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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.47 no.2 São Paulo abr./jun. 2013
ARTIGOS
Considerações a partir de uma análise de um pianista de oitenta anos1
Considerations based on the analysis of an 80 year-old pianist
Consideraciones sobre el análisis de un pianista de 80 años
Adalberto A. Goulart
Membro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica do Recife SPR e do Núcleo Psicanalítico de Aracaju NPA
RESUMO
O autor apresenta uma vinheta clínica sobre a análise de um pianista de oitenta anos de idade e sua tentativa de fugir da vida para evitar o encontro com a morte. Apoiado pelas hipóteses de Ferrari, questiona o alcance da psicanálise em relação a pacientes em idade avançada e pacientes terminais. Propõe que o analista precisa ter uma atitude de respeito diante do inconsciente, mas também de humildade diante da natureza e do tempo. Assim, ainda que em situações extremas, quando espaço e tempo se condensam, a psicanálise poderia ser útil no sentido de ajudar esses pacientes a sonharem o que ainda não foi sonhado, e a viverem o que ainda não foi vivido.
Palavras-chave: tempo; envelhecimento; morte; relações corpo-mente; psicanálise.
ABSTRACT
The author presents a clinical vignette about the analysis of an eighty year-old pianist and his attempt to escape from life to avoid the encounter with death. Supported by the hypotheses of Ferrari, he questions psychoanalysis' role in relation to old age patients and terminal patients. He proposes that the analyst must be respectful towards the unconscious, but also show humility before nature and time. Thus, even in extreme situations, when space and time are condensed, psychoanalysis could be useful in helping these patients dream what has not yet been dreamed and to live what has not yet been lived.
Keywords: time; aging; death; body-mind relationships; psychoanalysis.
RESUMEN
El autor presenta un caso clínico sobre el análisis de un pianista de ochenta años de edad y su intento de escapar de la vida para evitar el encuentro con la muerte. Apoyado en las hipótesis de Ferrari, cuestiona lo que puede hacer el psicoanálisis en relación con los pacientes de edad avanzada y pacientes en fase terminal. Propone que el analista debe tener una actitud de respeto ante el inconsciente, pero también de humildad ante la naturaleza y el tiempo. De esta forma, incluso en situaciones extremas, cuando el espacio y el tiempo se condensan, el psicoanálisis podría ser útil para ayudar a estos pacientes a soñar lo que aún no fue soñado y a vivir lo que aún no fue vivido.
Palabras-clave: tiempo; envejecimiento; muerte; relaciones cuerpo-mente; psicoanálisis.
Eu fiz um acordo de coexistência pacífica com o tempo:
Nem ele me persegue, nem eu fujo dele.
Um dia a gente se encontra...
(Mário Lago, s.d).
Procura-me, por telefone, uma senhora de voz idosa, identifica-se. Diz necessitar de um horário para o irmão. Ele tem oitenta anos; há três meses se transferiram do Rio de Janeiro para Aracaju. Agendo. À primeira entrevista chegam os dois, ela de pouco menos idade que ele. Solicitam entrar juntos ao consultório. Ela um pouco menor, bastante falante. Ele, um idoso magro, da minha altura, bem vestido, de boina e bengala, ombros arqueados, aparência amarga, olhos vivos e curiosos. Fala pouquíssimo, deixando o motivo da procura para o relato da irmã.
Conta-me ela que o paciente, a quem chamarei simplesmente Sr. C., teve vários episódios de depressão durante a vida, estando novamente bastante deprimido. Moravam no Rio três irmãos: o paciente, a irmã que o acompanha e outra irmã, dez anos mais velha, cada qual em seu apartamento, levando vidas distintas e modestas, encontrando-se raramente. São naturais de Sergipe e haviam se transferido para o Rio na juventude. Com o avanço da idade, uma jovem e afortunada sobrinha propôs repatriá-los para Aracaju, e ofereceu-lhes um bom apartamento para que morassem juntos. Assim foi.
