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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.2 São Paulo abr./jun. 2013

 

DIÁLOGO

 

1Entrevistacom Olgária Chain Féres Matos2

 

 

Percurso

OM3 Iniciei os meus estudos na Universidade de São Paulo no curso de Filosofia e Psicologia, em 1967. Como a psicologia na usp era mais comportamental, e eu já estava interessada em Freud e em uma visão da psicologia ligada a questões da fenomenologia, encontrei o que estava procurando na filosofia. Acabei abandonando o curso de psicologia e fiz a minha graduação, mestrado e doutorado em filosofia. E permaneci nessa área, estudando, em particular, os filósofos alemães da escola de Frankfurt.

 

Questões do contemporâneo

O tempo

RBP O próximo Congresso Brasileiro de Psicanálise terá como tema "Ser contemporâneo: medo e paixão". Você tem escrito sobre a questão do contemporâneo nos últimos anos. Poderia falar de sua perspectiva sobre essa questão?

OM Uma das características definidoras dessa modernidade tardia é a aceleração do tempo. A ideia de participar de um tempo que chegou tarde demais com relação a ele mesmo cria a necessidade de alcançar um tempo perdido, mas sem se saber o que se perdeu. É como se essa aceleração do tempo, promovida também pelas tecnologias, designasse um lugar vazio que vai sem direção e sem objetivo final; é uma aceleração pela aceleração. Isso acaba tendo impacto na subjetividade, pois muito da subjetividade constitui-se a partir da atenção, mesmo que seja distraída, e também de uma imersão nos objetos de contemplação, de reflexão. Essa temporalidade veloz impede que o tempo de exercício da afetividade para a consolidação de laços possa se estabelecer. Eu até diria que a aceleração do tempo é uma das figuras do patológico contemporâneo.

RBP Como você percebe que chegamos a essa aceleração do tempo? Porque a aceleração do tempo, em termos de experiência, é algo bastante intuitivo, mas em termos de história, é mais complexo.

OM Se recuarmos no tempo, a ruptura começa no Renascimento. Podemos considerar sociedades antigas todas aquelas baseadas na contemplação, e modernas aquelas que enfatizam a ação. A Idade Média, nesse sentido, foi uma continuação do mundo antigo, que estabeleceu a ideia do tempo livre para o ideal do conhecimento, autoconhecimento, reflexão, a busca da justa medida, do bem viver e do sumo bem. A Idade Média continuou a tradição grega da ênfase no tempo livre pela disponibilização do eu para o aperfeiçoamento e para a santidade. A partir do Renascimento, com a Reforma Protestante, abandona-se o ideal de contemplação pelo ideal de vida ativa, que completa a ideia de realização da plenitude do seu ser neste mundo, e não no além.

Ou seja, do mundo clássico grego até a Idade Média, temos a ideia da perfeição como algo finito, acabado, terminado, completo. Por isso o círculo, sem começo nem fim, é a ideia do perfeito - porque é inteiramente realizado. A partir do Renascimento, com o advento do universo infinito, não se tem mais a ideia da ordem cósmica, dos lugares privilegiados onde cada existente realiza a finalidade que lhe é própria, sua excelência e virtude. Advém um espaço infinito sem o centro. Perde-se a justa medida da tradição grega, dando lugar à medida sem medida que começa na ciência moderna.

Essa transformação científica obviamente tem impactos existenciais. Com o infinito, a sociedade vai encontrar na ciência o ponto fixo que ela não mais encontra no além ou na teoria, posto que a ênfase não é mais no saber especulativo, mas na prática do homem no mundo. E começa a ser abandonada a ideia do aperfeiçoamento de si.

A partir da Revolução Industrial isso se acelera. O taylorismo se estabelece na produção e nos usos do tempo, o "tempo é dinheiro", não se pode perder tempo, a ideia da salvação da alma pelo trabalho. São questões da ética protestante. Em um primeiro momento, o ideal do capitalismo protestante foi a parcimônia: o trabalhador economiza e só compra o que pode com o tanto que economizou. A segunda fase do protestantismo foi a do trabalho como índice da graça: se enriquecemos, é porque Deus nos escolheu. Esse Deus que a alguns se manifesta e a outros se esconde, e a arbitrariedade total da providência divina, que escolhe uns para a salvação e outros não, faziam com que cada um tentasse trabalhar o máximo possível para acumular bens, o que significava ter sido escolhido por Deus. Daí o trabalho dignificando o homem. A terceira fase do capitalismo protestante é o capitalismo sem espírito. É o que nós estamos vivendo: a ideia do dinheiro e do bem-estar material se sobrepõe a qualquer outro valor.

 

Educação e crise da imaginação

RBP Vivemos na indústria cultural, na aceleração do consumo trazendo o empobrecimento cultural e individual. Temos um afã pelo consumo da novidade, mas não temos espaço para a experiência do novo. Não há lugar para a imaginação. Nos consultórios, têm chegado pessoas que vêm buscar análise como um projeto adaptativo, à procura de uma linearidade sem espaço para uma experiência que traga algo disruptivo e, portanto, criativo. É como se precisássemos criar essa possibilidade na pessoa, se ela se dispuser a isso. Você escreveu sobre a questão da educação para a adaptação e da crise da imaginação, ligada à perda da experiência no contemporâneo. Poderia falar sobre isso?

