecia oferecer- nos um contra-exemplo: ele cita Artemidoro de Daldis,9 cujo método de interpretação dos sonhos não apenas trata o sonho em seu conjunto como sustenta que é necessário situar o sonho no contexto holístico da vida e das circunstâncias do sonhador (ainda que o tenha apresentado como exemplo do método de decodificação). Sem dúvida, o próprio Freud se preocupava com isso, tanto que em 1914 acrescentou uma nota de rodapé à sua A interpretação dos sonhos onde afirma que a diferença real entre sua técnica e a de Artemidoro é que a psicanálise “impõe a tarefa da interpretação ao próprio sonhador”. Isso seria ideal para a técnica psicanalítica, mas contradiz todos os registros que temos da prática real de Freud.

Meus estudos das práticas de interpretação de sonhos dos índios norte-americanos nativos indicam que eles combinavam elementos do método simbólico e do método de decodificação, não se ajustando totalmente a nenhuma dessas categorias. Por isso, essa divisão de Freud em duas classes parece-me artificial e, conseqüentemente, suas críticas a um e outro método não são ilustrativas de casos da vida real.

Uma diferença nítida entre a prática dos crow e a prática da psicanálise moderna é que, para os primeiros, a interpretação de visões-sonho era essencialmente uma atividade comunitária visando o benefício de toda a tribo, e não apenas de um indivíduo. Outra diferença é que na teoria crow os sonhos eram meios de inspiração que conduziam ao mundo espiritual divino. Podemos aceitar essa teoria, ser céticos em relação a ela, ou até descartá-la como falsa, optando por um relato totalmente secular. Freud certamente teria feito essa opção. De minha parte, farei um relato que é compatível com as três posições. O ponto mais importante é que os crow costumavam usar a imaginação – tanto na capacidade de ser receptivos ao mundo quanto de dar respostas criativas – como meio de prever o futuro. Ao fazer isso, penso que demonstravam como a imaginação pode se tornar uma excelência humana – uma capacidade desenvolvida pela psique que promove a prosperidade humana. Necessitamos da psicanálise para ver porque e como isso ocorre.

A tribo encorajava os membros jovens (tipicamente meninos) a partir em busca de uma visão-sonho. Plenty Coups foi convocado a sair e a sonhar aos nove anos de idade. Não é possível precisar o ano, mas foi por volta de 1855. Nessa época, a tribo ainda estava no auge: enfrentava os desafios dos sioux, conhecia o “homem branco” e o poder das armas e facas que recebia em troca de peles de animais. Porém, os crow não tinham muito contato com eles e, basicamente, continuavam levando sua tradicional vida nômade.

Não posso aqui discutir o sonho em detalhe. Mencionarei apenas três momentos no conteúdo descrito que os sábios crow julgavam importantes. Primeiro momento: todos os búfalos desapareceram em um buraco no chão. Dali mesmo surgiram estranhos touros e vacas malhadas que logo se reuniram em pequenos grupos para pastar; eles se deitavam de maneira estranha, não como búfalos. Segundo momento: disseram a Plenty Coups que os Quatro Ventos provocariam uma tempestade terrível na floresta e que apenas uma árvore permaneceria em pé, a árvore da pessoa chapim [the tree of the Chickadee-person].10 Vê a imagem de um homem velho sentado sob aquela árvore solitária e recebe a informação, no sonho, de que aquele homem é ele próprio. Terceiro momento: é dito a ele que deve seguir o exemplo do chapim:

É menor na força, porém, mais forte na mente entre os da sua espécie. Está disposto a trabalhar pela sabedoria. A pessoa chapim é um bom ouvinte. Nada escapa aos seus ouvidos, que são afiados pelo uso constante. Sempre que os outros falam de seus êxitos e fracassos, ali está a pessoa chapim ouvindo suas palavras. Mas, mesmo ouvindo tudo, trata de cuidar da própria vida. Nunca se intromete, nunca fala diante de estranhos, mas nunca perde a oportunidade de aprender com os outros. Obtém êxitos e evita fracassos ao aprender como outros tiveram êxitos ou fracassos, e sem grandes complicações para si próprio. (Linderman, 1962, p. 65-67).