Para uma segunda entrevista, chegam ambos pontualmente e o Sr. C. entra só, deixando a irmã aguardando na sala de espera. Exatamente como na primeira entrevista, de boina e bengala, ombros arqueados, bem arrumado, senta-se e olha-me dizendo não ter mais esperanças... Saiu jovem de Sergipe para ser pianista no Rio, e assim foi durante quase sessenta anos, com exceção de pequenas temporadas passadas em Londres, Madri e Paris para estudar. Além de pianista, escrevia críticas sobre música em jornais e era professor de música em uma universidade, pela qual se aposentou. Em Londres, submeteu-se a sua primeira psicoterapia pelo método "free association" (como ele refere), tendo se beneficiado um pouco no tratamento de angústias inespecíficas e sintomas depressivos. Apaixonou-se por um músico húngaro platonicamente. Tempos depois esteve em Budapeste a sua procura, mas não o encontrou, o que lhe representou uma enorme frustração. Solteiro, teve apenas um relacionamento heterossexual com uma pessoa com quem conviveu durante alguns meses. Sendo homossexual, esta companheira, amiga, havia lhe proposto o desafio de torná-lo heterossexual.
Conta-me sobre relacionamentos homossexuais na juventude, sempre de caráter mas-turbatório, nunca tendo admitido penetração, "isso é horrível" me diz. Com muito constrangimento, fala-me de encontros com estranhos em banheiros públicos, em cinemas etc. Não tem vida sexual há mais de vinte anos, acha que não dá para isso, não foi feito para isso, embora continue a admirar homens jovens e belos. Não se conforma com o fato de terminar a vida em Aracaju, de onde sempre quis sair, "tudo é horrível aqui, a cidade é caótica, muito movimentada, muito grande e barulhenta...".
Usa fraldas todo o tempo, embora não tenha incontinência alguma, mas medo de ter. Sente coceiras em várias regiões do corpo, particularmente nos testículos e na cabeça. Acha que tem escabiose e usa uma loção há meses, sem resultado. Tem muito medo de médicos, e com muito custo consultou um dermatologista, que lhe disse não se tratar de escabiose, mas de uma dermatite própria do envelhecimento. Seu maior sofrimento está relacionado a pensamentos obsessivos de que não vai mais conseguir comer ou beber, defecar ou urinar. Com queixas de constipação intestinal desde sempre, lembra, também com horror, de procedimentos médicos de urgência para conseguir evacuar os intestinos. Conta-me que, ainda no Rio, passou meses tendo que se alimentar por sonda por não conseguir comer. Um médico "frio e agressivo", que o tratou, disse-lhe que morreria em pouco tempo.
Compreendo a dificuldade do trabalho que se nos apresenta. Sr. C. parece me falar da enorme turbulência de seu caos interior e de uma tentativa de fazer a vida parar na paradoxal busca de distanciar-se das limitações impostas pela idade avançada e da expectativa de que seu corpo estaria próximo de morrer. Como se buscasse morrer em vida para evitar a experiência de viver em um corpo que está próximo de morrer.
Não consegue ler, nem ouvir música, tampouco escrever, falta-lhe paciência para suas atividades preferidas. Tendo trazido seu piano na mudança para Aracaju, não consegue tocar, não tem disposição, acha que os dedos estão duros, não obedecem, não se lembra das notas musicais. Não há diálogo com as irmãs, apenas o essencial. Tem medo de sair às ruas sozinho, apenas saindo raramente na companhia da irmã mais nova, em geral para ir a médicos. A outra irmã que convive com eles, mais velha dez anos, é referida como uma alma, uma assombração desfilando pela casa. Não compreende como ainda está viva, como come, como dorme... "Ela come, como épossível?" me diz. Não vê razão para ele próprio continuar vivo, "para quê?" me pergunta. "Velho, decrépito, decadente, doente, só sofrimento e mais nada, para que viver mais? Chega, basta!" Lembra, quase em todas as sessões, invariavelmente, algum trecho do poema de Santa Tereza, "... quanto mais vivo, mais morro... muero porque no muero." A morte, evento natural para todo aquele que vive, surpreende nosso artista, causando espanto, indignação, contrariando sua fantasia de eterna juventude, e consequente imortalidade.
