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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.47 no.2 São Paulo abr./jun. 2013
ARTIGOS
Adoção inter-racial na clínica psicanalítica: a construção de um sentimento de identidade própria
Interracial adoption in psychoanalytical practice: building a sense of identity
Adopción interracial en la clínica psicoanalítica: la construcción de un sentido de identidad propia
Gina Khafif Levinzon
Psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP, professora do Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica da Universidade de São Paulo USP
RESUMO
Este trabalho aborda o tema da adoção inter-racial e seu manejo na clínica psicanalítica. Vários fatores contribuem para o sucesso deste tipo de adoção, como as expectativas e fantasias dos pais adotivos e sua capacidade para lidar com as diferenças raciais. Do ponto de vista da criança, há a tarefa de construir uma autoimagem positiva e um sentimento de identidade sólido, que superem as diferenças físicas existentes entre ela e seus pais. É apresentado um caso clínico no qual a questão racial não tinha sido bem elaborada, resultando em um sentimento imenso de inadequação na criança. Como forma de sobrevivência, esta havia criado uma espécie de "falso self branco". No trabalho analítico, foi possível construir, por meio da transferência, uma relação com uma "mãe biológica sonhada" e/ou com uma "mãe adotiva simbólica", com quem a criança tinha afinidade racial e podia celebrar suas peculiaridades.
Palavras-chave: adoção; adoção inter-racial; clínica psicanalítica; psicoterapia de crianças; falso self.
ABSTRACT
This paper touches upon the issue of interracial adoption and its handling in the psychoanalytical clinic. Several factors contribute to the success of this type of adoption, such as the expectations and fantasies of adoptive parents and their ability to deal with racial differences. From the child's point of view, there is the task of building a positive self-image and a solid sense of identity which overcome the physical differences between him/her and the parents. A clinical case is presented in which the race issue had not been well elaborated, which resulted in a great sense of inadequacy in an adopted girl. As a means of survival, the child had created a kind of "false white self". In the analytical work, it was possible to build, through transference, a relationship with a "dreamed biological mother" and/or a "symbolic adoptive mother", with whom the child had racial affinity and the celebration of her unique characteristics.
Keywords: adoption; interracial adoption; psychoanalytical clinic; children psychotherapy; false self.
RESUMEN
Este trabajo aborda la cuestión de la adopción interracial y su manejo en la clínica psicoanalítica. Varios factores contribuyen al éxito de este tipo de adopción, como las expectativas y fantasías de los padres adoptivos y su capacidad para hacer frente a las diferencias raciales. Desde el punto de vista del niño, existe la tarea de construir una autoimagen positiva y un sentido de identidad sólido, que supera las diferencias físicas existentes entre él y sus padres. Se presenta un caso clínico en el que la cuestión racial no fue bien abordada y resultó en un gran sentimiento de inadaptación en el niño. Como un medio de sobrevivencia, el niño había creado una especie de "falso yo blanco". En el trabajo analítico fue posible construir, a través de la transferencia, una relación con una "madre biológica soñada"y/o con una "madre sustituta simbólica" con la que el niño tenía afinidad racial y podía celebrar sus peculiaridades.
Palabras-clave: adopción; adopción interracial; clínica psicoanalítica; psicoterapia de niños; falso yo.
O desejo de procriar, de cuidar de sua prole e de se perpetuar por meio dos filhos constitui uma característica básica do ser humano. Da mesma forma, o direito e a necessidade de uma criança de ter uma família e de ser criada por seus pais é inquestionável. Nem sempre, no entanto, este vínculo se refere a uma filiação biológica, e um número significativo de famílias se forma pela adoção de uma ou mais crianças. Fala-se em adoção inter-racial quando ela une pais e crianças que pertencem a raças diferentes entre si. Na maioria das vezes, por questões socioeconômicas, ela ocorre entre pais brancos e crianças negras, mulatas, indígenas ou de origem asiática.
Os serviços que lidam com adoção registram com frequência muito maior a procura de pais por crianças de sua mesma raça. Tem havido, no entanto, um estímulo considerável à adoção inter-racial, buscando-se dar assistência a um grupo grande de crianças que permanecem marginalizadas e vivendo em abrigos à espera da possibilidade de serem inseridas em uma família adotiva.
