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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.44 no.1 São Paulo 2010
ARTIGOS
A "Serenidade" do "Sítio do Estrangeiro": possibilidades de diálogo entre Pierre Fédida e Martin Heidegger1
La "Serenidad" del "Sitio del extranjero": posibles diálogos entre Pierre Fèdida e Martin Heidegger
The "Serenity" of the "Site of the Alien": possibilities of dialogue between Pierre Fédida and Martin Heidegger
Mauricio Rodrigues de Souza,2 Belem
RESUMO
O presente trabalho representa uma tentativa de diálogo entre psicanálise e filosofia através das ideias de Pierre Fédida e Martin Heidegger. Neste sentido, ao abordar respectivamente as noções de "sítio do estrangeiro" e de "serenidade", enfatiza dois pontos específicos que sugerem interessantes aproximações entre si. Em primeiro lugar, há o apelo por uma espera que também pode ser lido como a desconfiança diante da ênfase contemporânea nas potencialidades da técnica. De maneira complementar, há ainda o resgate proposto por ambos os autores de toda uma dimensão de mistério que se faria presente enquanto sombra constitutiva tanto do fenômeno transferencial quanto da razão esclarecida. Com efeito, tal aproximação pode ser tomada como um convite ou demanda para que analistas e filósofos resistam à tentação (e mesmo à pressão) dos resultados imediatos, mantendo a interpretação à certa distância estrangeira que favoreça a própria atividade elaborativa.
Palavras-chave: psicanálise; filosofia; alteridade; serenidade; sítio do estrangeiro.
RESUMEN
El presente trabajo representa una tentativa de diálogo entre psicoanálisis e filosofía a través de las ideas de Pierre Fédida e Martin Heidegger. Así, al trabajar respectivamente las nociones de "Sitio del extranjero" y "Serenidad", enfatiza dos puntos específicos que sugieren interesantes aproximaciones entre ellos. En primer lugar, está el pedido por una espera que también puede ser tomado como la desconfianza frente al énfasis contemporánea en lo potencial de la técnica. De forma complementar, figura también el rescate propuesto por los dos autores de toda una dimensión de misterio presente como sombra característica tanto del fenómeno transferencial cuanto de la razón esclarecida. En efecto, tal aproximación puede ser tomada como una invitación o demanda para que analistas y filósofos resistan a la tentación (y aunque a la presión) de los resultados inmediatos, manteniendo la interpretación a una cierta distancia extranjera que posibilite la propia actividad de elaboración.
Palabras clave: psicoanálisis; filosofía; alteridad; serenidad; sitio del ajeno.
ABSTRACT
This work represents an attempt of dialogue between psychoanalysis and philosophy through the ideas of Pierre Fédida and Martin Heidegger. By describing the notions of "site of the alien" and "serenity", it emphasizes two specific points that suggest interesting proximities in their perspectives. First, there is the appeal for a wait that can also be read as a critique of nowadays' emphasis in the potentialities of technique. Furthermore, there is the redemption proposed by both authors of a dimension of mystery that is seen as a constitutive shadow of transference phenomenon and enlightened reason. Such proximity may be taken as an invitation or demand for analysts and philosophers to resist the temptation (and even the pressure) for immediate results, in order to keep interpretation at a certain foreign distance that can incentive elaborative activity.
Keywords: Psychoanalysis; philosophy; otherness; serenity; site of the alien.
Os contatos entre psicanálise e filosofia apresentam as idas e vindas características de uma mistura de admiração e desconfiança mútuas, associada, talvez, a um problema de ocupação de lugares no tribunal do saber. Tal mistura, aliás, como bem lembra Assoun (1978), já se fazia presente em diversas passagens da própria obra de Freud, sendo mais tarde retomada tanto por Jacques Lacan quanto por trabalhos filosóficos que hoje podem ser considerados "clássicos" na história da relação entre as duas disciplinas. Dentre eles, apenas a título de ilustração, vale citar os de Binswanger (1936/2006), Hyppolite (1971), Ricoeur (1977), Assoun (1989) e, em termos de Brasil, aqueles de Monzani (1989), Prado Júnior (1991) e Mezan (1998), todos passados em revista pelos recentes artigos de Caropreso (2008) e Monzani (2008).
