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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.45 no.4 São Paulo out./dez. 2011
INTERCÂMBIO
A realidade psíquica do vínculo1
René Kaës
Psicanalista, professor emérito de psicologia e psicopatologia clínica da Universidade Lumière Lyon 2
RESUMO
A realidade psíquica inconsciente é a hipótese constitutiva da psicanálise: com o método do tratamento analítico, a psicanálise lançou luz sobre a consistência, os processos e as formações no espaço psíquico do sujeito singular. Se estendermos o conceito de realidade psíquica para os vínculos intersubjetivos e transsubjetivos e para as suas configurações, como descrever essa realidade e quais consequências devem ser consideradas em nossa concepção dos objetos e do método da psicanálise? O objetivo deste estudo é qualificar a realidade psíquica do vínculo, particularmente as alianças inconscientes que são sua matéria fundamental. O autor propõe levar em consideração as implicações epistemológicas e clínicas de uma "terceira tópica" centrada nessa dimensão da realidade psíquica.
Palavras-chave: realidade psíquica; teoria psicanalítica do vínculo; alianças inconscientes; terceira tópica; sofrimento e psicopatologia do vínculo
ABSTRACT
The unconscious psychic reality is the constituent hypothesis of psychoanalysis: with the method of analytical treatment, psychoanalysis enlightened the constitution, the processes and the formations, in the psychic space, of the singular subject. If we understand the concept of psychic reality in intersubjective and transubjective attachments and their configurations, then how can we describe this reality? And which consequences should be considered in our conception of the objects and method of psychoanalysis? The aim of this study is to qualify the psychic reality of attachment, especially in terms of the unconscious alliances which compose its elementary matter. The author proposes the consideration of epistemological and clinical implications of a “third topic” centered in this dimension of psychic reality.
Palavras-chave: psychic reality; psychoanalytic theory of attachment; unconscious alliances; third topic; suffering and psychopathology of attachment
RESUMEN
La realidad psíquica inconsciente es la hipótesis constitutiva del psicoanálisis: con el método de tratamiento analítico, el psicoanálisis lanzó luz sobre la consistencia, los procesos y las formaciones en el espacio psíquico del sujeto singular. Si extendemos el concepto de realidad psíquica para los vínculos intersubjetivos y transubjetivos y para sus configuraciones, como describir esa realidad y ¿cuáles consecuencias deben ser consideradas en nuestra concepción de los objetos y del método de psicoanálisis? El objetivo de este estudio es calificar la realidad psíquica del vínculo, particularmente las alianzas inconscientes que son su materia fundamental. El autor propone tomar en consideración las implicaciones epistemológicas y clínicas de un “tercer tópico” centrado en esa dimensión de la realidad psíquica.
Palavras-chave: realidad psíquica; teoría psicoanalítica del vínculo; alianzas inconscientes; tercer tópico; sufrimiento y psicopatología del vínculo
Neste estudo,2 pretendo desenvolver alguns aspectos do conceito de vínculo centrando a reflexão na realidade psíquica do vínculo. Essa abordagem distingue a concepção psicanalítica do vínculo de qualquer outra conceitualização, seja ela psicossociológica, sociológica ou antropológica.
O inconsciente, ou a realidade psíquica inconsciente, é a hipótese constitutiva da psicanálise. Resumo assim essa proposição: a realidade psíquica se define, em primeiro lugar, por sua consistência própria, ou seja, a matéria psíquica inconsciente, irredutível e que se opõe a qualquer outra ordem de realidade. A prevalência conferida aos desejos inconscientes especifica a realidade psíquica:
Quando estamos diante de desejos inconscientes em sua expressão última e mais verdadeira, somos forçados a dizer que a realidade psíquica é uma forma de existência particular que não deve ser confundida com a realidade material. (Freud, 1900, p. 625)
A consistência própria da realidade psíquica é, pois, a das formações, dos processos e das instâncias do inconsciente. Os sonhos, as fantasias inconscientes, as pulsões, os sintomas e as formações homólogas que possuem a estrutura das formações de compromisso, todas as séries conflituosas desejo/defesa, prazer/desprazer, são efeitos da realidade psíquica. Esta se opõe à realidade material ou externa, mas tem de se compor com ela.