Pesquisas longitudinais realizadas em vários países (Simon & Alstein, 1992; Bagley & Young, 1979; Gill & Jackson, 1983) demonstraram que, de modo geral, crianças adotadas inter-racialmente apresentavam um bom nível de adaptação familiar e social e vínculos fortes com seus pais. Seu nível de autoestima se igualava ao de crianças adotadas por pais da mesma raça. Apesar disso, há opiniões controversas a favor e contra a adoção inter-racial. Vários profissionais, como Tizard e Phoenix (1989), acreditam ser preferível a adoção dentro da mesma raça, pois dessa forma se evitam problemas relacionados com a discriminação racial ou a perda de ligação com a herança étnica da criança. Observou-se, por exemplo, que crianças negras adotadas por pais brancos se apresentavam como "brancas" e mostravam uma preferência pela "brancura".
O processo de adoção traz, de maneira geral, desafios para os pais e para a criança adotada. Como todos os pais e filhos, eles se veem diante da tarefa de fortalecer os elos que os unem e de propiciar desenvolvimento e saúde psíquica; mas, além disso, também precisam superar as dificuldades que resultam da não vinculação biológica. Nos casos de adoção inter-racial, as diferenças físicas evidentes resultam em uma série de questões que precisam ser consideradas para que este processo de filiação possa ser levado a cabo com sucesso. As expectativas e fantasias dos pais, sua motivação para a adoção, os sentimentos da criança e a forma como serão lidadas as diferenças raciais são pontos importantes na formação da identidade da criança e em seu equilíbrio psíquico, que examinaremos a seguir.
A motivação para a adoção
Vários motivos levam um casal a adotar uma criança, sendo que mais comumente há um quadro de esterilidade por parte de um ou ambos os pais. Pode haver ainda: a morte anterior de um filho; o desejo de ter filhos em uma idade em que não é mais possível tê-los biologicamente; a ideia de que se está ajudando uma criança necessitada; a falta de um parceiro amoroso; o medo de uma gravidez; o contato com uma criança específica, e outros (Levinzon, 1999, 2004). Os sentimentos dos pais e a função que a criança tem para eles são elementos preponderantes para o sucesso de uma adoção, assim como em qualquer processo de filiação. No caso da criança adotiva, isso se torna essencial, pois a situação inicial de abandono por parte dos pais biológicos torna-a mais suscetível à turbulência que pode advir do contato com os pais adotivos. Estereótipos e caminhos traçados de modo inconsciente podem representar posteriormente um fardo para a criança e para os próprios pais.
Quando há uma má elaboração da condição de esterilidade dos pais, pode-se dizer que há neles uma ferida narcísica que deixa sequelas inconscientes importantes. Nestes casos, quando o filho adotivo os frustra, ou apresenta comportamentos mais impulsivos ou agressivos, surgem as "fantasias do mau sangue": o pensamento de que se a criança tivesse nascido deles não se comportaria desta forma. Estas ideias, que por vezes não chegam à consciência, podem ocupar um espaço importante e dificultar a aceitação da especificidade da criança. Em casos de adoção inter-racial, a diferença física gritante pode funcionar como a prova odiada de que há uma descontinuidade genética entre os pais e a criança. O desejo de se perpetuar narcisi-camente por meio do filho se depara com as características peculiares deste, presentes na cor de pele escura ou nas feições que denunciam a presença de genitores desconhecidos. Como afirma Melina (1986), é mais fácil para os pais encorajarem o filho a desenvolver um sentimento de identidade racial quando a adoção não ocorre por uma condição de infertilidade. Nestes casos, os filhos apresentam uma probabilidade maior de incluírem, sem grandes conflitos, sua própria raça na imagem que têm de si mesmos. Pais que não podem ter filhos biológicos frequentemente tendem a minimizar as diferenças entre eles e o filho, em vez de considerá-las. O receio de perder o amor do filho os assusta. Quando este tem uma aparência muito diferente da deles, por vezes sentem-se mais suscetíveis a rupturas no vínculo.
