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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.4 São Paulo out./dez. 2013

 

TRABALHOS PREMIADOS

 

Realidade sensorial e realidade psíquica: trânsito e turbulência1

 

Sensory reality and psychic reality: transit and turbulence

 

Realidad sensorial y realidad psíquica: tránsito y turbulencia

 

 

Cláudia Aparecida Carneiro

Psicanalista, membro associado da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SBP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho clínico se propõe a examinar o trânsito de estados de mente da analista e de sua paciente, trânsito que se dá entre a percepção de impressões sensoriais e a apreensão da realidade psíquica, que só é possível por meio da experiência emocional vivenciada na relação analítica. Traz reflexões sobre a capacidade da dupla analítica de se mover entre o mundo sensorial e o não sensorial e de sofrer turbulência na situação de análise.

Palavras-chave: realidade sensorial; realidade psíquica; sensorialidade; turbulência; experiência emocional.


ABSTRACT

This paper examines the transit of states of mind of the analyst and her patient, transit that occurs between the perception of sensory impressions and the apprehension of psychic reality, which is only possible through the emotional experience that occurs in the analytic relationship. It presents reflections on the capacity of the analytic pair to move between the sensory and non-sensory worlds and to suffer turbulence in the situation of analysis.

Keywords: sensory reality; psychic reality; sensoriality; turbulence; emotional experience.


RESUMEN

En este trabajo se propone examinar el tránsito de los estados de la mente del analista y de su paciente, tránsito que tiene lugar entre la percepción de las impresiones sensoriales y la aprehensión de la realidad psíquica, que solo es posible a través de la experiencia emocional en la relación analítica. Reflexiona sobre la capacidad de la díada analítica para moverse entre el mundo sensorial y el mundo no sensorial y sufrir turbulencia en la situación del análisis.

Palabras clave: realidad sensorial; la realidad psíquica; sensorialidad; turbulencia; experiencia emocional.


 

 

Quando Freud retirou a consciência do centro da investigação analítica da experiência humana e redirecionou a atenção para a realidade psíquica - expressão criada por ele -, situou o foco de observação da psicanálise naquilo que escapa à experiência sensorial. Mas não desprezou a realidade das impressões sensoriais, concretas, como porta de entrada - de difícil passagem - para o mundo emocional. O encontro entre paciente e analista é sempre estimulado por fatos e impressões captáveis pelo aparelho sensorial do analista, e este não pode se libertar inteiramente do domínio do sensório, ainda que a experiência psicanalítica pertença ao domínio da realidade psíquica.

Procuro examinar neste trabalho clínico o trânsito de estados de mente da analista e de sua paciente, trânsito que se dá entre o que é percebido e comunicado pelos sentidos e o que pode ser captado de uma realidade psíquica, indizível, e somente apreensível através da experiência emocional vivenciada na relação analítica. Chamo a atenção para o movimento dinâmico desses estados mentais experimentados pela dupla: de confusão, fragmentação e recorrência à sensorialidade diante da ameaça de intensa dor mental, e de maleabilidade e maior disponibilidade mental para tolerar momentos de turbulência.

Freud propôs uma disciplina ao analista para que trabalhe em estado de atenção livre flutuante, a fim de manter uma disponibilidade mental que possibilite seguir o fluxo das associações livres (do paciente e as suas) e adentrar o espaço do não conhecido. O método criado por Freud foi definido por Bion como a capacidade para alcançar um estado mental "sem memória, sem desejo e sem ânsia de compreensão" e sem interferências sensoriais (Chuster et al., 2003). Dos diferentes vértices utilizados para observação de experiências emocionais, Bion tomou a experiência mística como modelo de abordagem da realidade psíquica - experiência que conduz à obscuridade da alma para que, no escuro, se possa alcançar um facho de luz (verdade).

 

O vértice místico

Ele tinha duas pequenas cruzes de marfim que encostava sobre os olhos dos consultados. O adivinho cerrava os seus próprios olhos: se concentrava, todo dentro das pálpebras, até abraçar com seu escuro o escuro do outro. Nesse tocar de penumbras se escrevia o exato da data dos falecimentos.
(Mia Couto, 2012, p. 137, grifo meu)

A experiência mística da qual fala Bion é aqui lembrada como modelo para o trabalho ao qual o analista deve estar atento quando em contato com o mundo factual do paciente e o seu próprio. O trecho do conto de Mia Couto, ainda que adornado de elementos sensoriais e crença religiosa ("cruzes", "adivinhação"), me vale para breves pensamentos sobre o "escuro" que nossos sentidos não podem experimentar. Bion (1970/2006) expõe no texto "Realidade sensorial e psíquica" formulações a respeito de O para se referir à realidade psíquica. O símbolo representa a realidade última, verdade absoluta, divindade, infinito, a coisa-em-si kantiana - termos empregados para indicar essa verdade que é "escuridão e ausência de forma", que não pode ser "conhecida" mas pode "tornar-se". As condições para se ter contato com a realidade última distanciam a mente de qualquer atividade de raciocínio e do sensório - sem memória e sem desejo - e a aproximam de experiência semelhante à dos místicos, cujo estado mental Bion denomina de ato de fé.