Esse sonho foi contado aos homens sábios num ambiente ritualizado, e Yellow Bear,11 “o homem mais sábio do local”, interpretou o como sinal de que, durante a vida de Plenty Coups, os búfalos iriam desaparecer e seu modo de vida tradicional se extinguiria. Os búfalos malhados eram as vacas do homem branco que dominariam as planícies. O modelo para os crow seria o chapim, aquele notável pássaro capaz de sobreviver à tempestade que se aproxima e de manter suas terras.

Para entender por que o sonho do jovem Plenty Coups e sua interpretação eram tão valiosos para a tribo, a hipótese que considero mais plausível por si mesma, mas que se justifica ainda mais por sua fertilidade explanatória, é que o jovem Plenty Coups era de algum modo capaz de sonhar a favor da tribo. O que isso significa exatamente ainda não é possível determinar, mas, como psicanalista, creio que devemos procurar entender melhor os processos pelos quais um indivíduo é levado a assumir responsabilidade pela cultura em que vive.12 Tenho a impressão que se desencadeou uma ansiedade compartilhada na tribo sobre seu futuro, algo que ninguém conseguia definir. Em vez pensar em termos de indivíduos particulares, parece-me mais revelador observar que uma forma de vida tradicional estava ansiosa com relação a si mesma. Sendo uma pessoa sensível e, principalmente, jovem, Plenty Coups era capaz de captar essa ansiedade, embora isso não tenha ocorrido no nível da consciência desperta e ninguém conseguisse formular essa idéia. Não era uma idéia que alguém conseguisse formular naquele momento. Na natureza, nessa busca de sonho, Plenty Coups – talvez com a ajuda do mundo espiritual, como acreditavam os crow, talvez por si só – era capaz de metabolizar a ansiedade compartilhada pela tribo em uma narrativa- sonho. Isso permitia que os idosos continuassem o processo de metabolização, de tal modo que a ansiedade se transformasse em pensamento consciente.

Essa hipótese requer que rejeitemos as primeiras teorias de Freud sobre sonhos, segundo a qual eles devem ser entendidos exclusivamente como realizadores de desejos. Entretanto, é compatível com seu reconhecimento posterior de que os sonhos podiam expressar, e assim ajudar a metabolizar, a ansiedade (Freud, 1920, p. 33-32; 1923, p. 109-121; 1925, p. 127-130; 1926, p. 87-174). O sonho de Plenty Coups é rico e merece um estudo detalhado. Mas, como o tópico deste estudo é a elaboração, vou me concentrar em um outro aspecto particular do sonho, o papel do chapim.

 

6. O chapim como ideal de ego

Quando Yellow Bear interpreta, a tribo está em uma posição estruturalmente análoga a do analisando que acaba de ouvir uma interpretação que ainda não é capaz de entender completamente. Era impossível que, em 1855, os crow tivessem um entendimento contextual do que significava para eles a perda do meio de vida tradicional. Assim como era impossível, certamente, que tivessem um entendimento contextual do que signifi cava aprender a partir da sabedoria dos outros. Ou mesmo que tivessem um entendimento real do que significava para eles sobreviver e preservar suas terras. Portanto, se o sonho e sua interpretação tiveram um efeito benéfico para a tribo, supõe-se que tenha havido algo estruturalmente análogo ao processo de elaboração.