Em alguns casos, as evidências de uma raça diferente na criança podem evocar nos pais sentimentos inconscientes de preconceito racial. O outro, diferente, pode funcionar como depositário de conteúdos pessoais reprimidos, reprovados ou temidos, projetados por não terem sido adequadamente elaborados. Neste sentido, o outro funciona para eles como um duplo não reconhecido, o "estranho" (Unheimliche) descrito por Freud (1919/1980). O caráter de estranheza decorre do encontro com algo que é "secretamente familiar, que foi submetido à repressão e depois voltou" (p. 306). Podemos supor que, no campo do preconceito racial, aquele que é aparentemente diferente evoca incômodo justamente por representar aspectos que reproduzem aquilo que não pode ser reconhecido como pertencente à pessoa que faz a discriminação.
Os sentimentos da criança na adoção inter-racial
Do ponto de vista da criança, há na adoção a necessidade de um esforço de adaptação. Separada de sua mãe biológica, ela se vê diante do desafio de superar a situação de desamparo inicial e de se adaptar aos novos padrões do ambiente adotivo. Os sons, cheiros, costumes, a forma de falar e de andar são alguns dos elementos que mudam e que fazem parte da imensa gama de nuances presentes no relacionamento com o outro. Quando tudo vai bem, a ferida narcísica original da criança, resultante da perda inicial da mãe biológica, dá lugar a um sentimento de satisfação das necessidades básicas e de encontro.
Na adoção inter-racial, as diferenças na raça, na cultura e, principalmente, na aparência física fazem com que o esforço de adaptação por parte da criança seja maior (Levinzon, 2009b). Ela se vê diante da tarefa de fortalecer o sentimento de pertencimento à família adotiva, de ser capaz de se desprender das semelhanças concretas e de basear-se nos sentimentos e vivências afetivas.
Entre as características peculiares a cada raça, as diferenças na cor da pele se destacam para a criança assim que ela é capaz de percebê-las. Com muita frequência, o filho demonstra o desejo de ter a mesma cor dos pais. Melina (1986) ressalta que isso não significa necessariamente uma rejeição à sua identidade racial - ao fato de pertencer, por exemplo, ao grupo dos negros, orientais ou asiáticos -, mas expressa um desejo de ser como as pessoas em volta. A identificação física com os pais e o entorno está associada com o sentimento de ter valor assim como eles. É extremamente comum observar em crianças adotadas inter-racialmente um desconforto com a diferença no padrão dos cabelos em relação à mãe adotiva. Uma vez que esta é valorizada pela criança, seu padrão de cabelos aparenta ser o melhor, o mais bonito. Além disso, o desejo de se parecer com os pais como que garantiria o sentimento de que há um vínculo de filiação forte e confiável. Afinal, o medo de um novo abandono e rejeição é um fantasma que pode estar presente em diferentes graus na criança, dependendo de sua história anterior à adoção e de sua relação com a família adotiva.
A adoção inter-racial na clínica psicanalítica
O trabalho psicanalítico com crianças adotivas e suas famílias mostra-se extremamente rico, e tem cada vez mais enveredado para uma intervenção profilática. Nos casos de adoção inter-racial, torna-se essencial que sejam realizadas entrevistas com os pais adotantes, de modo a prepará-los para as peculiaridades deste tipo de filiação. Nem sempre, no entanto, isso é possível, e nosso esforço se volta, então, para o auxílio terapêutico à criança e o trabalho concomitante com seus pais. Apresentarei, a seguir, um caso clínico que ilustrará dificuldades que podem estar presentes na adoção inter-racial e o desafio técnico que apresentam na psicoterapia psicanalítica.
Silvia era uma criança de dez anos, de cor negro-escura, adotada por pais brancos. Procuraram terapia em função dos problemas escolares dela. Seu rendimento era muito ruim, o que era motivo de intensas recriminações por parte dos pais, e brigas entre eles e a menina.