Não a crença em certezas, mas a fé em possiblidades. "Evoluir para O" requer escuridão da alma - abster-se de memória e desejo, o tanto quanto possível, para viver a experiência de fé e vazio. Bion tomou a experiência mística de São João da Cruz (século XVI), descrita em "Subida do Monte Carmelo" e "Noite escura"2, como modelo para a experiência psicanalítica, vivida não sem turbulência. Em equivalência a esse estado de mente, de "qualidade dolorosa", está a descrição de São João da Cruz: nela se expõe a necessidade de a alma renunciar aos sentidos para colocar-se na obscuridade e no vazio, a fim de procurar o divino. A privação das paixões e desejos é noite escura: na ausência de luz e dos objetos visíveis o homem se despojaria das coisas temporais e corporais (memória e desejo) para caminhar às escuras no sentido de alcançar verdade e luz.

Freud recomendou ao analista "cegar-se artificialmente" para perceber luz na escuridão - vislumbrar a realidade psíquica. A este estado de mente São João da Cruz referiu-se como "noite da alma": primeiro porque a renúncia ao desejo das coisas do mundo é noite para os sentidos; noite também no sentido de fé, pois a via para atingir a realidade última é tão escura quanto a noite; e, ainda, noite como o ponto pelo qual a alma busca Deus (O, nos termos de Bion). Ressalta Sandler (1997) que aquilo que o místico descreve como experiência mística abrange justamente o que há de mais caro à ciência: experiência e verdade.

 

Um vértice psicanalítico

I

Ouve-me, ouve o silêncio. O que te falo nunca é o que eu te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e no entanto vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão.
(Clarice Lispector, 1998, p. 14, grifo meu)

Apresentarei fragmentos de material clínico com o intuito de que as experiências emocionais vividas pela paciente e pela analista possam ser observadas de um vértice psicanalítico, tendo como foco de observação a dinâmica e a complexidade dos estados mentais em trânsito entre a realidade sensorial e a realidade psíquica, e os momentos de turbulência vividos pela dupla analítica. Essa experiência de análise também ilustra o trabalho de desenvolvimento da escuta analítica e de disponibilidade mental do analista que propicia, ao analisando, contato mais íntimo com seu mundo interno.

Amélie procurou-me aos vinte e quatro anos, sob a tempestade de uma desilusão amorosa. Vivia um momento de muita confusão e ansiedade, e minhas primeiras impressões foram de um contraste entre a forma com que ela se apresentava a mim e o conteúdo desta apresentação.

As impressões sensoriais do analista são inevitáveis e, talvez por isso, úteis à observação. No primeiro contato, a voz de Amélie soou-me poesia. Expressava-se com uma delicadeza que não combinava com seu relato de experiências traumáticas. Parecia conter sob a pele a violência anunciada nas palavras. "Eu me envolvo com homens que bebem muito e se drogam. É sempre barra pesada. Meus pais me obrigaram a fazer um segundo aborto, meu namorado ameaçou matá-los, tive que fugir, mas tudo que quero é voltar a vê-lo". Perguntei-me se aquela moça bonita, de traços e gestos graciosos, ocultava uma loba sob a pele de cordeira. Começamos com três sessões semanais, passamos depois para quatro e trabalhamos juntas durante sete anos.

Sua queixa inicial e recorrente era a compulsão alimentar. As repetidas frustrações decorrentes de seus investimentos amorosos eram compensadas em rituais noturnos em que comia até não aguentar mais. "Fico aliviada, mas depois vem o avesso e me sinto horrível" Impossibilitada de tolerar dor psíquica, buscava prazeres imediatos para aliviar-se da sensação de "buraco oco" e "avesso". A compulsão tem inequívoco caráter fisiológico, material. Diante da frustração, a tentativa de satisfazer-se alucinatoriamente fracassa. A paciente sinalizava intuir os mecanismos de autodestruição que entravam em ação na forma de atos compulsivos de efeito explosivo - tanto que usava o termo "detonar" para referir-se a tais atos.

