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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.45 no.4 São Paulo out./dez. 2011
COMENTÁRIOS SOBRE A ENTREVISTA COM INÊS BOGÉA
O corpo em cena: algumas considerações sobre a entrevista com Inês Bogéa
The body on stage: Some considerations on the interview with Inês Bogéa
El cuerpo em la escena: algunas consideraciones sobre la entrevista con Ines Bogéa
Joelma Dibo Victoriano
Membro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica de Mato Grosso do Sul SPMS
A autora faz comentários sobre a entrevista com Inês Bogéa abordando as convergências da dança com a psicanálise e considera o corpo como cenário primeiro onde as sensações ensaiam para se apresentar no espaço do mental.
Palavras-chave: corpo; mente; dança; sensações; psicanálise.
The author comments on the interview with Inês Bogéa, addressing the points in which dance and psychoanalysis merge, and considers the body as the primary scenario where the feelings rehearse in order to perform in the space of the mind.
Keywords: body; mind; dance; feelings; psychoanalysis.
El autor comenta en la entrevista com Ines Bogéa hacer frente a las convergencias entre la danza y el psicoanálisis, y considera el cuerpo como el primer escenario donde los sentimientos han de ensayar en el espacio de la mente.
Palabras clave: cuerpo; mente; danza; sensaciones; psicoanálisis.
Escrever um comentário sobre a belíssima entrevista realizada com Inês Bogéa me trouxe a possibilidade de matar um pouco da saudade do tempo em que eu era bailarina. Dos ensaios, das aulas de ballet clássico e dança contemporânea, do palco e da magia dos espetáculos. Durante toda a faculdade de psicologia, dividi os livros com a dança moderna e, aos 20 anos, encerrei minha experiência de 16 anos como bailarina para fazer a escolha pelo "palco" da psicanálise. E quem sabe a música de fundo para esses escritos que agora apresento seria o Bolero de Ravel pela intensidade e variação de tons que pulsam no corpo de quem já experimentou dançá-lo.
Inês, em suas falas sobre a dança e o dançar, apresenta toda a complexidade dos primeiros encontros do ser humano com o mundo por meio da sensorialidade do corpo e suas manifestações, tema esse que sempre ocupou lugar de destaque no cenário psicanalítico pelas falas de inúmeros autores. Penso inicialmente em Freud e o corpo, palco do sintoma, com o qual as histéricas entravam em cena, em Winnicott e suas falas sobre as necessidades do corpo, anterior ao desejo, em Klein e as ansiedades frente às partes do corpo da mãe por vezes sentido como lugar aterrador cheio de objetos destruídos e vingativos, em McDou-gall e seu trabalho "Um corpo para dois". O corpo erógeno, erótico, do prazer-desprazer. O corpo dança com vários figurinos no recinto do mental.
É sabido que encontramos na literatura psicanalítica várias referências às articulações da psicanálise com a poesia, com a pintura e outras formas de arte. Mas no que diz respeito à dança o material é escasso. Quem sabe porque ela não pertença ao verbal, ela está mais para o verbo, enquanto ação em movimento. Se pudesse ser falada seria outra coisa e não seria dançada. O porta voz de sua linguagem é o corpo.
Inês relata movimentos de uma trajetória pautada pelos entrelaçamentos do corpo que se organiza "de cabeça para baixo", em movimento puro, e o nascimento do encontro relacional. Não necessariamente nessa ordem, pois o desenvolvimento é sempre muito dinâmico. Penso que todos nós, de certa forma, iniciamos assim a nossa trajetória humana, meio de cabeça para baixo ao nascer e acolhidos pelos braços de alguém que sustenta nossa dependência. Nas idas e vindas entre a busca do objeto e o retorno para a solidão, entre os encontros e desencontros, está o movimento, o ritmo, a cadência, o pulsional vivo e intermitente que promove continuamente a busca pela comunicação de si mesmo. Felizes aqueles que no início experimentam o contato com as "professoras falantes", as "Donas Leniras" da vida! Aquelas que nos trazem de volta a essência e que sabiamente reconhecem que a personalidade só se realiza no encontro do gesto com a emoção, onde a "liga" se dá pelo colorido do afeto presente na relação com outro ser humano.
