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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.2 São Paulo abr./jun. 2011

 

INTERCÂMBIO

 

Da mente para o mundo, da pulsão para a afetividade: uma perspectiva psicanalítica fenomenológico-contextualista1

 

From mind to world, from drive to affectivity: a phenomenological-contextualist psychoanalytic perspective

 

De la mente para el mundo: de la pulsión para la afectividad: una perspectiva psicoanalítica fenomenológico-contextualista

 

 

Robert D. StolorowI; Tradução de Tania Mara Zalcberg

IAnalista didata do Instituto de Psicanálise Contemporâneo, Los Angeles; Professor do Instituto de Estudo Psicanalítico da Subjetividade, Nova York; Professor de Psiquiatria Clínica, Escola de Medicina da Universidade da Califórnia, Los Angeles

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo dá uma uma visão geral da evolução das ideias básicas da teoria dos sistemas intersubjetivos do autor, sua perspectiva psicanalítica fenomenológica-contextualista. A estrutura do seu sistema é fenomenológica na medida em que investiga e esclarece universos de experiência emocional; é contextualista na medida em que afirma que essas organizações de experiência emocional se dão sempre dentro de contextos relacionais ou intersubjetivos. A teoria dos sistemas intersubjetivos leva a mudança da mente para o mundo e da pulsão para a afetividade.

Palavras-chave: pulsão; trauma; afetividade; intersubjetividade; perspectiva fenomenológica-contextualista.


ABSTRACT

This article gives an overview of the evolution of the basic ideas in the author's intersubjective-systems theory, his phenomenological-contextualist psychoanalytic perspective. His framework is phenomenological in that it investigates and illuminates worlds of emotional experience; it is contextualist in that it holds that such organizations of emotional experience always take form within relational or intersubjective contexts. Intersubjective-systems theory entails a move from mind to world and from drive to affectivity.

Keywords: drive; trauma; affectivity; intersubjectivity; phenomenological-contextualistic perspective.


RESUMEN

Este artículo nos da una visión general de la evolución de las ideas básicas de la teoría de los sistemas intersubjetivos del autor, a partir de su perspectiva fenomenológica-contextualista para el psicoanálisis. La estructura de su sistema es fenomenológica en la medida en que investiga y aclara mundos de experiencia emocional; es contextualista en la medida en que afirma que esas organizaciones de experiencia emocional se manifiestan siempre dentro de contextos relacionales o intersubjetivos. La teoría de los sistemas intersubjetivos exige el cambio de mente para el mundo y de la pulsión para la afectividad.

Palabras clave: pulsión; trauma; afectividad; intersubjetividad; perspectiva fenomenológica-contextualista


 

 

Introdução

A teoria de sistemas intersubjetivos, termo que meus colaboradores e eu (Stolorow, Atwood, & Orange, 2002) cunhamos para nomear a evolução da nossa perspectiva psicanalítica, é um contextualismo fenomenológico. É fenomenológico à medida que investiga e evidencia organizações ou mundos de experiência emocional. É contextual à medida que afirma que essas organizações de experiência emocional tomam forma, tanto em termos do desenvolvimento quanto na situação psicanalítica, em contextos relacionais constitutivos ou intersubjetivos.

Do ponto de vista do desenvolvimento, padrões recorrentes de transação intersubjetiva no sistema do desenvolvimento fazem surgir princípios (padrões temáticos, estruturas significativas) que organizam inconscientemente experiências emocionais e relacionais subsequentes. Esses princípios organizadores são inconscientes, não no sentido de reprimidos, mas por serem pré-reflexivos; na maioria das vezes não entram no território da autoconsciência reflexiva. Esses princípios pré-reflexivos organizadores derivados intersubjetivamente são os elementos construtivos básicos no desenvolvimento da personalidade. Eles aparecem na situação psicanalítica em forma de transferência que a teoria de sistemas intersubjetivos conceitua como atividade organizadora inconsciente. A experiência transferencial é constituída pelos princípios organizadores pré-reflexivos do paciente e por tudo o que provém do analista que se preste a ser organizado por estes princípios. Pode-se fazer uma afirmação paralela a respeito da transferência do analista. O campo psicológico formado pelo interjogo da transferência do paciente e da transferência do analista é um exemplo do que denominamos sistema intersubjetivo. A psicanálise é o método dialógico que traz essa atividade organizadora pré-reflexiva para a autoconsciência reflexiva.

A psicanálise de Freud ampliou a mente cartesiana, "a coisa pensante" de Descartes (1641), para incluir o vasto território inconsciente. Não obstante, a mente freudiana permaneceu como mente cartesiana, um sujeito ou aparelho mental isolado do mundo, fechado em si mesmo, contendo e operando conteúdos mentais e radicalmente separado do seu entorno. A esse Cartesianismo corresponde a epistemologia objetiva da psicanálise tradicional. Afirma que uma mente isolada, a do analista, é convocada a fazer observações objetivas e interpretações sobre outra mente isolada, o paciente.

