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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.45 no.4 São Paulo out./dez. 2011
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Arte e ciência na UTI neonatal: avaliação e tratamento da dor
Art and science in the neonatal ICU: Evaluation and treatment of pain
Arte y ciencia en la UTI neonatal: evaluación y tratamiento del dolor
Ruth Guinsburg
Professora titular da Disciplina de Pediatria Neonatal da Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de São Paulo; Editora da Revista Paulista de Pediatria, Coordenadora do Programa de Reanimação Neonatal da Sociedade Brasileira de Pediatria; Presidente do Conselho Editorial da Editora Fap-Unifesp
RESUMO
Calcula-se que cada recém-nascido internado em UTI receba cerca de 50 a 150 procedimentos potencialmente dolorosos ao dia. Os estímulos dolorosos se manifestam em múltiplos órgãos e sistemas e ocasionam aumento da morbidade e mortalidade neonatal, além de, provavelmente, transformarem a natureza da experiência da dor e a sua expressão mais tarde na infância e na vida adulta. Apesar disso, o emprego de medidas para o alívio da dor frente aos procedimentos potencialmente dolorosos aplicados a recém-nascidos ainda é raro. A falta de tratamento da dor parece dever-se primordialmente às dificuldades para o seu diagnóstico em um paciente que ainda não pode verbalizá-la. No entanto, o neonato apresenta um modo característico e específico de responder à dor e o reconhecimento dessa "linguagem" por parte do adulto que cuida do recém-nascido é fundamental para a avaliação adequada do fenômeno nociceptivo e para o emprego de um tratamento efetivo.
Palavras-chave: recém-nascido; dor; unidade de terapia intensiva neonatal.
ABSTRACT
Several studies show that newborn infants admitted to intensive care units receive 50-150 potentially painful procedures each day. Painful impulses occur in multiple organs and systems, leading to increased rates of neonatal morbidity and mortality, and are likely to transform the nature of pain experience and expression later on, during infancy and adulthood. Despite these facts, procedural pain relief during neonatal care is still rare. The lack of adequate neonatal pain treatment seems to be largely associated to difficulties in diagnosing pain in patients who are yet unable to verbalize it. However, neonates have a characteristic and specific way of responding to painful stimuli, and the ability of adult caretakers to recognize this “language” is essential for an adequate evaluation of the nociceptive phenomenon and the application of an effective treatment for it.
Keywords: newborn infant; pain; neonatal intensive care unit.
Se calcula que cada recién nacido internado en la UTI recibe cerca de 50 a 150 procedimientos dolorosos por día. Los estímulos dolorosos se manifiestan en múltiples órganos y sistemas y causan un aumento de la morbilidad y mortalidad neonatal, además de, probablemente, transformar la naturaleza de la experiencia del dolor y su expresión más tarde en la infancia y la vida adulta. A pesar de eso, el empleo de medidas para el alivio del dolor ante los procedimientos potencialmente dolorosos aplicados a recién nacidos aún es raro. La falta de tratamiento del dolor parece deberse primordialmente a las dificultades para su diagnóstico en un paciente que aún no puede verbalizarlo. Sin embargo, el neonato presenta un modo característico y específico de responder al dolor y el reconocimiento de este “lenguaje” por parte del adulto que cuida del recién nacido es fundamental para la evaluación adecuada del fenómeno nociceptivo y para el empleo de un tratamiento efectivo.
Palabras clave: recién nacido; dolor; unidad de terapia intensiva neonatal.