A linguagem do corpo é uma linguagem que não mente, que traz em sua singularidade a verdade humana. É a língua mãe original e originária. Viva, repleta de significados à espera de tradução. Aquela que imprime, registra, comunica e inaugura o universo particular, único e essencial de cada ser humano.
A construção do sentimento de "ser alguém" no mundo passa, inevitavelmente, pela sustentabilidade da expressão corporal e do gesto espontâneo.
Meus comentários partem da ideia de que o corpo é o cenário primeiro onde as emoções se expressam ensaiando se apresentar, a mente é o palco onde a representabilidade se insere e a interrelação corpo e mente inaugura a subjetividade do ser e sentir-se humano.
Se o papel do coreógrafo, tão bem descrito por Inês, é daquele que apresenta o bailarino a si mesmo e traz a possibilidade de harmonizar partes de um corpo pronto para dançar em dança que comunica, análogo a isso temos, no início, um "coreógrafo particular" que dança conosco um pas-de-deux. É na função da maternagem e na figura da mãe que se encontra o sujeito da comunicabilidade. E é pelo contato com seu corpo, cheiro, ritmo de sua respiração, tom de sua voz que marcamos os primeiros compassos de um bailar infindável de várias cadências e contextos que por meio da experiência conferem história ao sujeito.
O corpo fala e a dança é sua linguagem. É tradução, narrativa. Movimento, comunicação, enredo que enreda tramas de significados. Dançar é possibilidade de reencontro com um tempo interno onde a palavra ainda estava incubada. É um retorno à originalidade, ou como dizia Martha Graham, bailarina consagrada: "A dança é a linguagem escondida da alma".
No início é o corpo e suas necessidades e sensações, é o movimento que vai em busca de algo, que se afasta e que se aproxima novamente. Encontros e desencontros marcam o compasso do existir. A comunicação se dá por meio do grito, da agitação, do silêncio, do movimento e do não movimento das partes de um corpo vivo e pulsante. Pulsão. Quantas possibilidades!
A mente se especializa a partir da elaboração psíquica das partes de um corpo que é traduzido pelo contato com outro corpo e com outra mente.
Lendo a entrevista, palavras soltas, feito passos sem coreografia surgiram livres em minha mente. Dentre elas: integração, espontaneidade, desafio, dor, determinação, contato, registros, narrativa, espaço, tempo, atemporalidade, enredo, ritmo, tradução, diálogo, perspectiva, transição, sonho em movimento, realização e criação. Penso que essas são as falas da bailarina que dança seu corpo vivo e também revelações dos mais variados figurinos que pode vestir um corpo.
Escrever sobre a dança e o dançar realmente não é tarefa fácil quando o desejo é apropriar-se da experiência em si mesma. A dança não tem palavras, é manifestação quase instintiva da vitalidade.
Em sua trajetória, Inês passa do corpo à palavra quando passa a escrever sobre a dança, mas o ritmo ainda é o primeiro, o corporal em sua origem. Pontos e vírgulas assumem características de movimento, frases só existem se marcadas pelo compasso da alma, é a tradução do corpo em fala. E a Bailarina nunca deixa de dançar, apenas em outros movimentos vai se inscrevendo pela vida.
Na Fábrica de Cultura, trabalha com a "percepção do movimento", transcrevendo o corpo para o registro do mental, nomeando ansiedades, angústias e desejos. Que trabalho lindo!