Quando adotaram Silvia, os pais já tinham uma filha adotada, branca. Na entrevista, ao me relatarem o processo de adoção, contaram que não sabiam inicialmente que ela era negra. Já estavam com ela quando o pediatra lhes informou de sua cor. As palavras da mãe na primeira entrevista já pareciam indicar as dificuldades que viriam depois: "quando você já tem um filho adotado, você não devolve uma criança".
Os pais pertenciam a um grupo social de classe econômica alta, no qual não havia pessoas negras. Silvia foi colocada em uma escola que se caracterizava pelo grande poder aquisitivo das famílias, e onde era bem tratada pelos colegas e professores. Destoava, no entanto, pela cor, e este era um assunto que nunca era tratado com a família ou com os amigos. Os pais também nunca falavam a respeito disso com ela, embora soubessem das dificuldades pelas quais ela poderia passar. Parecia ser um "assunto tabu", sempre presente e sempre silenciado. Não me admirava que Silvia tivesse problemas escolares, pois o mecanismo de negação em relação à adoção e à diferença de raça era intenso. Como poderia aprender se não podia olhar de forma mais completa para si mesma e para a realidade?
O sentimento de autoestima de Silvia era muito baixo. No nosso primeiro encontro, ela contou em detalhes as qualidades e os sucessos da irmã. Desculpou-se pela "letra feia" e por seus desenhos "horríveis". Parecia que precisava usar a irmã como cartão de visitas para se apresentar, pois imaginava que sua presença não provocaria admiração e aceitação. Sentia seu estilo pessoal, sua letra, seus desenhos como algo impróprio e aversivo. Tentando mostrar-me um "desenho bonito", Silvia resolveu copiar um urso desenhado na caixa de lápis de cor. Seus comentários indicavam a maneira como se via:
Parece um nariz de coala, mas ainda não está bom. Que bicho feio! É o meu misturado com o da caixa... Parece um monstrinho... Já que é um monstrinho, eu não vou fazer um coração. Vou fazer uma caveirinha... Precisa de assinatura?
A história que contou em seguida a um desenho também era muito sugestiva:
Essa é a história da menina que ganhou uma irmã. Ponto final. Não? A irmã dela vai se chamar Ana Lúcia, porque a mãe dela queria um nome parecido com o de sua filha mais velha e o dela. O nome da filha mais velha é Ana Luisa e o nome da mãe é Ana Lucíola. O pai da menina está trabalhando, mas já está voltando para ficar com as filhas e a esposa. O nome do pai dela é Lúcio.
Título: "Anas".
Na análise não se podia falar com Silvia sobre adoção ou sobre a diferença de cor. Ela apenas dizia que "era normal", e acabava o assunto. Havia criado uma distância protetora para se isolar da angústia e dos medos. Ela denotava sempre uma grande tristeza, da qual não se dava conta.
O que se ressaltava no caso de Silvia era o intenso mecanismo de negação da diferença de raça por parte tanto dos pais como da criança: eles não escolheram adotar uma criança negra, o que estava na origem dos problemas que vieram a seguir; ela funcionava como alguém que estava pela metade - uma parte importante de si mesma ficava fora de seu alcance, associada às dúvidas, medos e angústias decorrentes da percepção da diferença racial. Sentia-se uma "pessoa de segunda classe". No fundo, os pais também a viam desta maneira e sentiam pena dela.
Silvia apresentava como "cartão de visitas" sua irmã, branca, brilhante. Era como se pudesse transferir para si, ilusoriamente, a brancura da irmã, dos pais e do meio social em que estava inserida. Sentia-se como o "monstrinho" que desenhou, alguém que não tinha coração e que secretamente continha uma "caveira". Esta, talvez, expressasse os sentimentos hostis decorrentes da condição desprivilegiada em que sentia estar. Gostaria de se parecer com a mãe, com a irmã e com o pai, como na história de seu desenho, na qual o que caracterizava a identidade da família era a semelhança dos nomes. Se fosse da mesma raça que os pais, a condição de adoção, porventura, não ficasse tão ressaltada, pondo em evidência todo o desconhecido e os preconceitos que estavam ligados à sua origem. Além disso, Silvia captava inconscientemente a decepção que provocava na mãe pela diferença racial. Isso podia ser observado na história contada, pois era a mãe quem queria que a filha tivesse um nome parecido ao dela.