Santa Teresa de Jesus ou Santa Teresa D'Ávila, nasceu em Gotarrendura, Ávila, em 28 de março de 1515, e faleceu em Alba de Tormes em 4 de outubro de 1582. Religiosa e escritora espanhola, famosa pela reforma que realizou no Carmelo e por suas obras místicas. Abaixo transcrevo os versos tão citados pelo paciente C:
Vivo sin vivir em mi,
y en tan alta vida espero,
que muero porque no muero.Aquesta divina unión,
del amor con que yo vivo,
hace a Dios ser mi cautivo,
y libre mi corazón;
mas causa en mi tal pasión
ver Dios mi prisioneiro,
que muero porque no muero.Ay! Qué larga es esta vida!
Qué duros estos destierros,
esta cárcel y estos hierros
en que el alma está metida!
Sólo esperar la salida
Me causa dolor tan fiero,
Que muero porque no muero.Ay! Qué vida tan amarga
Do no se goza el Señor!
Y si es dulce el amor,
No lo es la esperanza larga;
Quíteme Dios esta carga,
Más pesada que el acero,
Que muero porque no muero.Sólo com la confianza
Vivo de que he de morir;
Porque muriendo, el vivir
Me assegura mi esperanza:
Muerte do el vivir se alcanza,
No te tarde que te espero,
Que muero porque no muero.Mira que el amor es flerte;
Vida, no seas molesta;
Mira que sólo te resta,
Para ganarte perderte;
Venga y ala dulce muerte,
Venga morir muy ligero,
Que muero porque no muero.Aquella vida de arriba
Es la vida verdadera:
Hasta que esta vida muera,
No se goza estando viva;
Muerte, no seas esquiva;
Vivo muriendo primero,
Que muero porque no muero.Vida, qué puedo yo darle
A mi Dios que vive en mi,
Si no es perderte a ti,
Para mejor a El gozarle?
Quiero muriendo alcanzarle,
Pues a El solo es al que quiero,
Que muero porque no muero.Estando ausente de ti,
Qué vida puedo tener,
Sino muerte padecer
La mayor que nunca vi?
Lástima tengo de mí,
Por ser mi mal tan enterro,
Que muero porque no muero
(Horta, Vianna & Rivera, 2000).
Em outras ocasiões, relembra os tempos da juventude, quando tocava piano em bares, restaurantes e hotéis do Rio de Janeiro, muito tecnicamente, como me diz, sem jamais se arriscar ao improviso ou a composições, executava partituras, mas as executava muito bem. Semanalmente escrevia suas críticas musicais em colunas de jornais. Sempre triste e solitário, embora com alguns poucos amigos, cumprindo rigorosamente sua rotina obsessiva diária, composta basicamente do trabalho, refeições em um hotel e igreja nos finais de semana. Eventualmente ia ao cinema ou a um musical no teatro, importante para suas colunas. Hoje esconde-se daqueles que o procuram, amigos e parentes, não atende a telefonemas, não responde cartas, não recebe quem o procura. Por outro lado, são recorrentes os sonhos em que imagens de antigos e falecidos amigos aparecem como máscaras.
Uma solicitação feita pelo Sr. C., assim que elaboramos o contrato para o início da análise, foi para realizar o pagamento ao final de cada sessão; não me opus, o tempo é hoje.
Inteligente e culto, bastante espirituoso, por vezes dissociadamente irônico com o próprio sofrimento, o Sr. C. parece ter se surpreendido com seu envelhecimento e a proximidade da morte, como se a velhice tivesse chegado abruptamente, repentinamente nos últimos meses, agravando-se quando se transferiu para Aracaju. Como se até certo dia fosse um jovem e no dia seguinte tivesse se deparado com a imagem de um velho no espelho, retornando para morrer na terra que lhe viu nascer. Medo e horror tornaram-se suas companhias, aliados à fuga constante para o passado ou para o futuro, qualquer coisa que não seja viver este momento presente.
Tenho a sensação de que são raras e rápidas as ocasiões em que sua mente está presente nas sessões, tamanha a insistência com que foge de seu corpo, ora escapando para o passado de jovem pianista e escritor, ora para o futuro em que existiria em outra vida (como diz Santa Tereza), ou já não existiria mais. Sua atividade mental parece ocupar-se na maior parte do tempo em negar o presente, a idade avançada e a proximidade da morte, de tal maneira que seu corpo mergulha na mais profunda solidão e desamparo, elevando o nível de angústia, dor e sofrimento para além do necessário. Todo seu esforço mental está dirigido para não viver o que ainda pode ser vivido, buscando excluir de sua experiência de vida um momento que pode ser tão importante quanto o do nascimento, como nos lembrava Ferrari.