Um insight importante da psicanálise é que os sonhos são valiosos não apenas por seu conteúdo, mas também pelo modo como podem ajudar a amoldar a estrutura psicológica (Segal, 1964; 1991, p. 11-13; Hinshelwood, 1994; Lear 2002; 2005, p. 165-190). Acredito que o sonho do jovem Plenty Coups e a interpretação de Yellow Bear deram início a um processo em que o chapim foi investido como novo ideal de ego para a tribo. O chapim sempre foi admirado pela tribo por sua astúcia. Sabia-se que ele era capaz de reconhecer suas presas pelo tamanho e de identificar as estações. Mas o sonho e a interpretação se apoderaram desse ícone tradicional, colocaram-no no centro das ambições dos crow e o adotaram para um uso radicalmente novo. A imagem do chapim encoraja uma abertura sábia, mas otimista, em relação a um futuro que não pode ser visto além da mera idéia de que a nação crow sobreviveria e se manteria em suas terras. Vale observar que o significado de sobreviver e de manter as terras ainda é um enigma. Ninguém em 1855 poderia imaginar, por exemplo, que o significado de “manter as terras” era se manterem em dois milhões de acres, assistirem à deterioração do Yellow River e de alguns de seus rituais sagrados e à invasão de seus campos de caça pela água. O chapim, como ideal de ego, proporcionou à tribo os recursos psicológicos de que necessitava para encarar as mudanças trazidas pela história sem cair em desespero. Também encorajava uma atitude pragmática e engenhosa em relação a fazer as melhores escolhas possíveis nas circunstâncias que presentes.

Em um processo normal de elaboração de um individuo em análise, o analisando possui e não possui os conceitos que virão a se tornar centrais ao seu auto-entendimento. Ele tem de ser capaz de tolerar um período em que entende e não entende quem é. Assim, o processo de elaboração gerará normalmente sua própria ansiedade, e o analisando necessitará dos recursos psicológicos para tolerá-la. O analisando costuma transformar a figura do analista – com um significado de transferência positiva – em um ideal de ego que o ajude a lidar com as tribulações da elaboração. Quando o processo vai bem, a figura do analista não representa nenhum resultado específi co, ou qualquer valor específico além do sério compromisso de continuar a analisar mesmo diante de confl itos presentes e futuros. Há nesse compromisso uma esperança implícita quanto a um self futuro e um modo de ser futuro que ainda não pode ser totalmente compreendido.

De modo semelhante, o chapim como ideal de ego não representa um valor específico – além do valor de aprender com a sabedoria dos outros. Mas fica completamente em aberto o que há mais de relevante e em que consiste sua sabedoria. Isso é para os crow decidirem. O único compromisso verdadeiro é permanecer sempre abertos às lições que o mundo tem a ensinar. Portanto, seria basicamente de um ideal de abertura sábia, mas astuta, ao mundo. (Poderia ser interessante, para certos membros desta platéia, saber que um jovem crow, meu amigo, me revelou seu jornal favorito é o Financial Times, de Londres. O motivo é que ele prefere a perspectiva européia dos acontecimentos. Considera que a abordagem européia para a resolução de problemas sociais é mais orientada à comunidade do que a abordagem individualista norte-americana. Por isso, pode proporcionar melhores modelos para sua tribo.)

Vale a pena fazer uma comparação com outros dois célebres ideais na cultura ocidental: Sócrates e Odisseu. Sócrates também tinha seu pequeno chapim, seu conhecido daimon. Para ele, o daimon era uma pequena voz que não lhe dava conselhos positivos sobre o que fazer, mas que lhe mandava parar quando estava prestes a fazer algo vergonhoso. Assim, a voz desempenhava uma função de superego, mas revestida da autoridade do mundo espiritual. Além disso, capacitava-o a dedicar sua vida a aprender a partir da visão dos outros. (Platão, Apologia, 20e-23d). Isso porque, com seu daimon participando de seu equipamento psicoespiritual, ele não temia que sua abertura aos outros o levasse a rebaixar suas ações. Esse seria seu único motivo de medo. Aprendera, por ironia, que ninguém verdadeiramente possui sabedoria, o que de modo nenhum punha em dúvida a honestidade de suas busca. Na verdade, apenas confirmava uma abertura astuciosa recordativa dos chapins. Odisseu, como se sabe, é um personagem fictício, mas, como herói de um dos trabalhos fundamentais da civilização ocidental, estabelece um ideal para a cultura de abertura ardilosa. É o ideal encarnado do ser polytropos – ter muitos tropos (Homero, Odisséia I.1). Odisseu opera seriamente com essa sua abertura astuta, e é nessa condição que expressa a esperança de um dia retornar ao lar.