O contextualismo fenomenológico diz respeito à experiência emocional e sua organização, entidades mentais não reificadas, e reúne a mente cartesiana isolada ao seu mundo, seu contexto. De forma correspondente, a teoria de sistemas intersubjetivos adota uma epistemologia que leva em conta a perspectiva, insistindo que a compreensão analítica se dá sempre a partir de uma perspectiva modelada pelos princípios organizadores do investigador. Consequentemente, não há analistas objetivos ou neutros, nem percepções imaculadas, nem ponto de vista divino sobre alguém ou algo.

Espero que já esteja claro para o leitor que nossa ênfase fenomenológica de forma alguma abrange abandonar a investigação do inconsciente. Voltando ao pai da fenomenologia filosófica, Edmund Husserl (1900/1913), a investigação fenomenológica nunca se restringiu a meras descrições de experiências fenomenológicas. A investigação fenomenológica preocupa-se sempre com as estruturas que organizam inconscientemente a experiência consciente. Enquanto os filósofos fenomenólogos se preocupam com as estruturas que funcionam universalmente, o psicanalista fenomenólogo busca esclarecer os princípios que organizam inconscientemente os mundos de experiência individual e, em particular, os que dão significado a experiências emocionais e relacionais. De modo decisivo, tais princípios incluem os que determinam quais experiências emocionais devem ser impedidas de ocorrer plenamente - ou seja, as que devem ser reprimidas dinamicamente -por serem proibidas ou perigosas demais. A teoria dos sistemas intersubjetivos ressalta que todas essas formas de inconsciência se constituem em contextos relacionais. Certamente, como argumentarei a seguir, da perspectiva dos sistemas intersubjetivos, a totalidade dos fenômenos clínicos com os quais a psicanálise tradicionalmente tem se ocupado passaram a ser considerados como algo que toma forma dentro de sistemas de mundos emocionais de interação, organizados de modo diverso, influenciando-se mutuamente. A fenomenologia nos conduziu inexoravelmente ao contextualismo.

 

Origens históricas

O início da nossa perspectiva fenomenológica-contextualista remete a uma série de estudos psicobiográficos, conduzidos no início e até a metade dos anos 1970 por George Atwood e por mim, a respeito das origens subjetivas dos sistemas teóricos de Freud, Jung, Reich, e Rank, estudos que deram base ao nosso primeiro livro, Faces in a Cloud: Subjectivity in Personality Theory2 (Stolorow & Atwood, 1979), concluído em 1976. A partir desses estudos, concluímos que como as teorias psicológicas derivam de forma significativa das preocupações subjetivas dos seus criadores, a psicanálise e a teoria da personalidade necessitavam uma teoria da subjetividade em si: um arcabouço unificador capaz de dar conta não só dos fenômenos psicológicos que outras teorias abordam, mas também para as teorias em si.

No ultimo capítulo de Faces, esboçamos um conjunto de propostas para a criação desse arcabouço, que denominamos fenomenologia psicanalítica. Influenciados pelos escritos de George Klein (1976), de Sandler & Rosenblatt (1962), imaginamos como uma psicologia profunda da experiência pessoal, depurada das concretizações mecanicistas da metapsicologia freudiana. Nossa estrutura tomou o mundo vivencial do indivíduo como seu constructo teórico central. Não fizemos suposições a respeito de instâncias psíquicas impessoais ou forças motivacionais vivas para explicar o mundo experiencial. Ao contrário, supusemos que esse mundo evolui organicamente do encontro da pessoa com as experiências críticas formadoras que constituem sua história singular de vida. Uma vez estabelecido, torna-se discernível nos padrões idiossincráticos, recorrentes, temas e significados invariantes que organizam de forma pré-reflexiva as experiências da pessoa. A fenomenologia psicanalítica abrange um conjunto de princípios interpretativos para investigar a natureza, origens, propósitos, e transformações das configurações de self e outras que permeiam o mundo vivencial da pessoa. De maneira decisiva, nossa dedicação para ilustrar a fenomenologia pessoal nos levou da mente para o mundo e, assim, dos conteúdos mentais para os contextos relacionais, do intrapsíquico para o intersubjetivo.

 

Da mente para o mundo: intersubjetividade

Ainda que o conceito de intersubjetividade não tenha sido introduzido na primeira edição de Faces, estava claramente implícito nas demonstrações de como o mundo pessoal subjetivo de um teórico da personalidade influencia sua compreensão das vivências de outra pessoa. Esse primeiro uso explícito do termo intersubjetivo em nossa obra surgiu em artigo (Stolorow, Atwood, & Ross, 1978), também concluído em 1976, ao qual Lewis Aron (1996) atribuiu a introdução do conceito de intersubjetividade no discurso psicanalítico norte-americano. Nele conceituamos o interjogo de transferência e contratransferência no tratamento psicanalítico como processo intersubjetivo que reflete a interação mútua dos mundos organizados, de modo diferente, do paciente e do analista, e examinamos o impacto do processo terapêutico de correspondências e disparidades não reconhecidas - conjunções e disjunções intersubjetivas - entre os respectivos mundos de experiência do paciente e do analista.3

