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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601
Rev. bras. psicanál v.43 n.1 São Paulo mar. 2009
TEMÁTICOS
A linguagem dos fenômenos inconscientes
El lenguaje de los fenómenos inconcientes
The language of unconscius phenomenons
Isabel Mainetti de Vilutis,1 São Paulo
Instituto Sedes Sapientiae
Resumo
Partindo do relato da sua experiência pessoal como analista estrangeira, a autora tece algumas considerações sobre a dificuldade de tradução de expressões próprias da língua portuguesa falada no Brasil. Estabelece um paralelo com o trabalho de tradução do inconsciente e, ao mesmo tempo, remarca a diferença entre eles, decorrente da inexistência de uma correlação simbólica prévia e universal entre aquilo que o paciente fala e as significações inconscientes. Um percurso por alguns conceitos da obra de Sigmund Freud explicita a estreita relação existente entre linguagem e psicanálise desde a origem da teorização psicanalítica. Como conclusão, postula-se que não existem diferenças específicas que possam ser creditadas à língua portuguesa em um processo de análise.
Palavras-chave: Linguagem; Tradução; Estrangeiro; Processo analítico.
Resumen
Partiendo del relato de su experiencia personal como analista extranjera, la autora elabora algunas consideraciones sobre la dificultad de traducción de expresiones particulares del idioma portugués que se habla en Brasil. Hace un paralelo con el trabajo de traducción del inconciente y, al mismo tiempo, marca la diferencia entre ellos, que se debe a la inexistencia de una correlación simbólica previa y universal entre lo que los pacientes hablan y las significacioes inconcientes. Un recorrido por algunos conceptos de la obra de Sigmund Freud deja clara la estrecha relación que existe entre lenguaje y psicoanálisis desde el origen de la teorización psicoanalítica. Como conclusión, se postula que no existen diferencias específicas que puedan atribuírse al idioma português, en un proceso de análisis.
Palabras clave: Lenguaje; Traducción; Extranjero; Proceso analítico.
Abstract
Beginning with a rapport of her personal experience as a foreing psychoanalyst, the author examines some difficulties founded in the translation of portuguese idiomatic expressions, spoken in Brazil. She makes a comparison with the translation work during analysis and, at the same time, shows the difference between them, due to the fact that there is not a previous and universal symbolic link between pacients speeches and unconscious significations. Using some Sigmund Freud concepts, the author explains the strong bind between language and psychoanalysis since the beginnig of freudian theory. As a conclusion, it is said that there are not especific differences in a psycoanalises process due to portuguese language.
Keywords: Language; Translation; Foreigner; Analitic process.
Psyche é uma palavra grega e se concebe, na tradução alemã, como alma (seele). Tratamento psíquico significa, portanto, tratamento anímico. Assim, poder-se-ia pensar que o significado subjacente é: tratamento dos fenômenos psicológicos da vida anímica, mas não é esse o sentido dessas palavras. “Tratamento psíquico” quer dizer, antes, tratamento que parte da alma, tratamento – seja de perturbações anímicas ou físicas – por meios que atuam, em primeiro lugar e de maneira direta, sobre o que é anímico no ser humano. Um desses meios é sobretudo a palavra e as palavras são também a ferramenta essencial do tratamento anímico”.
Freud, S. (1890/989)
O olhar estrangeiro
Quando fui convidada a pensar sobre as peculiaridades da língua portuguesa e sua relação com a psicanálise varias questões me inquietaram devido a vastidão do tema. Evidentemente, a primeira delas foi delimitar esta abordagem ao uso da língua portuguesa nas análises realizadas com pacientes brasileiros. Meu conhecimento do uso do idioma em outros países de língua portuguesa é insuficiente para incluí-los nos meus apontamentos.
Outro tema a ser levado em consideração para a leitura deste texto é o fato de minha língua materna não ser o português. A língua portuguesa me acompanha – e me surpreende – há mais de trinta anos, e posso considerá-la uma boa língua materna “adotiva”.
Adotar e sermos adotados por uma língua estrangeira nos permite o acesso a outra cultura, a outros pensares e a novas visões da realidade, mas também preserva, em seu núcleo, um aspecto intraduzível que precisa ser apreendido como tal. Ou ele se torna próprio, intraduzível, porém vivo, ou fica-se estrangeiro à língua, mero tradutor. É como dizer que uma língua estrangeira não se aprende, ela nos apreende na sua teia de significações. Fazendo uma comparação apressada com a importância dos sonhos em um processo de análise, de nada serviria a interpretação dos mesmos se ela não fosse gerada em transferência, já que correria o risco de ficar como uma excelente produção teórica sem carne, sem vida e sem ação.