Pois bem, buscando seguir a esteira dessa tradição, mas mantendo-se longe de qualquer belicismo do passado e também de qualquer perspectiva reducionista, o presente trabalho representa uma nova tentativa de diálogo entre psicanálise e filosofia. Desta feita, voltada para os conceitos de "sítio do estrangeiro" e "serenidade", tais quais se apresentam nas obras de Fédida (1988, 1991a, 1991b, 1996) e Heidegger (2001). Como veremos, tal discussão se travará no terreno da alteridade. Mas de que alteridade falamos? Trata-se daquela que, abdicando da tentação pragmático-imediatista imposta pela técnica, saiba fornecer um espaço suficiente para que o outro se desvele no seu próprio tempo e nos seus próprios termos. Diante disso, iniciemos por uma breve viagem rumo ao estrangeiro de nós mesmos.
A alteridade do inconsciente e a estranheza da situação analítica: comentários sobre o "sítio do estrangeiro" na obra de Pierre Fédida
Uma boa possibilidade de iniciarmos este percurso pelas reflexões de Pierre Fédida acerca da clínica analítica nos é oferecida por um trabalho em que o psicanalista francês adota "O inquietante" (Das Unheimliche), texto publicado por Freud ainda em 1919, como inspiração para os seus argumentos (Fédida, 1988)3 . Neste caso, voltados a demarcar algumas características partilhadas pela angústia e pelo amor transferencial, como, por exemplo, a presença em ambos os casos da manifestação de um retorno do reprimido. Além disso, acrescenta Fédida (1988), também se tornaria viável pensar o caráter unheimlich na/ da transferência pelo seu poderio psicótico/alucinatório que, a partir do analista, possibilitaria a emergência de um duplo deste último.
Com isso, sugere ainda Fédida (1988), para que estivesse apto a lidar com o sinistro da transferência, caberia ao analista manter a si mesmo no chamado sítio do estrangeiro. Afinal, é a neutralidade deste lugar de silêncio e não resposta que poderia garantir ao outro (ao analisando) travar contato com a alteridade do seu próprio inconsciente:
Com efeito, entre as dificuldades de nossa prática de analistas, não é das menores a de se manter neste sítio do estrangeiro ou, como diria Freud, numa cena radicalmente diferente da do paciente (…) o analista ocupa o sítio constitutivo e fundante dos lugares de uma fala cujo destinatário não pode ser ele mesmo. O destinatário é alucinatoriamente o objeto interno de transferência, enquanto for significado para a fala pela não resposta – por esta recusa em responder que é a condição de reserva da linguagem – enquanto possa pertencer à cena psíquica, mas estando ausente. (pp. 80-83)
Fédida (1988) prossegue alertando para os riscos da saída do sítio do estrangeiro pela via da identificação do analista com o lugar a ele sugerido pela fala do analisando, processo esse que culminaria em uma fala de resposta. Esta última geraria a "des-instauração" da situação analítica e, consequentemente, a condição para a emergência de um outro sinistro ou inquietante. Trata-se daquele presente na contratransferência enquanto retorno sobre o analista das sombras transferenciais que ele não teria conseguido conter após produzi-las a partir da sua própria pessoa.
Como se pode notar, os temas da linguagem, da familiaridade e da distância se apresentam na ordem do dia. Assim é que, em um trabalho posterior, Fédida (1991a) destaca a capacidade da língua em, ao nomear as coisas, delas determinar uma distância "justa", distância essa, aliás, necessária para que o nomeado revele a si mesmo. Neste mesmo sentido, Fédida (1991a) aponta ainda o quanto a habitual ênfase na função comunicativa da língua significaria uma considerável perda, já que: "Descrever ou representar aquilo que se vê provoca uma dissociação entre olhar e fala e, assim, a perda do olhar que a língua porta em si" (p. 52).
Em tal perspectiva, o ato poético aparece como uma apropriação do próprio a partir de um sítio definido pelo estrangeiro: tradução, metáfora e, importante, transferência de sentido para além daqueles que a função descritiva ou comunicativa da língua aplaina e, com isso, simplifica. Com efeito, teríamos neste mesmo estrangeiro o fundo de silêncio solicitado pelas coisas para que essas, sempre a partir do seu desenho próprio, pudessem se deixar traduzir pela língua.
