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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál v.43 n.1 São Paulo mar. 2009

 

DIÁLOGO

 

Boris Schnaiderman

 

 

Entrevista1

Boris Schnaiderman é tradutor, ensaísta, escritor, professor, crítico literário, responsável pela criação do Curso de Língua e Literatura Russa na Universidade São Paulo, onde fez seu Doutorado e Livre- Docência; maior especialista em literatura russa no Brasil, ganhador do Prêmio de Tradução da Academia Brasileira de Letras.

RBP: Prof. Boris, a Revista Brasileira de Psicanálise está preparando um número sobre a língua portuguesa. Assim sendo, é de grande interesse para nós esta conversa com o senhor, interlocutor de duas culturas, que transita com grande facilidade entre o português e o russo.

BORIS SCHNAIDERMAN: Cheguei ao Brasil, juntamente com meus pais, aos oito anos. Nasci em 1917, ano da revolução bolchevique, em uma pequena cidade da Ucrânia, mas logo depois minha família foi para Odessa, em função do período de grandes matanças de judeus na Ucrânia. Apesar de judeus, éramos muito assimilados à cultura russa; nossa língua era o russo. N ão tive nada da formação judaica tradicional, religiosa.

RBP: Ouvimos uma história que diz que o senhor teria testemunhado a filmagem do Encouraçado Potemkin. Como foi isso?

BORIS SCHNAIDERMAN: Mas isso foi mesmo verdade! Isto aconteceu já próximo da nossa vinda para o Brasil. Eu estava brincando na grande escadaria que existe em Odessa, perto da qual morávamos e havia lá naquele dia um movimento completamente incomum. Vi umas damas com umas vestes grã-finas do começo do século XX e uns senhores engravatados e de chapéu. Isso chamou minha atenção. Era tudo muito estranho, e de repente aqueles senhores começaram a atirar os chapéus para o ar. Filmava-se então uma cena do Encouraçado, coisa que só compreendi completamente mais tarde. Acredito que eu tenha visto uns três dias da filmagem, muito interessado, mas não me lembro de ter visto Eisenstein. Mais tarde, já no Brasil, meus pais me levaram para ver o filme no cinema e fiquei espantado ao reconhecer as cenas que vi na escadaria.

RBP: Em que cidade do Brasil vocês chegaram?

BORIS SCHNAIDERMAN: No Rio de Janeiro, onde ficamos por uns seis meses. Depois meus pais se transferiram para São Paulo e, em 1934, voltamos para o Rio. Tive uma vida muito atribulada nesse período. Sempre pensei em fazer literatura, mas meus pais não viam isso como uma profissão. A faculdade de Filosofia, que poderia me interessar também, era vista como perfumaria, coisa de moças, não como coisa séria. N aquele tempo, só eram reconhecidas como dignas três profissões: o indivíduo de classe média tinha que ser médico, advogado ou engenheiro. Meus pais queriam que eu tivesse uma profissão aceitável na sociedade e acabei fazendo Engenharia Agronômica.

RBP: O senhor chegou a trabalhar como agrônomo?

BORIS SCHNAIDERMAN: Eu me formei em 1940, mas não podia exercer a profissão porque, de acordo com a Legislação do Estado N ovo, para exercer uma profissão liberal o indivíduo precisava ter nacionalidade brasileira ou ser naturalizado e ter feito o serviço militar. A naturalização era difícil ainda, a minha saiu só em 1941. O serviço militar, no caso de estudantes de curso superior, brasileiros natos, poderia ser feito no CPOR, Curso Preparatório de Oficiais da Reserva. Eu não poderia ser oficial e nem mesmo promovido por ato de bravura, porque de acordo com a legislação do Estado N ovo, eu era cidadão de segunda classe. Havia também a possibilidade de se fazer a linha de tiro, como se chamava então, um tipo de preparação mais branda, permitido para quem quisesse. Geralmente as pessoas que estavam trabalhando no comércio ou estudando faziam a linha de tiro. N essa altura, o Brasil tinha entrado na guerra e eu queria ir para a guerra, mas não poderia me alistar como voluntário porque se chegasse em casa dizendo isto seria um Deus nos acuda. Em vez de fazer a linha de tiro, me alistei no exército onde fiz o serviço militar; meus pais não entendiam muito bem a diferença. Já formado como engenheiro agrônomo, fui incorporado ao exército e fiz o curso de sargento. Era inevitável que me convocassem e o fizeram já às vésperas do embarque das tropas.