Parte da realidade psíquica é compartilhável e compartilhada com outros sujeitos. Freud iniciará essa linha de pensamento com os conceitos de identificação pelo sintoma, de comunidade de fantasia, de apoio das pulsões do Eu sobre o Eu materno, de ideais comuns. Essa perspectiva irá tornar-se mais precisa com a ideia de que a realidade intrapsíquica in-duz, segundo diversas modalidades, formações e processos da realidade psíquica de outro sujeito, de um conjunto de outros: será o caso da teoria do Eu, do Supereu e das identificações na segunda tópica, é o caso quando Freud levanta a hipótese de uma "psique grupal".
Cumpre, contudo, fazer um esclarecimento: não existe teoria explícita de Freud sobre a questão da intersubjetividade e esse conceito não é encontrado em sua obra. É um conceito pós-freudiano que passou pela filosofia, pela linguística e por algumas proposições de Lacan. Podemos, contudo, pensar que os conceitos que mencionei aqui podem contribuir para uma construção moderna dessa problemática. No entanto, foi depois de Freud que as condições intersubjetivas do recalcamento foram levadas em consideração, que a concepção do apoio da pulsão sobre a subjetividade do objeto, que as alianças inconscientes foram elaboradas como processos centrais da intersubjetividade. Creio ter contribuído em muitas oportunidades para introduzir essa problemática, sobretudo em Vappareil psychique grou-pal (1976), em Le groupe et le sujet du groupe (1993), em "L’intersubjectivité: un fondement de la vie psychique. Repères dans la pensée" de Piera Aulagnier (1998). Ver também, mais recentemente, Un singulier pluriel. La psychanalyse à 1’épreuve du groupe (2007).
A consistência da realidade psíquica do vínculo: problemas
O sujeito para o qual os psicanalistas costumam voltar sua atenção e seus cuidados é um sujeito "singular". Eles o tratam e o pensam "um a um", ou, como também se diz, "individualmente". O que lhes interessa é a realidade psíquica inconsciente desse sujeito: a organização de seu mundo interno e seus conflitos, as vicissitudes de sua história ao longo de suas transformações e seus impasses, o processo de sua subjetivação.
Os pacientes bem como seu próprio trabalho de pensamento mostrou aos psicanalistas a estrutura e o funcionamento desse mundo interno. Contudo, para constituir esse saber sobre o inconsciente a partir do saber do inconsciente, conforme a útil distinção de Leclaire (1975), eles tiveram de isolar o espaço da realidade psíquica interna de seu "ambiente" social e intersubjetivo. Mediante esse isolamento dos determinantes extrapsíquicos ou metapsíquicos do mundo interno, o artifício rigoroso do método psicanalítico aplicado ao tratamento individual possibilitou que os efeitos do inconsciente se tornassem cognos-cíveis em si mesmos, e que o tratamento encontrasse a sua ação eficaz sobre eles, enquanto tais.
Não se pode conhecer tudo ao mesmo tempo. Ao recortarem seu objeto teórico e ao empregarem o método apropriado aos fins da psicanálise aplicada ao sujeito singular, os psicanalistas "de divã" deixam à margem da situação analítica um "resto por conhecer", cujos contornos e campos são, contudo, desenhados inicialmente pela via da especulação. Por muito tempo, assim procederam Freud e vários de seus contemporâneos, em obras ditas de "psicanálise aplicada": "Totem e tabu" (1912-1913), "Psicologia das massas e análise do eu" (1921) são prova disso, bem como inúmeros trabalhos de Abraham, Ferenczi ou Reik.
É notável, porém, que, no próprio âmago de suas obras mais centradas nas formações intrapsíquicas, Freud tenha tido a genialidade de indicar uma extensão do campo da realidade psíquica. É frequente eu tomar o exemplo de "Introdução ao narcisismo" (1914), no qual Freud nos apresenta um sujeito simultaneamente em conflito ou em concordância com a "necessidade de ser um fim para si mesmo" e dividido entre essa necessidade e as exigências que lhe impõe o fato de estar ao mesmo tempo sujeitado a uma corrente da qual é um elo.
Desenvolvi essa proposição construindo o conceito de sujeito do grupo e o conceito mais amplo de sujeito do vínculo (Kaës, 1994). Por ser simultaneamente servidor, beneficiário e herdeiro dessa corrente, o sujeito "individual", aquele que se singulariza em cada um de nós, constrói-se, de fato, nos vínculos e nas alianças em que se forma, nos conjuntos de que é parte constituída e parte constituinte: a família, os grupos, as instituições. Esse sujeito, enquanto sujeito do vínculo, é um sujeito "singular plural" e, nesse duplo sentido, ele é sujeito do inconsciente.
