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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.48 no.2 São Paulo abr./jun. 2014
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A arte salva? Almodóvar, Louise Bourgeois, Bispo do Rosário e Ela1
Does art save? Almodóvar, Louise Bourgeois, Bispo do Rosário and Ela
¿El arte salva? Almodóvar, Louise Bourgeois, Bispo do Rosário y Ela
João A. Frayze-Pereira
Membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Professor livre-docente do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (USP). Professor orientador do Programa de Pós-Graduação (Doutorado) em História da Arte da Universidade de Lisboa
RESUMO
A situação de uma paciente em análise que descobre a pintura, sem se preocupar com o seu reconhecimento como artista, é considerada por associação a certa tradição que reconhece como arte a produção plástica dos não profissionais (art brut). À pergunta "A arte salva?", respondemos com uma reflexão sobre a questão dos limites e das relações entre ideologia/saber, tradição/esquecimento da origem no campo da arte e da psicanálise.
Palavras-chave: arte; clínica; criatividade; tradição; invenção.
ABSTRACT
The situation of a patient in analysis who discovers painting, without worrying about being recognized as an artist, is analyzed through association with a certain tradition that recognizes as art the production of non-professionals (art brut). To answer the question "Does art save?", we present a reflection on the issue of the limits and relations between ideology/knowledge, tradition/oblivion of origin in the fields of art and psychoanalysis.
Keywords: art; clinic; creativity; tradition; invention.
RESUMEN
La situación de una paciente en análisis que descubre la pintura, sin preocuparse por su reconocimiento como artista, es considerado por la asociación con cierta tradición que reconoce como arte la producción plástica de los no profesionales (art brut). A la pregunta "¿El arte salva?", respondemos con una reflexión sobre la cuestión de los límites y las relaciones entre ideología/conocimiento, tradición/olvido del origen en el campo del arte y del psicoanálisis.
Palabras clave: arte; clínica; creatividad; tradición; invención.
No filme A pele que habito, de Pedro Almodóvar, a personagem Vera, que foi Vicente -jovem sequestrado, enclausurado e submetido a uma cirurgia para mudança de sexo à sua revelia -, ao entrar em contato com a obra de Louise Bourgeois, passa a fazer esculturas com materiais diversos, principalmente tecidos, gaze, ataduras e gesso, como é próprio dos objetos construídos por Louise. Vera registra na parede de seu quarto a cronologia da sua clausura, escrevendo palavras incessantemente repetidas - "respirar, necessito respirar, necessito das palavras" como fazia Arthur Bispo do Rosário, que bordava palavras em seus estandartes, indumentárias e objetos, inclusive a frase enigmática - "eu preciso destas palavras, escrita"
Para Almodóvar, a obra de Louise Bourgeois não apenas o emocionou, mas salvou a vida da personagem Vera, como ele mesmo reconhece ao agradecer à artista nos créditos projetados ao final do filme. De fato, Louise, num de seus textos autobiográficos, afirma que a arte salvou a sua existência. E reconhece que a situação de seus pais, restauradores de tapeçarias, inspirou-a, embora admita também que a sua motivação para a arte era mais básica. A artista declara:
Eu deveria ter um trabalho. Deveria fazer algo que valesse a pena, como coisas de homem, em vez de sempre fazer coisas de mulher. [...] Talvez eu devesse ser alguma outra coisa, fazer ou ser alguma outra coisa - há alguma coisa errada com o que faço, e talvez isso signifique que haja algo errado com o que sou. Fazer alguma outra coisa, mudar a maneira que desejo, fazer o que quero da minha maneira, não da maneira deles, mudar, alterar, refazer, transformar, melhorar, reconstruir - eu mudo o mundo ao meu redor por não poder mudar a mim mesma (Bourgeois, 2008, p. 130; tradução nossa).
Para sobreviver, tive de inventar formas de me tornar apreciada. Era a única forma de escapar da depressão que vinha do fato de me sentir supérflua, me sentir abandonada. Mudei de um papel passivo para um ativo, que é uma arte que pratiquei a vida inteira - a arte de combater a depressão (a dependência emocional). [...] As conexões que faço em meu trabalho são conexões que não posso encarar. São na verdade conexões inconscientes. O artista tem o privilégio de estar em contato com o seu inconsciente, e isso é um dom. É a definição da sanidade. É a definição da autorrealização (Bourgeois, 2000, pp.167 e 367).