Nossa perspectiva contextualista se aprofundou e expandiu significativamente em consequência da investigação de Bernard Brandchaft e minha, em 1980, dos assim chamados fenômenos borderline. Descobrimos que quando um paciente muito vulnerável, com uma organização o arcaica é tratado de acordo com as ideias teóricas e recomendações técnicas de Otto Kernberg (1975), esse paciente mostrará rapidamente todas as características que Kernberg atribuiu à organização borderline de personalidade, e as páginas dos livros de Kernberg estarão ao vivo diante dos olhos do clínico. Por outro lado, quando esse tipo de paciente é tratado de acordo com a teoria e a postura técnica proposta por Heinz Kohut (1971), ele logo mostrará as características que Kohut atribuiu ao transtorno narcísico de personalidade, e os livros de Kohut surgirão ao vivo. No capítulo que resultou da nossa investigação (Brandchaft & Stolorow, 1984), afirmamos que os estados borderline tomam forma em um campo intersubjetivo, constituídos em conjunto pelas estruturas psicológicas do paciente e a forma pela qual o terapeuta as entende e responde a elas. Começou assim uma série de estudos em colaboração (ver Stolorow, Brandchaft, & Atwood, 1987) em que Atwood, Brandchaft, e eu ampliamos nossa perspectiva intersubjetiva para uma ampla gama de fenômenos clínicos, incluindo desenvolvimento e patogênese, transferência e resistência, formação do conflito emocional, sonhos, encenações, sintomas neuróticos e estados psicóticos (Ver também Stolorow, Atwood, & Orange, 2002, Capítulo Oito, para uma explicação da fenomenologia dos estados psicóticos). Em cada exemplo, fenômenos que tradicionalmente têm sido foco de investigação psicanalítica não foram entendidos como produtos de mecanismos intrapsíquicos isolados, mas que se formam na interface de mundos vivenciais interativos. O contexto intersubjetivo, afirmamos, tem um papel constitutivo em todas as formas de psicopatologia, e os fenômenos clínicos não podem ser compreendidos psicanaliticamente fora do campo intersubjetivo em que se cristalizam. No tratamento psicanalítico, o impacto do observador é apreendido como algo intrínseco ao que se observa.

A teoria freudiana tradicional é permeada pelo "mito cartesiano da mente isolada" (Stolorow & Atwood, 1992, Capítulo Um). A filosofia de Descartes (1641) bifurcou o mundo subjetivo em regiões internas e externas, separou tanto a mente do corpo quanto a cognição do afeto, concretizou e tornou absolutas as divisões resultantes, e descreveu a mente como entidade objetiva que toma seu lugar entre outros objetos, uma "coisa pensante" que tem um interior com conteúdos e que olha para fora para um mundo externo do que está essencialmente separada. Como eu disse antes, a psique freudiana é fundamentalmente uma mente cartesiana à medida que é um continente de conteúdos (energias instintivas, desejos etc.) uma coisa pensante que, exatamente por ser uma coisa, é ontologicamente descontextualizada, fundamentalmente separada do seu mundo.

Na filosofia, talvez o desafio mais importante ao dualismo metafísico de Descartes foi erguido por Martin Heidegger (1927), cuja análise da existência humana fornece a grande promessa de dar fundamentação filosófica ao nosso contextualismo fenomenológico. A metafísica de Descartes dividiu o mundo finito em duas substâncias básicas distintas: res cogitans [coisa pensante] e res extensa [coisa extensa], substâncias pensantes (mentes) sem extensão no espaço e substâncias extensas (corpos e outras coisas materiais) que não pensam. Esse dualismo metafísico concretizou a ideia da separação total entre mente e mundo, entre sujeito e objeto. A visão de Descartes pode ser caracterizada como descontextualização tanto da mente quanto do mundo. Mente, a "coisa pensante", é isolada do mundo em que vive, assim como é removido do mundo todo o significado humano ou "mundaneidade"4 (Heidegger, 1927). Tanto a mente quanto o mundo são despojados de toda contextualidade a respeito um do outro, como se fossem vistos em sua coisidade nua5, como diria Heidegger. A lacuna ontológica entre mente e mundo, entre sujeito e objeto, só se desfaz somente em um relacionamento de pensamento, em que o "sujeito sem mundo" de algum modo forma ideias que mais ou menos acuradamente representam ou correspondem a objetos transcendentes (ou seja, independentes da mente) em um "mundo sem mundo". Em sua analítica existencial, Heidegger procurou reencontrar a unidade do nosso ser, dividida na bifurcação cartesiana. Assim, o que ele chamou de "destruição" da metafísica tradicional foi um esclarecimento para se distanciar das ocultações e disfarces desta, a fim de desvendar o todo primordial contextual que esta estivera encobrindo.

O contextualismo de Heidegger (1927) é explicitado ao "pôr a descoberto" a estrutura constitutiva da nossa existência como um "ser no mundo" (p. 65). Os hífens que unificam a expressão estar-no-mundo (In-der-Welt-sein) indicam que a lacuna ontológica tradicional entre nosso ser e nosso mundo deve ser definitivamente encerrada e que, em sua unidade indissolúvel, nosso ser e nosso mundo "primordial e constantemente" (p. 65) contextualizam um ao outro. A analítica existencial de Heidegger revela a estrutura básica do nosso ser como um todo contextual rico, em que o ser humano é saturado pelo mundo em que vive, assim como o mundo em que vivemos é encharcado de significados e propósitos humanos. À luz dessa contextualização fundamental, a análise de afetividade de Heidegger é especialmente digna de nota.