Na companhia de dança, com a proposta da dança clássica contemporânea, Inês nos traz o entrelaçamento vivo entre o passado e o presente, e reafirma que aquilo que consideramos original só pode de fato existir se estiver sedimentado na base da tradição. Impossível não pensar na psicanálise e nas mais variadas plateias que compõem nossa clínica na contemporaneidade. Na época de Freud, era o sujeito que sofria pelo impedimento do livre trânsito da livre expressão dos impulsos e dos desejos. O recalcamento era sua melhor tradução. O sujeito da atualidade se traduz pela desregulamentação, onde a tradição e a ordem são sacrificadas em busca do prazer absoluto. É o sujeito do desamparo, da incerteza, da desconfiança no outro. A clínica psicanalítica também inova em seu saber em movimentos clássicos e contemporâneos. Nossa técnica vai além das interpretações. Se nos primórdios da psicanálise o foco era a interpretação da história pessoal do indivíduo e de seus sonhos, e a transferência localizada como rememorações do passado atualizadas no presente, hoje, enquanto analistas, somos também chamados a dançar outras coreografias, a criar histórias para serem sonhadas e o fenômeno da transferência é espaço potencial, matéria prima original produzida no setting como campo fértil para a instalação de novas configurações mentais. Certamente quando faltam as falas é para o corpo que retornamos, buscando em seus esconderijos registros de um espaço e de um tempo onde as palavras eram ainda apenas uma possibilidade.
Nosso palco é o setting, a plateia se resume a dois espectadores, analista e paciente. As coreografias são inúmeras, só que na maioria das vezes não há ensaio prévio. Dançamos um pas-de-deux, com um corpo de baile enorme composto pelos objetos internos do nosso par e os nossos próprios. A trilha sonora numa sala de análise é marcada por várias cadências e tons, inclusive o silêncio. O cenário é composto por luz e sombra, manifesto e latente. E o corpo está lá, vivo, respirando, pulsando sua dança interior.
Dança e psicanálise convergem em vários aspectos. Experimente apreender Freud ouvindo o Bolero de Ravel, Klein assistindo a ópera Carmen de Bizet, ou Winnicott ao som do Quebra Nozes de Tchaikovsky. E se aquilo que é escrito também possui um ritmo, encerro esses breves comentários com algumas falas a serem "dançadas" em três tempos.
Primeiro é o tempo do ensaio.
Um corpo desajuntado, uma coisa pra cada lado.
Um choro de espalhamento, intenso, desmensurado.
E o grito encontra o braço, que o estreita num abraço, e cria o primeiro compasso.
E nessa dança primeira, se faz tempo e espaço.
E o corpo, pouco a pouco vai juntando seus pedaços.
No segundo momento do tempo.
Ainda não há palavras, mas já existe o entrelaço.
Que sustenta a sensação, para que a emoção ensaie o próximo passo.
Marcado o terceiro tempo, do encontro do corpo com o sentimento.
Instala-se o primeiro ato onde o contato realizou o fato.
Abrem-se as cortinas, o palco se revela em cena, a dança vai começar!
Num contínuo bailar, coreografado pelo contato, ao som do eterno continuar.
Referências
Freud, S. (1974). Estudos sobre histeria. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Jayme Salomão, trad., Vol. 2). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1893[1895]) [ Links ]
Klein, M. (1991). Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). In M. Klein, Obras completas de Melanie Klein. (Vol. 3). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1957) [ Links ]
McDougall, J. (2002). Um corpo para dois. In J. McDougall, Corpo e História: IVEncontro Psicanalítico D’Aix-En-Provence - 1985. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971) [ Links ]
Winnicott, D. W. (1990). A integração do ego no desenvolvimento da criança. In D. W. Winnicott, O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1963) [ Links ]
Correspondência:
Joelma Dibo Victoriano
[Sociedade Psicanalítica de Mato Grosso do Sul SPMS]
Rua Cel. Cacildo Arantes Filho, 80
79040-452 Campo Grande, MS
Tel: 67 3326-1596
joelmadibo@terra.com.br
Recebido em 14.11.2011
Aceito em 6.12.2011