Os impulsos destrutivos do paciente podem representar ameaça de aniquilamento e levar a estados de desintegração, contra os quais ele se defende cindindo impulsos/emoções. Ao evitar contato com a dor mental, o recurso à sensorialidade, por meio de processos de cisão (divisão), mantinha Amélie em um movimento oscilatório, entre a calma e o desespero.

II

O que te direi? Te direi os instantes. Exorbito-me e só então é que existo e de um modo febril. Que febre: conseguirei um dia parar de viver? Ai de mim, que tanto morro.
(Clarice Lispector, 1998, p. 20, grifo meu)

Detonar tem significados de explodir, provocar explosão, devorar, disparar. A força pulsional dispara o ato; não há espaço psíquico para o pensar. Associo o termo ao efeito-bomba de um acting. Amélie dizia-me que não podia parar para pensar, e que a comida era a sua droga. O recurso para encobrir o sentimento de vazio e inanição era atualizado por outros expedientes do sensorio - detonava com drogas, relacionamentos violentos, exposição a situações de risco -, dando concretude ao desespero e ódio de si mesma.

A situação analítica permite aproximação cuidadosa à dor mental que o paciente tenta repelir, mas pode acionar mecanismos de resistência e fazer emergir com mais força os aspectos nocivos de seu psiquismo. Nos dois primeiros anos de análise era frequente Amélie chegar à sessão relatando como ficara "mal" depois de nosso último encontro. "Essa raiva que sinto... Fiquei muito perdida e fiz burrada no fim de semana. Detonei. É difícil localizar as coisas dentro da gente" Afirmava-lhe perceber que ela sentia não restar outra saída a não ser detonar a raiva, mas que esse era um campo minado: provocava explosão e implodia também.

Com alguma frequência sentia-me inundada pelos fatos e experiências violentas que a paciente trazia para as sessões. Um excesso de elementos factuais de carga destrutiva fazia-me sentir impotente, limitada a ser recipiente de suas evacuações. Enchente carrega destroços. A força destruidora da correnteza (força pulsional) pode ser tal que leva o que encontra pela frente; se o caminho estiver livre (processo primário), os destroços serão arrastados até que passe a tempestade. Eu me sentia presa aos destroços (o mundo sensível, momentos de estado esquizoparanoide da analista), sendo levada pela correnteza.

Situações como essa enredam o par analítico e dificultam ou impedem a transformação de elementos sensoriais em material a ser pensado e sonhado (elementos a).

Como lidar com o mundo factual do paciente? Sugere Bion que o analista passe a lidar "rudemente" com dados e relatos factuais do paciente, e até a ignorá-los (cegar-se artificialmente), para criar um espaço onde o inconsciente possa emergir (Sandler, 1988). Para o autor existe um perigo, pois

... o analista também vive em um mundo factual e é continuamente convidado a se diluir neste mundo e a se perder neste mundo - do mesmo modo que o paciente já o fez. A dura luta pela vida às vezes produz um abismo quase intransponível entre o mundo factual e o mundo "emocional". O analista não deveria "navegar" nestes mares que, a rigor, ele não navega mesmo, nem que queira, pois ele não vive nem observa os fenômenos relatados pelo paciente (p. 76).

A situação analítica, para propiciar um encontro de escuros, requer o trabalho de apreender não o que a palavra diz, mas o que ela não diz. Ou seja, pescar a entrelinha, na prosa de Clarice Lispector.

III

Que mal porém tem eu me afastar da lógica? Estou lidando com a matéria-prima. Estou atrás do que fica atrás do pensamento.
(Clarice Lispector, 1998, p. 12, grifo meu)

Situações de excessiva identificação projetiva reduzem as chances de livre associação. Nesse estado mental, o paciente tenta livrar-se das angústias, ou de parte delas, evacuando-as para fora - no caso, para o analista, que se torna o receptor desse processo. É também uma maneira de comunicar seu desespero. Como consequência, perde as partes boas de si e vive estados de esvaziamento da mente (Green, 1998/2000) e de ódio de si mesmo. Na impossibilidade de pensar, parte para a ação. Amélie enchia seu vazio de objetos idealizados, que vorazmente introjetava para em seguida expeli-los. Com ela, eu vivia estados de esvaziamento de minha capacidade de pensar.

A resistência do par analítico ancorado no solo concreto da sensorialidade pode revelar um conluio inconsciente e favorecer uma estagnação do processo analítico. Entendo ser esta uma resistência à turbulência vivida na experiência emocional em direção ao pensamento, o qual não está dissociado da dor, sofrimento, prazer e êxtase, conforme propõe Green (1998/2000): tanto a dor como a experiência prazerosa são difíceis de serem toleradas. A resistência do analista pode determinar que o trabalho com o paciente siga adiante conversando sobre psicanálise, em vez de sendo psicanálise (Grinberg, 1981).