Considero, então, a existência de diferentes formas de apropriação da língua estrangeira, de torná-la viva e ouvi-la ecoar dentro de nós. A língua estrangeira se recria na literatura, na metáfora e nos clichês de cada cultura e o processo por meio do qual novas palavras chegam a substituir as antigas é fascinante. A sensação de amplidão psíquica que se experimenta é equivalente ao alívio produzido por uma boa interpretação analítica: há a dor de não saber, o saber sobre a dor e o aligeiramento daquilo que pesava sobre nós como língua morta, como latim inútil da alma.
A passagem que se realiza do indiferenciado narcísico ao diferenciado da castração é outro exemplo das dificuldades que se enfrentam, inevitavelmente, no aprendizado de uma língua estrangeira. É frequente, na conversa entre estrangeiros, discorrer longamente sobre o sentido das palavras: “ali quer dizer tal coisa; aqui não, é justamente o oposto etc.”. Produz certa euforia o reconhecimento do igual, a imagem especular, a não exclusão. Quase como um automatismo da mente, pensamos em uma língua e traduzimos incansavelmente em outra, como se fosse impossível abandonar a “mãe-idioma”/língua materna sem vivenciar o ônus de uma traição. A primeira intenção é a de amar o igual e sentir o diferente como ameaçador.
No entanto, deixar no passado o aconchego do familiar e abrir a mente para outros circuitos de pensamento, para novas sintaxes e significados desconhecidos implica, como toda castração, uma perda e um limite que propiciam uma feliz abertura ao novo.
Apesar disso, a língua materna resiste nos sotaques diferenciados, nas construções bizarras, na face cômica de certos enganos. Em uma das primeiras sessões de análise que realizei em São Paulo, uma paciente discorria longamente sobre o enigma do seu sofrimento.
Ela não podia sequer imaginar por que, sendo uma pessoa tão afortunada na sua vida social e pessoal, a angústia se fazia presente no início de cada noite, levando-a a padecer crises de insônia e outros sintomas que não vem ao caso descrever. Sobre o final de seu relato, um – para mim – enigmático “sei lá” encerra sua fala e se estabelece o seguinte diálogo:
– (….) Sei lá!
– Sim, você sabe lá, e é por isso que está aqui.
– (Silêncio)
Aprendi posteriormente que o significado da expressão é justamente o contrário, o que não invalida a intervenção. Até hoje considero interessantíssimo que para expressar o desconhecimento sobre determinada questão, se afirme um saber em algum lugar indeterminado. Como se a confirmação do saber inconsciente se manifestasse de maneira clara e transparente à diferença de outras línguas, nas que é frequente acharmos expressões de desconhecimento que poderiam ser traduzidas como “quem sabe?” (quando ainda se tem esperanças de achar algum sujeito suposto ao saber); ou “não sei” (quando o Eu se enuncia como sinceramente ignorante).
Como muitos outros estrangeiros, sofri equívocos engraçados com o contraditório “pois não”:
– Podemos marcar a sessão na quinta-feira?
– Pois não.
– Então, procuremos outro horário…
Também aprendi o valor e a sofisticação da palavra saudade. Intraduzível e precisa, ela pode nomear muitos momentos da minha vida que, sem ela, teriam ficado reduzidos a simples nostalgia.
A existência desta palavra, entre outras razões, fomenta o imaginário cultural que tende a considerar o português uma língua mais precisa do que outras para exprimir afetos. Prefiro pensar que o uso da língua é mais efusivo e desproporcional. Meus pacientes “amam” pessoas, animais, carros, passeios, ideias etc., o que os leva a ter que estabelecer e utilizar outros recursos da língua para diferenciar aquilo que é verdadeiramente amado do que é simplesmente um gosto ou uma afeição.
Sabemos o quanto é importante trabalhar com os nomes dos nossos pacientes, sejam eles criações puras ou escolhas mais socializadas, já que portar um nome é parte do cordão umbilical simbólico que sobra da relação com os pais. Assim sendo, nesse tipo de trabalho, continuo me surpreendendo com a liberdade em relação à língua no que se refere à criação de nomes próprios no Brasil.
