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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.44 no.2 São Paulo 2010
ARTIGOS
A leste do éden: loucura, feitiço e suicídio
Al este del Edén: locura, hechizo y suicidio
East of Eden: madness, fetish and suicide
Roosevelt M. S. Cassorla,1 Campinas
RESUMO
A partir de situações clínicas são discutidos fatores envolvidos no ato suicida, consciente ou inconsciente. Propõe-se que o suicida falhou em tornar o Inferno (no qual vive) habitável, dando-lhe sentido. Para escapar de seus tormentos fantasia Paraíso, onde todas as necessidades são satisfeitas, diferente de Nada. Tudo e Nada, incognoscíveis, se confundem. Buscando compreensão, utiliza-se o mito de Adão e Eva: a ingestão do fruto proibido sinaliza, ao mesmo tempo, contato com a realidade (Inferno) e surgimento da capacidade de pensar (simbolização e transformação de Inferno). Discutem-se situações próximas ao aniquilamento, a erotização da morte e aquelas em que se cria carapaça protetora contra a realidade, atacando-se a vida e a criatividade. Impulsos homicidas se tornam suicidas objetivando vida imaginária dentro do outro. Finalmente, propõe-se considerar Paraíso fetiche substitutivo de Nada impensável, o que acarreta consequências para a psicanálise.
Palavras-chave: suicídio; função alfa; mito do Paraíso; psicose; pulsão de morte.
RESUMEN
Se discuten factores relacionados con el acto suicida, consciente o inconsciente, a través de situaciones clínicas. Se propone que el suicida falló a la hora de transformar el Infierno (donde vive) en un lugar habitable, que le dotara de sentido. Todo ello para escapar de sus tormentos, fantasía el Paraíso, donde todas sus necesidades son satisfechas, a diferencia de la Nada. El Todo y la Nada, irreconocibles, se confunden. Buscando la comprensión se utiliza el mito de Adán y Eva: la ingestión del fruto prohibido señala, al mismo tiempo, contacto con la realidad (Infierno) y el surgimiento de la capacidad de pensar. Se discuten situaciones cercanas al aniquilamiento, la erotización de la muerte y a aquellas en que se crea un escudo protector contra la realidad, atacándose la vida y la creatividad. Impulsos homicidas y suicidas objetivan la vida imaginaria dentro del otro. Finalmente, se propone considerar al Paraíso como fetiche substituto de la Nada impensable, lo cual trae diversas consecuencias para el Psicoanálisis.
Palabras clave: suicidio; función alfa; mito del Paraíso; psicosis; pulsión de muerte.
ABSTRACT
Facts involved in the act of suicide, whether conscious or not, are discussed by means of clinical situations. The suicidal is supposed to have failed to make the Hell (in which he lives) habitable, giving sense to it. To escape from his torments, he fantasizes Paradise, where all his needs are fulfilled, unlike Nothingness. Everything and Nothingness, unknowable, will become one. Seeking comprehension, the author uses the myth of Adam and Eve: the ingestion of the forbidden fruit suggests, simultaneously, contact with reality (Hell) and the emergence of the capacity of thinking (symbolization and transformation of Hell). Situations close to annihilation are discussed, as is the eroticism of death, as well as situations in which a protective shell is constructed against reality, attacking life and creativity. Homicidal impulses become suicidal, aiming towards an imaginary life within the latter. Finally, the consideration of Paradise as a substitute fetish of unthinkable Nothingness is proposed, which results in consequences for Psychoanalysis.
Keywords: suicide; alpha-function; Paradise myth; psychosis; death instinct.
M de repente sentiu, apavorada, que era apenas um objeto, como um móvel, um vaso. Não era humana. Enlouquecia, em pânico. Precisava desesperadamente contato humano, uma voz que fosse, algo que aglutinasse seu corpo-mente que escorria, liquefeita. Quando, durante a sessão, consigo vincular sua vivência a sentir-me 'outro', separado dela, lembra-se das lutas de morte entre seus pais. Se eles se matassem, ela, criança, morreria. Enquanto eles se atacavam ela se sentia como um "móvel na sala", ignorado, não existente. Sofrendo, M me diz que não quer mais sentir isso, que é melhor morrer. Se se matasse esse terror cessaria.