É desta forma que Fédida (1991a) aproxima os terrenos da língua, da poesia e do sonho, repletos de imagens férteis em possibilidades. O seguinte trecho resume bem o que dissemos até agora, auxiliando-nos a pensar a escuta analítica não em termos de uma intenção pragmática ou metacomunicativa da língua, mas no estrangeiro que nela reside:
É certamente a partir da experiência adquirida pelos artistas e poetas que podemos ter acesso a esse duplo movimento de tradução e de transferência ao qual as palavras nos convidam. O uso que fazemos de nossa língua – dita moderna – geralmente permanece prisioneiro das intenções conscientes de significar e de um saber daquilo que queremos dizer para nos fazer compreender. O próprio é possessão do eu ávido por resposta. O sítio do estrangeiro fica então soterrado sob a funcionalidade exacerbada da comunicação a partir do modelo de interlocução. A língua (…) ameaça, então, fazer-nos esquecer que apenas o estrangeiro que nela reside torna possível a escuta. (p. 58)
Ainda com base nessas ideias, Fédida (1991a) enfatiza um pouco mais adiante a natureza particular da ética que regulamenta o encontro analítico. Segundo ele, esta pressuporia uma neutralidade que permitisse a escuta de uma fala transferencial cujo destinatário é um ausente que deveria ser significado ao analisando pela via da interpretação e que sob nenhuma hipótese deveria ser confundido com a própria pessoa do analista. Em outros termos, Fédida (1991a) mais uma vez legitima o lugar (ou, mais precisamente, o não lugar) do analista como um sítio do estrangeiro: "… cuja fala será ambígua graças à virtude das palavras de ressoar segundo a ambiguidade essencial que o amor lhes confere" (p. 59).
De volta ao tema da linguagem, Fédida (1991a) propõe que essa mesma ambiguidade essencial que orientaria o fenômeno transferencial e o lugar de estrangeiro do analista apareceria no discurso do analisando, qualificado pelo autor como sintoma e, consequentemente, formação de compromisso entre a consciência e o inconsciente. Qual a implicação disso? Ora, que faria parte da função do analista possibilitar a separação da intenção presente no enunciado consciente daquela outra mensagem subliminar que, a partir daí, poderia ser lida enquanto manifestação de um desejo reprimido de natureza infantil.
Dito de outra forma, Fédida (1991a) chama a nossa atenção para que o poder de ressonância das palavras proferidas na situação transferencial seja despertado e se manifeste (portanto, seja escutado) a partir do silêncio do analista. Enfim, que a não resposta desse estrangeiro mobilize uma – por vezes ensurdecedora – ressonância a ser produzida e identificada pelo próprio paciente. Ou, ainda, que na manutenção da justa distância da qual falamos há pouco, o discurso atual do paciente possa permitir a escuta de um desejo inatual.
Com isso, ao mesmo tempo em que propõe que a instalação de uma análise somente ocorreria na quebra da estrutura da língua enquanto recurso metacomunicativo (papel da regra fundamental e livre-associativa), Fédida (1991a) reafirma os riscos embutidos na confusão da função do analista com a sua própria pessoa. Alerta-nos, portanto, para a necessidade da alteridade em psicanálise frente aos perigos representados por uma ilusão de simetria que anularia tanto as potencialidades da fala quanto a emergência do terceiro ausente a quem o discurso do analisando se dirigiria.
Desta maneira, constituiria o ofício do psicanalista a permanente vigilância em relação aos recobrimentos potencialmente produzidos pela presença do familiar e, associada a esta tarefa, a manutenção do silêncio do neutro como uma vertical do estrangeiro que seria própria à dissimetria da situação analítica. Aliás, destaca Fédida (1991b) em um outro trabalho, é desta mesma verticalidade – em si mesma um ato de revelação e de linguagem em termos de construção e de interpretação – que dependeria a (a)temporalidade do encontro analítico, eminentemente marcado pelo anacronismo próprio aos registros do sonho e do inconsciente.
Uma boa parte destas questões viria a ser retomada por Fédida (1996) em "O interlocutor". Como sugere o próprio título, trata-se de um trabalho eminentemente voltado ao tema da alteridade em psicanálise e que nos interessa de perto por retornar à inquietante estranheza constituinte da transferência. Neste sentido, ele se posiciona contra qualquer domesticação ou categorização formal do fenômeno sob o risco de banalizá-lo, esvaziando, assim, a essência da própria situação analítica.