Se o sobrenome dá conta de uma genealogia que não pode ser alterada radicalmente e desta forma mantém um vínculo com a lei e a cultura, os nomes parecem expressar o puro desejo materno, oceânico e sem limites. Nomes que se formam pela junção arbitraria de vários nomes ou espelhados no sobrenome de figuras que respondem pelo ideal de Eu dos pais. Nomes que são um puro som, quase uma música…
Será que a existência de tantos músicos-poeta ou poetas-músico no panorama cultural brasileiro pode ter a ver com algum tipo de relação de não submissão à língua, uma espécie de exigência de uso da linguagem a la Joyce, onde conta o ritmo e o som, quase tanto quanto a precisão e a verdade da palavra? Como se não bastasse um único sistema de signos e se criasse livremente combinando vários?
Estas reflexões apontam ao que delimitei como uso da língua portuguesa no Brasil e me parece importante frisar que respondem a uma observação entrecruzada por circunstâncias imaginárias determinadas, entre outras coisas, por um olhar estrangeiro. São usos da língua comuns à estrutura da linguagem, mas pautados cultural, social e subjetivamente.
Sendo a linguagem um elemento fundamental da nossa prática, independente da língua em que é falada, o que nos ocupa, como analistas, é o vínculo da linguagem do inconsciente com a teoria e a clínica psicanalítica.
Relação entre linguagem e psicanálise
A relação entre linguagem e psicanálise se torna evidente desde os primórdios da teoria psicanalítica.
A senhora Emmy von N ., que pede a Freud (1889/1987) para deixá-la falar espontaneamente, inaugura uma prática de livre associação que permanece, até hoje, como a ferramenta indispensável de nossa clínica. A estreita relação da simbolização dos conflitos inconscientes com a escuta flutuante do analista é operada, também, através da linguagem. Sempre é bom lembrar que a escuta flutuante do analista não supõe que o analista fique em um processo de livre associação; trata-se da escuta do analista que confere igual valor às palavras de seu paciente, despido de preconceitos ou julgamentos que a desviariam do seu objetivo principal: o desvendamento do inconsciente.
No início do século passado, em A interpretação dos sonhos, novamente a linguagem aparece como o único caminho de acesso ao mundo onírico. Se o sonho é a via regia para a manifestação do inconsciente, o que podemos trabalhar de um sonho é o seu relato. Daí a comparação feliz de Freud, quando fala de hieróglifos do sonho: mesmo o relato feito pelo paciente está sujeito aos efeitos da censura, aos múltiplos deslocamentos e às condensações que transformam o dito sobre o sonho – e o não dito – em um desafio a ser elaborado a partir das associações do paciente que possam ressignificar cada elemento do sonho em uma linguagem particular e exclusiva para cada sujeito. Verdadeiros hieróglifos de nossa subjetividade, esses relatos atabalhoados, plenos de vazios significantes, esquecimentos ativos, condensações e deslocamentos, nos permitem adentrar no universo desconhecido… sempre até um umbigo indecifrável.
Ao definir a psicanálise como uma terapia da alma, Freud (1890/1989) volta a insistir no valor das palavras e se permite uma certa ironia com as antigas práticas mágicas e místicas, especialmente quando as mesmas adquiriam força suficiente para influenciar os indivíduos e produzir efeitos insuspeitados.
Vale lembrar que a hipnose tinha ocupado e frustrado Freud no que se refere ao valor sugestivo da palavra. Em vários trabalhos, ele define a necessidade de afastar quaisquer riscos de utilizar o poder das palavras do analista, situado transferencialmente como saber, para influenciar as decisões dos pacientes.
É um outro efeito e uma outra articulação significante aquela procurada pelo pai da psicanálise e refere-se ao que descarta o poder sugestivo da intervenção analítica, ou seja, o que opera de maneira a simbolizar e ressignificar aquilo que repete e empobrece a vida humana.
No encontro entre analista e paciente, há um desencontro fundamental e fundante da transferência: o paciente vem nos falar de um estrangeiro nele, daquilo que ele não sabe e gostaria de saber e o analista escuta, em uma língua “estranhamente familiar”, sem saber qual será, de fato, o idioma do inconsciente.
São frequentes, nesse sentido, o que gosto de chamar de neologismos de uma análise. Palavras que adquirem um peso e uma significação próprias a cada paciente e que se aproximam de definir o inefável da experiência analítica.
Para citar um exemplo: a partir de um ato falho que nomeou o esposo como “espocio” (esposo-sócio), se desenvolveram, em um processo de análise, uma série de neologismos para definir diferentes momentos da relação afetiva da paciente com seu cônjuge e com a própria análise (“ex-poço”, “eu-posso”, “é-pos”).
À diferença dos neologismos da psicose, verdadeira errância intransferível da língua, os neologismos da análise se aproximam da criação poética, no afã de nomear o que insiste em ser representado.