O termo de Heidegger para a base existencial da afetividade (sentimentos e estados de espírito) é Befindlichkeit, um nome caracteristicamente desajeitado que ele inventou para captar a dimensão básica da existência humana. Literalmente, a palavra poderia ser traduzida como "como encontrar a própria individualidade".6 Como ressaltou Gendlin (1988), o nome dado por Heidegger para a estrutura da afetividade denota tanto como a pessoa se sente quanto a situação em que a pessoa está sentindo, um senso sentido de si mesmo numa situação, anterior à divisão cartesiana entre dentro e fora. Befindlichkeit revela que desde sempre já fomos remetidos para a condição e o estado em que nos encontramos. Para Heidegger, Befindlichkeit - afetividade reveladora - é um modo de estar-no-mundo, profundamente enraizado no contexto constitutivo. O conceito de Heidegger ressalta a extraordinária dependência contextual e a sensibilidade contextual da experiência emocional - um enraizamento no contexto - que toma enorme importância do ponto de vista da teoria dos sistemas intersubjetivos ao colocar a afetividade como centro motivacional da vida psicológica humana.

 

Da pulsão para a afetividade

Um princípio central da teoria dos sistemas intersubjetivos é que a mudança no pensamento psicanalítico da primazia motivacional da pulsão para a primazia motivacional da afetividade move a psicanálise para o contextualismo fenomenológico e para o foco central nos sistemas intersubjetivos dinâmicos. Diferente das pulsões, que se originam profundamente no interior de uma mente cartesiana isolada, o afeto - ou seja, a experiência emocional subjetiva - é algo que do nascimento em diante é regulada, ou desregulada, dentro de sistemas relacionais constantes. Por isso, localizar o afeto como seu centro motivacional automaticamente envolve a contextualização de virtualmente todos os aspectos da vida psicológica humana.

Meu foco sistemático na afetividade começou com um artigo inicial escrito com minha falecida esposa, Daphne Socarides Stolorow (Socarides & Stolorow, 1984 - 1985), tentando integrar nossa perspectiva intersubjetiva, em evolução, com o quadro de referência da psicologia do self kohutiana. Em nossa proposta de expansão e aperfeiçoamento do conceito de selfobjeto de Kohut (1971), sugerimos que "as funções selfobjeto pertencem fundamentalmente à integração do afeto" na organização da experiência do self, e que a necessidade de laços de selfobjeto "pertence de modo mais central à necessidade de resposta [sintonizada] aos estados afetivos em todos os estágios do ciclo vital" (p. 105). Considerava-se que as discussões de Kohut sobre o desejo de espelhamento, por exemplo, realçavam o papel da sintonia apreciativa na integração dos estados de afeto expansivo, enquanto que as discussões sobre o anseio idealizador indicariam a importância do holding emocional sintonizado e da continência na integração de estados afetivos reativos dolorosos. Nesse artigo inicial, a experiência emocional era considerada como inseparável dos contextos intersubjetivos de sintonia e de falta de sintonia com que era sentida. A compreensão da primazia motivacional da afetividade - Befindlichkeit - permite que se contextualize uma ampla gama de fenômenos psicológicos que têm sido tradicionalmente centrais na teoria psicanalítica, incluindo conflito psíquico, trauma, transferência e resistência, inconsciência, e a ação terapêutica da interpretação psicanalítica.

No artigo inicial sobre afetos e funções de selfobjeto (Socarides & Stolorow, 19841985), aludimos à natureza dos contextos intersubjetivos em que os conflitos psicológicos tomam forma:

A ausência de resposta firme e sensível aos estados afetivos da criança leva ao ... prejuízo significativo da integração afetiva adequada e à tendência a dissociar ou negar as reações afetivas. (p. 106)

O conflito psicológico se desenvolve quando estados afetivos essenciais da criança não podem ser integrados por evocarem falta massiva ou persistente de sintonia da parte dos cuidadores (Stolorow, Brandchaft, & Atwood, 1987, Capítulo Seis). Esses estados afetivos não integrados tornam-se fonte de conflito emocional ao longo da vida e de vulnerabilidade a estados traumáticos, por serem vividos como ameaças tanto à organização psicológica que a pessoa estabeleceu, quanto à manutenção de laços vitalmente necessários. Assim, tornam-se necessárias defesas contra o afeto.

A partir dessa perspectiva, o trauma durante o desenvolvimento não é considerado como inundação instintual de um continente cartesiano mal equipado, como Freud (1926) entendia, mas como experiência intolerável de afeto. Além disso, a não tolerabilidade de um estado afetivo não pode ser explicada única, ou mesmo primariamente, com base na quantidade ou intensidade de sentimentos dolorosos evocados por um evento prejudicial. Estados afetivos traumáticos só podem ser apreendidos em termos dos sistemas relacionais em que são sentidos (Stolorow & Atwood, 1992, Capítulo Quatro). Os traumas durante o desenvolvimento se originam dentro de um contexto intersubjetivo formativo cuja característica central é a falta de sintonia ao afeto doloroso - uma ruptura do sistema cuidador-criança de regulação mútua - levando à perda da capacidade de integração afetiva da criança e, consequentemente, a um estado de desorganização arrasador e intolerável. O afeto doloroso ou assustador torna-se traumático quando a sintonia que a criança necessita para dar conta de tolerar, conter e integrar está profundamente ausente.