Com efeito, ao mesmo tempo em que relembra a mensagem freudiana de que a escuta analítica deveria ser orientada pelo paradigma do sonho (atemporal, alucinatório e em perpétuo movimento e mudança), Fédida (1996) demonstra como se torna difícil não tecer severas ressalvas ao estabelecimento de uma função metacomunicativa da (contra) transferência que, em nome de uma pretensa técnica, acabaria por privilegiar a pessoa do analista enquanto destinatário último das formações imaginárias do analisando. Eis o que o autor qualifica como "juridismo do raciocínio", ou seja, a tentativa de um discurso "explicativo" (logo, nivelador) da transferência, fenômeno único e impassível de tradução ou reprodução exata. Afinal:
Em análise, o que vem ao pensamento não será mais o mesmo quando o mesmo pensamento retornar. Esses movimentos que deslocam os lugares (e talvez as linhas!), fazendo com que cada lugar seja transportado por seu deslocamento para tornar-se um outro lugar, são os movimentos transferenciais (…) Resulta da presente exposição não somente a ideia de que qualquer discurso da comunicação e da relação (qualquer metadiscurso) é radicalmente inadequado para a expressão de uma transferência, mas também de que, em uma análise, deve ser preservada para a transferência esta inquietante potência de memória da alma que age através das cópias de imago para as quais a pessoa do analista é, nos dois sentidos do termo, a tela. (pp. 111-113)
São esses os pressupostos que conduzem o psicanalista francês à hipótese de que a transferência de hoje possuiria um valor semelhante ao da hipnose de outrora, com a ressalva de que essa – a hipnose – não fosse desvinculada da sua relação íntima com o sonho. Segundo Fédida (1996), tal valor hipnótico do fenômeno transferencial formaria a condição da escuta e da interpretação conforme o paradigma onírico.
Um efeito como este, porém, somente seria alcançável por um analista que fosse capaz de sustentar as formas impressas na sua figura pelas palavras proferidas pelo analisando. Assim é que, para Fédida (1996), a neutralidade do analista aparece como uma superfície de transparência que, no campo transferencial, viabilizaria a chamada "alucinação negativa". Trata-se da formação e desaparecimento das imagens produzidas pelo paciente em sua relação imaginária com um terceiro absolutamente implicado e, no entanto, invariavelmente "ausente" da sessão.
Aliás, é o postulado desta natureza essencialmente melancólica da transferência que permite a Fédida (1996) utilizar o anacronismo próprio à situação analítica como justificativa para a proibição de que a interpretação do fenômeno transferencial se forme fora do contexto da interpretação onírica. Fiel às suas ideias, o autor retoma aqui o valor do sonho como paradigma formador da escuta do psicanalista e da fala interpretante para novamente criticar o "juridismo" dos discursos explicativos, ligados, por seu turno, à ameaça de um engessamento da situação analítica pelos ditames da técnica normativa:
E se aqui a linguagem é, sem dúvida, o sítio da situação analítica, sua existência significa que a neutralidade – esse negativo – do analista não poderia ser pensada como atitude técnica ou como comportamento no tratamento, a menos que se queira afirmar como sua própria negação. O inevitável "narcisismo" do analista muitas vezes esquece como a técnica facilmente se torna ridícula quando toma o lugar da linguagem, ou seja, quando se explicita fora do ato de interpretar. (p. 154)
De acordo com esta perspectiva, temos mais uma vez na linguagem – e não no analista em si – o verdadeiro interlocutor em psicanálise, já que a este último caberia uma função de nome ou semelhança que, vazia em termos de conteúdo próprio, remeteria à ausência de um ente que aqui aparece denominado de "pai da transferência". É com base nesta mesma linha de raciocínio que Fédida (1996) sugere uma vinculação entre o que qualifica como uma hodierna banalização da transferência e o esquecimento negligente da estranheza da ausência. Ou seja, da estranheza da própria transferência enquanto presença de uma ausência.
Toda a argumentação de Fédida (1996) aponta, portanto, para a considerável dificuldade de falarmos em intersubjetividade no contexto da psicanálise. Bem, a não ser que a utilização de tal conceito extrapolasse uma condição de diálogo de pessoa para pessoa, levando em conta a referência a um outro transferencial que marcaria o tipo bastante peculiar de encontro que tem lugar na clínica. Ou seja, a não ser que se pudesse pensá-la como uma relação a dois necessariamente assimétrica e (já que) instanciada por um terceiro ausente.
Eis o quadro propício para que Fédida (1996) resgate a noção de Outro proposta pela topologia lacaniana, Outro esse indispensável à transferência na sua qualidade de entidade não mais dotada de subjetividade e demasiadamente personalizada no plano da consciência, mas sim pensada como lugar de linguagem/significância (um "sítio do estrangeiro") que, por isso mesmo, deveria se ver livre do antropomorfismo cartesiano. Qual o objetivo do autor em tudo isso? Mais uma vez salientar o valor do espanto com a perene estranheza da transferência (leia-se: do inconsciente) como uma espécie de antídoto diante dos perigos representados pelo esquecimento ou negligência da radical alteridade inerente à função do analista. Assim, enaltecer ainda a virtude da linguagem, interlocutor último do fenômeno transferencial. Logo, da própria psicanálise.