A partir do momento em que novas práticas como as terapias psicanalíticas de grupo (ou por meio do grupo), as terapias psicanalíticas da família e do casal, os dispositivos de trabalho sobre as relações entre pais e bebês começaram a ser desenvolvidas e empregadas, foi preciso reconhecer a necessidade de pensar se essas práticas permaneciam ou não no campo da psicanálise. Foi e continua sendo um debate, por vezes uma recusa de encarar o problema. Ainda assim, foi uma questão que demorou a ser formulada em sua dupla con-sequência. Deve-se considerar o vínculo a partir de cada sujeito considerado isoladamente, mas do ponto de vista de que suas relações de objeto e suas identificações são efeitos do vínculo, ou admitir que a realidade psíquica nos vínculos adquire uma consistência específica, que ela dispõe de formações e de processos próprios? E caso optemos pela segunda hipótese, como explicá-la: com que teoria e que metapsicologia? Essa questão epistemoló-gica surge na crise dos objetos da psicanálise, nas suas "fronteiras":3 como se organizam as relações entre o conhecimento do inconsciente e os dispositivos que a ele dão acesso?
Para iniciar esse debate, ainda podemos nos referir hoje à definição da psicanálise dada por Freud em 1923, num tempo em que a prática psicanalítica era exclusivamente a do tratamento individual. Ele escreveu:
A psicanálise é: um método de investigação de fenômenos psíquicos que de outro modo dificilmente seriam acessíveis; um método de tratamento dos distúrbios psíquicos que se baseia nessa investigação; e um modo de considerar a vida psíquica adquirido por esses meios e que progressivamente vai constituindo uma disciplina científica nova. (Freud, 1923)
TRÊS ESPAÇOS PSÍQUICOS
Dediquei boa parte de minhas investigações à descrição e à tentativa de entender e tornar inteligíveis as complexas relações que especificam, distinguem, opõem e articulam três espaços psíquicos: o do sujeito singular, o dos vínculos intersubjetivos e o dos conjuntos complexos, ou melhor, das "configurações vinculares", como os grupos, as famílias e as instituições. Para estabelecer e construir essas investigações, apoiei-me numa tripla prática da psicanálise: a análise individual, o trabalho em situação de grupo e o acompanhamento de equipes terapêuticas em instituições psiquiátricas.
Afirmei que o sujeito se constrói nos processos e nas formações psíquicas comuns a vários sujeitos, particularmente nas alianças inconscientes de que ele é parte constituída e constituinte. O conhecimento adquirido por esses meios forma progressivamente uma teoria psicanalítica do vínculo.
ELEMENTOS DE UMA TEORIA PSICANALÍTICA DO VÍNCULO
Posso agora caracterizar a consistência da realidade psíquica do vínculo e ilustrá-lo por meio de uma de suas dimensões: a das alianças inconscientes. Antes disso, porém, devo situar o quadro mais geral de minhas investigações.
OS TRÊS PILARES DO PSIQUISMO
O postulado básico de minhas investigações é o seguinte (Kaës, 1993, 2007): o psi-quismo humano repousa sobre três pilares principais: a sexualidade infantil, a fala e os vínculos intersubjetivos. Esses três pilares fundadores estão estreitamente inter-relacionados: a longa dependência inicial do recém-nascido, devida à sua prematuração ao nascer, é o seu lugar geométrico, ela inflete a sua sexualidade, seus vínculos e seu acesso à fala e à linguagem.
A fala e a linguagem vêm ao infans (aquele que não fala) marcadas pelo recalca-mento de sua sexualidade infantil e pelas condições intersubjetivas nas quais seu ambiente inicial - a mãe - as fornece, transmitindo-lhe seus próprios conteúdos inconscientes e seu próprio recalcamento: essas condições são concomitantemente subjetivas (a psique materna) e intersubjetivas (o encontro entre a psique materna e a do infans). Correlativamente, o vínculo intersubjetivo inscreve-se na sexualidade e na fala e as marca com seus efeitos. Sexualidade, fala e vínculo concorrem de maneira distinta e fundamental para a formação do inconsciente do sujeito e para a construção de seu eu [Je]. No mesmo movimento, esses três pilares concorrem para a formação da realidade psíquica inconsciente do vínculo intersubjetivo.