M descreve sua vida no Inferno, sempre ameaçada de dissolução, de não ser. Aniquilamento (a-nihil), redução a Nada. Ali vive o terror sem nome, o sentimento de catástrofe mortífera iminente. O mundo, o si-mesmo, não fazem sentido. Por vezes são vislumbradas sombras de demônios perseguidores inventando torturas bizarras. Mas, em geral vive-se somente a tortura – a ameaça-certeza de "tornar-se" Nada. Mas isso não ocorre – faz parte da tortura – não se é nem se deixa de ser, não se vive, mas a morte tampouco chega… Desesperos e desesperanças tantálicos, infinitos, perenes. É o mesmo Inferno dos mitos, de Dante, com importante diferença: não se sabe por que se está nele…
O suicídio cessa os suplícios, os demônios são derrotados. É o último recurso dos torturados, que escapam do Inferno e, ao mesmo tempo, frustram seus torturadores.
Se M se mata deixa de existir. Será Nada. O paradoxo, fugir da ameaça do Nada buscando o Nada, é apenas aparente. Porque, sendo impossível representar o Nada, algo o substituirá. Será sobre esse substituto que M nos falará antes do suicídio, ou se sobreviver ao ato.
O Nada pós-morte será descrito como um mundo sem sofrimentos ou necessidades. O sem é oposto ao com. No Nada não há com nem sem, é Nada. Portanto, o suicida não se imagina Nada (inimaginável) – ele acredita que estará num outro mundo, oposto do Inferno. O Paraíso. Neste não há sofrimento, necessidade ou desejo porque a satisfação é completa. O Paraíso, portanto, não é Nada, é Tudo. Dessa forma o suicida parece fazer um ótimo negócio: livra-se do Inferno (e da ameaça do Nada) e conquista Tudo (Cassorla, 2007a).
Pausa: o sentido da vida
Qual é o sentido da vida? No Nada a questão não cabe.
No Inferno vive-se permanentemente ameaçado. Nele, o único objetivo da vida (ou "sentido") é sobreviver nesse mundo terrorífico.
Psicanalistas dirão que, no Inferno, vivemos ansiedades de aniquilamento, dissolução, transbordamento, agonias primitivas, pavores sem nome, vazios, buracos negros, perseguições por coisas-em-si, ausência de significação. Não há sentidos – apenas se sobrevive num clima de catástrofe iminente. Se considerarmos vértice sofisticado (possivelmente arrogante) diríamos que "isto não é vida".
Esta vida (no Inferno) permeia todas as vidas e se manifesta socialmente nas torturas, guerras, campos de concentração, em Kafka e Primo Levi, nas formas sutis de violência que anulam o sentido da existência. Em nossa mente o Inferno é vivido mais intensamente se tiverem ocorrido traumatismos desumanos, impensáveis, revelando-se como loucura, fim de mundo, desestruturação, pânico, psicose e outros (maus) rótulos.
Quando se foge do Inferno, através do suicídio, rumo ao Paraíso, que vida se constitui? Se o Paraíso é Tudo, o in-divíduo deixa de o ser, e se torna indiferenciado, confundido com a Totalidade, com um suposto Deus todo-poderoso. De nosso vértice (arrogante) afirmaríamos também: "isto não é vida". Pelo menos a vida como a imaginamos: plena de pulsões, desejos, frustrações, forças que buscam, movimento transformador do mundo e do si-mesmo.
Inferno não é o contrário de Paraíso. Paraíso (Tudo) parece oposto a Nada, mas os extremos (Nada e Tudo) se confundem. Estamos em área mística (e também nos confins da psicanálise), em O bioniano, realidade e irrealidade últimas, incognoscíveis, um Nada que potencialmente é Tudo, e vice-versa.
Digressão sobre Inferno e Paraíso
Quando o bebê sai do útero (Paraíso – Tudo) a morte se apresenta. Para alguns, estamos frente à ação da pulsão de morte – aniquilamento. Os kleinianos desenvolverão esse vértice. Lembremos que pulsões de morte e de vida estão intrincadas, fundidas. Frente ao risco de morte busca-se o objeto – essa busca, tropismo, será fruto da pulsão de vida.