Com seus traços obsessivos marcantes, o Sr. C. sente-se aprisionado em rotinas cotidianas repetitivas, que não podem ser alteradas sob o risco de uma desestabilização e perda do controle em um surto psicótico sem proporções, como é sua fantasia. Não suporta, por exemplo, o cardápio repetido das refeições do dia, mas não se permite ao menor risco de alteração. Tudo precisa se repetir exatamente igual, sob o risco de uma desestabilização. Todos os dias, ao amanhecer, recebe em seu quarto a visita da irmã que lhe leva um copo d'água. A espera de poucos minutos já é suficiente para que seu nível de angústia aumente com a fantasia de que a irmã possa ter morrido durante a noite. É necessário que sua rotina não sofra qualquer tipo de alteração, ou seja, que permaneça como morta, imutável, já que as turbulências estão relacionadas ao viver; obviamente uma fantasia relacionada ao fato de que só e apenas os vivos podem morrer.
Tem por hábito criar alguns neologismos, com os quais ele mesmo se diverte e ironiza. À angústia que lhe acomete, sobretudo nas primeiras horas do dia, deu o nome de Gertrudes. Às panquecas, parte imutável de seu cardápio, chama de pele de lebre, e outras tantas, como quem tenta arrogantemente criar uma realidade paralela. Isto não seria isto de fato, mas sim aquilo que eu quero que seja, em uma expressão deliroide porque a Gertrudes inevitavelmente aparece denunciando o fracasso do não-tempo, da não-vida. "muero, porque no muero..."2.
A percepção do tempo que passa, trazendo consigo o envelhecimento, as turbulências, as dores do viver, e a proximidade real e concreta da morte afrontam violentamente este nosso pianista de oitenta anos e sua narcísica fantasia de imortalidade.
É necessário que o corpo esteja onde a mente está, nos diz Ferrari (1995). O homem, por vezes, se esquece que possui um corpo, e isto se explica pelo fato de o corpo impor um limite que desafia a onipotência: o corpo se transforma com a existência, envelhece, o corpo morre. São situações em que o corpo, eclipsado pela mente, sairá de seu eclipse e se apresentará impondo que a mente dele se ocupe e com ele se harmonize. Em determinadas situações, que poderão ser dramáticas, como parece ser o caso brevemente descrito, é o corpo aquele que passa a eclipsar a mente.
A associação concreta com a morte próxima, prevista pela história já vivida, em uma cultura em que o homem não pode aceitar sua própria finitude, é percebida como fracasso, derrota, humilhação. É como se a vida estivesse perdendo uma longa batalha para a morte, iniciada já no nascimento, ou ainda, para alguns, na concepção, e não como se a morte fosse a conclusão natural do processo de viver, como de fato é. A negação dos limites e da morte, promovida pela arrogância de uma mente que não pode se harmonizar com as transformações do corpo que lhe deu origem, pode terminar, muitas vezes, por abreviar a história e antecipar seu fim.
Conta-se que certa vez Schopenhauer teria dito que morrer é um absurdo. A morte surge como desilusão para a compreensão cartesiana, iluminista, antropocêntrica de mundo. A busca da eterna juventude e consequente imortalidade, ou negação dos limites da finitude, aparece como uma contribuição de importância para as angústias do pianista, quando a fuga da realidade (interna e externa) aparece como meta única.
Freud dizia que não se passava um só dia sem que pensasse na própria morte. Alguns atribuem a um traço depressivo de sua personalidade. Poderiamos interpretar também como um exercício de humildade, consciência e responsabilidade. Se não podemos modificar nosso destino, podemos modificar a maneira como nos relacionamos com ele. E isto significa muito diante de nossa breve existência. Vomero (2006) nos conta que em certas ordens religiosas católicas, os monges, ao se encontrarem nos corredores do mosteiro, costumam dizer uns aos outros: "Memento mom" uma expressão latina que significa "lembre-se que vai morrer", um contraponto ao carpe diem (aproveite o dia), como um exercício constante de desapego e aceitação dos próprios limites e da própria morte.