UM TECIDO DE VÍNCULOS, TEXTO CUJO SENTIDO CABE A NÓS DECIFRAR
Pelo fato de nascermos prematuros, somos cercados de cuidados físicos e indisso-ciavelmente psíquicos, de línguas, de braços que nos carregam, de pele que nos aquece e se cola à nossa, de cheiros e de imagens, de banhos de palavras e de discursos. Em suma, de todo um tecido de vínculos, que se ligam dentro de nós e com os outros e que formam pelotas e nós que não cessamos de fazer e desfazer a vida toda. Um "texto" sem dúvida, mas um texto de carne, de emoções e de pensamentos, de signos e de sentidos, um palimpsesto cujo sentido geralmente deciframos com dificuldade e vez ou outra com sucesso.
Ficamos necessariamente vinculados por todo tipo de vínculo antes de conseguir nos desligar deles parcialmente, contrair outros, ser suficientemente autônomos e nos assumir como eu [Je]. Não podemos viver sem vínculos, embora certos vínculos, por excesso ou por falta, nos acorrentem ou impeçam de viver, de amar, de conhecer, de brincar.
Aprendemos a distinguir entre vínculo e entrave, entre os vínculos portadores de vida, de amor e de crescimento, e os vínculos portadores de ódio, de destruição e de morte. Todos esses vínculos estão imbricados uns nos outros, tal como a vida e a morte e, o que complica mais ainda as coisas, com os dos outros, que conhecem os mesmos enroscos. Por isso é que, como diz Aragon, "gastamos nossa bela juventude desvencilhando o teu do meu". Alguns de nós podem passar a vida fazendo isso, a menos que desistam. É verdade que somos reticentes quando se trata de pensar em nos confrontar com o que nos vincula dentro de nós mesmos e aos outros, que muitas vezes confundimos esses dois espaços e que preferimos ignorar o que os vínculos vinculam.
Para criar vínculos desde a origem da vida psíquica e, posteriormente, para formar um casal, viver em família, associar-se em grupo, para viver em comunidade com outros seres humanos, os sujeitos se investem eletivamente, se identificam inconscientemente entre si por meio dos objetos e dos traços comuns. Esses processos e as experiências que os caracterizam acompanham nossas primeiras experiências intersubjetivas. São a matéria da realidade psíquica do vínculo. Mas não são os únicos, outras formações específicas constituem a realidade psíquica do vínculo: os contratos básicos e as alianças inconscientes estruturantes e defensivas, os interditos, as referências identificatórias e os ideais comuns, as representações imaginárias e simbólicas compartilhadas.
O VÍNCULO, UMA TENTATIVA DE DEFINIÇÃO
Para esboçar uma primeira delimitação de nosso objeto, proponho partir da seguinte noção: chamei de vínculo a realidade psíquica inconsciente específica construída pelo encontro de dois ou mais sujeitos. Essa definição pelo conteúdo põe a ênfase na realidade psíquica inconsciente, objeto constitutivo da psicanálise. Ela fica mais precisa com uma abordagem em termos de processo: o vínculo é o movimento mais ou menos estável dos investimentos, das representações e das ações que associam dois ou mais sujeitos para a realização de alguns de seus desejos.
Completo minha definição com uma qualificação de seu nível lógico. Distinta daquela que organiza o espaço intrapsíquico do sujeito singular, a lógica do vínculo é a das implicações recíprocas, das inclusões e exclusões mútuas. Essas definições não descrevem os diferentes tipos de vínculos: parentais, filiais, fraternos, intergeracionais, transgeracionais, amorosos, de ódio etc. Não colocam em primeiro plano os critérios oriundos da psicopato-logia dos vínculos, embora a pertinência da descrição dos vínculos em termos de narcisis-mo e objetalidade, ou de organização neurótica, perversa ou psicótica tenha se mostrado útil.
AS EXIGÊNCIAS DE TRABALHO PSÍQUICO PARA CRIAR VÍNCULO
A posição que ocupamos no vínculo nos impõe certo trabalho psíquico. Entendo exigência de trabalho psíquico no sentido que Freud deu a essa noção ao construir a primeira teoria das pulsões: a pulsão impõe à psique um trabalho psíquico em razão de sua relação com o "biológico". Outro trabalho psíquico é exigido pelo encontro com o outro (der Andere), para que as psiques ou partes delas se associem e se juntem, para que elas se experimentem em suas diferenças e se ponham em tensão, para que elas se regulem.