Estava muito clara a grande dificuldade que a família de Silvia tinha de lidar com a questão da diferença racial. Ficava concentrada nesse assunto a ambivalência dos pais com a adoção, especialmente por parte da mãe, que não sabia como acomodar dentro de si os sentimentos advindos da diferença racial. A tristeza latente de Silvia era o termômetro que indicava o desencontro com os pais. Seu sentimento de um real pertencimento à família adotiva era muito frágil. Ela não encontrava um lugar para existir como alguém que tinha valor e procurava fugir o quanto podia da percepção da dor que sentia.
As dificuldades escolares denunciavam o grande prejuízo que resultava desta forma de se relacionar com partes valiosas de si mesma. Sua identidade estava assentada apenas sobre um pedaço de si.
Na psicoterapia, Silvia se mostrava cautelosa. Parecia estar com muito medo de se aproximar de mim, de contar comigo e de se decepcionar. Para ela, a analista era aquela que lhe proporcionava uma esperança de um contato nutridor, mas ao mesmo tempo aquela que podia trazer-lhe novamente desencontro, dor e abandono. Aos poucos, fomos superando os obstáculos e houve maior aproximação.
Quando houve um progresso na confiança que ela depositava em mim, uma brincadeira que inventamos juntas trouxe o assunto da questão racial para dentro da nossa relação. Certo dia, Silvia me falou algo usando um sotaque baiano, e aproveitei a oportunidade respondendo-lhe com o mesmo sotaque. Ela ficou encantada, e a partir daí, por muitas sessões "falamos em baiano", o que parecia representar uma menção ao grupo social ao qual, no fundo, ela achava que fazia parte - como sabemos, no Brasil é comum os baianos terem pele escura. Outra brincadeira importante que foi introduzida foram os batuques. Um dia, ela fez alguns batuques sobre a mesa, e eu a acompanhei, reproduzindo o seu ritmo. Com muita alegria, as batucadas se tornaram então um ingrediente importante em nosso contato. Elas pareciam trazer o ritmo afro, característico da etnia a que pertencia Silvia. Era ela quem imprimia o ritmo, e eu apenas a acompanhava. Era notável observar nestes momentos como seu rosto se iluminava, deixando para trás a menina triste e deprimida. Ela passou também a "fazer gracinhas" para que eu a admirasse, como uma criança que espera encontrar nos olhos dos pais que é especial e que tem valor.
Em uma das sessões, Silvia trouxe para me mostrar uma pasta encapada com uma longa poesia escrita por ela. A poesia dizia:
Deve-se sempre procurar a alegria e evitar a tristeza. Se uma pessoa tem alguém que a ame de verdade, pode sentir-se contente, mesmo se for feia e tiver coisas em si que não gosta. É muito importante o amor de outra pessoa trazendo a felicidade e afastando a tristeza...
Silvia parecia mais alegre e confiante. Através do processo analítico, a paciente podia falar de seu desejo de viver experiências de afinidade, reconhecimento e sintonia. Como uma estrangeira em terra estranha, ela procurava alguém que falasse seu idioma, e que pudesse ver nela belezas...
No espaço analítico, seu lado afro-americano passou a encontrar uma forma de expressão, por meio do sotaque baiano e dos batuques compartilhados comigo. Era interessante observar que isso não se passava no nível verbal consciente, mas por meio de expressões sensoriais ou ligadas a movimentos corporais. Silvia não podia falar de algo que tinha ficado tão inacessível, mas podia reproduzir a música presente na fala e os movimentos rítmicos que faziam parte do núcleo de si mesma. Ser acompanhada neste processo equivalia à paciente a um processo de "narcisização", no qual ela conquistava o direito de ser vista como alguém que irradia uma luz própria e especial. Nesse momento da psicoterapia, o trabalho principal consistia em criar o espaço transicional (Winnicott, 1971/1975) no qual Silvia podia voltar a ser um bebê, que encontrava na transferência a mãe biológica, com ritmos e sons familiares. A afinidade racial era também experimentada por meio de nossas brincadeiras. Ao mesmo tempo, criava-se uma relação com uma "mãe adotiva simbólica", que era maleável o suficiente para "sonhar" com ela. A psicoterapia precisava avançar mais para que, aos poucos, estas experiências construídas pela dupla analisanda-analista, o "terceiro analítico" descrito por Ogden (1996), pudessem ser acompanhadas por interpretações verbais mais explícitas, que pudessem fazer sentido para a paciente.