Escrever para psicanalistas a respeito de cuidar de recém-nascidos criticamente doentes e, especificamente, tentar minimizar a sua dor é paradoxal. Por um lado, como médica e leiga nas questões mais profundas relacionadas à psicanálise, entendo ser esta última uma arte que usa basicamente a palavra para recuperar, rever e reorganizar emoções e, a partir daí, gerar ações por parte do sujeito/paciente. No atendimento neonatal, o que mais falta por parte do paciente, sujeito e objeto de nossos cuidados, são as palavras. Por outro lado, a psicanálise faz uso das palavras em sentidos diversos, organizando-as de diferentes maneiras antes não cogitadas pelo sujeito/paciente, em um esforço de interpretação e ressignificação. No cuidado ao recém-nascido tudo é interpretação, uma vez que necessariamente o cuidador adulto, seja ele um familiar ou um profissional de saúde, interpreta a linguagem corporal e facial daquele bebê a partir de seus próprios referenciais, provenientes da sua experiência de vida, e os ressignifica em um diagnóstico de situação, desencadeando uma ação. Assim, o cuidado à saúde do recém-nascido apresenta ampla divergência e ampla convergência com as técnicas relacionadas ao atendimento psicanalítico.
Nesse contexto, vale a pena traçar um rápido painel sobre o ambiente de uma unidade de terapia intensiva neonatal. O nascimento é fundamentalmente a celebração da vida e a UTI neonatal é o local em que se encontram os bebês e as famílias em que tal celebração não pode ocorrer em sua plenitude. Grande parte das vezes, trata-se de um local onde paciente, familiares e profissionais da saúde, cada um a seu modo, lutam para evitar a morte quando a vida mal começou. Outras vezes, trata-se de um local onde, de fato, uma vida está começando, mas está longe de tudo aquilo que familiares esperariam para seus filhos e bem perto de seus pesadelos, com profissionais de saúde transitando entre dores emocionais e sonhos perdidos das famílias, além das dores físicas dos pequenos pacientes. Bebês que nasceram muito antes da hora, bebês perfeitos por fora e com malformações internas graves, bebês com malformações aparentes, bebês com problemas relacionados às dificuldades de transição do ambiente intrauterino para o extrauterino, bebês com infecções e tantos outros são os pacientes que povoam, junto com suas famílias, as unidades de terapia intensiva neonatal, na qual profissionais de saúde, entre os quais, médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, nutricionistas e psicólogos, entre outros, transitam na tentativa não de adiar a morte, mas de ajudar a manter uma vida que possa ser plena. Ou seja, a UTI neonatal é um ambiente onde a esperança se mistura ao luto e à luta. A fragilidade do paciente, só um bebê, faz com que cada "ator" adulto em cena seja simultaneamente seu "salvador" e seu "algoz". Os pais "deram a luz" a um bebê que sofre e que luta, mas são o refúgio, o conforto e a esperança de vida de cada paciente. Os profissionais, ao lutarem pela vida e saúde de seus pacientes, inevitavelmente infligem sofrimento e dor. O bebê, que não tem autonomia para exprimir os seus desejos, se torna, em vez de sujeito, objeto da atuação de todos os adultos envolvidos em seu cuidado. Todo esse "oceano" de emoções que, ora divergem, ora convergem, tal qual o fluxo e refluxo das marés, acontece em um ambiente circunscrito, em geral climatizado de forma artificial, cheio de luzes durante o dia e a noite, sons e números que emanam de monitores que piscam e alarmam para olhos e ouvidos. Os respiradores entram pela traqueia ou narizes dos bebês, líquidos penetram nas veias, agulhas, escalpes e cateteres se grudam ao corpo dos pacientes e o sangue é retirado para exames ou, eventualmente, infundido. É nesse ambiente em que os bebês trilham o percurso de sua iniciação à vida, ora andando dois passos à frente e um para trás, ora andando um passo à frente e dois para trás.
Nesse contexto, radicalizar a experiência de terapia intensiva dos recém-nascidos transformando-os em pacientes submetidos às torturas exercidas por profissionais de saúde, é negligenciar a amplidão das experiências e emoções, sempre envoltas por evidência científica, da luta "pela vida" de todo um grupo de profissionais, dos bebês e de suas famílias. A avaliação e o tratamento da dor do recém-nascido criticamente doente se inserem em uma filosofia de trabalho em equipe dos profissionais e familiares para fornecer conforto, qualidade de vida e diminuir o sofrimento, de forma simultaneamente segura e eficaz para os pacientes, sem estereotipar "o pobre recém-nascido", vítima das unidades de terapia intensiva "frias" e "desumanas" e, ao mesmo tempo, sem transformá-los em "super-heróis" que "nada sentem", pois a fé e a confiança daqueles que os cercam são mais poderosas do que a própria ciência médica. Nessa corda bamba, profissionais de saúde e familiares, tendo como sujeito e objeto do seu olhar aquele bebê, se equilibram em um fio tênue para traduzir o intraduzível - o que aquela criança está sentindo?
