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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.1 São Paulo jan./mar. 2012

 

EDITORIAL

 

Ética e psicanálise

 

Ethics and psychoanalysis

 


Ética y psicoanálisis

 

 

Bernardo Tanis

Editor

 

 

"É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo buscar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram mineirinho do que seus crimes." Clarice Lispector (1964, p. 252).

Com estas palavras um tanto desconcertantes Clarice Lispector inicia sua crônica "Mineirinho", uma reflexão aguda sobre a ética, a moral e a justiça a partir da execução de um criminoso. Uma interrogação sobre o desejo assassino, a lei, a transgressão, a violência no outro e em nós; desse modo adentra, com a sofisticação e a crueza inerentes à sua escrita, no território da moral, do frágil tecido que sustenta a ideia de civilização tão esgarçada pela barbárie do nosso cotidiano.

Voltemos a Clarice Lispector:

Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto, desassossegada, no quinto e sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro me assassina - porque eu sou o outro. Porque quero ser o outro. (p. 252)

Esta é a lei. O imperativo moral. Não matarás! Esta a transgressão e esta a justiça do justiceiro. "Esta justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada, por precisar dela.... Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos acordam..." (p. 252).

Para os antigos (os gregos) "a ética, cujo modo era a virtude e cujo fim era a felicidade, realizava-se pelo comportamento virtuoso entendido como ação em conformidade coma natureza do agente (seu ethos) e dos fins buscados por ele" (Chauí, 1992, p. 347.). A virtude ou o comportamento ético é aquele no qual a razão comanda as paixões dando normas e regras à vontade, para que esta possa deliberar corretamente. Com o advento do cristianismo, a ideia do universal é mantida, mas como assinala Hannah Arendt a ideia de liberdade desloca-se do campo político para o interior de cada ser humano. Com essa interiorização instauram-se a moral e a culpa. A ética passa a ser definida em relação a uma vontade transcendental, não mais regulada apenas por uma vontade racional.

Com o advento da modernidade, profundas transformações ocorrem no campo da subjetividade; cabe destacar o que Weber chama de "desencantamento do mundo". O cen-tro ordenador transcendental, seja do cosmos antigo ou da providência, perde força e será substituído pelas ideias de processo civilizatório, cultura e história, que ditarão os padrões para uma nova ética cujo centro passará a ser relativizado e, nesse sentido, mais frágil e precário (Chauí, 1992).

É nesse novo cenário que emerge a descoberta freudiana. A tensão permanente que Freud assinala a partir da formulação da segunda tópica entre as demandas do id e as barreiras impostas pelo supereu; o conflito identificatório no campo do narcisismo e dos ideais inauguram um novo modelo para ampliar a reflexão em torno da possibilidade ética do sujeito moderno. Hoje, mais do que em outros momentos da cultura ocidental, parece haver algo que escapa ao tabu do incesto, ao não matarás, à formação do supereu como instância interiorizada. Há a falha, a fratura, o erro, o abominável. No dizer de Kehl: "Excluído da possibilidade de simbolização, o mal-estar silenciado acaba por se manifestar em atos que devem ser decifrados, de maneira análoga aos sintomas daqueles que buscam a clínica psicanalítica" (2009, p. 25).

Atualmente vivemos aspectos intrusivos de uma cultura na qual as formas de poder aparecem mais difusas, mas nem por isso menos esmagadora (consumo, narcisismos, controle, mecanismo de gozo etc.), e produzem efeitos na construção dos ideais, das identificações. Sabemos que pensar e agir eticamente ultrapassa a esfera do eu para nos lançar ao encontro do outro, mas identificam-se sinais de nova moral para o supereu através da qual a ética como campo de contato com a alteridade parece estar comprometida. Novos desafios nos convocam se nos deixamos atingir pela diferença e alteridade.

Para nós, analistas, o desfio não é pequeno, estamos mergulhados nessa mesma cultura. A sociedade, suas instituições e, consequentemente, a clínica na qual trabalhamos são povoadas de vítimas e justiceiros. Alguns dos grandes pensadores da psicanálise vêm nos alertando, já há algum tempo, sobre os limites da palavra e do simbólico.

O pensamento clínico contemporâneo com a ênfase outorgada ao lugar do outro materno (papel do objeto: Winnicott, Bion, Lacan, Laplanche, Green e outros) na constituição subjetiva coloca a ética do objeto primário no horizonte da reflexão clínica da psicanálise, de onde derivamos também a urgência de uma reflexão em torno da ética na clínica atual dado as importantes transformações1 do lugar do analista.

Desejo, poder e transgressão entrelaçam-se dinamicamente tanto em nossas instituições como na formação de novos analistas, e em nosso trabalho clínico, a partir da transferência e contratransferência, o que requer uma atenção redobrada de nossa parte. Mergulhados no nosso fazer cotidiano, estamos sujeitos às quebras e atos justiceiros que denunciam essas formas de poder e intrusão ainda pouco conhecidas e teorizadas na clínica e na vida institucional do psicanalista.