A questão da identidade na adoção inter-racial
A identidade pode ser definida como uma organização interna dinâmica que inclui objetivos, habilidades, crenças e a história individual de uma pessoa. Ela vai sendo construída desde o nascimento, em um processo que acompanha o desenvolvimento do indivíduo. A qualidade das relações familiares, a inclusão dentro de uma comunidade, as características pessoais e os diversos vínculos significativos são fatores importantes a serem considerados neste processo.
A pergunta "quem sou eu" é extremamente desafiadora, e por vezes angustiante para a criança e para o adolescente adotados. Ela levanta indagações sobre sua origem e sua identificação com os pais biológicos e adotivos, especialmente quando há diferenças visíveis entre a criança e o meio familiar e social em que está sendo criada. Muitas vezes, a criança está sujeita a mensagens discriminatórias sutis ou explícitas vindas da sociedade e, em alguns casos, dos próprios pais, que contribuem para a formação de percepções negativas sobre si mesma (Lancaster, 1996).
As dificuldades em relação à formação de uma autoimagem valorizada eram o ponto que mais se destacava em Silvia. Seus pais não escolheram ter uma filha negra e estavam despreparados ao trilhar este caminho. A decepção estava sempre presente implicitamente e era captada pela criança. Ela foi criada como se não fosse negra, com uma negação importante de sua especificidade. Decorria deste quadro um sentimento forte de inferioridade e uma autoestima rebaixada. Para se sentir de fato adotada, ela tinha que funcionar como se fosse uma criança branca, e precisava abafar aquilo que a caracterizava como pessoa única. Sua poesia enfatizava a importância de se sentir "amada de verdade", o que podia ser entendido como ser apreciada pelo que de fato era, e não pelo suposto modelo ao qual deveria corresponder.
Como função de sobrevivência, Silvia desenvolveu uma espécie de falso self branco, que ela esperava que desse lugar à legitimação de sua negritude, àquilo que correspondia a uma parte de si mesma, preciosa e genuína.
Winnicott (1960/1983) ressalta a importância de um ambiente suficientemente bom na formação do sentimento de existência de uma pessoa. O self verdadeiro torna-se uma realidade viva como resultado repetido do êxito da mãe em responder ao gesto espontâneo do bebê. A espontaneidade e a criatividade são decorrências do sucesso deste processo. Falhas pronunciadas e constantes do ambiente podem provocar sensações de catástrofe ou de ameaça de desintegração. Como defesa contra o que Winnicott (1963/1994) denominou de angústias inimagináveis, a criança pode reagir com um sistema defensivo que se caracteriza por uma dissociação de partes de si mesma. Cria-se assim um falso self, com o objetivo de proteger o verdadeiro self, para evitar seu aniquilamento. A criança se especializa em procurar agradar ao ambiente, em vez de poder ser fundamentalmente ela mesma. O contato com sua impulsividade e sua criatividade fica prejudicado, o que resulta em um empobrecimento de sua personalidade.
Lifton (1994) ressalta que as crianças adotivas não podem formar um sentimento de identidade consistente quando negam maciçamente as questões relativas à sua origem e à percepção de si mesmas. Parte delas fica isolada, em um processo de dissociação do seu self, e predominam sentimentos de vazio, assim como de ansiedade difusa.