Freud elabora uma primeira tópica do aparelho psíquico que aparece, aos olhares mais ingênuos, como um verdadeiro sistema de tradução no qual a representação-coisa inconsciente deverá se ligar à representação-palavra pré-consciente para ter acesso à consciência. É preciso ressaltar a diferença fundamental sobre essa leitura do trabalho analítico como mera tradução do inconsciente, que reside no fato de não existir uma correspondência preestabelecida por uma organização simbólica qualquer entre ambas “línguas”. A associação entre uma e outra representação é fruto do acaso, da proximidade e da repetição de um circuito de satisfação da pulsão que cria caminhos de prazer-desprazer ou que simplesmente fica, como intensidade sem simbolização, na procura cega de uma descarga.
A história vivida por cada um, a sexualidade infantil, os processos de ressignificação e a herança identificatória, contribuem como um todo para completar os circuitos pulsionais e suas vicissitudes, e é sobre isso que se fala numa análise, mesmo que as palavras sempre pareçam dizer outra coisa.
A importância das palavras reaparece em vários trabalhos de Freud ao longo da sua obra. Os textos sobre a psicopatologia da vida cotidiana, a leitura dos atos falhos, próprios e alheios, que o autor realiza em diferentes momentos de sua teorização e a referência constante à poesia e à literatura em geral, são provas da estreita ligação da psicanálise, desde sua origem, com a palavra dita, escrita, ouvida e lida. Assim, o intercâmbio de saberes e de linguagens oferece consistência à nova ciência.
Os fenômenos psíquicos são nomeados tomando-se como referência as próprias palavras da linguagem coloquial: angústia, medo, amor, ódio, prazer, desprazer, satisfação e, para além… o inominável. Mitos como o de N arciso e o de Édipo são utilizados enquanto metáforas de complexos processos anímicos.
Parte do trabalho analítico consiste em retornar às palavras de cada paciente seu verdadeiro significado inconsciente, despido das inúmeras ressonâncias fantasísticas que não lhe permitem criar, escolher e mudar em liberdade. Esse processo não é de apropriação de um sentido prévio e oculto, mas de simbolização constituinte e de alívio da repetição mortífera e imobilizante. A palavra opera como letra, como marca, como representação e adquire sua significação somente na combinação com outras.
A teoria do significante, desenvolvida por Jacques Lacan (1971a), trabalha esse aspecto da teoria freudiana e formula interessantes aportes que permitem diferenciar claramente o que é da ordem da linguagem daquilo que se estrutura como uma linguagem inconsciente em que, pautadas por uma sintaxe subjetiva, as palavras são simples suportes das significações de cada um. As palavras podem ser antigas; as significações são únicas, pessoais e intransferíveis.
Outro bom exemplo da persistência freudiana na procura do valor das palavras nos é dado por ocasião da formulação da segunda teoria pulsional e da segunda tópica do aparelho psíquico.
A frustração decorrente das limitações do trabalho com o inconsciente representacional, regido pelo princípio de prazer e supostamente capaz de deciframento e interpretação, ficam evidentes na sistematização dos fenômenos que se encontram para além do princípio de prazer e que não respondem à lógica pulsional que, até então, oscilava entre o sexual e a autoconservação. Enunciar a pulsão de morte equivale a dizer que há algo que insiste em um retorno ao vazio, algo que não acha representação-palavra para se expressar, que opera compulsivamente e que precisa ser abordado de forma diferente.
No Das Ich und das Es (1923/1987),2 podemos apreciar uma diversidade de lugares psíquicos interagindo conflitivamente. Alguns se constituem inicialmente na identificação com a imagem do outro, como o Eu. Já o Supereu, como um verdadeiro “capacete acústico”, é receptáculo de vozes.
A fusão pulsional que anima cada uma dessas instâncias, bem como os processos identificatórios que lhes dão origem e os aspectos ideais que anunciam uma dimensão de futuro para o sujeito do inconsciente, introduzem no pensamento freudiano questões técnicas que não se esgotam na interpretação. O valor de verdade da construção em análise, ou seja, da formulação que liga, por intermédio de palavras, fatos da história primitiva do paciente com repetições atuais, opera produzindo subjetivação ali onde antes havia apenas vazio de significação.
Silvia Bleichmar (2005), psicanalista argentina recentemente falecida, desenvolveu esse tipo de intervenção clínica a partir de una longa experiência de psicanálise com crianças. Diferenciando claramente os transtornos psíquicos dos sintomas, introduz o conceito de neogênese para fundamentar a necessidade de intervir de maneira diferente em um caso ou em outro.