Distingui quatro principais exigências de trabalho psíquico impostas pelo vínculo intersubjetivo ou conjunções de subjetividade. A primeira é a obrigação que o sujeito tem de investir o vínculo e os outros com sua libido narcísica e objetal a fim de receber em troca os investimentos necessários para ser reconhecido como sujeito membro do vínculo. Essa exigência de trabalho se forma com base no modelo do contrato narcisista descrito por Castoriadis-Aulagnier (1975).
A segunda exigência é a colocação em latência, o recalcamento, a renúncia ou abandono de certas formações psíquicas próprias do sujeito. Em 1921, Freud indicou que o Eu deve abandonar parte de suas identificações e de seus ideais pessoais em prol de ideais comuns e em troca dos benefícios esperados do grupo e/ou do líder. Todo vínculo impõe imposições de crença, de representação, de normas perceptivas, de adesão aos ideais e aos sentimentos comuns. Estar na intersubjetividade não implica apenas que certas funções psíquicas sejam inibidas ou reduzidas e que outras sejam eletivamente mobilizadas e amplificadas. A clínica da análise pessoal, a clínica dos grupos e a das famílias faz supor - e, no que me diz respeito, constatar - a ideia de uma exigência de não trabalho psíquico que se manifesta por abandonos de pensamento, apagamentos dos limites do eu ou de partes da realidade psíquica que especificam e diferenciam cada sujeito. É o caso dos grupos sectários e dos grupos ideológicos. Como mostram as análises clínicas dos sujeitos e das famílias que foram pegos nos grupos sectários (Diet, 2007) ou capturados pela ideologia (Kaës, 1980 e 2003; Aubertel, 1990, 2007), os processos de autoalienação são postos a serviço dessas exigências do vínculo.
A terceira exigência está relacionada com a necessidade de pôr em funcionamento operações de recalque, de recusa da realidade ou de rejeição para que as conjunções de subjetividade se formem e os vínculos se mantenham. Essas operações não dizem respeito apenas aos apoios metadefensivos que os membros de um grupo podem encontrar nele, como há muito tempo mostrou Jacques (1955). Dizem respeito a toda configuração vincular que garanta e mantenha os dispositivos metadefensivos necessários para a sua autocon-servação e para a realização de seus fins. Portanto, elas são requisitadas pelo vínculo e pelos interesses pessoais que os sujeitos tenham de adotá-las. É esse o estatuto e a função das alianças inconscientes defensivas. Essas alianças são os processos que produzem o inconsciente atual no vínculo, elas formam seus nós neuróticos e psicóticos e, por esse conjunto de razões, elas são as peças fundamentais da formação da realidade psíquica própria a uma configuração vincular.
A quarta exigência está articulada com os interditos fundamentais em suas relações com o trabalho de civilização (Kulturarbeit) e os processos de simbolização. Freud (1929) insistiu na necessidade da renúncia mútua à realização direta das metas pulsionais para que se estabeleça uma "comunidade de direito", que é garantia de vínculos estáveis e confiáveis. O resultado dessa exigência são as alianças inconscientes estruturantes, em cuja categoria incluímos o contrato narcisista, o pacto entre os Irmãos e com o Pai e o contrato de renúncia mútua. O resultado dessa exigência de trabalho é a formação do sentido, a atividade de simbolização e de interpretação, mas também a capacidade de amar, de brincar, de pensar e de trabalhar.
Essas quatro exigências concorrem para a criação de um espaço psíquico comum e compartilhado. Consideradas do ponto de vista do sujeito a quem são impostas, essas exigências são estruturantes e conflituosas. A conflituosidade central situa-se entre a necessidade de ser um próprio fim para si mesmo e a de ser um sujeito no grupo e para o grupo. Ao realizarem esse trabalho psíquico, os membros de um grupo se atribuem e recebem em troca benefícios e encargos. Estabelece-se um equilíbrio econômico, positivo ou negativo, em relação ao que eles ganham e ao que eles perdem em satisfazer essas exigências.
De certo modo, não nos está dada a escolha de nos furtarmos a essas exigências: temos de nos submeter a elas para entrar num vínculo e para existir como sujeitos. Mas também devemos nos afastar delas, nos desligar delas sempre que essas exigências e que as alianças que as selam passam a estar a serviço de nossa autoalienação e da alienação que impomos aos outros, comumente à revelia de ambas as partes. Creio que é desse ponto de vista que poderíamos definir o campo prático do trabalho psicanalítico em situação de grupo.