Se o objeto (mãe, por exemplo) não for encontrado (ou é inadequado) o bebê viverá no Inferno. Se, ao contrário, no instante em que o Inferno é vislumbrado o objeto se apresenta, este será substituído por completude – mamilo e boca fundidos, pele psíquicarecipiente perfeita, comunhão total – e o bebê recupera o Paraíso.
Mas a estada no Paraíso é pontual – a plenitude cessa, de novo a falta, e se está no Inferno – o terror de tornar-se Nada. Esse Nada remete à pulsão de morte freudiana. O terror não é fruto da pulsão de morte – é um aviso (fruto da pulsão de vida) que impele à busca do objeto, visando escapar do Nada. Entre estadas no Inferno e no Paraíso, idas e vindas, surge Esperança – a esperança de que, mesmo no Inferno, o Paraíso poderá advir. Neste modelo, vida é algo que se rouba da morte.
Com o tempo percebe-se que o Paraíso não se mantém e o Inferno é mais presente. Há, portanto, que tornar o Inferno habitável, isto é, menos infernal. Como Esperança (nomeada "objeto bom internalizado") permite suportar o Inferno (e faz encontrar portas de emergência se necessário), ele (o Inferno) vai sendo melhor conhecido e suportado, ao mesmo tempo que se tenta transformá-lo em melhor morada. Desiste-se de voltar ao Paraíso – isto é, o Inferno não mais será substituído pelo Paraíso, mas sim vivenciado como Terra, mundo da realidade, onde os terrores infernais são mais ou menos controlados ao ganharem significado, capacidade de simbolização e pensamento. Essa saída (transformação) do Inferno em direção à Terra somente poderá ocorrer quando o indivíduo perceber sua expulsão (des-terro) do Paraíso. (Desterro e expulsão parecem contrassenso porque Paraíso era confundido com Terra). Expulsão do Paraíso é expulsão da Totalidade, perdição.
Enquanto não se percebe a perdição estamos no Inferno. Se conseguimos perceber o Inferno, a perdição – tomando distância do que vivemos terrorificamente – é porque já podemos dar-nos conta da realidade. Dar-se conta é o mesmo que dar significado. O Inferno significado se tornará Terra. Esse significado é fruto da luta entre Eros e Tanatos. Se aquele for mais poderoso predominam amor, integração, forças positivas do destino, formação de vínculos, pressão para pensar (não)-pensamentos, impulso epistemofílico, conhecimento (conforme diferentes nomeações psicanalíticas). A centelha divina dos místicos. Mas essa centelha somente ocorre se houver continente materno inicial que apresente ao bebê as oscilações entre Inferno, Paraíso e Terra. Os recursos vitais tendem a sofisticar-se e, aos poucos, se permite modulação mais precisa da destrutividade infernal com proteção de vida e negociação com demônios. Será imprudência esquecer que estes manterão sua natureza – demoníaca – em forma persistente e insistente. O risco de que eles retomem preponderância (pulsão de morte) está sempre presente.
Desta forma, para que ego negocie com id e mundo externo há que, primeiro, sobreviver no Inferno. A estada inicial no Paraíso (mãe-ambiente) é muito necessária, assim como a gradualidade da desilusão (Winnicott, 1971).
O mito conta que Adão e Eva viviam tranquilamente a leste do Éden. Um dia, a serpente aguçou sua curiosidade. Então desobedeceram o mandamento divino e provaram o fruto proibido da árvore do conhecimento. Com isso "abriram-se seus olhos" e viram que estavam nus. Envergonhados, cobriram-se. Como punição pela desobediência foram expulsos do Paraíso e condenados a trabalhar e parir com dor.
Proponho que essa narrativa descreve vicissitudes do momento em que o ser humano entra em contato com a realidade. Dar-se conta dela é o mesmo que pensar. (Em modelos psicanalíticos, pensar é o mesmo que discriminar si-mesmo de objeto, atingir a posição depressiva, elaborar o Édipo, trabalhar lutos, recuperar partes projetadas, dispor de função alfa, significar, sonhar, simbolizar, ampliar redes simbólicas, criar, transformar o mundo etc. e tudo isso é desencadeado ao mesmo tempo, como se uma centelha divina movimentasse um complexo sistema que transforma seres biológicos em seres humanos).