OM Essa, talvez, é uma das questões mais sensíveis do contemporâneo. A educação perdeu a sua razão de ser - em particular, com o impacto das novas tecnologias e a publicidade na educação. Tudo o que vale para a comunicação rápida, para a autoevidência imediata de uma mensagem, acabou entrando na educação. Temos a aceleração do tempo, mas há coisas que não adianta querer acelerar porque elas têm o seu tempo próprio; não adianta querer apressar a cura de uma doença. Não obstante, tudo o que acontece hoje na educação vem da imediatez, da pressa. Todas as decisões são tomadas sem tempo hábil de refletir sobre elas. Mal surge o tablet, ninguém sabe o impacto disso na educação, e ele já é adotado nas escolas. Computador, a mesma coisa. Inclusive as decisões políticas - decisões que exigiriam anos de reflexão - são tomadas de um dia para outro.

A partir dos anos de 1960, no caso do Brasil, temos a ideia de que o fracasso escolar ocorre porque a escola não está adaptada às condições do aluno. Então, houve uma perversão da ideia de que a educação retira o estudante da sua origem social, econômica e religiosa, e eleva a valores ditos universais, sobre os quais há um consenso em um determinado período e em uma determinada sociedade. A ideia da educação era mostrar que o mundo é maior do que nossa pequena origem local. Como houve essa inversão, que leva à adaptação da escola às condições sociais, abalou-se a função da educação; ela se torna adaptativa e sem possibilidades de mudar o imaginário e ampliar as suas experiências vitais.

Além disso, o professor era a autoridade, ele tinha o saber autorizado, legitimado pela tradição e garantido por suas competências. A partir do momento em que o professor é entendido como um mediador entre as tecnologias e a criança, já se tirou a autoridade e estabeleceu-se, sem interrogá-la, uma igualdade entre professor e estudante, entre pais e filhos, jovens e velhos. A adaptação da escola à infância infantiliza a instituição, mas também cria uma indiferenciação, que Nietzsche chamou de niilismo. A partir do momento em que se tem uma espécie de anomia ou de anarquia, em que a autoridade não tem autoridade, em que ao estudante é suposto um saber que ele não tem, há uma relação assimétrica entre professor e aluno que não está mais sendo respeitada.

Depois, há uma burocracia escolar que impõe maneiras de agir aos professores, o que obviamente não funciona, uma vez que eles não se reconhecem nem nesses métodos nem nessa forma de ensinar. Por outro lado, os estudantes não absorvem o conhecimento dessa maneira e também questionam os próprios conhecimentos. Então, vivemos um momento em que a perda da ideia de tradição produziu uma desconexão nos saberes, e os professores não sabem o que estão ensinando. A educação perde a sua função tanto de ordenadora do mundo mental quanto do amadurecimento progressivo dos conhecimentos transmitidos.

Além disso, a profissão de professor passou a ser a de um trabalhador como qualquer outro, o que acaba com a ideia de educação, porque ser professor não é uma profissão, é vocação. E se não é mais vocação, qualquer um pode exercer essa profissão; e como de fato não é qualquer um que pode exercê-la, faliu a educação. Vocação não depende de uma formação em pedagogia, licenciatura; aprende-se a ser professor sendo aluno - é assim que se aprende a ensinar. E cada um tem que criar as suas próprias maneiras de se comunicar com os estudantes e transmitir o conhecimento. A partir do momento em que se supõe haver uma técnica para ensinar, o ensino não funciona mais; a questão não é de técnica, mas de compreender intuitivamente, ou pela experiência, como se comunicar com um conjunto de estudantes. É aí que tem que se usar a imaginação criadora para poder transmitir os conhecimentos e se fazer compreender por aquele que lhe ouve, ou seja, se fazer ouvir.

A crise da educação tem a ver, também, com a perda da ideia do que é educar. Em francês a palavra "professor" é instituteur. Instituir significa educar, porque a educação eleva a criança; por isso estudante em francês se diz élève. A ideia era que, pela educação, se aprimorassem os costumes e se abrandasse a convivência social. Portanto, a pergunta não era "Que métodos eu vou usar? Que conteúdos eu vou transmitir?", mas "Que tipo de indivíduo eu quero formar com a educação?". A resposta, até o Iluminismo, é: "Nós queremos formar um indivíduo que viva em paz consigo mesmo e busque a harmonia na cidade".

Então, a instituição da escola pública era a possibilidade desse universalismo em que, independentemente de classe social, religião, raça e outros particularismos, todos tinham igual direito à educação, e acesso à educação como bem coletivo partilhado na alternância das gerações. Tudo isso tinha que ser feito a partir de uma ideia de tradição que era renovada a cada recepção. Cada período recepcionava um saber acumulado do passado, ou seja, experiências de resolução de conflitos que eram transmitidas e chegavam à escola na forma dos seus saberes: literatura, história, geografia, as ciências. A partir do momento em que as disciplinas formadoras, humanistas, foram preteridas pelas que são mais técnicas e que não necessitam de experiência para serem compreendidas, como a geometria, a matemática, o cálculo, temos a proscrição dos saberes que são capazes de abrandar os costumes e criar a contenção dos impulsos. Os gregos diziam que a disciplina era fundamental, porque o valor mais importante para eles era a liberdade. Se uma criança é impulsiva, ela não é livre, ela é arrastada pelos seus impulsos. A partir do momento em que todos se adaptam à criança, em que tudo tem que ser divertido, se faz entretenimento. E a partir do momento em que o mundo do entretenimento invadiu a educação, acabou a própria ideia de educação, assim como a de formação.

RBP Você tem um livro que se chama Discretas esperanças. Quais seriam as suas discretas esperanças?

OM As minhas discretas esperanças podem ser uma espécie de perversão profissional. Para mim, a única esperança é a educação. Não só a educação formal, mas uma orientação segundo valores que são considerados dignos de reputação e fama, de perdurar ao longo das gerações, e que são transmitidos pela grande literatura e pela grande arte.

