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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601
Rev. bras. psicanál v.43 n.1 São Paulo mar. 2009
ARTIGOS
O caso Dora segundo Merleau-Ponty1
El caso Dora conforme Merleau-Ponty
Doras case according to Merleau-Ponty
Ronaldo Manzi Filho,2 São Paulo
Universidade de São Paulo
Resumo
Pretendo apresentar o modo como Merleau-Ponty interpretou a análise freudiana do caso Dora. Certamente, essa interpretação é curiosa, uma vez que o leva a reafirmar que, em última análise, a psicanálise nos propõe novos caminhos para se pensar o corpo, revelando uma certa intercorporeidade assim como o inconsciente deveria ser pensado como uma modalidade da corporeidade.
Palavras-chave: Inconsciente; Psicanálise; Corpo; Intercorporeidade.
Resumen
Pretendo presentar la forma en que Merleau-Ponty interpretarse el análisis de Freud del caso Dora. Certamiente, és una interpretación curiosa, ya que se lo lleva a reafirmar la que, en última instancia, la psicoanálisis nos propone nuevos camiños para se piensar en él cuerpo, revelando una cierta intercorporalidad, y mesmo que lo inconsciente deveria ser pensado como una modalidad de la corporeidad.
Palabras clave: Inconsciente; Psicanálise; Cuerpo; Intercorporalidad.
Abstract
I attempt to bring out the way that Merleau-Ponty expound Freuds analysis of Doras case. Certainly, this expound is curious, since it makes him reaffirm that, in the final analysis, the psychoanalysis proposes us new ways to think the body, showing a kind of interbodity and even that the unconscious would have to be thought as a form of bodility.
Keywords: Unconscious; Psychoanalysis; Body; Interbodity.
O inconsciente é “(...) um princípio que seleciona o que, para o sujeito, será coisa ou fundo, o que, para ele, existirá” (Merleau-Ponty, 2003, p. 246-247). Com essas palavras, que encontramos na conclusão merleau-pontyana do caso Dora, reitera-se aquilo que todo leitor de sua obra certamente já estranhou, pelo menos alguma vez: o modo que o filósofo sempre associou o conceito de inconsciente freudiano a uma certa teoria da percepção, seja como uma “significação despercebida” (Merleau-Ponty, 2002a, p. 237), ou “ambivalência” (Merleau-Ponty, 1988, p. 95), ou um “vivido não-tematizado” (Merleau-Ponty, 1988, p. 300), ou uma “percepção ambígua” (Merleau-Ponty, 1947, p. 291), ou até como uma “impercepção” (Merleau-Ponty, 2003, p. 212). O certo é que, em toda sua obra, ele jamais deixou de fazer essa relação. À primeira vista, nada mais contra-intuitivo, principalmente se levarmos em conta como tal associação é escassamente justificada e parece reduzir a teoria freudiana ao dado gestaltista mais simples.
Entretanto, merece atenção o modo como Merleau-Ponty interpreta o caso Dora descrito por Freud, em que ele parece deixar mais claro o que entende por isso. Veremos que não se trata, como parece num primeiro momento, de uma redução imprópria da teoria freudiana, mas de propor uma “solução” ao que ele pensava ser um suposto “pensamento em operação” atrás da consciência, algo que, aí sim, era, aos seus olhos, descabido.
Lembremos, antes de mais nada, que se trata de uma análise no interior de um curso de 1955, em que ele analisava o conceito de “passividade” com um objetivo bastante preciso: como pensar um sujeito que não seja totalmente condicionado por seu passado e nem mestre dele? Como é possível à consciência “dormir” e ao mesmo tempo ter uma certa atividade? Como pensar a memória, o sonho, o inconsciente sem que esses fenômenos sejam uma “degradação” da consciência (por não ter total domínio sobre si) ou sem que isso seja um mecanismo “absurdo” do corpo e sim algo possível internamente à consciência? (Merleau-Ponty, 2003, p. 167). Foi com esses olhos que Merleau-Ponty se propôs aproximar da psicanálise nesse ano: será que ela poderia nos revelar uma solução, ao nos dizer, por exemplo, qual seria a eficiência ou como contaria com o passado no meu presente? Será que ela poderia nos apontar que tipo de fenômeno seria o sonho? Afinal, o que Freudqueria dizer com inconsciente? O caso da análise de Dora se encontra dentre a tentativa de solucionar esse tipo de questões.