A definição de transtorno como aquilo que opera enquanto pura intensidade psíquica e que não remete a uma significação devido a alguma falha simbólica importante, orienta o trabalho do analista no sentido de não se atrelar à procura do desvendamento de significados inconscientes. Pelo contrário, compromete o analista na tarefa de oferecer alguma significação e construir mecanismos de simbolização capazes de estancar o fluir caótico da pulsão.
Tratando-se de sintomas e por existir uma solução de compromisso que precisa ser ressignificada e, portanto, decifrada e reconhecida, a intervenção do analista se orienta no sentido de tornar consciente o inconsciente recalcado.
Este breve resumo do conceito de neogênese não dá conta, evidentemente, da riqueza do mesmo e de suas relações com os sintomas e transtornos psíquicos. As implicações clínicas, no trabalho com crianças e com pacientes borderline, é enorme e interessantíssima já que permite uma abordagem da linguagem presente quando as palavras faltam.
De um modo ou de outro, nossa prática clínica ou “terapia da alma” é feita de palavras e poderia se acrescentar: de palavras e silêncios, de palavras e gestos, de palavras e afetos. De linguagem, em suma!
De muitas formas e ao longo de toda sua obra, Freud extrai das palavras o peso de uma revelação. A profícua obra freudiana, com seu estilo particular de diálogo com supostos adversários questionadores, é uma revolução teórica que opera mudanças substanciais na forma de conceber nosso saber sobre o humano e inicia uma trilha que ainda reelaboramos, a cada vez que alguém nos procura para falar de suas dores e angústias.
O trabalho como psicanalistas nos coloca na situação de ter que escutar uma língua estrangeira na língua comum. N esse sentido, experimentamos alguns fenômenos que são próprios do aprendizado de idiomas, como foi explicitado inicialmente.
É claro que existem peculiaridades que são efeitos da cultura e reverberam numa análise, mas que não podem ser atribuídas necessariamente ao idioma em que a análise é feita, e sim ao papel preponderante da linguagem na constituição subjetiva; ou seja, referem-se à nossa herança como membros de uma determinada cultura que se estrutura graças aos efeitos de linguagem nela presentes.
Como uma referência comum, a língua nos torna falantes e a nossa fala sustenta a língua, num amálgama que de um lado nos estrutura e, de outro, nos faz capazes de liberdade e criação.
Referências
Bleichmar, S. (1994). A psicanálise “de fronteira”: clínica psicanalítica e neogênese. In: A fundação do inconsciente, p. 175-204. Porto Alegre: Artes Médicas Sul.
Bleichmar, S. (2005). Clinica psicanalítica e neogênese. Buenos Aires: Amorrortu.
Freud, S. (1989). Tratamento psíquico (ou anímico). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. 7, p. 259-279. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1980)
Freud, S. (1987). Estudios sobre la histeria. In: Obras completas. Vol. 2. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1889)
_____ (1987). La interpretación de los sueños. In: Obras completas. Vol. 4 e 5. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1900)
_____ (1987). Psicopatología de la vida cotidiana. In: Obras completas. Vol. 6. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1901)
_____ (1987). Más allá del principio de placer. In: Obras completas. Vol. 18. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1920)
_____ (1987). El yo y el ello. In Obras completas. Tradução José Luiz Etcheverry. Vol. 19. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1923)
_____ (1987). Construcciones en el análisis. In: Obras completas. Tradução José Luiz Etcheverry. Vol. 23. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1937)
Lacan, J. (1971a). Función y campo de la palabra y del lenguaje en psicoanálisis. In: Escritos 1, p. 227-311. México: Siglo Veintiuno.
Lacan, J. (1971b). La instancia de la letra en el inconciente o la razón desde Freud. In: Escritos 1, p. 473-509. México: Siglo Veintiuno.
Endereço para correspondência
Isabel Mainetti de Vilutis [Instituto Sedes Sapientiae]
Rua Tupi, 397, cj. 102
01233-001 São Paulo, SP
Tel: 11 3825-2777
E-mail: isavilutis@uol.com.br
Recebido em 6.3.2009
Aceito em 11.3.2009
1 Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
2 Traduzido para o inglês e português como “O Ego e o Id” na edição Standard das Obras Completas, numa tentativa de sofisticar os pronomes usados por Freud em alemão o que, como vimos, contradiz o espírito freudiano de chamar as coisas pelo seu nome (Nossos pacientes se referem a si como “eu”, se bem que na Grécia deve ser diferente!).