A partir da afirmação de que o trauma se constitui em um contexto intersubjetivo no qual a dor emocional intensa não pode encontrar um lar relacional no qual possa ser contida, segue-se que as experiências deletérias da infância não precisam ser traumáticas (ou ao menos duradouras) ou patogênicas, desde que ocorram em um ambiente responsi-vo. Dor não é patologia. A ausência de sintonia adequada às reações emocionais dolorosas da criança é que as torna insuportáveis e, assim, uma fonte de estados traumáticos e de psicopatologia.

Essa conceituação inclui tanto eventos traumáticos intensos isolados, quanto os "traumas cumulativos" (Khan, 1963) mais sutis que ocorrem continuamente durante toda a infância. Enquanto Khan (1963) conceituou o trauma cumulativo como resultado da "ruptura do papel da mãe como escudo protetor" (p. 46), nós entendemos esses traumas contínuos como falta de resposta adequada ao afeto doloroso da criança por ocasião da ruptura do "escudo protetor". Se um dos genitores usa a criança de modo narcísico, por exemplo, isso pode impedir o reconhecimento, a aceitação e a resposta sintonizada aos estados afetivos dolorosos da criança.

Uma consequência do trauma durante o desenvolvimento, concebido do ponto de vista relacional, é que estados afetivos assumem significados esmagadores duradouros. A partir dessas vivências recorrentes de falta de sintonia, a criança adquire a convicção inconsciente de que os anseios não satisfeitos durante o desenvolvimento e os estados dolorosos reativos são manifestação de defeito repugnante ou de sua maldade interna. Frequentemente é criado um self ideal defensivo representando uma imagem expurgada dos estados afetivos delituosos percebidos como indesejáveis ou prejudiciais aos cuidadores. Viver de acordo com esse ideal afetivamente expurgado torna-se exigência central na manutenção de laços harmoniosos com os outros e para defender a autoestima. Subsequentemente, o surgimento de afetos proibidos é vivido como a impossibilidade de encarnar o ideal necessário, exposição do defeito ou maldade subjacente essencial, e é acompanhado por sentimentos de isolamento, vergonha e autoaversão. Na situação analítica, qualidades ou atividades do analista que se prestem a interpretações segundo esses significados inconscientes de afeto confirmam, na transferência, as expectativas do paciente de que o surgimento de estados afetivos será recebido com repugnância, desdém, desinteresse, desconforto, hostilidade, medo, afastamento, exploração e assim por diante, ou prejudicarão o analista e destruirão o vínculo terapêutico. Essas expectativas transferenciais, inadvertidamente confirmadas pelo analista, são fonte poderosa de resistência à vivência e articulação do afeto. Transferências e resistências repetitivas intratáveis podem ser captadas, a partir dessa perspectiva, como "estados de atração" rigidamente estáveis (Thelen & Smith, 1994) do sistema paciente-analista, em que os significados da postura do analista ficam hermeticamente coordenados às expectativas e medos sombrios do paciente, expondo-o, em consequência, a riscos repetidos de retraumatização. A concentração no afeto e em seus significados con-textualiza tanto a transferência como a resistência.

Uma segunda consequência do trauma durante o desenvolvimento é a constrição e estreitamento graves dos horizontes da vivência emocional (Stolorow, Atwood, & Orange, 2002, Capítulo Três), de modo a excluir tudo que pareça inaceitável, intolerável ou perigoso demais em contextos intersubjetivos específicos. Minhas ideias e dos meus colaboradores a respeito dos horizontes da vivência se desenvolveram por mais de duas décadas a partir de nossas tentativas de delinear as origens subjetivas de diferentes formas de inconsciência (ver, por exemplo, Stolorow & Atwood, 1992, Capítulo Dois). A evolução da nossa teoria repousou na suposição de que a experiência emocional da criança vai sendo progressivamente articulada por meio da sintonia validada pelo ambiente inicial que a cerca. Descreveram-se duas formas de inconsciência intimamente relacionadas, mas conceitualmente distinguíveis que se desenvolveram a partir de grande falta de sintonia. Quando as vivências emocionais da criança não recebem resposta de modo constante ou são ativamente rejeitadas, a criança percebe que aspectos da sua vida afetiva são intoleráveis para o cuidador. Essas regiões do mundo emocional da criança precisam ser sacrificadas a fim de salvaguardar o vínculo imprescindível. A repressão foi captada como um tipo de princípio organizador negativo, enraizado sempre em contextos intersubjetivos constantes, determinando quais configurações de vivência afetiva não teriam permissão para existência plena. Além disso, argumentamos, outras características da experiência emocional da criança devem permanecer inconscientes, não por terem sido reprimidas, mas porque, na ausência de um contexto intersubjetivo que as valide, elas simplesmente nunca se articularam. Com as duas formas de inconsciência, descreveu-se que os horizontes da vivência tomam forma no meio de respostas divergentes do ambiente circundante a diferentes regiões da afetividade da criança. Pode-se considerar que esta conceituação se aplique também à situação psicanalítica, à medida que, como observei no parágrafo precedente, pode-se demonstrar que a resistência do paciente flutua em consonância com a percepção das variações da receptividade e sintonia do analista à experiência emocional do paciente.