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O evento doloroso é frequente em neonatos que necessitam de cuidados intensivos. Calcula-se que cada recém-nascido internado em UTI receba cerca de 50 a 150 procedimentos potencialmente dolorosos ao dia e que pacientes abaixo de 1000 gramas sofram cerca de 500 ou mais intervenções dolorosas, ao longo de sua internação (Barker & Rutter, 1995b). Simons et al. (2003) observaram 151 neonatos nos primeiros 14 dias de internação na UTI e cada um foi submetido, em média, a 14 procedimentos dolorosos por dia. Prestes et al. (2005) analisaram quatro unidades neonatais universitárias paulistas e verificaram a realização de um número médio de 3 a 5 procedimentos potencialmente dolorosos por dia.
Carbajal et al. (2008) avaliaram 430 recém-nascidos admitidos em unidades terciárias na região de Paris nos primeiros 14 dias de vida, em 2005 e 2006. Cada recém-nascido sofreu, em média, 10 procedimentos dolorosos por dia. Já Cignacco et al. (2009) estudaram 120 recém-nascidos em ventilação mecânica durante os primeiros 14 dias de vida em duas unidades de terapia intensiva suíças entre 2004 e 2006 e encontraram 23 procedimentos dolorosos por dia por paciente.
Os estímulos dolorosos em recém-nascidos se manifestam em múltiplos órgãos e sistemas, incluindo o cardiovascular, com aumento da frequência cardíaca, pressão arterial e variação de pressão intracraniana; o respiratório, com elevação do consumo de oxigênio e alteração na relação ventilação/perfusão; além de repercussões como diminuição da motilidade gástrica, retenção de hormônio antidiurético e hipercoagulabilidade, entre outras. Ainda, estudos sobre as alterações hormonais em bebês submetidos à cirurgia sem anestesia adequada demonstram haver grande liberação de adrenalina, corticosteroides, glucagon, hormônio de crescimento e supressão da produção de insulina, durante e após o procedimento. Tais alterações, observadas em resposta a estímulos dolorosos agudos, ocasionam aumento da morbidade e mortalidade neonatal (Anand, 1986a e 1986b).
As respostas comportamentais à dor também vêm sendo evidenciadas, destacando-se o choro, a movimentação da face, a atividade motora e o estado do sono e vigília. Os recém-nascidos apresentam um choro característico de dor, que pode ser reconhecido por observadores treinados e por análise de suas propriedades espectrográficas. Quanto à atividade motora, os estudos clínicos têm demonstrado que o neonato a termo e pré-termo responde a procedimentos dolorosos com a flexão e adução de membros superiores e inferiores e arqueamento do tronco e do pescoço, associados a caretas, choro ou ambos. A resposta facial em resposta à dor inclui a presença de fronte proeminente, estreitamento das pálpebras, aprofundamento do sulco nasolabial, além de movimentações específicas na região da boca. A análise da movimentação facial pode ser empregada como instrumento específico e sensível para avaliar a dor em recém-nascidos prematuros e a termo. Quanto ao estado do sono e vigília, a duração aumentada do sono não-REM e a indisponibilidade visual e auditiva para o contato com a mãe, apresentadas pelo neonato após sofrer um estímulo doloroso, têm sido interpretadas como um mecanismo de fuga do meio ambiente agressor (Johnston & Stevens, 1986; Stevens & Franck, 1986).