Diante do exposto, passemos agora a alguns comentários relativos à filosofia de Heidegger (2001), a qual, como veremos, pode se revelar de grande interesse também para a psicanálise por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, pelo alerta que faz quanto aos perigos de, na sociedade de mercado contemporânea, elevarmos os objetos da técnica a uma altura tal que passem a significar uma possível ameaça ao exercício crítico e criativo do nosso bem mais precioso: a capacidade de reflexão. Em segundo, pelo resgate que o mesmo Heidegger propõe de noções como as de "mistério" e "serenidade", associadas a um apelo para que, paralelamente às imposições da pragmata industrial, saibamos conceder um espaço suficiente em nosso pensamento para acomodar os matizes de sombra da existência que pouco ou nada costumam ser contempladas pela razão instrumental.
A Serenidade em Martin Heidegger
A noção de serenidade (Gelassenheit) é debatida em maiores detalhes na obra de Martin Heidegger em uma comunicação preparada em virtude do centenário da morte do músico alemão Conradin Kreutzer. No texto em questão, Heidegger (2001), além de exaltar as qualidades do falecido, chama a atenção de seus conterrâneos para a própria necessidade de se proferir um discurso que garantisse um mínimo de reflexão sobre o homenageado e sua obra. Por que, pergunta-se o filósofo, seria preciso uma narração que forçasse a audiência a pensar sobre algo que lhe diria respeito de uma forma tão direta e contínua? Com mostras de um estoicismo livre de ilusões, é o próprio Heidegger quem responde:
A ausência-de-pensamentos é um hóspede sinistro que, no mundo actual, entra e sai em toda parte. Pois, hoje toma-se conhecimento de tudo pelo caminho mais rápido e mais económico e, no mesmo instante e com a mesma rapidez, tudo se esquece. Do mesmo modo, os actos festivos sucedem-se uns aos outros. As comemorações tornam-se cada vez mais pobres-em-pensamentos. Comemorações e ausência-de-pensamentos andam intimamente associadas. (p. 11)
Contudo, para Heidegger (2001), mesmo na ausência de pensamento que caracterizaria a contemporaneidade ainda residiria um solo potencialmente produtivo, já que não se propor a refletir não significaria necessariamente a incapacidade para a reflexão. Mas o interessante é que tal fuga derivaria precisamente do seu não reconhecimento pelo homem atual, o qual facilmente sustentaria em seu favor o fato de nunca haver se visto na história época mais produtiva em termos de planos e pesquisas avançadas. Segundo Heidegger (2001), porém, tais ideias seriam sempre de uma natureza especial, pois metas como as das organizações empresariais estariam condicionadas por elementos prévios e relacionados aos objetivos que tencionam alcançar. Eis aí o cálculo que compõe o pensamento planificador, aquele cuja característica principal é nunca parar (portanto, nunca meditar e nem refletir sobre sentidos para as coisas).
Nos termos de Heidegger (2001), haveria, então, dois tipos de pensamento, ambos – cada qual à sua maneira – legítimos e necessários: o cálculo e a reflexão que medita. Às eventuais objeções de que a pura reflexão "pairaria sobre a realidade", nada contribuindo em termos pragmáticos e, ainda, de que seria "demasiado elevada" para o senso comum, Heidegger (2001) reconhece somente que o pensamento que medita (assim como o que calcula) surgiria sim de maneira pouco espontânea, exigindo, em geral, um considerável esforço. Entretanto, o filósofo alemão adota a crença de que a reflexão seria acessível a qualquer pessoa, levando-se em conta os seus limites e história de vida. Bastaria que meditasse, por exemplo, sobre aspectos básicos da sua própria existência – como a terra natal, solo propício ao enraizamento de toda grande obra.
Para Heidegger (2001), contudo, não haveria – pelo menos na Alemanha da época – solo suficientemente forte para sustentar um vínculo com o povo, pois os que não tiveram de deixar a sua terra a esta não se sentiriam pertencentes. Nesse desenraizamento destacarse- ia o papel dos meios de comunicação de massa, os quais, estimulando o homem àquilo que lhe é alienígena, torná-lo-iam estranho à sua própria terra natal. Aqui residiria o espírito da época em que nascemos.