Logo no começo de sua análise o filósofo nos adverte: a solução que Freud buscava está na teoria da percepção e ele mesmo parece ter apontado isso ao destacar o conceito de decisão. Merleau-Ponty é preciso nesse ponto: toda decisão é um modo de relação com outrem que cria uma situação nova diante de um impasse. Como ele mesmo afirma, é preciso dizer isso na sua linguagem (Merleau-Ponty, 2003, p. 195): a decisão seria um poder corporal de ultrapassar (ou não) qualquer situação dialética com outrem, um “movimento”, um “sistema de tensões”, atado ao seres na constelação que o sujeito se encontra, que torna possível reordenar, ressignificar, o sentido da situação (ibid.). Ora, o fato de a decisão ser um poder de ultrapassar uma situação com outrem não é difícil de compreender. Também se compreende por que seria um “sistema de tensões”, pois só decido algo diante de uma situação que me exige um tal ato. Mas, porque ela seria um poder corporal, e por que um poder de re-significar o sentido da situação?
Nossa pergunta poderia se resumir assim: o que seria afinal uma decisão? Aos olhos do filósofo, esse é o tema maior na neurose de Dora: tal fenômeno seria sua decisão, uma forma de vida que ela decidiu viver. Se há uma certa verdade no delírio, já que ela mesma, deliberadamente, decide por ele, por que então o desgosto de Freud por não ter tido tempo suficiente de curá-la? Afinal, por que alguém decidiria viver uma forma de vida de sofrimento? O que interessa a Merleau-Ponty, nesse tipo de questionamento, é que o sujeito não se encontra num tal estado mascarando a “verdade” de seu desejo. Ou seja, aquilo que o sujeito recalca, não seria simplesmente alheio às suas decisões.
É como se Merleau-Ponty dissesse que o “confessar” (Freud, 1925/1953, p. 69) de Dora a Freud expressasse exatamente algo como: “eu já sabia”. Como se ela agisse contando com esse “fundo” de verdade. Freud parece realmente dizer isso em várias passagens: quando afirma que é preciso operarmos com prudência aquilo que o inconsciente já sabe (p. 47), quando Dora “concede” que amava o sr. K (p. 37), quando ela se dava conta perfeitamente que tinha uma relação especial com seu pai (p. 51), no seu ódio por sua mãe (p. 54), na sua vontade de “corrigir” o presente ao contar com sua infância no primeiro sonho (p. 65), etc., a tal ponto que ela preferia, como diz Freud, lograr a cura – uma “surpresa” que Freud encontra ao perceber a resistência de Dora (p. 42). N esse sentido, aos seus olhos, Freud estaria dizendo algo como: o inconsciente não diz “sim”, ele simplesmente se deixa levar, ceder, fornecer as associações concordantes, mas quando é revelado, o sujeito se apercebe de como já estava lá. É isso que, para Merleau-Ponty, seria a tendência de Freud de traduzir o inconsciente em termos da percepção, como veremos.
Não se trata aqui, como certamente está parecendo, de afirmar, tal como em Sartre, que a consciência aja de má-fé. Merleau-Ponty pensa, como disse, numa certa verdade do delírio: a consciência não mascara a verdade, não logra a si em qualquer decisão – eu conto com aquilo que recalco em todo ato, mesmo que o recalcado não seja figurado pela consciência e esse terá sido o erro de Freud nessa análise: de tomar as decisões de Dora como “mentirosas” (Merleau-Ponty, 2003, p. 262). N os seus termos: “não há diferença absoluta entre amor real e imaginário, mas não porque tudo é imaginário, mas porque tudo é real, i.e., investimentos” (p. 241). Isto significa que não há sentido, para o filósofo, em afirmar que, no ato da decisão, tomo um sentido verdadeiro ou falso da situação – eu tomo aquilo que vale para mim. Aliás, Merleau-Ponty nos surpreende aqui ao afirmar que há um problema histórico da máscara que deveria ser repensado: afinal “a partir de um certo grau, a máscara não se torna a verdade?” (p. 235). Eis então o fundamental: o que vale para mim como verdadeiro?