Também as crenças e rituais ligados à morte surgem como aliados para o alívio da angústia, suavizando o corte, a cesura, a interrupção, com uma fantasia de continuidade. O homem de Neanderthal já enterrava seus mortos. Existem registros de rituais de morte que datam de trinta mil anos, nas cavernas de Lascaux e Chauvert, na França.
A literatura psicanalítica que trata de questões relacionadas ao corpo, ao corpo que sofre e às consequências psíquicas de tal sofrimento, bem como às relacionadas com a morte e o morrer, é ainda hoje relativamente escassa, além de Freud (1915a/1974), Ferrari (2000, 2004), Levy (2005) e Vomero (2006), já citados, destaco a obras de J. Laplanche (1970/1985), a de Abuchaim (2009), a de Kovács (2002) e a de A. Mariam Alizade, Clínica com la muerte (2012).
Menos escassa é aquela que trata dos chamados fenômenos psicossomáticos, como um transbordamento da psique para o corpo, na contramão do curso natural da evolução, em que a mente surge como um aparelho que anota e registra as demandas que vêm do corpo físico e assim se funda.
Em 1915, portanto em meio à I Grande Guerra, Freud escreve "Reflexões para os tempos de guerra e a morte", em dois capítulos: "Nossa decepção diante da guerra" e "Nossa atitude diante da morte". No segundo texto, Freud nos escreve que a atitude com que o homem civilizado tem observado a morte não é sincera. Prossegue:
Deveríamos estar dispostos a sustentar que a morte é o desenlace natural de toda vida, que cada um de nós é devedor de uma morte à Natureza e deveríamos estar preparados para pagar tal dívida, a morte é coisa natural, indiscutível e inevitável. Porém, na realidade, nos conduzimos como se fosse de outro modo. Mostramos uma patente inclinação a prescindirmos da morte, a eliminá-la da vida. Suportar a vida é, e será sempre, o dever primeiro de todos os viventes. Recordamos a antiga sentença "Si vis pacem, para bellum" (Se queres conservar a paz, prepara-te para a guerra). Seria atual modificá-lo assim: "Si vis vitam, para morten" (Se queres suportar a vida, prepara-te para a morte) (Freud, 1915b/1974, p. 339).
Para Ferrari, o primeiro objeto a se apresentar ao bebê não é a mãe, ou o seio da mãe, como sugere Klein. Para ele, devemos pensar a criança como um
... ente que se percebe em termos de corporeidade e, ao mesmo tempo, como simbolicidade. Portanto não é mais o seio que se oferece à boca da criança mas, ao inverso, a condição é radicalmente diferente: é a criança que se oferece, através de sua fisicidade, a si mesma" (Ferrari, 1995, p. 253).
Depois virá a mãe, ou o seio da mãe.
É deste objeto que nasceriam as primeiras representações, um aparelho mental que percebe e anota as sensações provenientes de um corpo físico próprio - Objeto Originário Concreto (O.O.C.), independente de qualquer introjeção. Diz Ferrari:
Sob o brotar das percepções sensoriais marasmáticas e violentas, perigosas para um funcionamento físico harmonioso (ver, por exemplo, a coordenação entre o sistema nervoso-endócrino vascular) e na presença da mente materna na sua importantíssima função de rêverie, o aparato mental inicia a sua função que é, ao mesmo tempo, de registro e contenção (1995, p. 255).
A partir de então, e com o desenvolvimento, "a sombra do mental começa a projetar-se sobre o O.O.C." (1995, p. 256). Assim se inicia, não o desaparecimento, mas o eclipse do corpo. Eclipse, porque poderá ressurgir a qualquer momento, exigindo que a mente se ocupe dele prioritariamente, como nas transformações fisiológicas da adolescência, gravidez, nas dores e doenças somáticas, no envelhecimento e na proximidade da morte. O ser humano passa a ser visto como um sistema integrado e complexo, o sistema homem, no qual a sintomatologia física, a disposição afetiva, o modo de sentir e tratar o próprio corpo e o pensamento estão vinculados de maneira particular.