Agora, considera-se tudo literatura. No Brasil, os Parâmetros Curriculares Nacionais substituíram literatura brasileira e literatura portuguesa por expressão escrita. A partir do momento em que não se tem mais o discernimento da literatura como capaz de reconstituir e elaborar a complexidade dos afetos humanos, de modo a explicar para você que os vive o que está acontecendo com você, e que qualquer coisa escrita é considerada literatura, então, a educação não vai funcionar.

Quando a educação ainda era humanista no sentido da formação do caráter compassivo, os livros de história, de português continham perguntas que eram, elas mesmas, como "máximas morais". Eu lembro que, quando aprendi análise sintática, foi com a seguinte oração: "Tu, que és jovem e ris, e não sabes da mágoa da vida, tem cuidado!". Então, o que é que você aprendia? "Tu tem cuidado" é a oração principal. Mas também se aprendia quem era um grande escritor chamado Camilo Castelo Branco, que tinha escrito Amor de perdição e Amor de salvação, e aprendia-se que viver não é fácil. Hoje se dá qualquer exemplo, da própria cabeça ou, então, os que estão no livro de português: tem que ser do cotidiano da criança - propaganda de Ajax e de Omo. Temos uma brutalização da sensibilidade, uma impossibilidade de aprender, de discernir entre o formal e o informal. As pessoas que cuidam de crianças têm que ter uma boa formação de caráter: compreender o outro, ter a paciência da escuta. Há tantos crimes, hoje, de pais contra crianças porque ninguém mais sabe ser pai e mãe, ninguém mais tem paciência com criança; a criança não tem limites e os pais também não têm. E não adianta ficar punindo, porque as pessoas não têm mais condições de desempenhar essa função.

Para cuidar de uma criança precisa-se ter paciência, tempo, contenção. São qualidades que vêm da possibilidade de viver a frustração, de adiar o prazer, que começam na primeira infância, nos cinco primeiros anos, que não são responsabilidade da escola nem dos poderes públicos - são responsabilidade de quem cuida; é isso que forma o eu. Então, as discretas esperanças têm a ver com reaver os valores que perdemos, aquele fio que se desfez. E reaver a grande literatura: ler e ouvir os clássicos, como formação.

RBP Em psicanálise, temos alguma vocação para a educação e uma vocação terapêutica. Oferecemos a possibilidade de pensar, o que dá contenção aos impulsos e a possibilidade de criação de certa organização nova diante das experiências, para dar sentido a elas. Também somos confrontados com o desespero ou a dor de quem nos procura. Lembro que, quando estudamos O discurso do método, uma das coisas nas quais você insistia era que nós deixássemos que o texto nos causasse algum tipo de impacto que promovesse um esforço de poder pensá-lo; que, mais importante do que compreender Descartes, é desenvolver a capacidade de refletir sobre o que se lê, ter espírito crítico. Uma postura simultaneamente educativa e filosófica, mas em certo sentido uma posição terapêutica. É possível pensar, hoje, no resgate do universal, seja pela educação ou por postura terapêutica, com alguma esperança, discreta que seja?

OM Na verdade, não é agora que nós chegamos à barbárie - a barbárie sempre nos acompanhou. O homem sempre tirou prazer da crueldade. Nietzsche já estudou isso; Freud também. Nietzsche diz: "Existe prazer em ver sofrer, e mais prazer ainda em fazer sofrer". Vamos encarar essa coisa horrível que nós somos! Todos os sacrifícios de sangue, sacrifícios humanos e animais, eram para o prazer das tribos. Depois, os costumes vão se abrandando, transforma-se o sangue no vinho do Cristo. A humanidade é dissociada: faz um holocausto com os animais, mas com animal pode e com o homem não pode. A barbárie sempre está dentro da civilização. Adorno tem vários ensaios sobre os campos de concentração nos quais diz que o homem só fez com o homem o que já faz com o animal. O animal sente, e então a questão é básica: se há empatia ou não. Vive-se em uma sociedade onde não se tem empatia. Logo, os textos são terapêuticos? A palavra é terapêutica? Sim! Em um dos diálogos de Platão, Sócrates diz assim: "A palavra é para a alma o que o remédio é para o corpo". A palavra é uma medicina da alma. E a filosofia nasce como terapia, todos os saberes nascem como terapia - com a questão "Como eu cuido daquela dor?".

Para se poder fazer a crítica de um texto, primeiro é preciso entender o que o autor escreveu, por que ele o fez, quais os destinatários do texto que ele escreveu, as intenções subjacentes que ele teve. Senão, não se pode opinar. Uma leitura é um exercício de frustração. Se vai se ler um filósofo da Idade Média e se não se estudou este período, não se compreende tudo o que ele falou, por que ele escreveu, aonde queria chegar. Você vai entender em função do seu repertório contemporâneo. Então, o primeiro exercício de leitura é sempre um exercício de frustração; fica-se com o que se entendeu e não com o que não se entendeu. Na segunda leitura você vai entender um pouco mais. Não é imediata a compreensão. Certa vez, um aluno perguntou: "A professora fulana de tal vai dar aula do quê?". Eu falei: "Revolução Francesa". E ele disse: "Eu não gosto da Revolução Francesa". Veja, fica-se na pequena subjetividade e ninguém quer mais passar pela frustração. Não gosto, não vou. Estamos no mundo do menor esforço, da lei do menor esforço. Ideias como "Não precisa assimilar regras de gramática porque a gramática é uma estratégia da classe dominante para oprimir os pobres". E pronto.