AS ALIANÇAS INCONSCIENTES ESTÃO NA BASE DA REALIDADE PSÍQUICA DO VÍNCULO E DO SUJEITO
As alianças inconscientes estão na base da realidade psíquica do vínculo e da realidade psíquica do sujeito (Kaës, 1989, 2007 e 2009). Cumprem várias funções. Indicarei sumariamente as de quadro e de garantia metapsíquicos.
As alianças inconscientes básicas ou primárias estão no princípio de todos os vínculos. Contam-se entre os processos e as formações precoces da socialização. As primeiras alianças são as alianças primárias de sintonia entre a mãe e o bebê, elas são recíprocas e assimétricas, e implicam um meio no qual a mãe e a criança estão incluídas de várias maneiras. Com base nessas alianças, estabelecem-se as alianças de prazer compartilhado e de ilusão criativa e, correlativamente, as alianças de amor e de ódio. Entre as alianças estrutu-rantes primárias, o contrato narcisista (Castoriadis-Aulagnier, 1975) tem a particularidade de vincular o conjunto humano que forma o tecido relacional primário de cada novo sujeito (de cada recém-nascido) ao grupo (em sentido amplo) no qual ele encontra e cria seu lugar. Trata-se, nesse caso, de uma aliança estruturante. Esse contrato narcisista originário é fundador, ele define um contrato de filiação: está a serviço dos investimentos de autocon-servação do grupo e do sujeito desse grupo, e ele reconhece a criança como membro desse grupo exigindo dela que reconheça o grupo como aquilo de onde ela procede e a que deve dar continuidade.
Esses são contratos narcisistas originários. Temos contratos narcisistas secundários quando o sujeito estabelece vínculos extrafamiliares, nos diversos grupos sociais formais ou informais de que participa. São contratos de afiliação, que redistribuem os investimentos do contrato narcisista originário e que entram em conflito com ele, sobretudo na adolescência.
Um segundo conjunto de alianças estruturantes, que chamaremos de secundárias, pois supõe a maioria das precedentes, está formado pelos contratos e pactos fundados na Lei e nos interditos fundamentais: nele encontramos principalmente o pacto fraterno, a aliança com o pai simbolizado e o contrato de renúncia à realização direta das metas pul-sionais destrutivas. Essas alianças estruturantes secundárias dizem respeito, em primeiro lugar, às relações sexuais e às relações entre as gerações.
Essas alianças formam os quadros ou as bases intersubjetivas da subjetividade, são as condições e garantias do espaço psíquico comum e compartilhado em que "o eu [Je] pode advir". Garantem a transmissão da vida psíquica entre gerações.
Com base nisso, pode-se distinguir formas patológicas, perversas ou psicóticas, desses contratos e alianças. Sua falta ou falha é expressão da regressão das formas contratuais do vínculo para relações de força em proveito dos grupos que detêm o poder de definir de maneira arbitrária e violenta as normas sociais e o lugar de cada um, a ordem e os valores dominantes. Conduzem aqueles a elas submetidos a deteriorações sociais e psíquicas radicais.
AS ALIANÇAS INCONSCIENTES: SUA FUNÇÃO DE QUADRO E GARANTIA METAPSÍQUICOS
Propus chamar de metapsíquicas formações e funções que contextualizam a vida psíquica de cada sujeito, que se mantêm no pano de fundo da psique individual. Quero esclarecer que são formações psíquicas em posição meta no tocante a outras formações psíquicas - as que conhecemos como sendo as do sujeito considerado em sua singularidade.
Existe certa reticência em aceitar o conceito de quadro metapsíquico quando pensamos a organização e o funcionamento da psique e a posição do sujeito em termos de psicologia individual: contudo, é isso que, no tratamento analítico, mantemos no pano de fundo do espaço intrapsíquico, ao colocarmos em suspenso o espaço intersubjetivo, ou seja, uma parcela determinante da consistência do vínculo e das alianças inconscientes. No entanto, não podemos abolir essas formações meta, suas formações e seus processos. Resta entender, então, como esse quadro, metapsíquico em relação ao espaço psíquico individual, afeta este último.