RBP: Então o senhor foi um pracinha?

BORIS SCHNAIDERMAN: Sim. Eu morava em Copacabana e o quartel ficava em Cascadura e usava ônibus e trem para chegar lá. Fui convocado já às vésperas do embarque. Passei mais de um ano na campanha da Itália, servindo na artilharia.

RBP: O senhor escreveu sobre essa experiência, não foi?

BORIS SCHNAIDERMAN: Fiz sobre ela um livro de ficção, Guerra em surdina, que hoje em dia é chamado de romance. Quando eu o escrevi não pensava em fazer um romance, aquilo não me parecia um romance, mas hoje esses critérios ficaram muito elásticos. Então, é um romance, tudo bem.

RBP: Mas é também um livro um pouco autobiográfico?

BORIS SCHNAIDERMAN: Não é bem uma autobiografia, mas é baseado na minha experiência pessoal. Se fosse escrever uma autobiografia, eu teria me concentrado no problema da imigração, mas não era esse o meu tema, eu queria escrever sobre a guerra. Então, fiz um livro de ficção.

Existem muitos livros sobre guerras, mas poucos são bons. Antes do meu livro, saiu uma obra séria sobre o assunto, mais ou menos autobiográfica, Maria de Cada Porto, escrito por Moacir C. Lopes. Antonio Candido tem um irmão, Roberto de Mello e Souza, que também escreveu um livro muito bom, o Mina R.

RBP: E como o senhor se encaminhou para a tradução?

BORIS SCHNAIDERMAN: Naquela época tínhamos problemas financeiros, e eu precisava trabalhar logo. Conhecia bem a língua russa e, aos poucos, comecei a traduzir. N ão tinha orientação nenhuma e nem com quem conversar sobre esse tema, então foi um trabalho autodidata mesmo. Hoje em dia eu renego o que produzi naquela época e que assinava com pseudônimo; deixei tudo aquilo de lado. Duas traduções minhas saíram publicadas antes de eu ir para a guerra e, na volta, continuei traduzindo sob pseudônimo. Só em 1959 saiu o meu primeiro livro assinado com o meu nome, mas eu ainda não estava satisfeito com o resultado. Assinei, mas quando o livro saiu publicado eu já não gostava mais do trabalho. Quem se inicia na tradução, e eu passava por isso, geralmente se preocupa muito com a fidelidade semântica. Eu até tinha alguma noção de que o estilo tinha importância, mas não estava preparado para lidar com isso. Em geral, nesse começo, a pessoa procura traduzir aquilo que se chama de conteúdo da obra sem se preocupar com a forma. Ora, não dá para separar a forma do conteúdo de uma obra e o tradutor tem que compreender isso. A preocupação apenas com a fidelidade ao conteúdo, com a transmissão fiel desse conteúdo, sem a consideração com as questões de estruturação da obra em questão, leva, na realidade, a uma deturpação desse original. Gera um estilo castigado, um estilo muito severo, de muita fidelidade gramatical, que não permite nenhum deslize da linguagem, nenhum coloquialismo. E isso é um absurdo. Quando releio minhas traduções daquele tempo, da década de 1960, acho ridículas.

RBP: A sua tradução dos Irmãos Karamazov foi feita nesse estilo?

BORIS SCHNAIDERMAN: Justamente! Infelizmente, foi minha primeira tradução, feita naquele período em que eu conhecia pouco sobre esse trabalho. O livro saiu em 1944, foi uma sensação, pois era traduzido diretamente do russo. Mas, na verdade, o editor que me encomendou o trabalho sabia que a editora José Olympio estava preparando uma edição das obras de Dostoiévski e correu para sair antes, mas foi uma coisa completamente errada, minha tradução é absurda, uma deformação completa! N ão reconheço aquilo e não aceito de jeito nenhum.