Os efeitos cumulativos das agressões fisiológicas e comportamentais causadas por punções venosas, aspiração traqueal, punções capilares, procedimentos de enfermagem e ventilação mecânica podem determinar ainda o aparecimento ou o agravamento de lesões neurológicas, tais como hemorragias intraventriculares e leucomalácia periventricular. No entanto, a associação entre dor e lesões neurológicas não parece uma simples relação causa e efeito, mas é provavelmente permeada por inúmeros fatores que favorecem o aparecimento de lesões do sistema nervoso em resposta à dor e, também, em resposta ao seu tratamento, destacando-se a estabilidade ou instabilidade hemodinâmica no momento em que são realizados o estímulo doloroso ou em que é iniciada a infusão de analgésicos (Hall et al., 1986).
Finalmente, vale ressaltar os achados sugestivos de que a exposição repetida a estímulos dolorosos no período neonatal transforme a natureza da experiência da dor e a sua expressão mais tarde na infância e, talvez, na vida adulta (Anand et al., 1999 e Peters et al., 2005). A dor prolongada, persistente ou repetitiva induziria a mudanças fisiológicas e hormonais, que, por sua vez, modificariam os mecanismos moleculares neurobiológicos operantes nesses pacientes e desencadeariam uma reprogramação do desenvolvimento do sistema nervoso central. Em modelos animais, as mensagens de dor podem ficar armazenadas por um longo período, sob a forma de mudanças moleculares, em qualquer nível do sistema nervoso central. É possível que muitas dessas mudanças moleculares sejam geradas pelo efeito cumulativo do estresse e da dor durante um período de rápido desenvolvimento neurológico.
Não está claro o quanto a dor que incide no período neonatal interfere no desenvolvimento do cérebro em crescimento de recém-nascidos. O sistema nervoso central não está completamente organizado ao nascimento, em especial nos prematuros extremos e alterações no desenvolvimento cerebral nessa fase da vida podem levar a modificações permanentes (Grunau, 1998). No desenvolvimento cerebral humano, ocorrem processos complexos e distintos que podem ser divididos em etapas, a saber: proliferação neuronal (entre três a quatro meses de gestação), na qual todos os neurônios e células gliais formados da zona ventricular e subventricular se multiplicam. A seguir, há a migração neuronal (entre três a cinco meses), quando milhões de células nervosas se movem de seus locais de origem para o local onde residirão por sua vida. O estágio de organização começa no quinto mês de gestação, dura vários anos após o nascimento e inclui o estabelecimento e a diferenciação dos neurônios: a laminação, com alinhamento, orientação e organização em camadas dos neurônios; a ramificação de dendritos e axônios; a sinaptogênese; a proliferação e a diferenciação da glia. Tais eventos são de particular importância porque estabelecem um circuito elaborado que distingue o cérebro humano do cérebro de outros animais e preparam o ambiente para o evento final do desenvolvimento, a mielinização. Esta última etapa começa no segundo trimestre da gravidez e continua na vida adulta (Volpe, 2008).
A exposição precoce a agentes estressantes, nos quais se inclui a dor, durante o desenvolvimento perinatal e neonatal apresenta consequências a longo prazo quanto à habilidade do organismo lidar com o estresse (Brunson et al., 2001) e quanto à suscetibilidade a doenças na idade adulta, em especial doenças psiquiátricas (Sanchez; Ladd & Plotsky, 2001). Os mecanismos pelos quais o estresse, em fase precoce da vida pós-natal, leva a esses efeitos a longo prazo ainda não são claros, mas evidências científicas indicam mudanças organizacionais persistentes (reprogramação) no sistema nervoso central em resposta ao estresse (Sanchez; Ladd & Plotsky, 2001).