De fato, percebemos o interesse que esse conceito tem quando mudamos o dispositivo psicanalítico, pois modificamos também as características do quadro metapsíquico. Quando utilizamos um dispositivo de trabalho psíquico que reúne vários sujeitos - uma família, um casal, um grupo -, os vínculos intersubjetivos e transsubjetivos nos quais a psique individual se forma passam do pano de fundo para o primeiro plano. Fica, então, muito claro que o quadro metapsíquico exerce um efeito organizador ou desestruturador sobre os processos e as formações intrapsíquicas e, mais precisamente, sobre a formação do inconsciente individual. A formação das instâncias do Supereu e dos Ideais e certas funções do Eu repousam na internalização desses quadros metapsíquicos.
Em situação de trabalho psíquico com vários sujeitos, percebemos que as alianças inconscientes conformam a parte central desses quadros e dessas garantias. Outras formações asseguram uma função meta, mas a matéria delas é social, cultural, política ou religiosa.
POR UMA TERCEIRA TÓPICA
A implicação epistemológica
Desde a introdução deste estudo indiquei que a problemática do vínculo e das alianças inconscientes abre uma questão epistemológica central na psicanálise: ela concerne ao campo da realidade psíquica e suas fronteiras, diz respeito às condições intersubjetivas da formação do inconsciente e do sujeito do inconsciente.
As respostas a essa questão têm uma incidência sobre a extensão da prática psica-nalítica, sobre a definição de seus objetos teóricos e, por conseguinte, sobre as construções que ela elabora para dar conta do inconsciente e de seus efeitos na organização da vida psíquica de um sujeito considerado na singularidade de sua estrutura e de sua história.
Fala-se muito hoje de uma terceira tópica; foi um tema importante do 66° Congresso dos Psicanalistas de Língua Romana (2006). O debate girou em torno das relações entre a configuração do mundo interno de um sujeito e as relações que ele manteve com os primeiros outros, os pais, a família. É um ponto de vista centrado no indivíduo e não na consideração da realidade psíquica dos vínculos intersubjetivos. É de se esperar tal ponto de vista, já que a prática de referência é a do tratamento individual. Mas, a partir do momento em que se trabalha com um dispositivo plurissubjetivo, em que o espaço psíquico que se desenvolve é o de uma realidade psíquica específica, comum e compartilhada, essa terceira tópica inclui também esse espaço intersubjetivo entre os sujeitos. O que devemos considerar é a consistência desse espaço entre os sujeitos, e não apenas o efeito do espaço intersubjetivo sobre o espaço interno. É o espaço cujo modelo concebi nas minhas primeiras investigações sob o nome de aparelho psíquico grupal.
A terceira tópica, tal como a expus em Um singular plural, organiza-se em torno de uma articulação entre a realidade psíquica do vínculo e a do sujeito singular (Kaës, 2008). Penso que, dessa maneira, seja possível - tornou-se necessário - dar conta do modo com o sujeito se forma na intersubjetividade como sujeito do inconsciente, e da parte que este toma na formação daquela.
A tarefa de uma terceira "tópica" é descrever e tornar inteligíveis as relações complexas que articulam, distinguem e, sob certos aspectos, opõem o espaço intrapsíquico, o do sujeito singular, e o desses espaços plurais, organizados por processos e formações psíquicos específicos. Essa é a questão epistemológica.
A implicação clínica
Há também o desafio clínico de pensar, na e com a psicanálise, a consistência psíquica dos vínculos intersubjetivos. É um desafio que se inscreve no duplo objetivo perseguido pela psicanálise: o conhecimento da realidade psíquica inconsciente no vínculo e a transformação desta quando o vínculo é fonte de sofrimento patológico. São os dois objetivos principais da psicanálise do vínculo.
A nova clínica que se constituiu a partir dos dispositivos de trabalho psicanalítico com casais, pais e grupos chamou a atenção dos psicanalistas para os sofrimentos e as patologias precoces e atuais do vínculo, para os distúrbios na constituição dos limites internos e externos do aparelho psíquico: distúrbios dos "estados limite", distúrbios ou falta dos envoltórios psíquicos e dos significantes de demarcação, falhas ou falta de constituição dos sistemas de ligação - ou de desligamento, patologia dos processos de transmissão da vida psíquica entre as gerações, deficiência dos processos de transformação. São patologias do narcisismo, do originário e da simbolização primária. Mas são também patologias do vínculo e de suas correlações intersubjetivas e transsubjetivas. A clínica nos ensina que, devido a esses vínculos, uma psicopatologia específica afeta os casais, as famílias, os grupos e as instituições.