RBP: Bom, após essas primeiras traduções, renegadas, como foi o desenvolvimento de seu trabalho?

BORIS SCHNAIDERMAN: Passei também por um período em que produzia uma tradução muito rebuscada, que chamei de endomingada, resultado da visão que eu tinha da literatura como algo muito elevado, idealizado. Só depois cheguei ao meu modo atual de traduzir, um modo mais natural que, ao mesmo tempo, procura manter-se fiel ao estilo do autor.

Para se traduzir bem um texto, é preciso ter em mente que a tradução é um problema artístico, é um problema estético. A tradução tem que ser criativa, sem criatividade ela não existe. Estou para publicar um livro que acabei de escrever, que se chama Tradução – Ato desmedido, porque traduzir é, realmente, um ato desmedido. Sem ousadia, arrojo, não existe um bom tradutor. É sempre uma ousadia: quem sou eu para traduzir um Dostoiévski, Púchkin, Gorki? N o entanto, preciso traduzir, porque conheço a língua russa e tenho experiência em lidar com textos. Tenho que traduzir esses grandes autores e, ao mesmo tempo, quem sou eu para fazer isso? Mas há uma necessidade de traduções. Estou diante de um original e tenho que ter coragem para enfrentá-lo, enfrentar um problema estético, uma questão de expressão. Eu preciso ousar, pegar o texto, ir em frente. N ão posso desaparecer diante do texto! Existia a noção de que o tradutor teria que se apagar diante de um texto, de ser transparente, teria apenas que transmitir o conteúdo do texto e pronto! A personalidade dele deveria desaparecer, mas isto é uma ilusão, porque não desaparece mesmo. A tradução, para ser boa, envolve um trabalho criativo, não se trata apenas de uma questão de fidelidade mecânica, passo a passo, frase a frase. Esta forma de traduzir está superada há muito. A tradução é uma arte!

RBP: O senhor costuma rever suas traduções renegadas?

BORIS SCHNAIDERMAN: Sim. Gosto de ir refazendo aquelas que estão no estilo muito castigado, muito voltadas para a exatidão gramatical, procurando um tom mais solto, mais de acordo e fiel ao original.

RBP: E a questão das traduções indiretas?

BORIS SCHNAIDERMAN: Elas são um mal, mas muitas vezes um mal necessário. Atualmente, o mundo está muito pequeno, e aparecem obras notáveis, em línguas pouco divulgadas, e temos a necessidade de ter acesso às obras produzidas nessas línguas, na Turquia, na Geórgia no Azerbaidjão etc. Quem vai conhecer todas essas línguas e onde encontrar tradutores para tudo isso? N o hebraico se traduz diretamente muito bem, creio eu, mas é mais difícil encontrar quem traduza do turco ou do persa, por exemplo. Então, a tradução indireta é um mal necessário, porém é muito difícil uma tradução indireta ser boa, porque, na realidade, ela inclui duas operações diferentes: uma da língua original para a língua intermediária e outra desta para a língua do tradutor. Pode ocorrer uma identificação muito grande do tradutor com o autor, coisa que sempre ajuda, mesmo em uma tradução indireta. Temos no Brasil um caso interessantíssimo, que são as traduções do Rubem Fonseca para os contos de Isaac Bábel, escritor russo. A identificação do Rubem com ele foi tão grande, que embora usasse o inglês como fonte intermediária, acabou realizando uma tradução notável! Mas são exceções. Muitos dos grandes escritores fizeram péssimas traduções e a história está cheia de exemplos neste sentido.

RBP: O senhor também procura autores com os quais se identifica?

BORIS SCHNAIDERMAN: Sempre, hoje só traduzo textos que me tocam de perto, de autores com os quais tenho afinidades. Claro que traduzo autores que nem sempre têm a mesma estatura, que não estão no mesmo plano de Tolstoi ou Dostoiéviski, mas são sempre autores que me falam muito de perto.