Num primeiro momento, o filósofo se apoia na ideia de sobredeterminação que nos diz Freud: não só na pluralidade de determinações que são justapostas em todo ato, porque um só fantasma inconsciente não é capaz de produzir um sintoma, mas num certo sistema de relações de interações promíscuas. Ou seja: o modo como Dora ama o sr. K se relaciona com o modo como ela se identifica com a sra. K e no modo como ela censura seu pai etc. Como se não pudéssemos mais pensar uma relação intersubjetiva nos moldes buberianos (Eu-Tu), mas num jogo Eu-Sistema de outros. Digamos que não poderíamos mais reduzir a intersubjetividade a um jogo face-a-face, mas numa topologia onde eu me identifico com outro porque amo um outro outro... É notável como Merleau-Ponty chega a dizer que é preciso pensar num sistema de interações fundado num sistema de promiscuidade, em que o próprio Eu seria perverso, polimorfo e imaginário (p. 241).
Esse é o primeiro sentido. Mas há um outro que me parece mais fundamental: não há uma determinação específica em qualquer tomada de decisão ou em qualquer sonho. É preciso que pelo menos dois eventos se associem: um passado e outro recente – como se o ato recente ecoasse ou reativasse um sentido passado, ou como se um drama atual só tivesse sentido em relação a ecos do passado. Isso nos diz Freud em vários momentos. Mas o modo como Merleau-Ponty interpreta isso me parece demonstrar uma originalidade, principalmente se levarmos em consideração como ele se distancia do entorno intelectual francês: essa reativação de sentido não se daria na ordem da linguagem como muito se professava, mas como “uma postura do meu corpo social, de meu ser para outrem” (p. 252).
Ora, ao pensar na lógica do Eu como a própria lógica do inconsciente, Merleau- Ponty quer, de modo claro, dizer que é o corpo o sujeito promíscuo: assim como afirmava, na Phénoménologie de la perception, que a libido freudiana é sinônima do poder plástico do corpo de investir em diferentes meios (p. 185), ele afirma, agora, que toda decisão, em suas palavras, é “o que possui força plástica sobre nossa vida” (Merleau-Ponty, 2003, p. 237). Essa é uma questão fundamental que o levava a criticar Lacan nessa época, acusando-o de não estar exprimindo um verdadeiro “freudismo” (Merleau-Ponty, 2000, p. 212-213) ao insistir na linguagem e não na relação carnal entre os corpos. Mas afinal, o que Merleau- Ponty tinha em mente ao realizar um tal deslocamento de problema?
Penso que, se lembrarmos como Merleau-Ponty analisava o problema do hábito corporal, isso fique mais claro. Segundo o filósofo, um comportamento habitual seria uma aquisição de uma “esfera primordial” de significações na própria motricidade do corpo. N a verdade, o hábito indicaria uma esfera “sedimentada” das nossas condutas sempre presentes em nossas ações, sem com isso determiná-la, pois há sempre uma abertura possível nas ações. O hábito teria, desse modo, a função de resposta imediata do corpo, sem que seja preciso nos perguntar, a todo momento, como agir diante da situação. Trata-se, assim, de uma “esfera constituída”, “já sabida”, que pode ser retomada em toda situação parecida.
Mas o hábito mostra também algo fundamental a Merleau-Ponty (1945/1967): uma atmosfera de probabilidade. Quer dizer, se disponho de um saber frente a situações conhecidas, ao mesmo tempo, eu posso agir diferentemente frente à mesma situação. Entretanto, é provável que eu aja de um modo habitual, sem com isso excluir que “eu posso” agir de um outro modo. Há sempre um “poder de agir” que transborda qualquer determinismo, mas que não ignora a nossa história, nossos modos privilegiados de ação, pois é sempre a partir desta história sedimentada que posso agir ou pensar (p. 453). Poderíamos concluir, grosso modo, com estas palavras: é através de algo fundado que algo fundante pode aparecer (p. 451) – é a partir de uma esfera sedimentada do corpo que podemos agir de um modo provável.