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Apesar do quadro acima descrito, o emprego de medidas para o alívio da dor frente aos procedimentos potencialmente dolorosos aplicados a recém-nascidos ainda é raro. Estima-se que, em apenas 3% desses procedimentos, algum tratamento analgésico ou anestésico específico é indicado e, em 30%, técnicas coadjuvantes para minimizar a dor são aplicadas (Carbajal et al., 2008). Segundo avaliação feita nos Países Baixos europeus com 1375 pacientes-dia internados em UTI nas primeiras duas semanas de vida, 15 a 32% deles receberam alguma dose de analgésico por dia (Simons et al., 2003). Esses dados coincidem com aqueles colhidos em unidades de terapia intensiva paulistas: dos 1025 pacientes-dia internados em UTI, só 23% receberam pelo menos uma dose de analgésico (Prestes et al., 2005). O mesmo quadro é revelado por Carbajal et al. (2008) na França: dos 42. 413 procedimentos analisados, 79% dos pacientes não receberam qualquer intervenção analgésica específica e 34% foram realizados enquanto os pacientes estavam recebendo fármacos para o alívio da dor por outros motivos. Por outro lado, Cignacco et al. (2009), analisando duas unidades suíças, observam que 99% dos pacientes receberam analgesia farmacológica ou não farmacológica, refletindo um avanço em relação aos dados da literatura.
De acordo com a Associação Internacional para o Estudo da Dor (1979), a dor é definida como "... uma experiência sensorial e emocional desagradável, associada a uma lesão tecidual real, potencial ou descritas nos termos dessa lesão... A dor é sempre subjetiva..." Esta definição denota o caráter verbal do fenômeno doloroso e indica a necessidade de verbalização da experiência nociceptiva para o seu reconhecimento, não se aplicando aos indivíduos incapazes de relato verbal como recém-nascidos, lactentes, pacientes com retardo mental, em coma ou com alterações neurológicas (Anand & Craig, 1996). Para esses indivíduos, a ausência de uma definição apropriada contribui para falhas no reconhecimento e alívio da dor, tendo como consequência o seu subtratamento.
Reconhecer e avaliar a dor no recém-nascido é um grande desafio. A ausência de resposta à dor não indica necessariamente que o neonato não a sente, mas, eventualmente, que o instrumento utilizado para analisá-la não é o mais adequado. A avaliação da dor, para ser precisa, deve detectar a sua presença, estimar o seu possível impacto neurofisiológico e determinar a efetividade das intervenções realizadas por meio da análise da magnitude da dor residual (Stevens & Franck, 1995). Na prática médica, a mensuração cuidadosa é fundamental para estabelecer a presença de um problema, avaliar a sua gravidade e orientar o tratamento. Por exemplo, uma criança com febre tem sua temperatura aferida ou um paciente com diabetes tem sua glicemia medida regularmente. Contudo, a dor é uma exceção. Frequentemente, a dor não é medida ou avaliada, mesmo quando se suspeita que o indivíduo, em especial a criança, está sofrendo (McGrath & Finley, 1996).
A avaliação da dor no período neonatal baseia-se nas respostas do recém-nascido frente ao estímulo nociceptivo, ou seja, o modelo de avaliação da dor no lactente pré-verbal é determinado por modificações de órgãos, sistemas e comportamentos ocorridos após um evento doloroso agudo. O neonato apresenta um modo característico e específico de responder à dor, ele parece possuir uma "linguagem própria" para exprimir a dor. O reconhecimento dessa linguagem por parte do adulto que cuida do recém-nascido é fundamental para a avaliação adequada do fenômeno nociceptivo e para o emprego de um tratamento eficaz. Além disso, uma análise dos fatores modificadores da dor desses pacientes, em adição à avaliação da dimensão sensorial da dor, constitui um pré-requisito essencial para que programas efetivos de manejo da dor na população neonatal sejam elaborados.
Para que um adulto julgue estar indicado o tratamento da dor de um recém-nascido, é necessário que ele reconheça e interprete os sinais emitidos pelo neonato diante do estímulo doloroso. Por meio desses sinais, como a expressão facial, a movimentação corporal, o choro e o estado de consciência, entre outros, se estabelece um processo de comunicação interpessoal. No entanto, a aquisição de conhecimentos a respeito da avaliação da dor no lactente pré-verbal e o treinamento dos profissionais de saúde para o uso clínico rotineiro de tais instrumentos não bastam para uma adequada mensuração da dor no recém-nascido. Qualquer tentativa de avaliar um evento doloroso deve levar em conta que o reconhecimento da dor neonatal é um fenômeno subjetivo e sujeito, portanto, a múltiplos fatores que podem influenciar a sua percepção e avaliação. Ou seja, a inferência de dor no neonato, por parte do observador que o assiste, passa por um processo de análise objetiva do fenômeno doloroso por meio de instrumentos apropriados, mas pode sofrer várias distorções devido à influência de fatores subjetivos relacionados à interação de características do paciente observado e do observador, seja ele, pai ou profissional de saúde (Xavier et al., 2000).