O corpo físico se constitui então em fonte de vida e, ao mesmo tempo, de morte. O predomínio de uma das duas traçaria nossa história e nosso destino, para a saúde ou para a doença. Com a consciência de um início e de um final inexorável, teria lugar o viver responsavelmente o tempo que os separa, um tempo que não se mede, já que a consciência admite um fim, mas não um quando. Assim sendo, o tempo que separa os dois extremos é o tempo do hoje ou o tempo deste momento, o que corrobora a tese de Bion, sem prender-se ao passado, sem que a expectativa do futuro obstaculize a experiência do presente, o único tempo que de fato se tem. Ferrari propõe fracionarmos o tempo em unidades cada vez menores para torná-lo visível plenamente em cada instante. Tal concepção ganha o estatuto de técnica quando se lida com pacientes portadores de doenças terminais ou cujo envelhecimento os aproxima da morte, situações em que não se pode contar com um amanhã, mas sim com "ainda não é amanhã". Desta forma será possível morrer apenas no momento da morte: o resto é vida que merece atenção e cuidados, dignidade e respeito, verdade como o alimento que harmoniza o sistema.
Ter a consciência da morte próxima ativa percepções sensoriais, cabendo à mente a difícil tarefa de servir de continente para a corporeidade, anotando, registrando e possibilitando o pensar sobre a experiência de vida, seja em qual tempo for, independentemente do quanto de vida ainda existe. O risco que se impõe é a criação de um estado de desarmonia corpo-mente, quando o psiquismo rejeita ou nega a imposição do limite da morte. Tal desarmonia no sistema aumenta a dor, o sofrimento, a solidão e o desamparo, como nos mostra o Sr. C, e poderá abreviar o tempo de vida que resta, levando a história a terminar antes que chegue ao seu final natural.
No trabalho psicanalítico com esses pacientes, a consciência real e concreta da proximidade inevitável da morte, do envelhecimento que impõe um limite ao tempo de vida, produz uma invasão psíquica sem precedentes (Ferrari, 2004a).
Esse autor nos fala da importância premente de resgatarmos o respeito e a dignidade daquele que vive na proximidade do fim, o último ato, estágio tão delicado quanto o do nascimento.
A morte não deve ser considerada como parte da vida; a vida termina com a morte. O doente terminal, ou aquele cujo envelhecimento já o aproxima do final, enfrenta estados caóticos e marasmáticos, a partir da percepção sensorial do corpo que se deteriora, evidenciando sua estrutura psíquica de base, e encontra uma mente, quase sempre, despreparada para enfrentá-los. Tais estados não podem ser definidos como patológicos, mas como uma tentativa de restabelecer o equilíbrio corpo-mente.
No trabalho com esses pacientes, o tempo, escasso, deixa de ser relativo, é tornado absoluto; cada momento contendo em si todo o tempo de vida3. Espaço e tempo se aproximam e poderão exprimir a única condição. A capacidade do indivíduo em se adaptar a essa nova realidade será proporcional à possibilidade de harmonia em seu sistema corpo-mente.
Como nos ensina Ferrari (2004c) em seu último livro, um diálogo pessoal interno necessita ser ativado, privilegiando sua verticalidade (praticamente ausente no Sr. C.), na tentativa de ajudar o paciente a aprender a viver a vida que lhe resta, no único momento possível, o do tempo presente. Assim, o envelhecimento e o morrer podem se tornar menos dolorosos, harmonizando o sistema para viver a vida de seu tempo, em que tempo for. Nos estados em que a vida está em perigo, seja por doenças terminais, seja em situações de idade avançada, é a mente quem pode se dissociar do corpo por intolerância aos próprios limites; uma reação à dor de uma importante ferida narcísica, resultando em um estado mental de onipotência e onisciência, que tende a aprofundar e agravar o sofrimento e o desamparo.
O psiquismo se sente impotente diante da concretude do tempo que decompõe o corpo, em um processo irreversível. Corpo e mente se observam, e o pensamento pode surgir como um amortecedor e um integrador do sistema momentaneamente dissociado - minha proposta no trabalho analítico com o Sr. C.