Os crow tinham de viver sua própria odisséia, mas uma odisséia com desafios que nem Odisseu teria imaginado. Estamos apenas começando a pensar sobre a natureza desses desafios. Odisseu não sabia das reviravoltas que o futuro reservava, mas nunca duvidou do que seria para ele retornar ao lar. Os crow receberam a profecia de que se seguissem o exemplo do chapim sobreviveriam e manteriam suas terras. Naturalmente, é típico de profecias e oráculos que as pessoas que as recebem não saibam realmente o que significam. Mas a ignorância decorre, em geral, da ignorância do agente sobre como os conceitos expressados na profecia se aplicam aos eventos específicos que se desenrolam. Dizem a Édipo que ele matará seus pais e desposará sua mãe – e ele o faz ignorando o que está fazendo. Ignora quem são seus pais, mas nunca duvida do significado dos conceitos de mãe e pai. Os crow, ao contrário, tiveram uma experiência inversa em face de sua profecia: foram obrigados a viver um período em que a própria idéia do que seria “manter as terras”, e mesmo “sobreviver” foi posta em questão. Odisseu também nunca teve dúvida sobre qual seria a vida boa para ele, ou sobre o que significava para ele encarar o futuro corajosamente.

Para os crow, sua idéia tradicional de vida boa – caçada nômade de búfalos abundantes, vitória gloriosa na batalha contra inimigos tradicionais – tornou-se inviável. Já não sabiam o que significava prosperar. Na verdade, não sabiam que qualquer coisa ainda poderia significar prosperidade. É difícil imaginar como um grupo poderia encarar essa devastação sem cair em desespero. Ou como poderia encarar esse desafio corajosamente – quando sua própria idéia de coragem parecia agora estranhamente inapropriada, obsoleta. Numa cultura guerreira-caçadora, a coragem era entendida como bravura em batalhas e bravura em caçadas (Geertz, 1973, p. 3-30; Williams, 2004, p. 144-155). Quais as possibilidades de coragem quando não existe nada para caçar e ninguém contra quem lutar?

Como pensar as condições psicológicas que possibilitam essa espessa concepção de coragem? Seria de se esperar que houvesse um processo cultural e que as imagens de guerreiros corajosos do passado estivessem instiladas como idéias de ego. Os crow eram uma nação que adorava histórias, e as histórias que uns contavam aos outros todas as noites eram relatos de bravura ouvidos de seus grandes líderes (Bauerle, 2003; Medicine Crow, 2000; McCleary, 1997). E isso conduz a um problema muito particular: em uma época de devastação cultural, será que as pessoas mais corajosas daquela cultura são as menos aptas a encarar o futuro corajosamente? Pois Freud nos ensina – e, à sua maneira, Platão e Aristóteles reafirmam – que a estrutura do superego é estabelecida na infância e que o caráter, uma vez estabelecido, dificilmente se modifica. Nesse caso, seria previsível que os rapazes e moças mais corajosos da cultura se aferrassem a um ideal de ego de coragem que, nessas circunstâncias radicalmente novas, só lhes faria sentir vergonha e humilhação. O que a cultura requer é um modo de desbastar a espessa descrição tradicional de coragem. Pois, se lutar contra os sioux tornou-se subitamente irrelevante, existe mais razão ainda para criar modos de viver corajosamente em uma época em que as imagens tradicionais de coragem não podem mais ser vividas. Mas, como essa transmissão seria possível do ponto de vista psicológico? A meu ver, é aqui que entra a psicanálise, que poderia oferecer sua valiosa contribuição mostrando-nos em que consistia a conquista dos crow.