Durante o período pré-verbal do primeiro ano de vida, a articulação da experiência afetiva da criança é adquirida por meio das sintonias comunicadas no diálogo sensório-motor com os cuidadores. Com a maturação das capacidades simbólicas da criança, os símbolos (palavras, por exemplo) assumem aos poucos um lugar importante durante as sintonias sensório-motoras enquanto veículos por meio dos quais a experiência emocional da criança é validada dentro do sistema do desenvolvimento. Portanto, argumentamos, nesse território de vivência em que a consciência se articula cada vez mais em símbolos, inconsciente torna-se sinônimo de não simbolizado. Quando o ato de articular simbolicamente (linguisticamente, por exemplo) uma experiência afetiva é percebido como ameaça a um vínculo indispensável, pode ocorrer repressão por meio do impedimento da continuação do processo de codificação da experiência em símbolos. A repressão mantém o afeto inominável.

O foco no afeto contextualiza o próprio limite entre consciente e inconsciente. Diferente da barreira da repressão freudiana, considerada como estrutura intrapsíquica dentro de um continente cartesiano isolado, os horizontes limitantes da vivência emocional são conceituados como propriedades emergentes de sistemas intersubjetivos dinâmicos constantes. Formando-se e evoluindo dentro de um nexo de sistemas vivos, os horizontes do vivenciar são captados como produtos fluidos e sempre cambiantes, tanto da história singular intersubjetiva da pessoa e do que lhe é ou não permitido sentir nos campos intersubjetivos que constituem sua vida atual. Befindlichkeit inclui tanto o sentir quanto os contextos em que lhe é ou não permitido ter existência.

Como horizontes constritos e estreitados do vivenciar emocional, expandir horizontes, também, só pode ser captado em termos de contextos intersubjetivos dentro dos quais tomam forma. Encerro esta seção com algumas observações a respeito da ação terapêutica da interpretação psicanalítica.

Tem havido um debate duradouro na psicanálise a respeito do papel do insight cognitivo versus apego afetivo no processo de mudança terapêutica. Os termos desse debate descendem diretamente do dualismo filosófico de Descartes, que seccionou a experiência humana em domínio cognitivo e afetivo. Essa fratura artificial da subjetividade humana não é mais aceitável em um mundo filosófico pós-cartesiano. Cognição e afeto, pensar e sentir, interpretar e se relacionar - só serão separáveis na patologia, como se pode observar no caso do próprio Descartes, o homem profundamente isolado que criou a doutrina da mente isolada (ver Gaukroger, 1995), o cogito desencarnado, desenraizado e descontextu-alizado.

A dicotomia entre insight por meio da interpretação e o vínculo afetivo com o analista se revela falsa, uma vez que se reconheça que o impacto terapêutico das interpretações analíticas não repousa apenas nos insights transmitidos, mas também à medida que demonstram a sintonia do analista à vida afetiva do paciente. Há muito tempo sustento que uma boa interpretação (ou seja, mutativa) é um processo relacional, cujo constituinte essencial é a vivência do paciente ter seus sentimentos compreendidos. Além do mais, o significado transferencial específico da experiência de se ser compreendido é que fornece seu poder mutativo, à medida que o paciente tece essa experiência na tapeçaria dos anseios evolutivos mobilizados pelo engajamento analítico. A interpretação não fica separada da relação emocional de paciente e analista; é uma dimensão inseparável e, a meu ver, crucial dessa relação. Na linguagem da teoria dos sistemas intersubjetivos, a expansão interpretativa da capacidade do paciente para a consciência reflexiva sobre os princípios organizadores antigos e repetitivos ocorre concomitante ao impacto afetivo e ao significado da experiência relacional constante com o analista. Ambas são componentes indissolúveis de um processo terapêutico unitário que estabelece a possibilidade de princípios alternativos para organizar a experiência, por meios dos quais os horizontes emocionais do paciente podem ampliar-se, enriquecer-se, ficar mais flexíveis, e mais complexos. Para que esse processo de desenvolvimento se sustente, o vínculo analítico deve ser capaz de tolerar os estados afetivos dolorosos e assustadores que podem acompanhar os ciclos de desestabilização e reorganização. Evidentemente, o foco clínico na experiência afetiva dentro do campo intersubjetivo da análise contextualiza o processo de mudança terapêutica de múltiplas formas.

A vinheta clínica seguinte (uma composição fictícia) ilustra muitas ideias desenvolvidas nesta seção.