Ao abrirem os olhos, Adão e Eva percebem que faz parte da realidade ter necessidades e desejos – frutos da pulsão de vida. Metaforicamente, a vida é confundida com menteórgãos procriativos. Até então eles estavam impossibilitados de dar sentido-significadomentalização- ideação ao que sentiam (mas não sabiam que sentiam). Adão e Eva também se dão conta de que o desejo convive com frustrações, que vêm de fora e de dentro, iniciando contato com irritabilidade, destrutividade, inveja. Na verdade, Adão e Eva, ao saírem do Paraíso e entrarem em contato com a realidade, conhecem antes o Inferno. No Paraíso nada sabiam – agora, graças à árvore do conhecimento, sabem. Se antes viviam num mundo sem significado, povoado de coisas-em-si, ameaçados de catástrofes com matizes persecutórias e depressivas (Bion, 1963) – elementos beta –, eles não sabiam disso. Ao comerem do fruto proibido tomam consciência, categórica, do Inferno. Concomitantemente, esse contato com o Inferno pressiona para que se constitua um aparelho para pensá-lo. Sair do Paraíso, conhecer o Inferno e dar-lhe significado são fatos que ocorrem ao mesmo tempo, pois somente pode-se conhecer algo quando adquire algum significado (Cassorla, 2007b).
Mas nem sempre isso é possível. "A experiência mostra que o homem pode se manter na loucura, para não ter contato com a verdade, e pode enlouquecer, porque tomou contato com ela" (Franco Filho, 2006, p. 43).
A expulsão do Paraíso, o conhecimento da realidade, do Inferno, e sua transformação (através do pensamento), mostram a vida em ação. A vida na Terra, onde há que trabalhar para dar à luz pensamentos. A Terra, a realidade, não é o Paraíso (o Tudo), mas um Inferno transformado, compreendido, possível de ser sonhado.
A capacidade de pensar (função alfa) não vem de chofre. Quando Adão e Eva comeram o fruto proibido eles já possuíam certas capacidades: esboço de percepção de árvore, curiosidade, consideração por serpente, desobediência. Isto é, mesmo antes do pecado original existia algo potencial em desenvolvimento. Psicanalistas nomearão esse 'antes' como fantasias originárias, primordiais, pré-concepções em busca de realizações. A serpente, Deus, o fruto, se oferecem para tal. Isto é, a totalidade já contém, em potência, cisão, separação, discriminação, espaço para o terceiro, possibilidade de contato com a realidade. Fruto das pulsões, predominando a de vida.
A sedução da morte – I
Quando digo a G que me parece que ele busca a morte, como que atraído por ela, ele me conta, em detalhes, como é excitante ir atrás da droga, os perigos, o risco, e essa excitação é quase similar à que sente quando a usa. Conta do risco de ser morto, fato que quase ocorreu ao entrar numa "boca" onde estava ocorrendo um tiroteio. Continua me contando da vergonha que passaria se a esposa o pegar usando a droga. Lembra-se do dirigente da Fórmula 1 que foi filmado como nazista maltratando mulheres vestidas como judias e imagina a vergonha que ele deve ter sentido ao ter que contar à sua esposa e filhos que não era nazista, mas pertencia a um grupo sadomasoquista. Lembra-se também do rabino, tão sábio, que foi pego roubando gravatas.
Lembro-me da morte como uma mulher sedutora, irresistível e, ao dividir essa imagem com ele, pergunto ingenuamente o que lhe daria mais prazer: brincar com ela e poder escapar ou segui-la, hipnotizado. Responde que ao segui-la sentiria um prazer imenso também por ser punido por seus pecados. Frente a seu silêncio lembro-o que seu maior pecado foi ter sobrevivido a seu melhor amigo (que foi assassinado). Valida minha hipótese lembrando-se que, mesmo tendo anestesiado seus sentimentos na ocasião, pegou seu carro (do amigo) e correu pelas estradas até cair num precipício, escapando por milagre. Sabe, também, que vai morrer jovem.
Lembro-lhe de sua certeza de que vai morrer de doença associada a drogas: overdose, enfarte, hepatite, aids e de seu plano de que nunca consultaria médicos se estivesse doente. Afirma que é por vergonha. Pergunto-lhe se antes de morrer ele não acabaria se expondo, de alguma forma, e com isso também acusaria o mundo (Inferno) por sua morte. Concorda surpreso: não havia pensado nisso.