Assim, em um futuro próximo, estaria o potencial criativo do homem fadado à extinção, sendo substituído pela política empresarial da automação organizada e calculista? Por derivação, esta mesma questão conduz Heidegger (2001) a uma outra, de caráter mais extenso: o que ocorreria na nossa história atual? O que, enfim, a caracterizaria? Em um contexto marcado pela descoberta dos usos da energia atômica, a resposta parece residir na promessa de felicidade ofertada pela técnica científica. Mas o que estaria por detrás desta última? Uma reviravolta radical na nossa visão de mundo (bem como na nossa relação com este), representada, em última análise, pela lógica "esclarecida" e de mercado imposta pelo sistema capitalista de produção.
Frente a tal situação, em que a técnica determina as relações dos homens entre si e destes com a natureza, tornar-se-ia difícil profetizar qualquer espécie de destino para a humanidade. Isso em virtude dos poderes da razão instrumental, além de fazerem do homem um prisioneiro das suas próprias invenções, extrapolarem já a força da sua vontade e capacidade de decisão.4 Conforme Heidegger (2001), seria este último aspecto o mais digno de preocupação: o despreparo do homem contemporâneo para lidar com tal transformação tecnicista do mundo, evidenciado na ameaça anteriormente mencionada de um total desenraizamento de obras como as artísticas.
A partir desta afirmação, de cunho aparentemente fatalista, torna-se inevitável a formulação da seguinte pergunta: qual a saída para se brecar tal processo, restituindo à humanidade um novo e fértil solo para o plantio do seu potencial crítico e criativo? Para Heidegger (2001), uma possível solução estaria bem próxima a nós (daí a dificuldade em enxergá-la): contrapor o pensamento que calcula ao pensamento que medita, caracterizado pela resistência a qualquer representação unilateral e, consequentemente, pela exigência de medidas de caráter conciliatório. Mas como pensar esta proposta, dado o nosso grande apego aos objetos técnicos, dos quais como parasitas tanto dependemos para viver?
Em resposta, Heidegger (2001) nos propõe a simultaneidade de dizermos sim ao inevitável caráter utilitário dos objetos construídos pela técnica, mas também que neguemos a possibilidade de que estes absorvam por inteiro aquilo que teríamos de mais íntimo: nossa capacidade crítica. Tal atitude, sugere Heidegger (2001), seria expressa pelo conceito fundamental da sua conferência: o de serenidade (Gelassenheit), onde:
… já não vemos as coisas apenas do ponto de vista da técnica. Tornamo-nos clarividentes e verificamos que o fabrico e a utilização de máquinas exigem de nós, na realidade, uma outra relação com as coisas que, não obstante, não é sem-sentido. (p. 24)
É a partir desta linha de raciocínio que Heidegger (2001) nos fala de um sentido oculto e anterior que regeria a atual transformação da relação do homem com a natureza, relação essa permeada pela técnica. Trata-se, aliás, de um sentido que se ocultaria na proximidade (já que viria ao nosso encontro) e que deixaria antever apenas parte da sua face nos produtos finais da manufatura e do processo de fabricação industrial. Diz respeito, portanto, a um lusco-fusco, a algo que ao se mostrar simultaneamente se retiraria, demandando de nós um "fazer e deixar fazer" (Tun und Lassen) que Heidegger (2001) caracteriza em seu traço essencial como "mistério".
Consequentemente, enquanto forma de lidar de uma maneira mais sábia com tal paradoxo que confundiria nossos sentidos, caberia a nós manter uma constante atitude de "abertura ao mistério" (die Offenheit fur das Geheimnis), inseparável, por sua vez, de um espírito suficientemente sereno para suportar esta espera. Somente a conjunção destes dois fatores, enfatiza Heidegger (2001), dar-nos-ia a perspectiva do enraizamento em um revigorado tipo de solo do qual poderiam brotar novas e vivazes obras imortais.5
Portanto, se caminharmos lado a lado com Heidegger (2001), veremos que a reflexão alcançaria um traço quase que salvífico, ainda mais em uma época como a nossa, sob a qual pairaria a real ameaça de um deslumbramento que poderia conduzir a humanidade a adotar o pensamento que calcula como o único possível, renegando, assim, a sua própria essência reflexiva. Para mantermos os punhos erguidos diante de tal adversário, porém, caberia considerar sempre o status da serenidade e da abertura ao mistério enquanto frutos de um labor determinado e ininterrupto do pensamento.
Pois bem, uma vez expostas em maiores detalhes as nuanças das noções de "sítio do estrangeiro" e "serenidade", passemos ao final do presente trabalho. Aqui faremos uma tentativa de aproximação entre ambas sem, contudo, pretender reduzir as perspectivas de Pierre Fédida e Martin Heidegger, mas sim promover um diálogo que, esperamos, revele-se produtivo.