RBP: As traduções das obras de Freud para o português sempre foram indiretas, via francês, espanhol ou inglês. Na verdade, só agora se começa um trabalho na tradução direta.

BORIS SCHNAIDERMAN: O francês é uma língua difícil para servir como língua intermediária porque é muito estruturada, com uma tradição já sedimentada e isso torna o trabalho da tradução muito mais difícil. É muito mais fácil eu fazer uma boa tradução direta do russo do que uma tradução através do francês. É dificílimo!

RBP: Gostaríamos de ouvi-lo um pouco sobre as especificidades em relação à tradução das línguas com as quais o senhor trabalha. É difícil traduzir do russo para o português, por exemplo? Que características do russo dificultam a tradução?

BORIS SCHNAIDERMAN: É difícil porque o russo é uma língua com características muito específicas, com uma estrutura verbal muito diferente do português e na qual, por exemplo, inexistem artigos. Não posso dizer simplesmente: João foi à cidade. Tenho que dizer se ele foi a pé ou com que tipo de condução e isso já atrapalha muito o tradutor. Mas, apesar de grandes diferenças, parece que alguma coisa aproxima o russo e o português do Brasil no nível fônico, coisa que já foi observada, porém não explicada por vários estudiosos.

RBP: E a tradução do português para outra língua, ela apresenta também dificuldades grandes?

BORIS SCHNAIDERMAN: Claro! Vocês já pensaram sobre a dificuldade enorme que é, por exemplo, traduzir, Guimarães Rosa? Ele está traduzido para o alemão, para o italiano e para muitas outras línguas. As mais admiradas são a alemã e a italiana, principalmente a alemã, de Curt Meyar Clason, com quem Guimarães se correspondeu. Enfim, foi um trabalho muito importante, dificílimo. O português apresenta dificuldades enormes. Só o fato de termos os verbos “ser” e “estar” como dois verbos diferentes, já é uma dificuldade tremenda para se traduzir para outras línguas, que não têm estes dois verbos diferentes. Claro que em todo trabalho de tradução você tem que lidar com as grandes diferenças sempre existentes entre duas línguas.

RBP: Você tem duas identidades linguísticas, não é?

BORIS SCHNAIDERMAN: Isso é verdade! Como já disse, meus pais eram muito assimilados à vida e cultura russa. Então, em casa só se falava e se lia livros em russo.

RBP: Então, como foi assumir essa nova identidade de língua portuguesa e se tornar um escritor na língua portuguesa?

BORIS SCHNAIDERMAN: Esse foi um processo doloroso, pois quando imigramos eu ficava muito preocupado em não esquecer o russo. Para isso, além de falar russo em casa, eu ficava copiando livros em russo, principalmente poesia, sempre preocupado em conservar a língua. Aos 14/15 anos tive uma crise de identidade e comecei a me identificar muito com o português, com a língua portuguesa, com a realidade brasileira e com a literatura de Portugal e do Brasil. A partir daí, passei a sentir a necessidade de escrever e era muito estimulado pelos professores do secundário e pelos colegas. Eram rapazinhos da minha idade e me diziam: Se você precisa, gosta de escrever, vai escrevendo, e eles me ajudavam muito. Foi difícil, mas acabei me adaptando à língua portuguesa.

RBP: Era como jogar nos dois times?

BORIS SCHNAIDERMAN: Sim, mas passei a me expressar mais em português e o russo se tornou uma língua secundária. E hoje minha língua literária é o português.

Quando vou a Moscou tenho certo problema, pois o russo que falo é o da Ucrânia. Sinto-me como um nordestino chegando a São Paulo. Quando vou a Odessa, claro que ninguém estranha minha forma de falar.

RBP: Essa dupla identidade linguística, que permite um trânsito muito mais fluente entre as duas línguas, passou a ser um elemento facilitador de seu trabalho, não é?