Essas reflexões lembraram-me de Ela - uma paciente que esteve comigo em análise. Aos 50 anos, inicia o processo bastante deprimida, pouco depois de descobrir que seu marido mantinha outra mulher e filhos, isto é, outra família. Considerando a situação insustentável, contra a vontade de seus irmãos e de seus quatro filhos, exige o divórcio. Dona de casa, passa a viver sobretudo da boa herança que recebera de seus pais, já falecidos, dada a insuficiência da pensão paga pelo ex-marido. Porém, após a separação, bastante insatisfeita com a vida, visto ter se casado ainda muito jovem, "vida de mulherzinha, esposa e mãe exemplar", considera fazer algo que possa ter algum valor, que mostre aos outros que seria capaz de se responsabilizar pela própria existência. Com tais preocupações em mente, decide reformar a sua casa. Muitas associações foram feitas espontaneamente por ela, relacionando essa reforma, que durou quase um ano, e as recentes transformações que percebia acontecerem consigo mesma. Esse trabalho, gerenciado por ela, foi tão bem-sucedido que logo foi convidada a projetar uma pequena reforma na residência de amigos. Entusiasmada, pensando em se aprimorar, matriculou-se num curso de decoração, no qual descobriu seu talento para a "arte de pintar" o que passou a fazer por prazer e por necessidade pessoal de expressão, num pequeno ateliê que instalou em sua casa. Reforma (de-coração) e transformação: a pintura nos mais diversos suportes - objetos de uso variado, tábuas de caixotes de supermercado, roupas usadas, tecidos e, finalmente, telas - passou a organizar a rotina diária da paciente, que percebia "essas coisas" como se fossem a "materialização de sonhos", a "expressão pura do inconsciente" E de fato, na análise, Ela frequentemente relatava sonhos e deles extraía motivos para as pinturas. "Eu me sinto outra", Ela declarou, "nunca imaginei que eu poderia ser autora de alguma coisa".
No entanto, sem jamais ter exposto esses objetos fora do seu ambiente familiar e sem a pretensão de fazê-lo, Ela persistia cada vez mais nesse processo criativo incomum, decorando as paredes e demais espaços de sua casa com as suas criações, o que passou a chamar a atenção de sua família, que, incomodada, via essa atividade como absurda. Seu irmão mais velho dizia que Ela "gastava seu tempo com inutilidades" que, em vez de "ir ao clube" ou "receber amigos" ou "ir a festas" ou "namorar para, quem sabe, arrumar um novo marido", dedicava-se a esse "artesanato inútil" A perturbação chegou a tal ponto que, amparados por profissionais, os irmãos da paciente a interditaram. Sem acesso aos seus recursos para a compra de materiais, deprimiu-se gradualmente, tendo sido finalmente retirada da análise e internada numa clínica para tratamento psiquiátrico. Durante esse período, tentei intervir algumas vezes, falando com o irmão mais velho e com um dos filhos da paciente, explicando o momento importante em que Ela se encontrava, tanto na vida como em sua análise, enfatizando que esta não era incompatível com o tratamento médico, que havia descoberto a sua vocação para a pintura, a possibilidade de realizar-se como artista, e que, nesse sentido, precisava do apoio da família. Entretanto, não obtive sucesso. Nesse período, a última mensagem que Ela deixou gravada no meu telefone foi para dizer que não tinha desistido da arte (pensei eu: "Da sua análise?"), pois tinha conseguido material para fazer tricô, com o qual estava tecendo uma linda manta que gostaria de me enviar de presente, mas só quando morresse, pois só pararia de tricotar no dia da sua morte. Nunca mais tive qualquer notícia. E nunca recebi esse presente.
Ora, considerando essas situações, do filme à clínica, ocorreu-me a pergunta: a arte salva?
Arte e psicanálise: dos manicômios às exposições e aos museus de arte
A questão do relacionamento entre arte e psicanálise, em plena época do modernismo paulista, ocupou um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Dr. Durval Marcondes, que também era poeta e amigo de muitos artistas, e cujo primeiro trabalho, "O simbolismo estético na literatura" (1926), versou sobre o uso da psicanálise na crítica literária. Durval enviou esse trabalho a Freud, acompanhado de uma carta, que o mestre respondeu, dando início a uma breve correspondência entre ambos. Posteriormente, em parceria com Osório César, psiquiatra e crítico de arte, marido da pintora Tarsila do Amaral, Durval realizou outros trabalhos, como "Sobre dois casos de estereotipia gráfica com simbolismo sexual" (1927), com a apresentação de desenhos feitos por pacientes, e o livro ricamente ilustrado A expressão artística dos alienados (1929), com prefácio do modernista Cândido Motta Filho2. Nessa mesma época, fundou a Sociedade Brasileira de Psicanálise. Quer dizer, não é apenas a relação entre psicanálise e ciência, mas principalmente a articulação entre psicanálise e cultura que se encontra na origem desta Sociedade, sob a chancela do relacionamento epistolar entre Durval e Freud. E essa articulação entre psicanálise e cultura, na época, foi mais longe.