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Na breve exposição técnica de algumas das inúmeras questões relacionadas ao cuidado do recém-nascido doente e, especificamente, à arte/ciência de evitar ou atenuar a dor derivada de sua doença e dos procedimentos necessários para o suporte de vida, sobressai-se a questão da linguagem, em que se nota a enorme dificuldade para converter sinais em signos, sendo tal conversão, pelo menos na relação médico-paciente, unidirecional e nunca dialógica. Aliás, é bastante interessante que, no ambiente da UTI neonatal, a atuação multiprofissional e o envolvimento dos familiares ocorrem por meio de diálogos, "triálogos", "quadriálogos", enfim "multiálogos", no qual o mais interessado, sujeito/objeto/paciente de nossa ação, o bebê, não tem voz. Todos nós falamos em nome dele, mas nenhum de nós sabe, de fato, o que ele está sentindo.
O médico procura empregar a melhor evidência científica disponível para tratar aquele recém-nascido de maneira segura e eficaz. Naquilo que concerne à dor, o seu reconhecimento depende de um olhar profissional treinado e aberto ao problema e o seu tratamento relaciona-se à disponibilidade de terapêuticas efetivas, com mínimos efeitos adversos. As peças desse quebra-cabeça não se encaixam, levando ao subtratamento da dor. Os profissionais de saúde têm recebido treinamento teórico e prático para aplicar instrumentos que buscam perceber a dor dos pacientes que ainda não falam, mas a prática no ambiente da UTI é a pouca valorização desses instrumentos tão subjetivos e sujeitos a vieses. Tal subvalorização deve-se, em parte, à ausência de padrões-ouro para a avaliação da dor em recém-nascidos e, por outro lado, à agitação, correria, excesso de tomadas de decisões importantes com relação a medidas críticas para a sobrevida dos pacientes, que acabam por obscurecer a proporção de sua dor. As opções terapêuticas, com o desenvolvimento de pesquisas na área, mostram-se cada vez mais controversas - medicações usadas há décadas e consideradas seguras para o alívio de dor intensa, como a morfina, parecem apresentar efeitos colaterais substancialmente mais preocupantes do que o que se sabia antes. A pesquisa de novos fármacos e novos métodos analgésicos esbarra em empecilhos de ordem científica (como e o que comparar nos estudos terapêuticos controlados e randomizados?), de ordem ética (como fazer pesquisas controladas expondo bebês a métodos analgésicos talvez menos efetivos? Mas será ético continuarmos a fazer o que já vínhamos fazendo com o falso conforto proporcionado pela ignorância?) e de ordem comercial (qual o interesse da indústria no desenvolvimento de medicamentos para um grupo relativamente pequeno de neonatos criticamente doentes? Não seria mais "interessante" desenvolver novos antidepressivos, por exemplo, para bilhões de adultos?). Ou seja, em se tratando de bebês que estão lutando para sobreviver, identificar a dor, dimensioná-la e dispor de um arsenal terapêutico eficaz, efetivo e eficiente são questões para as quais a perspectiva de solução é muito, muito distante.
Nesse contexto, óbvio que com viés, entendo que trabalhar com recém-nascidos criticamente doentes na amplidão de sua dor e de suas famílias é uma profissão de fé, na qual se busca um equilíbrio entre ciência e arte, entre raciocínio e emoção, com resultados cujas consequências não durarão pelo resto da vida, mas por toda a vida.
Referências
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Correspondência:
Ruth Guinsburg
[Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de São Paulo]
Rua Vicente Felix, 77, ap. 09
01410-020 São Paulo, SP
ruthgbr@netpoint.com.br| ruth.guinsburg@unifesp. br
Recebido em 19.9.2011
Aceito em 17.10.2011