Na transferência com a analista, Amélie alternava-se entre a boa menina que cuidava dos pais (e de mim), identificada com as histórias deles de desamor e abandono, e a filha de "avesso horrível", desprezada e abandonada. Esse movimento parecia trazer-lhe algum alívio. Como "desprezada", isentava-se de reparar seus objetos estragados e expelia parte de seu ódio à frustração; essa descarga pulsional desencadeava um sentimento de culpa e então surgia a boa moça que "adotava" os próprios pais.

O estado mental de minha paciente era predominantemente o de alguém que não pode esperar, tolerar a frustração da falta de um seio provedor. Conjeturo um mundo interno em que a força de impulsos vorazes impossibilita a pessoa de introjetar um seio que lhe dê amor e compreensão. Temendo a própria violência (e a de seus objetos), ela se priva de alimento para a alma (amor e generosidade) e se agarra vorazmente a todos os "seios" que possam garantir satisfação material. Faminta de afeto, atira-se a uma busca insaciável por "comodidades materiais" (Bion, 1962/1980).

Freud (1905/1987) já afirmara nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" que a intensidade e o destino dos impulsos sádico-orais são determinantes nas relações objetais perturbadoras na fase adulta. Sob o domínio do princípio de prazer, a pessoa não tem internalizado o objeto nutridor, fica sem alimento para seu gasto. Como drogas que são "substitutos empregados por aqueles que não podem esperar" (Bion, 1992/2000, p. 308), entendo que mentiras são substitutos para atenuar uma realidade psíquica não tolerada.

Que tipo de mentira nos circundava? Por volta do quinto ano de análise, Amélie levou-me um livro intitulado Mentiras no divã. Disse-lhe: "Podemos suportar o fato de que a verdade é dolorosa?" Fez uma pausa e me disse: "Acho que detonar é uma mentira que criei por achar que sou assim, inferior, feia. Uma mentira necessária". Passou a explorar mais verdades sobre si mesma: "Crio uma falsa ideia sobre a ideia dos outros a meu respeito. Me agarro às pessoas, tenho medo de perdê-las, e depois as afasto para não sofrer o medo de não viver".

Caso possa se aproximar da verdade, o paciente se deparará com a dor de trocar o falso pelo verdadeiro. Nessa circunstância, a relação analítica sofre transformações; novos significados surgem das experiências emocionais do par analítico. As sessões com Amélie abriram espaço para mais pausas. São momentos de silêncio cálido e doloroso; soam com profundidade. Na ausência e na dor pode-se crescer psiquicamente.

IV

Há muita coisa a dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras. Mas recuso-me a inventar novas ... Atrás do pensamento não há palavras: é-se.
(Clarice Lispector, 1998, p. 27, grifo meu)

O contato com verdades sobre si mesmo pode impor obstáculos à continuidade do processo. Nos esboços de elaboração da posição depressiva, um ponto crítico assinalado por Steiner (1987/1991) é o de que, na fantasia inconsciente, o indivíduo tem de encarar sua incapacidade de proteger o objeto quando se iniciam os estágios de luto. Nessas transições, segundo o autor, a realidade psíquica do paciente inclui a percepção do "desastre interno criado por seu sadismo" (p. 331). Seu amor e desejo de reparar são insuficientes para preservar o objeto, e por isto deve permitir que este morra, a despeito de seu desespero e culpa.

Se tal experiência não é enfrentada, o paciente pode recorrer a uma organização patológica narcísica de defesa contra as ansiedades das posições esquizoparanoide e depressiva (Steiner, 1987/1991). A pessoa acena para a elaboração de sentimentos de perda e de culpa, mas recua para um útero (refúgio psíquico). Penso na importância de o analista estar atento a essas oscilações e sentimentos ambivalentes do paciente. A tristeza que permeia instantes da posição depressiva, pela perda do objeto e pela agressividade dirigida a ele, difere da depressão, que leva a pessoa a castigar-se para se redimir da culpa persecutoria.

Frustração é via de expansão psíquica. Se não ocorre a satisfação esperada pelo psíquico sob domínio do princípio de prazer, a tentativa de satisfação pela alucinação é abandonada. Ocorre uma alteração real nestas circunstâncias e passa a vigorar o princípio de realidade (Freud, 1911/2004). O contato com a realidade frustra e imprime a necessidade de abordar o novo. Penso que essa abordagem, na qual trabalha a psique, tende a equilibrar forças internas: o que é desprazer não alcança prazer, e este é adiado ou modificado pelo útil.