 

Vinheta

Uma jovem mulher, abusada sexualmente por seu pai repetidas vezes quando criança, começou análise com uma analista em formação que eu supervisionava. No início do tratamento, sempre que a paciente começava a recordar e a descrever o abuso sexual, ou a contar outras experiências igualmente invasivas em sua vida atual, ela mostrava reações emocionais que consistiam de duas partes distintas e ambas pareciam totalmente corporais. Uma era um tremor em seus braços e na parte superior do torso, que às vezes se transformava em agitação violenta. A outra era um intenso rubor em seu rosto. Nessas ocasiões, minha supervsionanda ficava bastante assustada com o tremor da paciente e se preocupava em encontrar um modo de acalmá-la.

Intuí que o tremor fosse a manifestação corporal de um estado traumatizado e que o rubor fosse a vergonha da paciente, manifestada de forma somática, por expor esse estado à sua analista, e sugeri à minha supervisionanda que focasse sua investigação no rubor e não no tremor. Como resultado da mudança de foco, a paciente começou a falar em sua crença de como a analista a via quando estava com tremores ou agitação: com certeza a analista devia desprezá-la, vendo-a como um ser humano imundo e estragado. À medida que essa crença não se confirmou, inúmeras vezes, já que a resposta da analista era de sintonia e compreensão e não de desprezo, tanto o rubor quanto o tremor diminuíram de intensidade. Os estados traumatizados realmente sofreram um processo de transformação deixando de ser exclusivamente estados corporais e passaram a ser estados em que as sensações corporais se uniram a palavras. Em lugar de apenas tremer, a paciente começou a falar acerca do seu terror dessa intrusão aniquiladora. A única vez em que a paciente tentou contar à sua mãe o abuso sexual, a mãe a repreendeu severamente, deixando-a envergonhada, afirmando que ela era uma menina malvada por inventar mentiras sobre o pai. Daí em diante, a paciente não contou a nenhum outro ser humano o seu trauma até revelá-lo à analista, e tanto o rubor da sua face quanto a restrição da experiência de terror ao seu componente corporal inominável foram sucessores da vergonha sofrida com a mãe. Só depois de mudar sua percepção a respeito da analista, como alguém que secreta ou potencialmente a envergonhava para a imagem de uma analista que aceitava e compreendia, que a experiência emocional da paciente sobre seus estados traumatizados se alterou passando da forma exclusivamente corporal para uma vivência que pôde ser sentida e nomeada como terror.

 

A contextualidade e existencialidade do trauma emocional

Em minha experiência, uma abordagem coerentemente fenomenológica tem sido especialmente frutífera no esforço de captar o trauma emocional. No decorrer de quase duas décadas em que venho investigando e escrevendo sobre trauma (Stolorow, 2007), dois temas centrais entrelaçados se cristalizaram. Por um lado, experiências emocionais dolorosas se tornam duradouramente traumáticas - ou seja, intoleráveis - na ausência de um contexto relacional ou lugar em que possam ser mantidas e integradas. Por outro lado, o trauma emocional se constrói dentro da constituição básica da existência humana. Em virtude de nossa finitude e da finitude de todos aqueles a quem somos profundamente ligados, a possibilidade de trauma emocional constantemente ameaça e está sempre presente. Já tendo discutido o primeiro tema, a qualidade penetrante do contexto do trauma, volto-me para o segundo: sua importância existencial.

Vislumbrei a existencialidade do trauma emocional em primeira mão, tal qual foi exposto em um estado traumatizado que vivenciei numa conferência, em 1992, na qual revivi uma perda anterior arrasadora:

Eu parecia um ser estranho e estrangeiro - não deste mundo. Os outros pareciam tão vitalizados, vitalmente engajados uns com os outros. Eu, em contraste, sentia-me amortecido e alquebrado, uma casca do homem que eu fora. Um abismo intransponível parecia se abrir, separando-me para sempre dos meus amigos e colegas. Eles jamais poderiam sequer começar a entender minha experiência, pensei comigo, porque agora vivíamos em mundos totalmente diferentes. (Stolorow, 2007, pp. 13-14)

A chave que, para mim, desbloqueou o significado do trauma emocional foi o que vim a chamar os absolutismos da vida cotidiana:

Quando uma pessoa diz a um amigo: "Te vejo depois" ou o pai diz a uma criança ao deitar: "Te vejo de manhã"; estas são afirmações cuja validade não está aberta a discussão. Esses absolutismos são a base para um tipo de realismo e otimismo ingênuo que permitem à pessoa funcionar no mundo, vivido como estável e previsível. A essência do trauma emocional é que ele destrói esses absolutismos, uma perda catastrófica da inocência que altera permanentemente o próprio senso de estar-no-mundo da pessoa. A enorme desconstrução dos absolutismos da vida cotidiana expõem a contingência inexorável da existência em um universo arbitrário e imprevisível e no qual não se pode assegurar a segurança ou continuidade de ser. (Stolorow, 2007, p. 16)

Ao destruir os absolutismos tranquilizadores da vida cotidiana, o trauma emocional nos mergulha em uma forma do que Heidegger (1927) chama autêntico (possuído) ser-em-direção-à-morte, em que morte e perda são apreendidas como possibilidades idiossincráticas constitutivas da nossa verdadeira existência, da nossa inteligibilidade para nós mesmos em nossa futuridade e finitude - possibilidades que são ao mesmo tempo certas e indefinidas quanto ao seu "quando" e que, por isso, sempre funcionam como ameaças constantes. Despojadas das suas ilusões de abrigo, o mundo cotidiano perde sua importância, e a pessoa traumatizada, tal qual visto em meu estado traumatizado na conferência, sente-se angustiada e estranha, não mais na segurança familiar do mundo cotidiano.