BORIS SCHNAIDERMAN: Claro que sim!

RBP: Como o senhor vê o texto de Freud sobre Dostoiévski, o senhor que conhece tão bem esse autor?

BORIS SCHNAIDERMAN: Não conheço Freud em profundidade, mas assim mesmo tenho uma grande admiração pelo livro A interpretação dos sonhos, mas no trabalho sobre Dostoiévski, realmente, Freud não foi muito feliz. N o trabalho, hoje um clássico, do americano Joseph Frank sobre Dostoiévski, encontramos no apêndice do primeiro volume uma análise desse texto de Freud, onde fica demonstrado claramente que Freud não conhecia importantes pormenores da vida de Dostoiévski, aliás, nem poderia conhecer naquela época. Assim, acabou se baseando em informações insuficientes, incompletas, como, por exemplo, na questão da morte do pai de Dostoiévski. Nesse trabalho Freud se arriscou totalmente, mas, enfim, escrevê-lo foi um ato de coragem que merece ser louvado. Aliás, Dostoiévski é sempre um tema riquíssimo para os psicanalistas. Existe um pequeno romance inacabado dele que se chama Niétotchka Niezvânova, que eu traduzi para o português e está publicado agora pela Editora 34. Ele chamou esse texto de novela, mas não é mesmo uma novela e sim um romance inacabado, que tem um fim abortado, porém é uma obra extraordinária e premonitória porque ele antecipa nela muitas das questões que seriam mais tarde abordadas por Freud.

Trata-se da história de uma menina, uma criança ainda, abandonada, recolhida na casa de um príncipe, que desenvolve uma identificação, uma amizade, uma ligação muito grande com a filha desse príncipe. N aquela época, em 1849,o romance foi interrompido pela prisão de Dostoiévski, que foi enviado para a Sibéria. Dostoiévski teve aí a coragem de abordar o tema da sexualidade infantil em uma época em que uma situação assim seria considerada, imediatamente, um caso patológico. Dostoiévski tratou o tema com a maior naturalidade, o que é mais surpreendente por ser um autor russo, vivendo na Rússia. A Rússia era um país muito conservador, preconceituoso, onde havia uma grande preocupação com o bom tom, mesmo na literatura.

Quando lemos a Historia da sexualidade, de Foucault, vemos que naquela época havia a ideia generalizada de se ver a sexualidade infantil como algo patológico. E teve a ousadia de abordar esse tema com naturalidade.

RBP: Já que o senhor tocou no tema do preconceito, e a questão da xenofobia e do antissemitismo de Dostoiévski? Como o senhor vê isso?

BORIS SCHNAIDERMAN: Estas são questões muito importantes de serem levantadas em relação à obra de Dostoiévski e que, muitas vezes, fazem com que eu tenha muita raiva dele. Há nela um grande preconceito contra os poloneses, uma raiva, um ódio mesmo, uma coisa incrível! Traduzi, por exemplo, um romance curto dele que trata de um jogador e nele esse ódio aflora com uma intensidade incrível, justamente logo após o esmagamento da rebelião polonesa de 1863-1864. São os paradoxos de um gênio. Por que um homem com aquela formação, compreensão e humanidade extraordinárias, abriga em si também preconceitos mesquinhos e ridículos?

Em sua extensa obra, Diário de um escritor, geralmente publicada em três volumes, existem páginas realmente extraordinárias, mas é um trabalho completamente prejudicado por sua mesquinharia, seu ódio, sua prevenção contra o estrangeiro, que é sempre visto como um inimigo.

RBP: Na sua maneira de ver, a tradução é um trabalho criativo, artístico. E como fazer um trabalho assim com ódio do autor?

BORIS SCHNAIDERMAN: Esta é também uma situação paradoxal. Tenho que me identificar com o autor e ao mesmo tempo tenho raiva dele. Dentro deste paradoxo não há outro caminho senão continuar traduzindo. Isso não é motivo para não traduzir. É preciso que o tradutor possa aceitar o autor como ele é. E isto é difícil!