O exercício de leitura é terapêutico, sim, porque exige paciência, concentração, imersão, quando não se está entendendo direito o que está sendo lido. Cria a possibilidade de suportar a frustração e o prazer quando se descobre alguma coisa, compreende-se alguma coisa. Roland Barthes, no livro Como viver junto, diz: "Eu tenho medo das pessoas que entendem rápido demais as coisas". Se você entende depressa demais uma coisa é porque ela não interessa. E se ela interessa e você entendeu depressa demais é porque você não entendeu. Pois para tudo precisa de tempo: a leitura, a reflexão, a palavra. Às vezes, não é na hora que vem o efeito da compreensão - ele vem depois; não é imediato. Um curso de filosofia não serve para nada. A arte não serve para nada. Não serve para nada agora.

Eu acho que a questão é também a relação com o imaginário, que hoje é um problema. As pessoas que têm um repertório intelectual, teórico ou cultural reduzido para entender elaborações complexas que requerem um exercício de paciência... Agora, quando você tem amor pelo conhecimento ou paixão pela descoberta... Mas, atualmente, temos uma educação e uma sociedade que já não motiva mais para o encantamento.

Há um filme italiano que se passa em 1968 e que mostra um professor de filologia românica, magrinho, mirrado, de terno, carregando uns compêndios enormes. Ele vai entrar em uma sala de aula e os estudantes dizem: "Ah não! Estamos discutindo e você não vai entrar aqui agora!". Os estudantes fecham a porta, e ele começa a ouvir barulho de cadeiras sendo arrastadas, gritaria, vozerio. Quando permitem que ele entre, não há mais o estrado, as cadeiras estão todas em círculo, todo mundo no mesmo plano. Ele se senta e um dos estudantes fala: "Agora vamos dizer o que nós queremos que você ensine". Mas um diz que quer uma coisa, outro diz que quer outra, e cada um quer uma coisa diferente. Eles não conseguem se entender. Então perguntam: "O que o senhor pode ensinar para nós?". E ele fala: "Primeiro, eu gostaria que vocês colocassem o estrado, para que vocês todos consigam me ver e eu possa ver todo mundo. Aí eu quero que se ponha a mesa ali para eu poder colocar meus livros". Quando está tudo arrumado, ele se levanta e diz: "Eu estou aqui para ensinar para vocês as belezas de um verso de Petrarca". É isso. São questões que, em uma cultura do desencantamento e da perda da curiosidade, ficam difíceis. Ou a pessoa tem por vocação imanente gostar mesmo do desafio e do prazer da descoberta, ou vai ser muita indústria cultural, muito megaevento.

 

O lugar de Totem e Tabu

RBP Você está falando da educação, da ordenação, do instituir, do lugar que a disciplina pode ter não apenas como um processo cerceador. Em 2013, comemoramos cem anos de "Totem e tabu". Parece que é uma questão fundamental no que você diz: a instituição de algum ordenador para o psiquismo e para a vida em comum dos seres humanos. Como se dá essa questão no contemporâneo?

OM A ideia de "Totem e tabu" é a ideia de um limite, do interdito e, portanto, da possibilidade da transgressão e da criação. A partir do momento em que nada mais é efetivamente proibido, você tem uma sociedade da permissividade, que Marcuse chamava de "dessublimação repressiva". Quer dizer, tudo é permitido, como se o inconsciente tivesse invadido a consciência, uma sociedade da passagem ao ato. Não há mais valores morais propriamente, pois, para haver valores, é preciso haver estabilidade e continuidade deles. Há algumas gerações, as mudanças de costumes, de conhecimentos e de valores de um período para outro eram geracionais. Eram os tempos longos da tradição; as mudanças não eram rupturas bruscas. Depois, elas se tornaram intergeracionais. E, no curto prazo de uma única vida, os valores mudam umas dez, quinze vezes; ou seja, não são valores propriamente ditos. É a impossibilidade de um mundo ético e, portanto, de organização do mundo. Eu me pergunto o que Freud estaria dizendo hoje sobre uma sociedade em que não se tem mais totem e não se tem mais tabu. O crime sem culpa é uma novidade do mundo contemporâneo, e é fato tanto no aumento da criminalidade comum quanto nos crimes políticos.

RBP Notamos atualmente, em algumas posições presentes na psicanálise, um aspecto tecnicista. A psicanálise corre o risco de pretender ser uma técnica que reproduz um método de cura. Por exemplo, no campo médico, hoje, trabalha-se com protocolos: há um questionário para o qual as respostas só podem ser sim ou não, você classifica em um determinado diagnóstico e já tem o medicamento. Não há tempo de reflexão sobre a experiência de se estar com o outro que possibilite ter alguma ideia do que se passa com ele. De fato, existe filosoficamente um tipo de reflexão que sustenta a técnica, mas isso porque a techné é valorizada ou você acha que é simplesmente uma perversão do lugar da tecnologia?

OM A techné é um saber avisado de uma sutileza para poder levar a bom termo um determinado fazer. Quando a técnica se reifica, quando se torna um protocolo, substitui-se aquilo para o que ela existe - para se adaptar e não mais para "completar algo que está incompleto". A techné é qualitativa, ela é aplicada dependendo da situação; agora, quando vem a ser uma coisa abstrata que se aplica indiscriminadamente, ela perde seu sentido, e aí ela é tão restritiva que encurta o pensamento. As pessoas não pensam por si mesmas, mas tendem a repetir o que a mídia ou a doxa dominante predeterminam. Elas têm a ideia de que qualquer novidade é o melhor, como se o novo fosse ontologicamente bom. É um encurtamento do pensamento: já vem pronto, é mais rápido. E como o mais rápido é o mais eficaz, isso não se questiona mais.