Ora, quando Merleau-Ponty (2003) diz que Freud teria descoberto a pedra de toque de uma teoria da passividade (p. 197), dizendo de um certo tipo de simbolismo que o sujeito não pode disfarçar, ele com isso queria interpretar Freud à luz dos problemas do corpo: assim como no hábito eu conto com uma “esfera sedimentada”, “instituída”, como se dizia naquela época, haveria um “simbolismo sedimentado” de ordem corporal que contamos em toda conduta, uma “história de um esquema prático sedimentado” (p. 249). Como se o ato de confessar que já se sabia, denunciasse esse “contar com” ou um “certo modo de ser corpo a outrem” (p. 253). Mesmo não sendo capaz de dizer verbalmente suas fantasias sexuais, o sujeito não as esconde, expressando isso, por exemplo, na forma de sintoma. Em termos mais precisos: Merleau-Ponty pretende aqui dizer de uma “sintaxe corporal” (p. 260).
Assim, a irrupção de um sintoma não seria um certo “regresso”, mas uma revelação clara de algo que sempre esteve presente e que, por isso mesmo, atuante não como um “anúncio” de algo, mas em curso, expressando corporalmente. Eis a passagem de Freud (1953, p. 70) em que sua interpretação ganha mais força: “tendo olhos para ver e ouvidos para escutar, não tarda qualquer um em se convencer de que os mortais não podem ocultar segredo algum. Aqueles, cujos lábios calam, falam os dedos. Todos os movimentos o delatam”. Para Merleau-Ponty (2003) isso diz expressamente que a verdade está “diante de nós e não atrás” (p. 280). Ora, onde Freud (1953, p. 70) quer afirmar que, aquilo que a consciência ignora, o inconsciente permite, uma vez que nenhum mecanismo barraria o ato sintomático, Merleau-Ponty vê um certo dizer simbólico do corpo – como se a verdade estivesse claramente posta corporalmente. Ou, onde Freud (1953, p. 70) diz, por exemplo, que “o sujeito pode motivar atos sintomáticos sem esforço e sem se dar conta deles”, Merleau- Ponty (2003, p. 198) se pergunta: como o sujeito age segundo um semi-recalcamento? Quer dizer, no fim das contas ele expressa a verdade do seu desejo.
Isso não significaria que Dora, por exemplo, estaria presa à sua decisão, como se estivesse condenada a ser o que já é: há um campo de possibilidade, assim como no hábito, de ressignificar uma situação, tanto passada como presente: “ela pode recusar manter em vigor um esquema prático anterior” (p. 250). Não por acaso o problema do modo como nos relacionamos com o passado, segundo o filósofo, deve ser colocado como quase-presença. E mais curioso ainda: trata-se de uma análise que, assim como em Benjamin (1994, p. 36- 49), aproxima Freud de Proust.
Resumamos essa idéia: do mesmo modo que o personagem de Proust pensa sua vida a partir de uma busca de um tempo perdido, re-significando-o a partir do que ele vive, Freud estaria dizendo que toda conduta vale para o sujeito segundo o modo como ele toma o passado como valendo no presente. Não por acaso uma situação x se associa a um evento passado: o acontecimento recente ressignifica um evento passado, assim como Dora busca no amor/proteção do pai o galanteio de K. Ela ressignifica um amor a partir de outro e se identifica com um outro outro. Com isso, Merleau-Ponty pode afirmar dois níveis de promiscuidade: um entre eu e os outros, não só como sujeitos perceptivos, mas também como sujeitos de uma práxis; outro, temporal: uma certa familiaridade e ignorância do passado, onde cada percepção toma o passado de um modo que lhe ressignifica.