RBP: O senhor mencionou há pouco a obra de Joseph Frank sobre Dostoiévski, recentemente publicada no Brasil. O senhor considera a leitura dela indispensável para a compreensão de Dostoiévski hoje?

BORIS SCHNAIDERMAN: Indispensável, não sei. Acho que é um trabalho muito interessante, muito útil, de grande fôlego, em cinco alentados volumes, mas que deve ser lido com cautela, pois é desigual e, muitas vezes, contraditório. À medida que o autor foi se enfronhando mais na história da época de Dostoiévski, na sua obra, sua visão do autor e da Rússia foi se transformando. Esse trabalho foi a obra da vida de Joseph Frank e é, sem dúvida, um livro de muita importância.

RBP: O senhor foi o responsável pela vinda ao Brasil do linguista Roman Jakobson. Como isto aconteceu?

BORIS SCHNAIDERMAN: Bem, para mim foi uma grande surpresa. Eu conhecia pouco sua obra, mas tinha noção de sua importância. Escrevi a ele uma carta na qual dizia que havia muito interesse pela sua obra no Brasil e se ele poderia vir até aqui. Ele respondeu logo dizendo que gostara muito do convite, pois desde muitos anos desejava conhecer o país. Ele chegou em torno de 1968. Eu o convidei por meio da Faculdade de Filosofia da USP e aqui ele fez várias palestras para um grande público. Vamos nos lembrar aqui que estávamos em pleno período da repressão, época das grandes passeatas. A primeira dessas palestras havia sido marcada no prédio da Faculdade na Rua Maria Antonia, na época ocupado pelos estudantes. N a hora, apareceu um público enorme que não caberia no auditório. Como foi chegando um público cada vez maior, percebemos que o auditório seria pequeno para tanta gente. Corri para conseguir algum outro e acabamos nos transferindo para o auditório da Federação das Indústrias. Para a segunda conferência, conseguimos o auditório da Biblioteca Mário de Andrade e a mesma situação se repetiu: o público que veio não caberia nele e tivemos que nos transferir para o Teatro da Aliança Francesa. Fomos a pé de um lugar para o outro. Caminhávamos juntos Jakobson, sua mulher e eu. Aí ele me disse: Será que as pessoas vão mesmo? Nos Estados Unidos, se alguém chega e o conferencista não chegou ainda, a pessoa vai embora! Respondi: Não é o caso aqui, todo mundo está muito interessado em você, não se preocupe, olhe para trás. Então ele olhou e viu que todo aquele público nos seguia, parecendo uma passeata, e se acalmou.

Sua vinda ao Brasil foi um grande acontecimento e sua presença aqui teve consequências importantes para a cultura brasileira.

RBP: É curioso que um linguista, mesmo do porte do Jakobson, tenha despertado um interesse tão grande naquela época.

BORIS SCHNAIDERMAN: Realmente, a presença do Jakobson despertou um grande interesse, mas ele era um linguista de um tipo especial. O Haroldo de Campos o chamou de o poeta da linguística e ele parecia mesmo um indivíduo tocado pelo demônio da poesia, com um grande envolvimento com ela. Quando jovem, já havia publicado um livro de poemas, junto com um dos principais poetas da vanguarda russa, o Krutchônikh, ao qual era muito ligado. Sua vida está toda marcada por seu interesse e paixão pela poesia. Ele tinha mesmo o dom da palavra, se comunicava muito bem e com grande facilidade. Ao falar, conseguia despertar o interesse de qualquer público, mesmo de pessoas pouco cultas.

RBP: Você teve uma longa carreira acadêmica na USP, tendo sido inclusive o criador do curso de língua e literatura russas. Sua atividade como professor foi útil ao seu trabalho de tradutor?