Em seguida conversamos mais sobre a erotização da morte e ele me conta que fica fissurado por ela, congelado, não percebendo mais nada. Digo que não perceberá os perigos. Complementa: nem as coisas boas da vida.
G não conseguiu transformar seu Inferno em Terra e busca o Paraíso através da droga. Mas esse estada no Paraíso é cada vez mais difícil. Sua busca, na Morte, se transforma em alternativa. Os demônios infernais mascaram o Nada prometendo liberação excitante de culpas e Paraíso, Tudo. Se a pulsão de morte é muda ela se manifesta travestida e utilizará as vestimentas possíveis para enganar. O ataque mais mortífero será sobre a capacidade de pensar, hipnotizando, transformando pensamento em alucinose. Todos somos Faustos em potencial.
Sobre carapaças
B não precisa de ninguém – considera-se autossuficiente, superior a todos, o único homem ético em seu ambiente de trabalho (os outros são corruptos). Na sessão se queixa, sem sentimentos: sua vida continua igual, vazia, nada acontece, é nada. Acorda, trabalha, televisão, dorme. Está tentando ler Sartre: O Ser e o Nada – pelo menos alguém escreveu sobre ele… Quando o descrevo como uma máquina que imagina que controla tudo (sem viver medos, sofrimento), concorda com raiva contida. Mostro-lhe que sente essa raiva quando, ao apertar um botão que deveria acionar o outro-máquina (o analista), este não responde como ele desejaria. Ironiza: a vantagem é que máquinas podem ser jogadas fora, trocadas. Pergunto-lhe se não está me dispensando. Sorri mecanicamente enquanto diz que está investindo seu dinheiro na análise e que, no futuro, se beneficiará. Em seguida, conta-me que foi multado pela Receita Federal. Parece compreender quando lhe mostro seu incômodo frente a descobrimento de sonegação mental. Mas complementa triunfante: "ganhei mais com as ações que comprei (com o dinheiro sonegado) do que com a multa que recebi…".
B, por vezes, quase percebe como comete suicídio de aspectos seus para fugir do Inferno. O Inferno "são os outros" (Sartre, 1944/2007), que ele invejosamente desdenha, menospreza, finge não vê-los aparentando indiferença. Em seu Inferno, ao contrário de M e G há um espaço protegido por uma carapaça, uma concha (Rey, 1994) que o separa do mundo dos "outros", como que o isolando do resto do Inferno. Nessa concha se acredita autossuficiente. Mas não vive no Paraíso, porque a vida na carapaça logo se torna tediosa, vazia. E quando é obrigado a sair dela (para se abastecer) o Inferno se impõe. Foi a percepção disso que o trouxe para análise.
Nossa sociedade maquinizada aceita e, de certa forma, premia pessoas com essas características. Enquanto se mantêm nas conchas (e isso pode ser permanente), vivem como indivíduos não humanos que podem controlar instituições, burocracias, sociedade, guerra e paz. Sendo donos da verdade atraem seguidores. Esses se sentem felizes por terem encontrado uma concha-paraíso onde um "deus" pensará por eles, evitando dores de partos-pensamentos. Mas o observador sofisticado (talvez arrogante) também aqui dirá que "isto não é vida".
Essas pessoas, enquanto dentro da concha, não pensam em suicídio. Imaginam, no entanto, vingança homicida contra os "outros" que questionam suas certezas, ameaçando ruptura da carapaça e contato com realidade-Inferno. Os "outros" serão projetivamente acusados (invejosos, não éticos etc.) e sua eliminação será, portanto, justa. Em nome da "verdade" tudo será permitido (Cassorla, 1998a,1998b, 2005b).
A ideia suicida ocorre, nesses pacientes, quando a carapaça desaba e o contato com a realidade é vivido como insuportável. Se não se criaram recursos em relação a lidar com culpa e reparação, a catástrofe se impõe incluindo sentimentos de fracasso e humilhação terríveis. O suicídio visa escapar desse sofrimento imenso e, ao mesmo tempo, enfiar no outro, projetivamente, a responsabilidade e a culpa pela morte. Dessa forma, o suicida retoma sua importância, talvez até maior que em vida – sentindo-se vingativamente vivo dentro da mente de seus inimigos, enlouquecendo-os. Ao mesmo tempo tem certeza de que, após a morte, seus supostos méritos serão reconhecidos. Seu Paraíso terá essas características.