 

Irmãos na mesma escuridão: implicações éticas

Para encerrar, retorno ao tema da natureza penetrante do contexto de trauma emocional e, especialmente, à afirmação de que o trauma emocional pode ser gradativamente integrado quando encontra um lar relacional no qual possa ser contido. O que torna possível encontrar esse lar relacional?

Tenho sustentado (Stolorow, 2007) que assim como a finitude e vulnerabilidade à morte e à perda são fundamentais para nossa constituição existencial, assim, também, faz parte da nossa existência que nos encontremos como "irmãos e irmãs, na mesma noite escura" (Vogel, 1994, p. 97) vinculados profundamente uns aos outros em virtude de nossa finitude comum. Assim, embora a possibilidade de trauma emocional esteja sempre presente, assim, também, está a possibilidade de formar laços de sintonia emocional profunda dentro dos quais a dor emocional arrasadora pode ser contida, tornar-se mais tolerável, e, espera-se, finalmente integrada. Nosso parentesco-existencial-na-mesma-escuridão é a condição para a possibilidade tanto de profunda contextualidade do trauma emocional quanto do poder mutativo da compreensão humana.

Captar nosso parentesco-em-finitude contém, como mostra Vogel (1994), implicações éticas importantes à medida que nos motiva, ou mesmo nos obriga, a sintonizar e fornecer um lar relacional para a vulnerabilidade e dor existencial dos outros.

Imagine uma sociedade em que a obrigação de proporcionar um lar relacional para a dor emocional inerente ao impacto traumatizante da nossa finitude tornou-se um princípio ético compartilhado. Nesse tipo de sociedade, os seres humanos seriam muito mais capazes de viver sua vulnerabilidade, ansiedade e dor existencial, em lugar de ter que recorrer às evasões defensivas e destrutivas que têm sido tão características da história humana. Nesse contexto social, poderia ser possível uma nova forma de identidade, baseada na apropriação e não no encobrimento da nossa vulnerabilidade existencial. Vulnerabilidade que encontra um lar relacional acolhedor poderia ser total e constitutivamente integrada naquilo que sentimos que somos. Uma nova forma de solidariedade humana também poderia tornar-se possível, não enraizada em ideologia destrutiva compartilhada, mas no reconhecimento partilhado e respeito por nossa finitude humana comum. Se pudermos ajudar uns aos outros a tolerar a escuridão em lugar de fugir dela, talvez, algum dia poderemos ser capazes de ver a luz.

Ao escrever este artigo tive consciência da trajetória do meu trabalho durante as últimas quatro décadas. Meu compromisso com a investigação fenomenológica levou-me (e aos meus colaboradores) à compreensão da contextualidade da experiência emocional e da importância existencial do trauma emocional, e, por sua vez, à consciência das implicações éticas dessa compreensão.

Ao viajar por essa trajetória, voltei à visão da nossa vocação que há muito sustento: psicanálise não é um ramo da medicina nem da psicologia, é filosofia aplicada.

 

Referências

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Correspondência:
Robert D. Stolorow
[Escola de Medicina da Universidade da Califórnia]
2444 Wilshire Blvd, Ste 624
Santa Monica, CA 90403
Tel: 1 310 453-9020
robertdstolorow at gmail dot com

Recebido em 18/4/2010
Aceito em 10/5/2011

 

 

1 Trechos deste artigo foram incorporados ao meu próximo livro: World, Affectivity, Trauma: Heidegger and Post-Cartesian Psychoanalysis (Routledge, maio 2011).
2Faces numa nuvem: subjetividade na teoria de personalidade. (N.T.)
3Nosso uso do termo intersubjetivo nunca pressupôs a obtenção de pensamento simbólico, do conceito de si mesmo enquanto sujeito, de relacionamento intersubjetivo no sentido de Stern (1985), ou de reconhecimento mútuo tal qual descrito por Benjamin (1995). Nem confinamos nosso uso ao território das comunicações afetivas não verbais inconscientes, tal como Ogden (1994) parece fazer. Usamos o termo intersubjetivo de modo muito amplo, para referir a qualquer campo psicológico formado por mundos de experiência que interatuam em qualquer nível de desenvolvimento em que esses mundos se organizem. Para nós, intersubjetivo não denota um modo de vivenciar nem o compartilhar da experiência, mas a pré-condição contextual para que se tenha qualquer tipo de experiência. Em nosso modo de ver, os campos intersubjetivos e os mundos vivenciais são equiprimordiais, constituindo-se um ao outro de modo circular.
4 No original: worldhood. (N.T.)
5 No original: bare thinghood. (N.T.)
6 No original: howonefinds-oneselfness. (N.T.)