BORIS SCHNAIDERMAN: Sim, são duas atividades que podem se complementar, que permitem uma concentração até maior no trabalho intelectual. Além disso, para mim foi muito enriquecedor o convívio no meio universitário. N o período das viagens russas ao espaço, havia surgido um grande interesse pela Rússia no Brasil, tendo sido criados muitos cursos nessa língua, alguns deles em universidades. Praticamente todos acabaram desaparecendo após o golpe de 1964. O nosso curso foi criado pouco antes da repressão militar, já levantando, claro, muitas desconfianças, o que nos trouxe várias dificuldades. Acredito que ele tenha contribuído muito para a implantação e aprofundamento dos estudos russos no país. Dele saíram muitos tradutores e especialistas em literatura russa que hoje produzem ativamente.

Aliás, o curso, ao lado dos estudos da língua russa, desenvolvia muito, talvez até mais, os estudos de literatura.

RBP: Quais são as principais especificidades da língua portuguesa e como elas podem facilitar ou dificultar o trabalho de um tradutor ou a comunicação escrita ou falada através dela?

BORIS SCHNAIDERMAN: Bem, de início temos as questões da língua portuguesa e do português falado no Brasil. O português é uma língua muito rica do ponto de vista poético e pobre para expressão de pensamentos, uma vez que não é suficientemente trabalhada. Esse é um ponto de vista já consagrado. Por exemplo, o francês, o inglês e o alemão são línguas que foram muito trabalhadas em termos de pensamento. Já o português é uma língua riquíssima para a expressão de sentimentos, tanto que, às vezes, é difícil traduzir do português para outras línguas menos ricas nisso.

As especificidades linguísticas são muitas. O português tem formas linguísticas que não existem em outras línguas. É aparentado com as outras línguas latinas, mas tem suas especificidades como a que apontei na questão dos verbos ser e estar, por exemplo, particularidades que são difíceis de expressar em outra língua. Exige grande luta e ginástica mental do tradutor.

RBP: Você poderia explicar melhor o que significa a ideia segunda a qual o português é uma língua pobre para a expressão de pensamentos?

BORIS SCHNAIDERMAN: É que ele não tem suficiente maleabilidade para esta área de expressão. Já o alemão é riquíssimo para isso, é uma característica da língua. O fato de um país ter tido grandes filósofos, como a França, a Inglaterra, marca uma tradição na expressão do pensamento nas línguas faladas neles. Já o português não foi suficientemente trabalhado neste sentido, como outras línguas.

RBP: É interessante, então, lembrarmos aqui que a psicanálise surgiu em língua alemã, tão própria, como o senhor aponta, para a expressão de pensamentos.

BORIS SCHNAIDERMAN: Claro!

RBP: Podemos pensar então que um filósofo, no exercício de sua reflexão, de sua escrita, expande, desenvolve sua língua?

BORIS SCHNAIDERMAN: Sim! O filósofo é um escritor que marca a sua língua.

RBP: Hoje há muitos autores brasileiros sendo traduzidos para outras línguas. O senhor acompanha este movimento?

BORIS SCHNAIDERMAN: Sim, um pouco. Realmente aqui têm surgido trabalhos importantes na área de traduções. À medida que o Brasil vai ficando mais importante no contexto mundial, a literatura brasileira também vai se difundindo mais. Se o português era o túmulo da literatura produzida nele, isso está deixando de ser verdade, à medida que o país vai se firmando mais no campo internacional. Anos atrás, fora do Brasil, ninguém conhecia Machado de Assis; ele era um nome completamente desconhecido. Hoje em dia há trabalhos importantes sobre ele, sobre Euclides da Cunha e sobre outros autores em inglês, francês, em alemão e em espanhol.

RBP: O senhor falou sobre as possibilidades do português na área de expressão de sentimentos. N o caso da psicanálise, que trabalha com os sentimentos e pensamentos, como isto repercute?

BORIS SCHNAIDERMAN: O que acontece é que falamos em pensamentos e sentimentos, mas estas coisas não estão desligadas, fazem parte de um todo só, somos nós quem as desliga, separa… Isso foi muito bem expresso por Fernando Pessoa, por Dostoiévski e por outros autores. O sentir e o pensar estão muito mais próximos do que parece, está tudo muito próximo, muito ligado. O saudoso professor Anatol Rosenfeld falava do o luzir sensível da ideia, interpretando assim a reflexão de Hegel sobre esse tema em A fenomenologia do espírito. Vocês, claro, têm bastante experiência com isto. O procedimento analítico não é uma tradução?