Há o tempo das coisas que não pode ser atropelado. Uma doença, uma gravidez, uma dor psíquica - não adianta querer encurtar o tempo de uma crise, a não ser que se tenha uma medicação para a dor psíquica, se puder ajudar...

RBP A dor, a depressão são tão malvistas nos tempos de hoje...

OM É claro que em alguns casos é preciso medicar. Nada contra. Agora, a ideia de que isso substitui o ter que inventar maneiras de sobreviver depois de uma coisa que foi vivida como uma catástrofe. E também hoje há uma impossibilidade de avaliar o que é prioritário e o que é secundário; tudo se avoluma, parece que tudo é descomunal. Então, também há um erro de proporção na avaliação das coisas; não há mais possibilidade de avaliação, porque quando o totem e o tabu não funcionam mais, o seu padrão de medida se perde.

 

Experiência e psicanálise

RBP Freud, a partir da segunda tópica, com o narcisismo e a pulsão de morte, de alguma forma intui e percebe o que depois André Green vai chamar de morte, de desligamento. A psicanálise trabalha hoje focada na possibilidade de dar algum destino simbolizável à dimensão do traumático, desse fio que se rompeu, do que não conseguiu ganhar representação - na possibilidade de um espaço em que se possa construir a experiência. Como você vê essa questão?

OM Temos as experiências que o cotidiano ensina, não precisamos de uma formação, de escolarização: se você puser a mão no forno quente, você vai se queimar. Mas há saberes ligados à sobrevivência psíquica. Não há lugares privilegiados para essa experiência: pode ser o choque na multidão, os acidentes da cidade ou as perdas na vida de cada um. Mas há, também, lugares em que você vai articular aquilo que você vive dispersamente no cotidiano. A escola era um desses lugares de transmissão de saberes e experiências, sob a hegemonia dos saberes literários, aqueles que articulam os conflitos e os riscos que eles implicam tanto na vida do indivíduo como na da sociedade. Com o fim do papel filosófico e existencial da cultura, a igreja, o professor, o padre, depois a psicanálise, herdaram, de algum modo, a palavra, a narrativa: são espaços alternativos para essa perda de experiência, da reflexão sobre o vivido. Agora, esse vazio da experiência acaba também invadindo os consultórios. Hoje, quem é que dá conselho? É o consultor do aplicador na bolsa, o coaching. Não é mais aquele conselho de orientação na vida e no pensamento, que era a ideia propriamente da experiência. E quem hoje é capaz de ouvir conselhos? Porque os conselhos eram dados por máximas morais, sentenças, parábolas, fábulas, provérbios - formas concisas de uma sabedoria prática do que a humanidade viveu, coletivamente e individualmente, de perigos e de como ela venceu isso. Os conselhos diziam respeito a uma sabedoria prática de como enfrentar o infortúnio e a boa sorte. No fundo, era disso que a educação cuidava, porque para se fazer uma experiência, tem que haver tempo de assimilação do acontecimento. Senão, é o trauma que não se tem como pensar. Analisando Proust, Walter Benjamin traz uma imagem: "As rugas que nós temos no rosto, as marcas que trazemos, são as assinaturas das grandes paixões que nos estavam destinadas e nós, os senhores delas, não estávamos em casa". Nós não temos tempo para transformar uma vivência em experiência; porque você precisa pensar sobre o que aconteceu, imaginar, simbolizar: uma cena do amor, a primeira vez que ouviu o tom da voz, o que aconteceu. É uma história que você conta, senão não se torna um acontecimento. E para se transformar um acontecimento, uma vivência em experiência, precisa-se de tempo. O tempo significa que você é capaz de lidar com o vazio; a experiência é você ser capaz de ser o artesão desse vazio.

Hoje, o vazio é só o tédio. A proliferação da indústria cultural é uma prova disso. Você não pode ter um tempo vazio; tem que ter música techno o tempo inteiro, festa rave, ecstasy; tem que ter uma agitação permanente agindo sobre o corpo. Não há possibilidade de lidar com o tempo vazio porque ele é entediante, e a tolerância ao tédio hoje é inferior a zero. Então, ou se sai matando, ou se vai para as drogas para disfarçar o tédio. É uma sociedade que busca a imediatez e a passagem ao ato. Sem pensamento. Então, como fazer experiências? Talvez, como remanescente, reste somente a psicanálise, porque as religiões hoje são também totalmente anfetaminadas - nos cultos deve-se cantar em coro bem alto, deve-se gritar bastante, tudo muito bem histerizado. Há, claro, aqueles núcleos que correspondem aos eremitas da Idade Média, que foram para o deserto para entrar em contemplação. Acho que os espaços eremíticos atualizados se encontram na psicanálise. Mas creio que há sintomas de que as pessoas estão querendo sair da aceleração, o slow food, o slow em geral. Talvez haja a possibilidade de parar para pensar um pouco no que se quer da vida. Mas para saber o que eu quero, eu tenho que saber quem eu sou. Saber quem eu sou é cada vez menos suportável; é difícil o encontro consigo mesmo, com nosso vazio interior, com o não sentido das coisas.

RBP Quando se narra um conto para crianças pequenas, elas têm a tendência de trazê-lo para a experiência vivida e suas opiniões são inseridas em suas experiências. Crianças um pouco maiores começam a reclamar de terem que ouvir o conto epensar, ter uma opinião, dizer alguma coisa a respeito. As crianças mais escolarizadas querem que a resposta esteja dada e que elas já saibam o que fazer, enquanto as crianças menores conservam a possibilidade de pensar, por mais simples que seja esse pensamento.