Em momentos de expansão psíquica, Amélie podia decidir e experimentava a utilidade de dizer não ao excesso, ao repetitivo, às suas "drogas". Eu assinalava como esses momentos eram expansivos - ela era capaz de dizer não sem enlouquecer. Aqui também reside um perigo, pois dizer não aos seus objetos implica uma renúncia dolorosa a uma parte de si mesmo. Entendo que o aspecto familiar das compulsões (assim o era com minha paciente) está relacionado ao desejo de nunca ter se separado psiquicamente do objeto original. Pode predominar a sensação de nulidade e de confusão entre separação e desamparo. Neste estado mental, a pessoa não experimenta intimidade consigo mesma, pois a condição para isto é estar separada e não fusionada com o objeto. No predomínio de identificação projetiva e introjetiva, self e objeto externo se confundem. Separar-se ou diferenciar-se é entrar em estado de inanição.

Ressalta Bion (1962/1994) que o ponto crucial para o bebê (ou o paciente em análise) desenvolver um aparelho para pensar está na capacidade de tolerar a frustração do "seio ausente". Se a incapacidade de tolerar frustração for premente, o que deveria ser pensamento serve para ser evacuado. Se o paciente vive momentos de tolerância à frustração (posição depressiva), ele pode modificá-la e diminuir o fosso entre a necessidade e a satisfação. Cria imagem mental e aproxima-se da realidade psíquica.

 

Algumas reflexões

A situação analítica exposta remete a um funcionamento mental que se alterna entre estados de vazio, aplacados pela idealização e voracidade, e experiências de perda e falibilidade, aspectos da relação de livre movimento PS↔D postulada por Bion.

A mente que não tolera frustração evacua os produtos de sua avidez e voracidade. Vive estados de vazio sem recursos que permitam alguma autonomia psíquica. O processo analítico abre frentes para incursões na posição depressiva. Nestas condições, o paciente pode experimentar um estado mental mais capacitado a suportar os efeitos da ação de forças demolidoras e tirar algum proveito dessas experiências.

A oscilação PS↔D foi descrita por Bion (1963/2004) como habitual e predominante no estado de mente experimentado por um paciente em análise e pode ocorrer também na dupla analítica. Proponho pensar o movimento PS↔D como uma função que busca equilíbrio e mantém a atividade psíquica entre sobrecarga e descarga, desintegração e integração, entre o evacuar e o pensar. O trânsito entre experiências sensoriais e emocionais vivenciadas pelo par analítico parece atender a essa função e está de acordo com o movimento dinâmico da mente, exposto por Bion, que tem como precondição o interjogo entre as posições esquizoparanoide e depressiva. Bion descreve o processo de mudança (transformações) como um processo de desintegração e reintegração e supõe que a descoberta de um continente capaz de receber as angústias e necessidades do paciente (conteúdo) depende desta operação.

O trabalho analítico com Amélie permitiu-me a experiência viva de percorrer com ela fronteiras entre o sensorial e o psíquico e sofrer momentos de turbulência nas sessões. Quanto à paciente, vivenciar culpa diante da agressividade dirigida a si e aos seus objetos possibilitou-lhe construir elos de integração psíquica e relacionamento com um objeto total, de amor e ódio, coexistindo em seu espaço psíquico.

A predominância dos mecanismos primitivos do funcionamento mental da paciente e o movimento dinâmico da relação PS↔D atuando na dupla analítica apontam para a importância de o analista manter séria disciplina, que propicie atenção livre flutuante, provendo a si um espaço mental disponível para diminuir o abismo entre o mundo factual e o emocional. A experiência analítica viva corrobora o enunciado por Bion de que a oscilação PS↔D tem a particularidade de um movimento helicoidal em que, a cada retorno à posição esquizopa-ranoide, avança-se com relação ao estado anterior em ps, caso o paciente possa processar o erro, a incerteza e a dúvida.

 

Referências

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Correspondência:
Cláudia Aparecida Carneiro
Sociedade de Psicanálise de Brasília
SHIS QI 09, Bloco E-2, sala 309
71625-009 Brasília, DF
claudiacarneiro@hotmail.com

Recebido em 18.9.2013
Aceito em 21.10.2013

 

 

1 Texto vencedor do Prêmio Mário Martins, conferido durante o XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em Campo Grande, MS, de 25 a 28 de setembro de 2013.
2 Cf. Obras completas de São João da Cruz (1984).

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