A imagem do chapim assentava-se em um ícone tradicional para oferecer aos crow um novo ideal de ego que possibilitasse efetivamente um desbastamento da concepção crow de coragem. Pois, além das imagens tradicionais do guerreiro corajoso, há agora, por assim dizer, a nova imagem tradicional dos astutos chapins. E isso pode prover os recursos psicológicos necessários para tolerar com esperança um período em que lhes faltam os conceitos de como saber o que esperar. Em circunstâncias normais, uma pessoa tem algum entendimento do que seja prosperar, ainda que necessite de experiência de vida para chegar a um entendimento contextual do que isso realmente significa. Mas, nessas condições extraordinárias, a própria idéia de prosperidade fica em suspensão, até que não exista mais nada a se esperar. Os crow devem viver um período em que não existe fim – nenhum télos claro – da civilização.

Vale observar que o sonho encoraja a persistência com respeito à sua própria mensagem. O sonho prevê uma tempestade terrível em que todas as árvores da floresta, exceto uma, serão derrubadas. Assim, quando os eventos ruins ocorrem, como inevitavelmente ocorrem, eles devem ser vistos como confirmadores, e não solapadores, da mensagem geral do sonho. Desse modo, o sonho efetivamente imuniza seus seguidores contra o desespero que surge do problema do mal e que se expressa na pergunta: “Como Deus pôde permitir que isso acontecesse?” Segundo a teoria crow dos sonhos, o mundo espiritual passa a mensagem de que um tempo terrível os aguarda, mas que eles sobreviverão e voltarão a prosperar. Além disso, o sonho explica que o tempo terrível não é vontade direta de Deus, ao contrário, é produto de forças naturais-espirituais um tanto malévolas e poderosas, mas que agora contam pouco, os Quatro Ventos.13

 

7. A imaginação como excelência humana

Não creio que possamos entender a notável realização dos crow sem a utilização de conceitos psicanalíticos – em particular, o entendimento psicanalítico sobre o ideal de ego e sobre como os sonhos podem contribuir à estrutura psicológica. De fato, o sonho de Plenty Coups abriu caminho para a nova geração de poetas crow. Emprego “poeta” aqui no sentido mais amplo para me referir a todos aqueles que criam novos significados do que seja ser e prosperar como crow. (Poderia mencionar rapidamente que o grupo hip hop crow Rezawrektion obteve o primeiro lugar no Festival de Música Nativa Norte-Americana [2004]. Que o lema da Faculdade Little Big Horn,14 criada recentemente na reserva indígena, são as palavras de Plenty Coups: “A educação é nossa arma mais poderosa”. Que jovens líderes crow afirmam que ainda se lembram de suas mães e avós aconselhando-os a seguir o chapim. Ou que no Museu Plenty Coups há uma seção que homenageia o chapim e uma placa com os dizeres de Plenty Coups: “O abrigo do chapim representou a tribo crow, que colocou seu abrigo no lugar correto. Hoje temos o coração do país crow como nossa reserva”.)

Mas creio que os crow podem nos ensinar algo sobre nosso próprio conceito de elaboração. Em uma análise comum, o analisando já tem o conceito na forma da interpretação do analista e precisa elaborá-lo durante algum tempo para adquirir um sentido contextual do que isso significa para ele. Em tempos excepcionais, no entanto, o que os torna excepcionais é que os próprios conceitos com os quais normalmente elaboraríamos se tornam vulneráveis. As angústias dos tempos modernos nos mostram que precisamos expandir e aprofundar nosso próprio conceito de elaboração para entender os tempos em que os conceitos fundamentais de identidade e existência se perdem e renascem. Este é um momento de comoção histórica – na verdade, um momento que revela a vulnerabilidade da própria história – e é com a psicanálise, creio, que podemos ver uma semelhança deste momento com aquela experiência primordial que todos temos de vivenciar: a da nossa entrada no mundo humano. Bebês recém-nascidos ainda não possuem os conceitos para entender a experiência emergente. Terão de esperar por um tempo até que seus pais e outros adultos e crianças transmitam a eles os conceitos de sua cultura herdada. Como respondemos a essa dependência absoluta? Quando as coisas vão bem, com uma abordagem astuta do mundo que não podemos ainda conceituar.