OM A criança é um metafísico espontâneo, ela tem a curiosidade, ela participa da história, não separa a história que é narrada da sua vida. Walter Benjamin disse que a criança é um filósofo espontâneo, porque quando ela quebra o brinquedo ela quer conhecer por dentro, descobrir a essência da coisa. E a criança tem soluções fantásticas. Li que se contou para um grupo de crianças, em uma sala de aula, a história de Pedro e o lobo. Então, você tem um lobo mau que devora as crianças; depois, um caçador que recupera a criança e que prende ou mata o lobo. O professor pediu para as crianças darem outro final para a história e uma delas disse: "Ah eu acho que agora que o lobo está preso e não é mais perigoso, podia-se soltar o lobo na floresta de novo". É de uma delicadeza! E é espontâneo, não tem coisas preestabele-cidas. Você pode reabrir a história e contá-la de outra maneira, do mesmo modo que você pode contar sua vida de outra maneira. O Barthes, em seu curso - hoje livro - A preparação do romance, diz que todo romance ocidental começa com o primeiro verso da Divina comédia, de Dante: "No meio do caminho da minha vida me encontrei numa selva escura". O meio do caminho da vida não é um momento cronológico; é um acontecimento na sua vida antes do qual você era um e depois do qual você é outra pessoa. É uma espécie de conversão. Isso é uma experiência, porque você nunca mais será o mesmo. Essas experiências vêm de saberes transmitidos oralmente, que ajudam a compreender o que aconteceu com você, ou pela literatura, que os elaborou para você. Mas hoje a narração oral não existe mais, nem transmissão ao longo do tempo, porque ninguém mais tem paciência de ouvir histórias, o que se encontrava na literatura. Você entra na vida daquela personagem, no que está acontecendo para ela e como ela vive aquilo que acontece. Você sai de você e vê como é o acontecimento da vida de um outro, para fazer daquela vida uma possibilidade sua. Eu acho que os saberes literários são fundamentais para reabilitar a experiência, que foi arbitrariamente truncada por todas essas formas de não pensamento, de não lidar com limites, em particular o limite extremo que é a morte. Em uma sociedade em que tudo é tão mortífero, você tem que ficar negando mesmo. A morte é tão próxima que você tem que fazer de conta que ela não existe.

 

Trauma e recusa

RBP Você fala do fetichismo e da recusa em alguns trabalhos. A recusa está no centro dos mecanismos psíquicos que permitem a instauração do fetiche, na perspectiva da psicanálise. Por outro lado, você diz: "A filosofia não serve pra nada". Nós temos por hábito, na Revista Brasileira de Psicanálise, fazer entrevistas com pessoas da filosofia, da literatura ou das artes - e eu acho que esses campos servem para muita coisa, como acordar os adormecidos. O mecanismo da recusa é algo que perpassa a vida de todos nós. Há a recusa como mecanismo de negação da castração, mas há também a recusa no cotidiano: o hábito, o comodismo, o conforto. Nós nos acomodamos a viver no estado de exceção, que é outro tema que você trabalha, como uma forma dessa acomodação.

OM Talvez a grande dificuldade seja a de encontrar, inventar ou criar novas formas. Cada um tem que encontrar a sua forma de lidar com a dor psíquica - talvez por essa fraqueza da imaginação e todo esse complexo de coisas que desabrigam e desprotegem o eu. O próprio fetichismo é uma defesa. Quer dizer, você não vai lidar com aquela morte que aconteceu, aquela sua impossibilidade; você inventa um substituto capaz de ser compensatório. É uma inteligência, no sentido de conviver com aquilo e ter encontrado uma solução para estruturá-lo um pouco, como se fosse um valor. Ou seja, o fetichismo produz uma realidade com aquela irrealidade. Agora, quando você tem uma universalização do fetiche, quando tudo vira fetiche, já não há mais fetiche. Tem que ter uma singularidade para ele ser eficaz. Então, no momento em que você pode ficar mudando de fetiche, ele não está mais funcionando. É como a religião: há um mercado religioso porque a relação com a religião, hoje, é pragmática. Eu vou buscar um culto porque perdi um emprego, porque eu estou doente; busca-se uma religião para resolver a situação imediata. Se ela não resolver, você muda de religião. A dor é intransferível e você precisa saber lidar com ela. Como eu convivo com ela? Como eu posso sobreviver a uma catástrofe? Eu fico sempre me perguntando como as pessoas sobrevivem a um trauma terrível. Eu não sei.

Sofrer uma tragédia, um acontecimento que não tem como se ultrapassar, um luto sem morte e uma morte sem luto, uma indeterminação absurda. Acho que as pessoas que conseguem, em um momento de tortura, por exemplo, sair da situação, não se identificar com o sofrimento, talvez possam vir a transcendê-lo. Eu fico pensando no Mujica, o Presidente do Uruguai. Ele conta que se encontrou na rua com o torturador dele e o cumprimentou. O torturador ficou todo crispado, e o Mujica falou: "Mas eu estou conversando com você normalmente, não quero me vingar, só estou falando bom dia!". Eu me pergunto se essa é a solução: virar santo, uma santidade de quem é capaz de transformar uma coisa em outra, ou porque no momento da tortura não ficou identificado com aquilo, ou porque sentiu ódio da pessoa na hora, ou porque não se sentiu só como vítima, foi capaz de ver os dois lados. Eu não sei se isso é um mecanismo que a pessoa já tem, ou se isso se aprende, ou se isso pode ser aperfeiçoado. Mas os recursos existenciais têm que vir da pessoa. Vocês, psicanalistas, que lidam com isso no cotidiano: como é que vocês tiram da pessoa uma coisa que ela não tem? Porque ela não tem essa experiência. A sociedade não deu, as instituições tampouco, a televisão, o cinema, as revistas que ela lê; o meio milita contra a possibilidade de elaboração simbólica e de sublimação. É um mecanismo de sublimação no fundo. De espiritualização da dor. Na Idade Média, havia os santos que tinham os seus mecanismos. Nós não temos.