Suicídios de algumas personalidades narcísicas, borderlines, alguns suicídios por motivos supostamente religiosos ou políticos em que o suicida se transforma em mártir e justiceiro, suicídios de alguns criminosos nazistas (Cassorla, 1999, 2005a), podem ser compreendidos, pelo menos em parte, através do modelo acima.
Uma tentativa de suicídio entre índios guarani-caiowás, segundo a vítima, decorreu de feitiço realizado por um vizinho. Indagado sobre o motivo do feitiço, o quase suicida respondeu o que lhe parecia óbvio: "porque minha mangueira cresceu mais do que a dele". Ainda que complexos fatores culturais estivessem em jogo não se pôde descartar contato com o Inferno povoado de demônios invejosos e humilhantes (Cassorla, 1995; Cassorla & Smeke, 1985).
A sedução da morte – II
S procurou a análise após um surto psicótico, em que se sentia ameaçada de morte por seu amante, que ela tinha certeza de ser um assassino. Concomitante com essas idéias, sofria de ansiedade extrema que lhe indicava a proximidade com a loucura ou a morte, vinda de dentro, sem relação com o assassinato. Para livrar-se dessa ansiedade pensava em se matar. Mas essa possível morte era também uma forma de tornar-se mártir, uma espécie de santa.
Durante a análise S mostrava como se sentia atraída por situações perigosas, com risco de morte. Envolveu-se com um "garoto de programa" e o sustentava, certa de que ele se regeneraria "por amor". No entanto, com frequência era agredida por ele. Ao mesmo tempo passou a ter certeza de que sua sócia a roubava. Essas situações eram escondidas do analista e somente apareceram quando este pôde mostrar-lhe seu comportamento sádico em relação a ele, como que exigindo ser maltratada e abandonada. Isso já acontecera com seu analista anterior que, segundo ela, fora deixado porque ele não concordava com suas ideias políticas. Logo após essa interrupção manifestou-se o surto psicótico, que possivelmente já se iniciara durante aquela análise.
A compulsão à bondade de S indicava seu desejo de tornar-se uma santa. Quanto mais sofresse, mais seria recompensada no Paraíso pós-morte. Porque seu sonho, consciente, era morrer crucificada, como Jesus Cristo. No entanto, sua santidade era estragada quando, ao sentir-se maltratada, planejava vinganças altamente sofisticadas, gastando tempo e energia em fantasias mirabolantes sobre como derrotaria seus inimigos. Com o tempo foi possível perceber que essas mesmas fantasias podiam ser encenadas com ela fazendo o papel de vítima em jogos sexuais. Após esses atos, onde "perdia a cabeça", sentia-se estranha com medo de enlouquecer e com pensamentos suicidas. Nessas fases costumava faltar à análise. Foi possível, com o tempo, perceber que esses fatos se seguiam a fases produtivas da análise, e as atuações sadomasoquistas substituíam a sabotagem da relação com o analista. A análise detalhada desse jogo projetivo e introjetivo permitiu fazer com que o Inferno sedutor onde S vivia se tornasse menos infernal, ainda que a atração demoníaca não cessasse.
S interrompeu a análise, numa mudança brusca para outro país, quando tudo indicava ampliação de sua capacidade de pensar. O analista percebeu que a capacidade de sedução dos demônios sobrepujou sua capacidade analítica. S teria que viver mais tempo (para sempre?) no Inferno, onde certos demônios a faziam sofrer, outros a estimulavam a vingar-se, outros a puniam por isso e ainda outros a enganavam com visões do Paraíso, tanto mais próximo quanto mais sofresse.