Em sua teoria madura, Freud postulou Eros como uma das pulsões fundamentais que nos marcam como humanos. Mas Eros – pelo menos segundo o mito narrado no Simpósio de Platão – é a própria criança da Pobreza, ou Pínia, e Expediente, ou Poro (Platão, Symposium, 203b-204c). O significado disso, a meu ver, é que em nossa condição finita, limitada e dependente, nos manifestamos no mundo de maneira astuciosa. Tal manifestação, mesmo em sua astúcia, revela uma confiança – talvez suspeita – de que o mundo tem algo de bom em si, mesmo se não temos ainda os recursos para compreender o que seja.

Em sua teoria madura, Freud postulou Eros como uma das pulsões fundamentais que nos marcam como humanos. Mas Eros – pelo menos segundo o mito narrado no Simpósio de Platão – é a própria criança da Pobreza, ou Pínia, e Expediente, ou Poro (Platão, Symposium, 203b-204c). O significado disso, a meu ver, é que em nossa condição finita, limitada e dependente, nos manifestamos no mundo de maneira astuciosa. Tal manifestação, mesmo em sua astúcia, revela uma confiança – talvez suspeita – de que o mundo tem algo de bom em si, mesmo se não temos ainda os recursos para compreender o que seja.

Naturalmente, essa situação se radicaliza quando toda uma cultura está ameaçada. Nesse caso, a própria idéia de a cultura ter um futuro está em perigo. Os crow nos mostram como uma cultura pode usar sonhos e suas interpretações até para prever o clima. O que é preciso, realmente, é elaborar tal período até que os crow voltem a falar por si mesmos sobre o que é ser um crow.15

 

Referências

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Endereço para coorespondência
Jonathan Lear
1130 E 59th St., The University of Chicago
60637-1539 – Chicago – USA
E-mail: jlear@uchicago.edu

 

 