Então, só resta mesmo a psicanálise, ou a pessoa pode se esquecer um pouco fazendo o que gosta. A arte é para se esquecer um pouco de você, ver que tem uma coisa fora de você, e se esquecer do mundo. Sair de você.

RBP Mas você não acha que tudo hoje caminha no sentido de a pessoa sair de si? Esses seriados a que os jovens assistem ininterruptamente, um depois do outro, e vivem a vida através do seriado, ou do iPad, ou do computador. Viver um mundo controlado, previsível, evadir-se da dor.

OM Só que nesse caso, ele sai de si por uma coisa que ele não fez. A massificação substitui rapidamente uma coisa por outra, então, tudo fica rapidamente obsoleto. O sair de si é você se esquecer numa obra sua. Não em uma coisa dada, pronta, sem nenhum poder de interferência, em que você fica passivamente... Porque na narração você é ativo, você ouve a narrativa, você elabora o que vai lembrar e o que vai esquecer, o que lhe tocou, no tom da voz, na emoção de quem contou, como aquilo lhe emocionou ou não. Como na leitura.

 

Subjetividade

RBP Se não pensarmos o homem e o tempo no mundo contemporâneo em termos de patologia, não poderemos pensar a nova constituição da subjetividade? Como seria esse homem de hoje?

OM É difícil, quando se está no meio da transformação, saber que figura isso vai ter. Temos alguns indícios das questões de ausência de valores que funcionavam como orientação ou das transmissões no plano da família. Os pilares que ofereciam alguns caminhos não são mais eficazes. Que tipo de indivíduo vamos ter, há alguns sinais disso. O narcisismo absoluto, por exemplo. A ideia de comunidade política ou a de cidadania foram substituídas pela ideia de identidades. Você não tem mais projetos coletivos: tem identidade racial, identidade religiosa, identidade de idade, identidade de classe. Todas as formas de relativismo e particularismo. Você não tem mais nada que universalize o humano. A falência da philia social coletiva, dos valores ligados aos espaços públicos, foi compensada por pseudopertencimentos a pequenos grupos. Vemos um aumento muito grande no narcisismo arcaizante, primitivo, em que o pequeno eu está imerso nele mesmo. O outro não existe. É o que vemos, sobretudo, nessas injunções do mundo contemporâneo com as tiranias da visibilidade. Tudo você pode falar, todo mundo tem uma opinião a dar, todo mundo pode falar de qualquer coisa a qualquer momento. Vontade de aparecer no YouTube, vontade de aparecer no Facebook, todo mundo "Ah, me vesti de azul!" - quer dizer, como se tudo isso merecesse ser tornado público. Tudo isso vem justamente de um "ser é ser percebido", como dizia Berkeley, isto é, se o outro não me vir, eu não existo; e, no entanto, eu quero ser visto, mas não vejo o outro.

RBP Uma paciente adolescente contou que uma menina na escola se filmou com seios desnudos e se matou depois de um tempo porque foi vítima de bullying e não aguentou. Então, a pessoa quer ser vista, você pode tudo, mas, ao mesmo tempo, há uma retaliação imediata do meio.

OM Eu acho que essa coisa do bullying e essa superlegislação de tudo fazem pensar. Quando se tem tudo tão regrado, é porque o direito não está mais funcionando. Porque o direito, o respeito, a dignidade, isso não é regulável, não é uma obrigação que possa ser exigida. A partir do momento em que se torna uma exigência, ela não opera mais e você tem que criar mais dispositivos repressivos. E isso, obviamente, não civiliza, porque não se assimila o aspecto ético da lei. Quando uma criança era escolhida para ser o bode expiatório da classe, ela tinha que criar seus mecanismos de defesa. Hoje ninguém cria mecanismos de defesa, porque ou você mata o outro que lhe agrediu, ou você vai para o advogado. Ou se suicida. Isso expressa uma fragilização permanente do "eu", que não tem mais defesa nenhuma. Como defesa, você mata o outro quando você for agredido, você não tem mais condições para transformar isso em palavras e argumentação, em simbolização.

RBP Eu me preocupo em cair em uma nostalgia e pensar "Os bons velhos tempos!" e "O que vai ser de nós agora?". Se pensarmos nas relações do homem com o trabalho hoje, não temos mais o sujeito que entra em uma empresa com um projeto de ascensão, e o filho dele vai trabalhar lá também e tem orgulho disso. Atualmente, se ficar muitos anos em um lugar, você é visto como alguém antiquado, ultrapassado. O trabalhador também está abandonado. Enfim, são valores de defesa - mas de modo mortífero, porque totalmente individualizado -, ainda que mostrem uma mudança de subjetividade e de valores.