Essas legiões infernais atingiram também o analista, que se sentiu no Inferno ao perceber que poderia se culpar e se punir por não ter conseguido resgatar S de seu Inferno próprio. Como dizia Riobaldo, em Guimarães Rosa: "Viver é muito perigoso". Viver na Terra, como analista, também… Para fugir desse Inferno o analista que não consegue transformar seu Inferno em Terra pode buscar um Paraíso, uma receita ou uma teoria psicanalítica que lhe explique, direitinho, o que fazer e como, sem responsabilizá-lo caso falhe. O número de Deuses disponíveis é suficiente para todos os gostos…
Terapia e realidade
O colega psicoterapeuta, futuro analista, chega para uma sessão extra, no final da tarde. Mal consegue falar – está aterrorizado, enlouquecendo, não se reconhece. Há poucas horas soubera que seu paciente F havia se matado, pondo fogo às vestes. Era um esquizofrênico – esteve ontem com ele. Após a notícia continuou suas atividades, como se nada houvesse ocorrido. Dizia para si mesmo que deveria manter-se calmo para poder pensar. Quando parecia estar conseguindo, sentiu um terror imenso, "sem nome", que o levou a gritar, berrar, dar murros na mesa, bater a cabeça na parede (precisava testar que ainda existia). Pegou seu carro e saiu pela estrada, sem rumo. Logo percebeu, assustado, que poderia morrer num acidente! Nesse momento percebeu com clareza que, frente à morte, a vida não tinha qualquer sentido. Sempre desconfiara disso, mas nunca o vivenciara assim.
Enquanto fala com seu analista, chora, se bate, soluça, se acalma, pensa. Diz que sabe que não errou, que suicídios acontecem, mas esse saber não é suficiente para combater seu desespero. Aos poucos consegue verbalizar outros medos: o que a família do paciente vai pensar, talvez deva abandonar a profissão, será punido, deve ter cometido erros no atendimento. Em seguida pode falar de F. Tivera sessão dois dias antes: F estava calmo, quase não falara, sua expressão estava tranquila, angelical. Insistia que tudo estava bem, que não havia ocorrido nada de especial. O terapeuta estranhou tanta tranquilidade, investigou, mas nada encontrou. Lembrou-se que, quando F saiu, perguntou-lhe (sem entender por que) se estava consultando regularmente seu psiquiatra. Este lhe disse que teria uma consulta logo após a sessão.
Agora o terapeuta sabe que a expressão serena de F indicava que ele já havia decidido como livrar-se do Inferno psicótico: matando-se (Cassorla, 2000). Do que sabe sobre ele, o profissional imagina que o fogo purificador representaria seu fogo sexual infernal, descontrolado, que, impulso de seu corpo parecia destruir sua mente.
A vida para F não fazia sentido – e seu suicídio fez seu terapeuta redescobrir que sua própria vida (do terapeuta) também não fazia. Tomou consciência que sua profissão, sua família, seus desejos, sua ambição, seus ódios e amores, apenas tamponavam seu terror pelo desconhecido. Frente a ele, ao desconhecido, nada mais tinha sentido.
Digressão sobre morte
Retomemos o mito do Paraíso. Postulamos que o contato com a realidade, o comer o fruto proibido, o perceber o Inferno, o tentar transformá-lo e a expulsão do Paraíso ocorrem ao mesmo tempo.
Ao poder pensar, compreender o mundo e transformá-lo, o homem pode arrogantemente sentir-se um pequeno Deus. Em seguida, ele tende a abandonar o adjetivo e torna-se Deus. Orgulha-se de seu poder, de seu domínio sobre si-mesmo e sobre o mundo, de sua criatividade. Sua vergonha (ao cobrir os genitais) é o primeiro esboço de culpa, de não precisar dos pais originários (Deus) que lhe deram vida. Certamente, em algum momento, desejará que eles desapareçam, que morram, para não ter testemunhas de que, no passado, era totalmente dependente.
Mas esse orgulho estará sempre limitado pelas consequências últimas do pecado original. Ao poder discriminar-se, ao poder simbolizar e pensar, ao perceber que existe outro e si-mesmo, ao desejar que o outro desapareça, morra, o ser humano toma consciência do mais terrível que existe: que ele é mortal. Penso que a expulsão do Paraíso, a consequência máxima do conhecer, é a tomada de consciência que se vive para a morte, que esta é a única certeza. A punição, expulsão do Paraíso é, em última instância, saber da realidade da morte própria. Por isso, o ser humano estará sempre vivendo, de alguma forma, no Inferno (por mais que ele seja transformado).