A experiência analítica tenderá, obviamente, a ser mais breve. O trabalho deverá ser oferecido até o limite que o desejo do próprio paciente impõe, de maneira cuidadosa, no sentido de evitar conluios que possam distanciar o analisando de seu momento de vida presente, reforçando operações como cisão e negação, o que poderia colocar o paciente como mero espectador de si mesmo, aumentando sua angústia, solidão, desamparo, desespero, "muero,porque no muero...".
A fuga para o passado, anterior à doença, ou para o futuro, para evitar a dor e a angústia, eliminaria a possibilidade de viver a única experiência que pode ser vivida: a do tempo presente, tendo corpo, mente e tempo ativos, presentes e integrados.
Introduzindo o paciente em seu tempo único e presente, tempo de vida, tornando possível restabelecer alguma harmonia entre corpo e mente, pode-se possibilitar que a vida transcorra em condições suportáveis por um período de tempo maior, período de novas experiências, independentes do tempo que já se passou, do tempo que ainda resta ou de quando não houver tempo algum. Se, ao contrário, o tempo for observado como invasivo, traiçoeiro, infiltrador, ameaçador, ele poderá encurtar-se, e a morte se estabelecer ainda mais rapidamente.
Em 1926, em entrevista ao jornalista americano George Sylvester Viereck4, diz Freud:
A velhice, com suas agruras, chega para todos. Eu não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, mais de setenta anos. Tive o bastante para comer. Apreciei muitas coisas - a companhia de minha mulher, meus filhos, o pôr-do-sol. Observei as plantas crescerem na primavera. De vez em quando tive uma mão amiga para apertar. Vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu. Que mais posso querer?
A nossa jovem ciência psicanalítica tem, inquestionavelmente, um longo caminho ainda a percorrer. O trabalho com pacientes terminais ou com pacientes em idade avançada é apenas mais um campo em que a ajuda psicanalítica pode ser útil, como demonstrado aqui. Concordamos com Bion, quando nos diz que, às vezes, o que um paciente mais precisa é de uma vigorosa injeção de verdade, mesmo que isso lhe pareça desagradável. Não deverá ser diferente com os pacientes que vivem seus últimos anos ou seus últimos dias. A verdade não apenas enriquece, mas liberta a alma. Nosso ofício, como psicanalistas, deverá estar sempre amparado por uma atitude de humildade e respeito pelo inconsciente, mas também, e especialmente, pela humildade diante do poder da natureza e do tempo. Assim, considerando o espaço/tempo como algo condensado e único, a experiência que inquestionavelmente se tem, algo poderá ser oferecido. Ainda que seja uma ajuda para sonhar o que ainda não foi sonhado, considerando que enquanto houver vida haverá produções do inconsciente, a partir das demandas corporais e das experiências que estão sendo vividas; ainda que sejam as últimas ou que se esteja próximo destas. E isto pode significar muito.
Após alguns meses de trabalho, o Sr. C. chega para a sua sessão de análise pontualmente, como de costume. Elegante, de boina e bengala, acomoda-se e me diz: "Doutor, ontem foi aniversário de minha irmã, toquei Parabéns prá você ao piano, depois alguns trechos de clássicos e valsas... A Gertrudes, apesar de não ter sido convidada, estava presente, mas não chegou a incomodar."
Referências
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Correspondência:
Adalberto A. Goulart
Av. Anísio Azevedo, 675/304
49020-240 Aracaju, SE
Tel.: (79) 3246-3070
adalbertogoulart@uol.com.br
Recebido em 24.8.2012
Aceito em 1.2.2013
1 Trabalho apresentado no Congresso Internacional de Psicanálise, vii Encontro Ítalo-Brasileiro de Psicanálise, Aracaju, 17 e 18 de agosto de 2012.
2 Os dados que porventura pudessem identificar o paciente foram modificados a fim de proteger sua identidade.
3 Embora eu esteja cada vez mais inclinado a pensar que esta não seria uma exclusividade para estes pacientes.
4 Entrevista encontrada na biblioteca da Sociedade Sigmund Freud, concedida ao jornalista americano George Sylvester Viereck, em 1926, e publicada na imprensa americana da época. O Boletim da Sigmund Freud Haus publicou uma versão condensada da mesma entrevista em 1976. O texto integral foi publicado no volume "Psychoanalysis and the Fut" número especial do Journal of Psychology, de Nova Iorque, em 1957.