OM Na questão do trabalho temos muitas mudanças. Não é "Os bons velhos tempos!" porque eles estão muito próximos, mas a mudança foi muito rápida. Você não tem mais os pertencimentos em longo prazo. Um sindicato não era apenas uma instituição mediadora dos interesses de classe, entre o trabalhador e o patrão, e o patrão e o Estado. Era também o lugar em que se criavam solidariedades, afetos, histórias, ou seja, tudo o que tinha um tempo largo pela frente. Com o advento da grande indústria, o trabalho foi esvaziado do seu conteúdo, e o homem se tornou o apêndice da máquina. Ele foi privado tanto do seu saber quanto do saber-fazer. O trabalho artesanal, como o da psicanálise, exige maturidade, tempo, aperfeiçoamento e progressão; assentamento de um saber ao longo do tempo, que vai acontecendo e sendo assimilado. A partir do momento em que você tem a ideia do trabalho temporário, o trabalho pela vida toda se transforma em períodos de trabalho e períodos de desemprego. Isso significa que cada um acaba assimilando que sua impossibilidade de se inserir nessa loucura é um fracasso pessoal. Ninguém mais percebe que é uma forma de dominação social, que responsabiliza a vítima pela sua própria situação. Vocês viram o filme O método? Ele mostra a competição entre os indivíduos, e se alguém é excluído do processo seletivo, ele credita tal fato à sua própria incompetência. Tudo leva à fragilização; você não sabe as razões pelas quais você vai ser escolhido ou deixar de sê-lo. No filme, há nas ruas as ruínas ao final de manifestações contra o fmi e contra as restrições que a União Europeia está impondo, e ao mesmo tempo há os acontecimentos dentro da reunião de competição entre os empresários, que são as ruínas internas. Há as ruínas do mundo do capital, a guerra e seus destroços, e do mesmo modo há os destroços internos, que acabam destruindo a própria subjetividade.

A ideia de você não ter mais um trabalho ao longo da vida e ter que se reescolarizar permanentemente traz uma infantilização, porque você não adquire experiência em lugar nenhum. E fica a coisa do polivalente. Se você tem várias funções, é porque você não está definido, não tem identidade. O passado é uma espécie de orientação para o presente. Ninguém quer voltar para o passado. Eu adoro ler sobre a Idade Média, imaginar como eles viviam, mas não gostaria de viver nessa época - o que já aconteceu, as experiências que nos falam até hoje, não é algo recuado. Platão é lido há vinte e seis séculos porque sua obra não se esgotou no período em que ela nasceu e nos fala até hoje. Então, pensar em como era o trabalho, como eram as relações familiares, as relações na cidade e no campo, como eram os usos do tempo tem relação com formas que nós buscamos para a compreensão do presente. Porque o mundo em que vivemos é o da impermanência - isso os gregos já sabiam. Eles cunharam o que nos chega até hoje na psicanálise e na boa literatura: "A vida é breve, a arte é longa, a experiência é difícil, o juízo, incerto, e a ocasião, rara". Você tem pouco tempo para viver e tem que aprender a viver. Mas hoje não se trata mais da percepção da brevidade da vida. Há a ideia. uma perversão de achar que dá para mudar a sociedade sem se mudar a si mesmo, ainda que alguns movimentos sejam contrários a isso. Reich, por exemplo. Ele dizia que se você não aprimorar as suas relações amorosas, a sociedade vai ser ruim. Se a qualidade do amor não é boa, não existe a possibilidade do resultado da sociedade ser bom. E como se abandonou o ideal de compreender, de aprimorar os costumes, da busca da delicadeza... A partir do momento em que você tem o brutalismo como forma de vida do cotidiano, que a ideia das boas maneiras, da compassividade, de olhar o outro, desaparece... Você vai a uma loja dita fina, a pessoa que está no caixa está conversando ao telefone e lhe joga o troco sem olhar para você. Você vai ao pronto-socorro e o médico nem olha para você. Essa aceleração do tempo leva a uma desatenção com você mesmo antes de tudo.

Platão, quando fala no mito do anel de Gyges, mostra isso. Ele conta que um terremoto abre a terra e um camponês, ao penetrar no vão, vê um cavalo morto, imenso, e dentro desse cavalo, o cadáver de um homem descomunalmente grande. Esse cadáver tem um anel que, quando usado com a pedra para baixo, deixa a pessoa invisível. Obviamente é para ilustrar a ideia de que, quando você é invisível, pode cometer todas as injustiças impunemente. Muito resumidamente. Gyges mata o rei, casa-se com a rainha e vai cometendo vários crimes. Mas, na verdade, o que falta para ele? Falta a empatia com o outro. Ele não pode se colocar no lugar do outro para ver o que o outro está sentindo com a injustiça que ele está cometendo. Mas não é só isso. Significa que ele é incapaz de olhar o outro - e incapaz de se olhar para ver que ele está cometendo um ato de injustiça. Então estamos nessa situação: ninguém olha para si mesmo. Só olho o que o outro fez para mim; agora, o que eu faço para o outro não existe mais. Ou o que eu faço comigo mesmo não existe mais. Não há mais a possibilidade de um momento de parada para reconhecer a ideia do limite.

RBP Agradecemos a generosidade de nos conceder esta entrevista.

 

 

1 Entrevista realizada no dia 6 de abril de 2013, na sede da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Participaram da entrevista: Bernardo Tanis, Marina K. Bilenky, Raya Angel Zonana, Rogério Nogueira Coelho de Souza, Silvana Rea e Susana Muszkat.
2 Professora titular do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo FFLCH/USP e da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo EFLCH/UNIFESP. Publicou Benjaminianas: cultura capitalista e fetichismo contemporâneo, O iluminismo Visionário: W Benjamin leitor de Descartes e Kant, Contemporaneidades, As barricadas do desejo, entre outros.
3 OM: Olgária Matos; rbp: Revista Brasileira de Psicanálise

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