Os temores e angústias dos pais adotivos com relação à adoção representam um ponto importante na dificuldade da criança em construir um sentimento de autenticidade quanto à sua identidade. Em alguns casos, para se tranquilizarem quanto à descontinuidade genética que existe entre eles e o filho, esperam que a criança se porte segundo um determinado padrão. O "bom adotado" (Levinzon, 2009a) não expõe a todos com questionamentos sobre sua origem biológica, sua história, suas dúvidas... Este equilíbrio, no entanto, é frágil. A criança passa, com o tempo, a apresentar sintomas para que possa encontrar uma forma de existência mais real e plena.
As dificuldades escolares de Silvia podiam ser compreendidas como a indicação de que havia um colapso desta forma de organização psíquica. Ao se apresentar ressaltando as qualidades da irmã ou copiando o desenho da caixa de lápis, ela mostrava o quanto procurava atingir um modelo externo que imaginava que era esperado dela. Havia lugar para a cópia, para a mimetização, mas não para ela mesma. Foi necessário um longo caminho para que, aos poucos, com a ajuda da psicoterapia, ela pudesse explorar seus aspectos mais criativos.
A grande dificuldade dos pais em se aproximar dela e suas angústias e preconceitos com relação à questão racial estavam na gênese desta configuração psíquica. Os problemas escolares da filha, por exemplo, eram associados inconscientemente a uma condição biológica desprivilegiada, e o mesmo se passava com a diferença da cor da pele. As intensas recri-minações com relação aos estudos revelavam, no fundo, sua decepção com o processo de adoção. Além disso, ficava claro que Silvia funcionava como o depositário da projeção dos próprios aspectos desvalorizados dos pais adotivos. O trabalho com eles, paralelo à psicoterapia da criança, mostrou-se de extrema importância para lidar com estas questões e preparar o caminho para mudanças.
A saúde na adoção inter-racial
A adoção inter-racial apresenta desafios que podem ser enfrentados com sucesso, especialmente se algumas condições forem respeitadas. É essencialmente importante que os pais adotivos sejam preparados para o que poderão viver com a criança. As diferenças físicas, os questionamentos, as dúvidas estarão sempre presentes e deverão ser tratados com a importância e o cuidado adequados. Para isto, os pais precisam ter elaborado suficientemente os motivos que os levaram à adoção.
Frequentemente, na raiz de adoções inter-raciais malsucedidas, está uma idealização do processo de adoção que não leva em conta as peculiaridades deste tipo de filiação. Os pais necessitam considerar que precisarão ajudar a criança a desenvolver um sentimento consistente de identidade, que inclua sua especificidade racial. Proporcionar à criança contato com outras pessoas e com modelos de sua raça, dar-lhe acesso a material cultural relacionado com sua etnia, oferecer uma imagem positiva de sua raça são algumas das medidas que podem ajudar a criança a formar uma imagem de si mesma valorizada e integrada. A "narcisização" saudável inclui este olhar proporcionado à criança.
Uma criança mulata criada por pais brancos, por exemplo, pode ter acesso à história, tradições e costumes da cultura negra, de modo a abrir espaço para que ela inclua estes elementos em sua vida e possa celebrá-los. Para que estas medidas sejam efetivas, no entanto, é necessário que os pais estejam aptos a lidar de modo sincero com seus sentimentos em relação à diferença racial. Afinal, como afirma Freud (1914/1980, p. 117), "ser amado, ser correspondido no amor e possuir o objeto amado" contribui para a manutenção de uma autoestima elevada. Caso isso não tenha acontecido, a hostilidade inconsciente pode invalidar os esforços realizados. Além disso, os pais precisam estar preparados para lidar com manifestações de racismo com as quais a criança e eles mesmos poderão se deparar.
A intervenção do psicanalista neste processo é valiosa, tanto no estágio inicial de preparação dos pais quanto no acompanhamento posterior da família, que varia segundo cada caso, de modo a proporcionar cada vez mais condições para um bom desenvolvimento.
Estabelecer um vínculo de filiação forte e estável, no qual as diferenças são respeitadas e vividas como possibilidade de enriquecimento pessoal, está na base da saúde da adoção inter-racial. São as condições que permitem à criança crescer sentindo que sua existência é real e tem valor.
Referências
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Correspondência:
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Recebido em 10.9.2012
Aceito em 1.2.2013