Considerações finais
Se recapitularmos o nosso percurso até aqui veremos que iniciamos pela aposta de Fédida (1988, 1991a, 1991b, 1996) na necessidade de que o analista ocupe um sítio do estrangeiro – lugar de silêncio e não resposta – como condição para que o analisando (ele sim) entre em contato com o outro de si mesmo denominado inconsciente. Com isso, adentramos em uma discussão que passou a envolver toda uma dimensão de ordem técnica. Afinal, o psicanalista francês chamava a nossa atenção para o perigo de que a linguagem, instrumento privilegiado pela psicanálise, fosse utilizada apenas enquanto recurso metacomunicativo, nivelando as pessoas do analista e do analisando e fazendo com que se perdesse o quê de misterioso da relação transferencial (presente, aliás, exatamente na sua qualidade de relação assimétrica).
Dito de outra maneira, acompanhamos de perto as ressalvas de Fédida (1996) ao "juridismo do raciocínio" enquanto tentativa de um discurso explicativo (logo, nivelador) da transferência que poderia vir a ocasionar um engessamento da situação analítica. Isso desde que a neutralidade analítica fosse pensada apenas em sua dimensão técnica (no sentido de comportamento ou norma de conduta profissional), afastando-se da linguagem enquanto lugar que comporta o negativo, o silêncio e a distância que envolvem as palavras para tomar o rumo de um esquecimento negligente da estranheza da ausência. Ou seja, da estranheza da própria transferência enquanto presença de uma ausência.
Já em Heidegger (2001) pudemos notar toda uma preocupação quanto ao prejuízo causado à nossa capacidade crítica pelo ideal pragmático e imediatista que permeia a sociedade contemporânea e industrializada. Nestes termos, enfatizamos o alerta do autor para o atual perigo representado pelas promessas de bem-estar oferecidas pela técnica científica, a qual, caminhando lado a lado com a lógica de mercado, mais e mais manteria o homem escravo dos objetos de cunho técnico, correndo o risco de ver subjugadas tanto a força da sua vontade quanto o seu poderio crítico e criativo.
Assim, passamos a destacar a proposta heideggeriana do estabelecimento de um contraponto entre o pensamento que calcula e o pensamento que medita, sendo este último caracterizado pela resistência diante de práticas e visões de mundo unilaterais, já que impostas apenas de acordo com os interesses da indústria. Mais adiante, corroborando com tal perspectiva, acompanhamos a afirmação de Heidegger (2001) acerca de um sentido oculto e anterior (ou seja, não premeditado pelo homem) que, como uma sombra, também constituiria tanto a nossa relação instrumental com a natureza quanto os objetos fabricados pela técnica. Nesse mesmo sentido, vimos ainda o apelo do filósofo alemão à noção de "serenidade" enquanto motivação para que saibamos aceitar a inevitabilidade da transformação tecnicista da sociedade, evitando, porém, que esta absorva por inteiro o nosso bem mais precioso: a capacidade crítica.
Uma vez chegado o momento de concluir, vale a pena enfatizar pelo menos dois pontos que, acreditamos, podem aproximar o debate clínico de Fédida (1988; 1991a; 1991b; 1996) da filosofia de Heidegger (2001). Em primeiro lugar, temos o apelo por uma espera que também pode ser lido como a desconfiança diante da progressiva ênfase nas potencialidades da técnica, aqui pensada enquanto possível enquadramento quer seja da escuta analítica, quer seja do pensamento filosófico. De maneira complementar, um segundo aspecto diz respeito ao resgate proposto pelos dois autores de toda uma dimensão de mistério que se faria presente enquanto sombra constitutiva do fenômeno transferencial e também da razão esclarecida, demandando de analistas e filósofos a "serena" capacidade de, resistindo à tentação (e mesmo à pressão) dos resultados imediatos, manterem a si mesmos a certa distância estrangeira que favoreça a própria atividade elaborativa.
Como se pode notar, tanto Fédida (1988; 1991a; 1991b; 1996) quanto Heidegger (2001) apostam em hermenêuticas abertas a uma ideia de experiência como permanente construção e devir, comportando a ameaça de destruição e de luto não como um fim em si, mas como abertura ao novo. É nestes termos que ambos nos remetem ao exílio do humano, à passagem no infinito percurso do ser que, subtraindo a nossa escuta do familiar, pode libertá-la para o estranho-em-nós, retirando assim o manto de naturalidade que encobre as alteridades do si mesmo.6 Para que os acompanhemos de perto, porém, somos colocados frente a frente com o instigante desafio de deixarmos de lado a couraça da proteção narcísica garantida pela técnica, renunciando à linguagem enquanto representação plena para assim tentarmos viabilizar um lugar no pensamento para a lacuna, para uma imprevisível ruptura que apenas aspire ao sentido.