RBP: O senhor desenvolveu uma parte de seu trabalho ligado aos concretistas brasileiros Haroldo e Augusto de Campos, não foi? Também traduziu alguns dos autores russos de vanguarda. Poderíamos falar um pouco sobre isso?

BORIS SCHNAIDERMAN: Sim, entrei em contato com os concretistas em 1961, quando, juntamente com o Décio Pignatari, vieram à minha casa com suas esposas. Eu havia publicado um artigo sobre Maiakóvski, eles leram, gostaram, e por isso me procuraram. Antes disso, eu era avesso à poesia concreta, eu a via com muita desconfiança, não gostava nem um pouco. Eu havia tido uma formação cultural muito tradicional. Fui autodidata, não tinha ocupação literária constante, embora produzisse alguma coisa de vez em quando. N o fim da década de 1950 e início da década de 1960 eu estava me voltando para a modernidade, me aproximando do moderno. Já os concretistas estavam no período que chamavam de o pulo da onça, estavam se voltando para a preocupação social e, justamente por causa disso, se interessaram por Maiakóvski. Fui percebendo, aos poucos, a importância deles, percebendo que eram indivíduos cultos e grandes conhecedores de poesia. Passei a respeitá-los muito e dar aulas de russo ao Haroldo, uma vez por semana na casa dele. O Augusto se matriculou no curso de russo da Faculdade onde esteve por dois anos. Passamos a trabalhar juntos na tradução de poetas russos e publicamos Poemas de Maiakóvski e Poesia Russa Moderna, editados atualmente pela Perspectiva. Esse convívio, naturalmente, contribuiu muito para o enriquecimento de meu mundo interior, pois passei a assimilar mais a poesia moderna, inclusive a brasileira e as próprias obras de Haroldo, Augusto e Décio Pignatari. Haroldo acabou se tornando a pessoa com quem eu melhor trabalhei.

RBP: E a tradução da poesia, que dificuldades específicas apresenta?

BORIS SCHNAIDERMAN: São mesmo questões muito específicas. Para mim, poesia só se traduz como obra de poesia e não como tem aparecido ultimamente, poesia traduzida em prosa, o que é admissível apenas quando isso é declarado claramente: tradução em prosa.

RBP: Então o tradutor de poesia tem que ser poeta também?

BORIS SCHNAIDERMAN: Acho que sim. Por isso nunca traduzo poesia sozinho, só o faço quando é uma poesia sem metro e sem rima. Traduzi, com Jerusa Pires Ferreira, minha esposa, trabalhos do poeta contemporâneo Guenádi Aigui exatamente porque ele não trabalha com rimas e métrica.

RBP: Prof. Boris, foi excelente a nossa conversa. Muito obrigado por ela.

BORIS SCHNAIDERMAN: Antes de terminar gostaria de ler algo para vocês:

Traduzir-se

Uma parte de mim
É todo mundo
Outra parte é ninguém
Fundo sem fundo
Uma parte de mim
É multidão
Outra parte estranheza
E solidão

Uma parte de mim
Pesa e pondera
Outra parte
Delira

Uma parte de mim
Almoça e janta
Outra parte
Se espanta
Uma parte de mim
É permanente
Outra parte
Se sabe de repente

Uma parte de mim
É só vertigem
Outra parte
Linguagem

Traduzir uma parte
Na outra parte
Que é uma questão
De vida ou morte
Será arte?

Ferreira Gullar

 

 

1 Entrevista realizada na Sede da Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise da SBPSP, em 15.10.2008, por Chulamit Terepins, Luiz Tenório de Oliveira Lima, Maria Ângela Moretzsonh, Maria Aparecida Nicoletti, Maria Elisa Pirozzi, Marina Kon Bilenky, Sonia S. Terepins, Thaís Blucher.

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