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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál v.43 n.1 São Paulo mar. 2009

 

RESENHAS

 

Tradução e Resenha: Heloisa Mazorra,1 São Paulo

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 

 

Representação e espelho. Ensaio psicanalítico sobre o nascimento da representação e sua relação com a imagem observada no espelho

Cléopâtre Athanassiou-Popesco

Paris: Édition Popesco, 2006, 142p

Editora: Presses Universitaires de France, Paris, 2002

O livro de Athanassiou é o resultado do encontro de sua experiência como analista de crianças pequenas e observação de bebês, do estudo do desenvolvimento da relação da criança com o espelho, realizado pela psicóloga Anne-Marie Fontaine e das teorias psicanalíticas sobre o espelho. Buscando compreender a correlação entre a natureza do espelho e a natureza da psique humana e o fascínio que, desde o início dos tempos, o espelho exerce sobre o espírito humano, a autora vale-se, também, dos mitos de N arciso e de Perseu, da obra de Otto Rank “Don Juan e o Duplo” e, ainda, da pintura de Velásquez e Manet.

A questão que se coloca ao longo de toda a obra é a da natureza da representação e seu nascimento na vida psíquica, a construção do espaço psíquico e a formação das representações. Embora Freud tenha sido o primeiro a estudar a representação em psicanálise, os trabalhos de Melanie Klein e Esther Bick lançam as bases para as pesquisas sobre a construção do espaço psíquico.

Estudando a psique de crianças pequenas, Klein pode apreender a “concretude vivida” dos objetos internos, objetos vividos não como fantasia, mas como reais, representações de coisa, pertencentes ao domínio do sonho, do pesadelo e do jogo. As representações de coisa originam-se das projeções efetuadas pela criança sobre os objetos que a cercam.

A construção da representação liga-se ao movimento de ultrapassagem desta fase projetiva, em um longo e doloroso processo de elaboração da separação e do sofrimento do luto característico da posição depressiva, ao fim do qual a criança pode aceitar o outro separado dela. A representação nasce desta tomada de consciência e a maneira pela qual a criança apreenderá a imagem do objeto e sua própria imagem dependendo do trabalho interior que ela terá efetuado para construir um sistema de representações, trabalho que envolve o processo de ligação com seus objetos.

A autora dedica-se, em seguida, ao estudo daquilo que permite a existência do mundo interno, o espaço psíquico, valendo-se, para tanto, das formulações de Bick. A criança pequena vive em um mundo uni e bidimensional e, diante de intensas angústias de desorganização, recupera o sentimento de sua própria continuidade “agarrando-se” ao menor ponto que ofereça uma resistência, seja um som contínuo ou a luz de uma lâmpada. N o momento seguinte de seu desenvolvimento, passa a assegurar a continuidade de seu sentimento de identidade, colando-se sobre uma superfície, como a pele da mãe, que funciona como uma base que permite que os diferentes pedaços do eu formem um todo. Assimilada a base materna, o bebê percebe, pouco a pouco, que tem uma continuidade. O interior do bebê se constitui no momento em que esta etapa de estabelecimento de uma continuidade de superfície nasce dentro dele.

Athanassiou aborda, em seguida, a questão da constituição da imagem de si, ressaltando o papel da identificação com um objeto que olha o bebê na construção de sua imagem no espelho. A representação de si está ligada ao olhar que o objeto interiorizado dirige ao eu. O eu que se sente desinvestido pelo objeto percebe-se como não tendo valor. A mãe cujo olhar não brilha à visão de seu bebê é como um espelho opaco, no qual a criança não apenas não pode se ver, mas, também, não pode se ver brilhar, pois o reflexo de uma opacidade é, também, uma opacidade. A estima de si depende do espelho do olhar materno, que se ilumina pela simples existência de sua criança. O papel simbólico do espelho na vida psíquica liga-se a esta “reflexão” que o objeto interno dirige ao eu, não apenas a imagem que faz dele, mas, também, o julgamento que faz do eu.

A autora apresenta, então, as grandes linhas do trabalho de Anne-Marie Fontaine sobre os bebês diante do espelho, buscando estabelecer relações entre a teoria psicanalítica do desenvolvimento das representações e a pesquisa psicológica do espelho.

O bebê de 1 a 4 meses apresenta, diante do espelho, reações que se caracterizam pela apreensão de um todo constituído por forma e fundo, em que apenas o objeto (unidade bebê-mãe) pode ser reconhecido, qualquer que seja o fundo em que apareça. A questão forma e fundo remete às preliminares das capacidades representativas do bebê.

Dos 4 aos 6 meses e, sobretudo, a partir dos 6 meses, o bebê apresenta grandes mudanças, dirigindo ao espelho sorrisos, carinhos e beijos à imagem, como se reagisse a outra criança. Athanassiou conclui que o bebê reencontra no espelho o bebê que está dentro dele.