1 Título original: Working Through the End of Civilization. Trabalho a ser apresentado no 45º. Congresso da Associação Internacional de Psicanálise, em Berlim, de 25 a 28 de julho: IPA 2007 – Remembering, Repeating & Working Through in Psychoanalysis & Culture Today. Tradução: Joyce Kacelnik (candidata da SBPSP), com RBP.
2 Membro da American Psychoanalytic Association (APsaA).
3 Observe-se a semelhança estranha e não-acidental com a aquisição de conhecimento da criança: uma criança pode dizer “cavalo” e até apontar para um cavalo sem, contudo, ter ainda a capacidade de escolher outros cavalos, ou distinguir cavalos de outros animais de grande porte. Entretanto, pronunciar a palavra “cavalo” e apontar para um cavalo é parte do processo de desenvolvimento pelo qual uma criança adquire a capacidade de aplicar esse cavalo universal aos muitos cavalos particulares.
4 Os crow são uma tribo nativa norte-americana que historicamente viveu no vale do rio Yellowstone, no norte do estado de Wyoming e ao sul de Montana e que hoje vive numa reserva ao sul da cidade de Billings, em Montana, chamada Agência Crow, a capital da nação. O censo de 2000 registrou 1552 indivíduos. [N. T.]
5 Counting coup era uma prática de batalha dos nativos da região das Grandes Planícies. Uma demonstração não-violenta de bravura que consistia em tocar um guerreiro inimigo com a mão ou com uma vareta de golpe (counting coup), correndo o risco de ferimento ou morte se o guerreiro respondesse violentamente, e depois correr ileso. A frase “contando golpe” também pode se referir à narração de estórias sobre façanhas de batalhas. [N. T.]
6 Alma foi criada pela avó, Escudo Bonito (Pretty Shield), a mulher da medicina do índios crow. [N. T.]
7 Último dos tradicionais chefes da tribo, nascido por volta de 1848, Plenty Coups, que significa “Muitas Proezas”, viveu aproximadamente oitenta anos. [N. T.]
8 Há outras perdas a considerar fora da abrangência deste estudo, particularmente a perda do tempo e a perda de um mundo. 1) Em relação à perda do tempo: Segundo Aristóteles e Heidegger, assumimos que o tempo é essencialmente datável – que cada momento é um momento. Já para os crow, tudo agora era um agora: “quando entramos em guerra, agora”, “quando saímos numa caçada, agora”, quando realizamos “a Dança do Sol”, e assim por diante. Mas, se o tradicional entendimento crow dos eventos deixa de ter sentido, o mesmo ocorre com sua concepção de tempo. 2) Em relação à perda de um mundo: Essa é uma expressão freqüentemente usada de modo vago e ambíguo. Um modo de precisar essa perda é em termos de circunstâncias relevantes da lei do meio excluído. Certos aspectos relevantes da lei do meio excluído são constitutivos do nosso entendimento do princípio da realidade de que nos vivemos num mundo que não está inteiramente sob nosso controle onipotente. Portanto, na noite anterior à batalha os crow implicitamente saberiam que no dia seguinte obteriam êxito ou fracassariam. Não saberiam qual, porque o mundo era independente de seus desejos, mas saberiam que seria um ou outro. Essas eram todas as possibilidades existentes. Mas ao se mudarem para a reserva, esse campo inteiro de possibilidades se dissolve. Os entendimentos tradicionais sobre o que seria ir à guerra, ganhar ou perder – tudo isso não mais fez sentido. Mas são precisamente esses fatores típicos da lei do meio excluído que estruturavam o modo como os crow estruturavam o mundo a vir.
9 Viveu na metade do século II d.C., na Lídia, Ásia Menor. Autor de Onirocrítica, um conjunto de cinco livros dedicados à interpretação de sonhos. [N. T.]
10 O “chickadee”, ou “chapim”, é um passarinho de cabeça preta. Os machos usam o canto para marcar território. Se suas canções não são ouvidas, podem se deparar com rivais. Se isso acontece, podem se ver forçados a brigar com o invasor. [N. T.]
11 Urso Amarelo, ancião da nação crow. [N. T.]
12 Um trabalho psicanalítico pioneiro a esse respeito é o de Erikson (1993) sobre Martin Luther King, uma pessoa que assumiu responsabilidade pela permanência da cultura cristã. Erikson procura fazer um relato psicanalítico desse tipo de pessoa.
13 Ultrapassa a abrangência deste estudo a discussão sobre o entendimento psicanalítico dos totens, mas gostaria de indicar brevemente em que medida o chapim se adapta e não se adapta ao relato de Freud (Freud, 1913-1914; Paul, 1996). Para Freud, o totem é um substituto simbólico do pai assassinado. Freud pensava, creio que erroneamente, que era preciso ter havido um assassinato real; outros defendem mais plausivelmente a idéia de um assassinato simbólico de um pai simbólico. Mas, o que vemos no caso do chapim é, ao contrário, um ataque real aos símbolos do pai. O governo dos Estados Unidos não se dispôs a destruir os modos de vida tradicional dos das tribos indígenas e nativas norte americanas; mas, por estarem confi nados em uma reserva, já não era claro o que poderia se contar sobre ser um chefe (Medicine Crow, 2006; Lear, 2006). O ícone do chapim fornece a substância imaginativa para a recriação do papel do chefe. Se for para os crow prosperarem, a próxima geração de líderes crow terá que ser de chapins astutos.
14 http://www.lbhc.cc.mt.us/about/index.html. [N. T.]
15 Gostaria de agradecer a Gabriel Lear, Robert Paul, George Real Bird, Samuel Ritvo e Candace Vogler pelas valiosas discussões sobre os temas abordados neste artigo.

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