Os trabalhos temáticos que compõem este número vêm de psicanalistas de diferentes regiões do Brasil, também de outros continentes e outros campos do conhecimento (filosofia, medicina, direito). Trazem perspectivas diversas e nos convocam ao debate e à reflexão, vêm perturbar o nosso sono, nossos lugares de conforto. Compõem um mosaico articulado no qual se evidenciam o que Viviane Sprinz Mondrzak chama de "invariantes em ética psicanalítica", quando mergulha no miolo da experiência psicanalítica convidando a uma reflexão da identidade e função do psicanalista. Ester Sandler mostra-nos com bastante precisão como Freud, Klein e Bion explicitaram a importância de sinalizar de modos diferentes e complementares as vicissitudes da construção do sujeito ético, suas raízes nos processos inconscientes, a importância da intersubjetividade assinalando o lugar que estas questões ocupam no seio da experiência analítica. Ancorada em Money-Kyrle ela indaga a relação entre o singular e o universal, abre o palco para um debate fértil sobre nossa prática, a formação e a vida institucional do psicanalista, assim como os temas mais amplos da nossa vida em comunidade. Edna Vilete, em um trabalho de extrema sensibilidade clínica, aborda o tema da ética, tendo como base a contribuição de Winnicott, quando reflete sobre a transformação do lugar do analista na clínica com pacientes borderline: "Nenhum encargo, porém, é mais pesado ao analista do que sua responsabilidade na falha inevitável que comete durante o processo de uma análise, levando o paciente a reviver a situação de fracasso do ambiente original, causa de suas reações de defesa e das distorções do seu self". Já Leonardo Francischelli nos traz um trabalho de amplo espectro, que, ao transitar pela relação da psicanálise com a cultura contemporânea, aproxima-se gradualmente do exercício clínico da psicanálise atual, concluindo seu texto com um convite a uma indagação ética sobre o destino do lugar da ausência e o modelo da abstinência no contexto dos novos lugares que o analista passa a ocupar no manejo da transferência. Essas questões são também tratadas no trabalho "Ética e moral na psicanálise", de Jose Milmaniene, membro da Associação Psicanalítica Argentina e convidado para integrar este número em reconhecimento a uma vasta obra publicada em livros e artigos. Milmaniene atenta para o exercício da psicanálise em um contexto no qual o ataque à ordem sociossimbólica instaura um campo de "gozos pulsionais indiscriminados e perda do respeito ético pela alteridade".

Prestamos homenagem póstuma neste número à querida Sonia Curvo de Azambuja, analista didata da sbpsp, que recentemente nos deixou. Para aqueles que não tiveram o privilegio de conhecê-la, lembramos que Sonia foi uma psicanalista apaixonada, dona de um pensamento criativo e vigoroso. Defensora de uma psicanálise plural, ela conseguia dialogar com as diferentes concepções vigentes na atualidade sem perder o fio condutor originado no seu profundo conhecimento do edifício freudiano. Trazia para nossa reflexão em seminários e escritos o vasto conhecimento da alma humana que emanava uma prática clínica viva e instigante, do seu enorme conhecimento da filosofia, cinema e literatura. Um espírito livre e incansável, promotora de uma reflexão sobre o exercício ético da psicanálise e da formação de analistas, como testemunha a "Carta a um jovem psicanalista" que aqui publicamos.

Nos ricos debates que animaram a equipe editorial na preparação deste número, tomamos conhecimento que a Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP) tinha organizado um colóquio em 2010, cujo tema foi Uéthique du psychanalyste. Como no pensar do Zeitgeist, o que nos afeta nos constitui. Tomamos a iniciativa de contatar Bernard Chervet, presidente da SPP, e o convidamos para uma entrevista sobre o tema, que foi realizada em Paris por Rogério Coelho de Souza a partir de questões formuladas pela nossa equipe editorial, e que publicamos na seção Intercâmbios. Acreditamos que os leitores brasileiros sentir-se-ão mobilizados e identificados com as inquietantes questões tratadas.

A riqueza dessa reflexão em torno da ética se complementa com os instigantes e sólidos argumentos apresentados nos trabalhos da Interface, nos quais os renomados professores Osvaldo Giacoia Junior, filósofo, Reinaldo Ayer de Oliveira, médico, e Fabio Konder Comparato, jurista, desde seus respectivos campos de conhecimento apontam para a importância crucial de uma transdisciplinaridade2 quando tratamos da complexidade da dimensão ética da nossa existência no mundo atual.

Por último, mas não menos importante, contamos com os trabalhos de Elias Mallet da Rocha Barros e Elizabeth Lima da Rocha Barros, Jair Kijink et col. e Marion Minerbo, cujas atualidades clínicas e rigorosa fundamentação teórica apontam mais uma vez para a já consagrada qualidade do pensamento clínico no Brasil.

Convidamos a todos os nossos leitores a visitarem e transitarem também pelas resenhas e seção de lançamentos que nos mantêm atualizados com a rica produção no nosso campo.

Concluo este editorial com a convicção de que procuramos neste número ser fiéis às palavras de Clarice Lispector presentes na sua crônica "Mineirinho": "Porque quem entende desorganiza".

 

Referências:

Chauí, M. (1992). Público, privado e despotismo. (pp. 345-399). In Ética. Adauto Novaes (Org.). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Kehl, M. R. (2009). O tempo e o cão. (p. 25). São Paulo: Boitempo.         [ Links ]

Lispector, C. (1964) Mineirinho. (p. 252). In A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor.         [ Links ]

 

 

1 Ver Revista Brasileira de Psicanálise, 44(2),2010, cujo título é "Variações e fundamentos".
2 "A transdisciplinaridade não procura a mestria de várias disciplinas, mas a abertura de todas as disciplinas ao que as une e as ultrapassa." Carta da transdisciplinaridade, I Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, Arrábida, Portugal (1994).

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