Há uma verdade nessas promiscuidades segundo Merleau-Ponty: aquilo que foi recalcado é, na verdade, semi-recalcado, porque ainda vale para o sujeito – mas é “semi”, porque algo escapa ao pleno recalcamento, do mesmo modo que um evento passado é “quase” presente, porque algo escapa de ser totalmente presente. Como se este “quase” fosse um “fio intencional” no horizonte do passado vivido: uma relação do sujeito com seu passado tal como se fosse uma busca de um tempo perdido, quer dizer, algo que o sujeito vivenciou e que continua numa “modalidade em potência sem contato” segundo suas palavras (Merleau-Ponty, 2003, p. 254). Isto fica mais claro se pensarmos que uma total substancialização do presente faria com que o sujeito não mais sobredeterminasse eventos e, nesse caso, um acontecimento teria um sentido unívoco, condicional.
Essa “não” totalidade, tão importante aos seus olhos, nos leva a pensar o passado como fundo de conduta: só tomo uma decisão porque me valho desse fundo sedimentado (quase-presente), assim como só vejo uma figura porque há um fundo que lhe sustenta. É exatamente isso que Merleau-Ponty quer dizer com simbolismo: ajo sem me dar conta de um simbolismo em operação, algo que ele denomina, para destacar aquela lógica da percepção, como impercebido. Ou seja, há uma impercepção, no caso de Dora, do seu amor por seu pai e não um conhecimento desse amor, pois “a consciência perceptiva é impercepção tanto quanto percepção: vejo as ‘coisas’ à condição de não as constituir” (p. 212). Merleau-Ponty quer com isso afirmar que quando outrem me desperta um drama, ele, na verdade, toca minha montagem, como se eu agisse por uma fixação de uma norma ou a partir de um “esquema prático” organizado/estruturado em torno de um drama (p. 222) que, a todo o momento, pode se re-significar. É exatamente a fixação nesse esquema prático, como no famoso caso do membro fantasma descrito na Phénoménologie de la perception, que Merleau-Ponty considera patológico (p. 250), algo que encontramos, por exemplo, na distinção tipicamente de Canguilhem entre normal e patológico, onde, nesse último caso, o sujeito, diante de um obstáculo, não consegue mais impor uma norma, limitando seu poder de ação no meio.
Nesse caminho, Merleau-Ponty (2003 )diz de um “trabalho artificial” do inconsciente na interpretação dos sonhos de Freud: quando ele diz do trabalho de censura, de transformação, de construção, de inserção (p. 220), ele estaria afirmando aquele simbolismo como um modo de aparição do inconsciente, tal como uma “mensagem codificada”. Sobre isso, não seria só mais econômico pensar em termos de “fenômeno” (p. 220), mas seria também artificial pensar em termos de mensagem, como se o jogo entre o inconsciente e o consciente pudesse, em nossos dias, ser pensado em termos da teoria da informação, por exemplo. Freud faria assim uma distinção que não poderia ser unida senão por uma deliberação: por um lado, uma consciência que seria um saber, mas numa versão falsa; por outro, o inconsciente, que seria também um saber, mas numa versão verdadeira.
O que ele propõe, por outro lado, é um contato com a verdade que não é da ordem nem da ignorância, nem do saber: Dora ama seu pai, mas não sabe disso, apesar de também não ignorar esse fato. Ela simplesmente conta com ele: é em relação a ele que orienta seu mundo. Merleau-Ponty (2003) insiste: “por definição o inconsciente não é um outro: ele é aquilo pela qual eu resisto, então eu sei que sou eu, em relação a qual organizo minhas impercepções” (p. 211). Desse modo, assim como na percepção, onde há uma fé, uma crença, no mundo, o amor de Dora por seu pai é, para o filósofo, verdadeiro. Um deslocamento ou uma identificação poderia, desse modo, ser dito como um estilo de vida que insiste em se afirmar (p. 222).