Em última análise, temos nas considerações sobre a clínica de Fédida (1988; 1991a; 1991b; 1996) e na filosofia de Heidegger (2001) a afirmação do campo de possibilidades aberto por narrativas subversivas e marcadas não por certezas últimas ou pré-determinadas, mas por torções e construções em conjunto entre analista e analisando, leitor e obra. Ou seja, o apelo pela abertura de sentido, ainda que esta possa se associar à angústia do silêncio, do indeterminado. Porém, quão construtiva esta mesma angústia pode ser caso aceitemos o oblíquo em movimento em termos de subjetividade, caso optemos por uma não procura do belo, por uma não procura do cômodo, mas do subversivamente criativo. Questão para o estrangeiro de nós mesmos, questão de serenidade.
Referências
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Endereço para correspondência
Mauricio Rodrigues de Souza
[Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Pará]
Rua Augusto Corrêa, 01 (Núcleo Universitário)
66075-900 Belém, PA
e-mail: mrsouza@ufpa.br
[Recebido em 04/11/2009, aceito em 28/01/2010]
1 O presente artigo é a versão revisada e ligeiramente modificada de um trabalho originalmente apresentado na forma de comunicação oral no III Encontro Nacional de Pesquisadores em Filosofia e Psicanálise, realizado em Niterói, RJ, de 24 a 27 de novembro de 2008.
2 Professor Adjunto II da Faculdade e Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará e pesquisador do grupo Filosofia, Psicanálise e Cultura, vinculado ao diretório de grupo de pesquisa do CNPq.
3 Originalmente presente na quinta edição da revista Imago, "O inquietante" detém, entre outras, pelo menos uma característica que o individualiza sobremaneira. Como bem lembra Cesarotto (1996), trata-se do texto que funciona como "dobradiça" entre as chamadas primeira e segunda tópicas freudianas. No que se refere ao escrito em si, este apresenta uma incursão de Freud (1919/1981) pelo terreno da estética (especialmente a literária) que destaca uma ideia em particular: aquela de que a sensação de desassossego despertada, por exemplo, pela criação artística diria respeito não exatamente a algo desconhecido, mas a algo há muito familiar que, posteriormente reprimido (leia-se: afastado da consciência), teimaria em retornar. Com efeito, apostando em uma relação direta entre o sentimento inquietante, a satisfação estética e a pulsão de morte, todos associados pela emergência de conteúdos infantis anteriormente reprimidos, Freud (1919/1981) fornece ao leitor o espaço para uma reflexão acerca do inconsciente enquanto um estrangeiro bastante próximo em termos da vida mental. De maneira complementar, afirma Kofman (1973), a importância de tal reflexão residiria ainda no fato de ela nos conduzir rumo à inovadora perspectiva de um estranhamento dos limites entre "positivo" e "negativo", com o prazer (e, junto com ele, a dor) passando a adquirir as qualidades de mistura e heterogeneidade.
4 No que seriam auxiliados, pensa Heidegger (2001), pelo fabuloso e, ao mesmo tempo, superficial aparato dos meios de comunicação de massa.
5 Temos aqui, na verdade, um dos traços mais importantes do pensamento de Martin Heidegger, em que o ser aparece em um movimento de puro envio e retraimento, fonte virtual de todas as coisas que brotaria entre o aqui e o acolá, o som e o silêncio, a exposição e a camuflagem. Consequentemente, o acompanhar deste perpétuo emergir somente se tornaria possível mediante um aprendizado bastante especial: aquele da espera, de um deixar-se afetar pelo inaudito, condição mesma da abertura ao conhecimento do outro enquanto possibilidade (Heidegger, 1989, 1990).
6 Trata-se, portanto, de reflexões que afirmam a possibilidade de que algo se imponha de maneira prévia como um sendo experimentado sem necessariamente se subordinar à exigência da razão instrumental. Em outras palavras, como um enigma ou corpo estranho que, irrompendo no pretensamente sólido tecido da realidade, criaria o que Figueiredo (1996a) chama de super-real ou espaço do heterogêneo, o qual, bem próximo ao sonho, permaneceria impassível de qualquer determinação pelo nosso repertório conceitual. Complementando esta discussão, outras aproximações feitas pelo mesmo autor entre a psicanálise e a filosofia heideggeriana podem ser encontradas em Figueiredo (1993, 1994, 1995, 1996b).