Por volta de 8 meses, a criança se interessa mais pela imagem de seu próprio rosto no espelho; interessa-se menos pela imagem da mãe.

Com 1 ano, não bate mais em seu reflexo no espelho, tendo compreendido que aquele que percebe no espelho não é uma criança real.

Até os 16 meses, o bebê olha o reflexo da mãe no espelho, volta-se para olhá-la e verifica atrás do espelho se há alguém escondido lá, sinais de que, para construir uma representação, a criança precisa de um vai e vem repetitivo entre a pessoa real e sua representação; sinais, também, da capacidade da criança de estabelecer, já, ligação entre o objeto de fora e sua representação.

Por volta dos 18 meses, a criança toma consciência de que o mundo interno não existe fora dela. Momento fascinante, em que o bebê começa a tratar como estranho aquele que o olha do espelho, ao mesmo tempo em que o sabe familiar. A partir daqui, efetua-se a separação entre objeto real e sua representação e o espelho transforma-se em simples instrumento. O reflexo no espelho perde sua magia, uma vez que a representação se reduz à função de remeter a uma realidade com a qual não se confunde mais.

A autora conclui que o espelho constitui-se em um elemento revelador do processo de elaboração dos laços do eu com seus objetos internos e com o mundo externo.

Passa, então, a um estudo crítico dos trabalhos psicanalíticos sobre o espelho, apontando que, na psicanálise, este é visto em uma dupla perspectiva: como metáfora do laço emocional mãe-bebê (construção do eu pela introjeção do laço com o objeto) e como metáfora de um nível narcísico de base, no qual o brilho do olhar da mãe em direção ao bebê é primordial (construção do sentimento do valor de si mesmo).

Winnicott propõe que o rosto e o olhar da mãe são o primeiro espelho para o bebê, que, pela atenção materna sente-se existir, ter um self. Precisa acreditar que é a luz que ilumina o rosto da mãe, ilusão criadora fundamental que permitirá ao bebê, a medida que interioriza o olhar materno amoroso e atento, dotar o espelho de qualidades, podendo se olhar, não apenas se ver. O brilho do olhar materno traz à criança o sentimento de ter brilho, o sentido de valor, base de seu narcisismo, o que lhe permite a rêverie necessária às transformações simbólicas que aliviam suas angústias e sofrimento.

As representações constroem-se apoiadas largamente sobre o quadro de referência materno, até tornar-se próprio do bebê. A autora compartilha com Bion a ideia de que existe, no bebê, um embrião de ego, uma preconcepção de quadro de referência, que se transforma em contato com o objeto materno.

Traz, em seguida, as contribuições de Kohut a respeito do problema do narcisismo primário e do self grandioso e de Lacan, que propõe um estágio do desenvolvimento, o “estágio do espelho”, quando o bebê reconhece sua imagem no espelho.

Na última parte do livro, Athanassiou propõe-se a estudar o tema do espelho nos mitos e nas artes. Para tanto, utiliza-se dos mitos de N arciso e de Perseu, da obra de Otto Rank “Don Juan e o Duplo” e, por fim, das pinturas de Velásquez e Manet.

Os mitos gregos são uma tentativa de pensar a constituição do espaço psíquico. N o mundo bidimensional de N arciso, o amor do outro não existe. Colado à sua imagem na água, não conhecerá a dor da criação das representações e dos pensamentos.

Perseu lembra-nos a parte heróica de nós mesmos que deve lutar contra a sedução incestuosa da pulsão de morte. O escudo de Perseu, olhar o reflexo do objeto de seu terror no espelho, permite a discriminação entre fantasia e realidade, entre o dentro e o fora.

Athanassiou apresenta-nos a obra de Rank, “Don Juan e o Duplo” à luz da problemática do espelho, levando-nos a uma reflexão sobre a venda, ao diabo, de nossas capacidades de representação e de simbolização; sobre a fantasia (a sombra) querendo passar-se por realidade, enquanto a realidade deve submeter-se a esta inversão; sobre a perseguição do duplo ou a impossibilidade de transformar um objeto interno em representação.

E, por fim, a autora nos convida a olhar dois quadros, “As Meninas”, de Velásquez e “Um Bar no Folies-Bergères”, de Manet e refletir sobre como alguns grandes pintores nos ensinam, pela presença de um espelho em suas telas, a natureza do primeiro espelho para a psique, o olho do pintor retomando a função do olho da mãe.

A riqueza dos vários vértices pelos quais Athanassiou aborda o tema do espelho pode provocar no leitor a sensação de que a obra tenta abranger uma ampla gama de aspectos, contendo o embrião de outros textos.

 

 

1 Membro filiado ao Instituto de Psicanálise “Durval Marcondes” da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.

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