A psicanálise reduzirá a compreensão das ansiedades terríveis relacionadas à consciência da morte à revivescência de ansiedades arcaicas (Cassorla, 1992). Talvez essa redução seja uma negação. Ao fechar os olhos para a realidade da morte, real e futura (para além de revivescências), evita-se o impensável. E a psicanálise talvez perca em potência.
A vida, em si, não tem sentido. Essa falta de sentido estimula o ser humano a procurar um sentido. Simbolizar o mundo (tomar distância, pensá-lo e transformá-lo em sua ausência) permite isso. Ideias, sentimentos, conceitos, narrativas, sonhos, teorias, arte, ciência, filosofia, mitos, religião, verdades e mentiras, são formas de dar sentido ao mundo e a si-mesmo, fetiches que preenchem o vazio.
Se vida é "uma doença adquirida através do ato sexual e com prognóstico sempre letal" (Dalgalarrondo, 2000), espaço-tempo entre nascimento e morte, ela deixará de ser só doença, se cada um encontrar algum sentido tanto para a vida como também para a morte (que faz parte dela).
O suicida não encontrou o sentido, mas precisa desesperadamente dele. Ao buscar o Paraíso imaginário, ao permanecer vivo na mente dos outros, ao imaginar que sua morte mudou o mundo, faz com que sua vida (e sua morte) tenham algum sentido. Portanto, o suicida não quer morrer (o Nada), ele quer apenas dar um sentido à sua vida, na morte.
Adendo sobre fetichismo
Ao contrário do que o mito enfatiza, faz mais sentido considerar que a ingestão do fruto proibido fez o homem entrar em contato com o Inferno, ainda que a saída do Paraíso hipotético tenha ocorrido ao mesmo tempo.
Proponho que, no mito (e em certas fantasias humanas), se passa ao largo do Inferno (elementos beta, falta de sentido, terrores de aniquilamento) para evitar sofrimento. Esse "passar ao largo" pode ser compreendido, em psicanálise, como "fazer vista grossa" (Cassorla, 1993), uso de defesas maníacas, reversão de perspectiva, recusa da realidade. Graças a essas defesas a morte se transformaria em algo bom, retorno ao Paraíso, não se considerando a certeza de que o Inferno se imporá pouco antes da transformação em Nada.2
Minha proposta, neste momento, é considerar que ocorre uma recusa, denegação, desmentida, desautorização (tradução proposta por Figueiredo, 2003, do alemão Verleugnung) do Inferno, da loucura, da morte. O bebê, quando sai do útero, vai cair no Inferno terrorífico. Assim como o futuro fetichista, que não suportará ver o vazio da ausência de pênis, o ser humano se recusará a ver esse Inferno. Isso lhe seria insuportável. O fetichista substituirá a imagem do vazio (do não pênis) por uma imagem anterior ou posterior (partes do corpo, do vestuário) que substituirão o pênis, recusada sua percepção.
O ser humano recusará a percepção do vazio terrorífico infernal e ficará com uma imagem, fetichizada, de algo anterior ou posterior: a vida idealizada intrauterina ou a mamada idealizada, anterior ou posterior à queda no Inferno. Esta última visão, do Inferno, será desautorizada e substituída pela imagem do Paraíso. O Paraíso será, portanto, o fetiche (palavra derivada de feitiço), que substituirá a percepção dos tormentos infernais. Não mais teremos pavores, de morte e de loucura. Ou, se a realidade insistir, os demônios impensáveis retornando, nos defenderemos retornando, em fantasia, à bem-aventurança paradisíaca. Este feitiço será apropriado pela cultura, nas crenças, ideologias, religiões e outros fatos que se tornarão encantamentos. O contato permanente com a realidade da morte, sem esses feitiços, tornaria a vida insuportável.
Por outro lado, o ser humano sabe, de alguma forma, que sua percepção da realidade (com ou sem fetiches) está aquém do que ela é. Desejar vida pós-morte pode ser justificada, também, por essas restrições.
Referências
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Roosevelt Moisés Smeke Cassorla
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo]
Av. Francisco Glicério 2331/24
13023-101 Campinas, SP
e-mail: rcassorla@uol.com.br
[Recebido em 4.6.2009, aceito em 19.11.2009]
1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
2 Por isso, as mortes humanizadas impõem a necessidade de um outro, com capacidade de rêverie que diminua o impacto do incompreensível aterrorizante (Cassorla, 1998c, 2001).