A questão do vínculo se introduziu no campo da psicanálise porque a consistência e as formas contemporâneas do vínculo intersubjetivo estão em mutação. A clínica dos vínculos emerge a partir do momento em que as garantias metapsíquicas já não cumprem suas funções de quadro, de pano de fundo: rupturas ou transformações catastróficas ou não transformações ameaçam o junto enquanto espaço dos vínculos que se formaram à revelia de cada sujeito que o constitui. Pode-se, então falar de um sofrimento do junto ou de uma patologia do vínculo. Os sujeitos sofrem por estar juntos ou quando estão juntos. Mantêm relações de um tipo tal que a patologia de um é necessária para a patologia do outro.
Quando levamos em consideração as consequências da falha dos quadros e das garantias metapsíquicos, pode-se avaliar o interesse que tem o trabalho psicanalítico nas configurações vinculares para o tratamento desses sofrimentos psíquicos e dessas psicopa-tologias "praticamente inacessíveis de outro modo". Entendemos melhor que o desregra-mento, as falhas ou faltas desses quadros e garantias metapsíquicos afetam diretamente a estruturação e o desenvolvimento da vida psíquica de cada um. Cheguei à conclusão de que há três grandes tipos de falhas nesse campo.
Um primeiro conjunto concerne às falhas ou faltas dos dispositivos intersubjetivos de para-excitação e de recalcamento na estruturação dos apoios da vida pulsional.
Em vez da formação de objetos internos estáveis, desenvolvem-se formações cliva-das e não subjetivadas, desfavoráveis para os processos de simbolização e de sublimação. Um sofrimento narcísico intenso está na base das condutas antissociais que se desenvolvem nessas condições. Essas falhas afetam as condições da formação do inconsciente e do pré-consciente.
Um segundo conjunto está constituído pelas falhas nos processo de formação das identificações e das alianças intersubjetivas estruturantes de base. Essas alianças consistem nos pactos que instituem os principais interditos (proibição do assassinato do semelhante, do canibalismo e do incesto), no que Freud (1912-1913) descreveu como a comunidade de renúncia à realização direta das metas pulsionais destrutivas e no contrato narcísico.
Um terceiro conjunto concerne às falhas nos processos de transformação e de mediação. O que é mais frágil em toda organização viva são as formações intermediárias e os processos articulares. Na vida psíquica, elas são as condições de possibilidade do trabalho de simbolização e da formação da alteridade, mas também da capacidade de amar, de trabalhar, de brincar e de sonhar. Essas formações e esses processos são os mais ameaçados pelas crises que afetam as garantias metapsíquicas. A principal consequência da falha delas é a colocação fora de circuito do pré-consciente, o esmagamento da capacidade de pensar por destruição das representações verbais. O trabalho do pré-consciente está sempre estreitamente associado à atividade de simbolização e à construção do sentido no vínculo intersubjetivo.
Ao propor uma reflexão sobre a realidade psíquica do vínculo, apenas contribuí para abrir um vasto e complexo campo de trabalho.
Referências
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Correspondência:
René Kaës
[Université Lumière Lyon 2]
Les Vidaux
880B Chemin de la Santé
F-83910 Pourrières
Tel: 00 33 603 294003
renekaes@orange.fr
Recebido em 15.8.2011
Aceito em 20.9.2011
1 Este texto é um remanejamento e um desenvolvimento da conferência introdutória apresentada no colóquio Liens precoces, liens de filiations, Université de Povence, 2007. O texto dessa conferência foi publicado em 2008 com o título "Définitions et approches du concept de lien", Adolescence, 26, 3, 763-780.
2 Trata-se de uma introdução e não de um desenvolvimento: retomo de forma resumida proposições que foram mais elaboradas em outras publicações, embora introduza algumas ideias novas. O leitor poderá consultar os textos de referência mais longamente argumentados.
3 O tema do Congresso da International Psychoanalytical Association, 2004, La Nouvelle-Orléans era: "A psicanálise e suas fronteiras". Nesse Congresso, apresentei um apanhado das consequências da invenção psicanalítica do grupo sobre o campo da teoria e da prática psicanalíticas. Essa apresentação foi desenvolvida em Un singulier pluriel, La psychanalyse à lépreuve du groupe (2007).