Poder-se-ia assim objetar dizendo de uma “inflação” lógica aqui. Não me parece que Merleau-Ponty (2003) se oporia a isso – é ele mesmo que diz de uma “ditadura do visível” (p. 209), quer dizer: “a vida é perceptiva, cristalizada e projetada sobre coisas vistas” (p. 248). O inconsciente seria assim algo como uma sedimentação da vida perceptiva (p. 213), um fundo pré-objetivo, um núcleo simbólico que conduziria e generalizaria toda a história da vida do sujeito (212) diante da qual o sujeito toma qualquer decisão. Essa passagem é clara nesse sentido:
… a decisão freudiana é o movimento na constelação onde Dora está instalada, é decisão perceptiva, i.e., não imposta pelo dado da situação, mas eficaz somente se ela as tomar e as reordenar, não como sistema de objetos, mas como sistema de tensão atado aos seres-coisas. (Merleau-Ponty, 2003, p. 237-238)
Poder-se-ia ainda dizer que Merleau-Ponty (2003, p. 214) estaria pensando assim numa subjetividade fundada sob um tipo de percepção não reconhecida. Isso para ele significaria o mesmo que afirmar que toda subjetividade se daria sob um fundo sedimentado. E penso que ele poderia citar várias passagens de Freud em que o inconsciente se traduz por uma exclamação do doente do tipo: “eu não pensei isso”. O que equivale a dizer: “Sim, isso me era inconsciente”. É por isso que Merleau-Ponty tendia a pensar a histeria de Dora como uma certa decisão sua – como se afirmasse que, diante daquele sistema Eu-Sistema de outros, não houvesse nenhuma fatalidade na histeria, mas o fato de recusar, deslocar, se identificar com outrem, criasse sua histeria (p. 237).
Afinal, o que podemos acompanhar dessa interpretação merleau-pontyana do caso Dora? Primeiro, que a noção de “inconsciente” seria uma noção que realmente poderia ser reduzida, a seus olhos, à noção gestaltista, desde que levemos em conta que essa “redução” seja solidária à “descoberta” freudiana do simbolismo na percepção. Segundo, que toda relação intersubjetiva seria, na verdade, uma relação Eu-Sistema de outros. Terceiro, que, ao pensar a lógica do Eu como uma lógica do inconsciente, é o corpo o verdadeiro sujeito de decisão. Consequentemente, é o corpo que está numa relação com outrem, numa verdadeira intercorporeidade. No fim das contas, o que Merleau-Ponty (2003) quer afirmar é que “o inconsciente como consciência perceptiva é a solução que busca Freud: pois é preciso que a verdade esteja lá para nós e que ela não seja possuída” (p. 212). Mas há algo curioso aqui: se a percepção é um não-saber e também uma não-ignorância, porque, no limite, o “desejo compreende cegamente, ligando um corpo a outro corpo” (Merleau-Ponty, 1945/1967, p. 183), então Merleau-Ponty estaria afirmando que amo, por exemplo, mesmo não tendo consciência disso, sob um fundo de impercepção (seguindo aquela lógica da percepção), mas que tal amor, ao mesmo tempo, parece ironicamente cego...
Referências
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Klein, M. (1984). Love, Guilt and Reparation and other works 1921-1945. New York: The Free Press. (Trabalho original publicado em 1975)
Manzi Filho, R. (2007). Em torno do corpo próprio e sua imagem. Tese de mestrado em filosofia apresentada ao Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Vladimir Safatle. São Paulo. (http://www.fflch.usp.br/df/site/posgraduacao/2007_mes/2007_mes_ronaldo_ manzi_193pg.pdf).
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Safatle, V; Manzi Fº., R. (orgs.) (2008). A filosofia após Freud. São Paulo: Humanitas.
Endereço para correspondência
Ronaldo Manzi Filho [Universidade de São Paulo USP]
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E-mail:manzifilho@hotmail.com
Recebido em 12.1.2009
Aceito em 27.2.2009
1 Este texto foi apresentado no III Encontro Nacional de Pesquisadores em Filosofia e Psicanálise, no dia 26 de novembro de 2008, em Niterói (Universidade Federal Fluminense).
2 Doutorando em filosofia pela Universidade de São Paulo USP, sob a orientação do prof. dr. Vladimir Safatle.