A Seção de Artes Plásticas do Hospital Psiquiátrico do Juqueri, em Franco da Rocha, criada oficialmente em 1949, foi resultado direto do trabalho de Osório César no hospital, a partir de 1923, e dos trabalhos feitos em parceria com Durval Marcondes. Apenas em 1956 essa Seção será denominada Escola Livre de Artes Plásticas. Seu propósito básico era a recuperação e reintegração dos pacientes na sociedade por meio do desenvolvimento de suas aptidões artísticas. Ainda que a meta do trabalho fosse eminentemente terapêutica, Osório mostra-se sensível às capacidades expressivas individuais e às possibilidades de revelação de novos talentos. Nesse sentido, realiza testes para a verificação de vocações, sendo alguns pacientes selecionados precisamente em função delas. A base da proposta dessa escola era inspirada nas concepções estéticas do crítico Herbert Read e nas ideias de Anita Malfatti sobre ensino da arte. A proposta desenvolvia a noção de que os pacientes deveriam trabalhar livremente na escolha de temas, técnicas e materiais, com o mínimo de interferência do supervisor. O propósito era garantir a espontaneidade das manifestações, o que permitiría tanto o desenvolvimento psicológico - pelo estabelecimento de uma relação profunda do paciente com o seu mundo interior - quanto o artístico. Além de pioneiro no estudo das obras produzidas por "doentes mentais", Osório César procurava dinamizá-las, com exposições em galerias e museus da cidade, sobretudo na década de 1950, como observa a pesquisadora Heloísa Ferraz (1999).
Esse trabalho de Osório César deixou marcas na medicina e na arte brasileira, repercutindo em outras experiências, como a da psiquiatra Nise da Silveira, no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro. Com o apoio de muitos profissionais, entre eles o crítico Mário Pedrosa, a doutora Nise instaurou o Museu de Imagens do Inconsciente, em 1952, no qual estagiei em 1980. Pude verificar que os trabalhos realizados no Juqueri, em São Paulo, e no Museu, no Rio de Janeiro, com orientações distintas, enfatizavam a importância da dimensão estética no processo terapêutico, sendo responsáveis pelo sucesso artístico de muitas obras e inúmeros artistas. Em 1981, trabalhos dos pacientes do Juqueri, do Museu de Imagens do Inconsciente e de outros artistas nacionais e internacionais foram apresentados no módulo Arte Incomum, da 16ª Bienal Internacional de São Paulo. Trabalhei, junto à curadoria da mostra, como pesquisador, obtendo um extenso material empírico que deu suporte à minha tese de doutoramento na usp, em 1987 - publicada anos depois (Frayze-Pereira, 1995). Aliás, o próprio título da tese, Olho d'água, surgiu do depoimento de uma das artistas presentes na mostra, a catarinense Eli Heil.
Paralelamente, nesse cenário que resumidamente descrevi, surge outro artista igualmente incomum: Arthur Bispo do Rosário, que passou mais de cinquenta anos internado como esquizofrênico na Colônia Juliano Moreira, adquirindo notoriedade artística após a sua morte, em 1989. Nesse mesmo ano, é realizada a primeira exposição individual de suas obras, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, e depois no Museu de Arte Contemporânea da usp, ganhando a dimensão de imensa retrospectiva, acompanhada por um simpósio, do qual também participei (Frayze-Pereira, 1990), que discutiu a legitimidade de se considerar Bispo do Rosário um artista brasileiro contemporâneo - legitimação que foi feita, sobretudo, pelas intervenções do crítico Frederico Morais. Depois disso, a obra de Bispo viajou pelo mundo afora.
Com efeito, em outubro de 2011, visitei a 11ª Bienal de Lyon, na qual Bispo foi apresentado como um dos mais instigantes artistas contemporâneos. E nenhuma menção foi feita, no catálogo da exposição, sobre as condições de produção de sua obra. Não foi a primeira vez que isso aconteceu: em 1996, na Bienal de Veneza, uma das mais importantes mostras internacionais de arte contemporânea, ao lado de Nuno Ramos, notável artista brasileiro contemporâneo, Bispo também foi selecionado para representar o Brasil.
Para termos uma ideia do grau de presença da obra desse artista no campo da arte contemporânea, só em 2011, além da Bienal de Lyon, Bispo foi exposto no Instituto Valenciano de Arte, na Espanha, onde integrou a mostra Gigante pela própria natureza ao lado de outros 51 brasileiros, entre eles Cildo Meireles, Hélio Oiticica e Lygia Clark. Também esteve em foco no museu Art & Marge, em Bruxelas, numa das exposições que fazem parte do grande evento belga Europalia, que teve o Brasil como tema. Com presença nessas grandes exposições, o reconhecimento de Bispo como artista contemporâneo tornou-se definitivo. Finalmente, em 2012, ele foi um artista destacado na Bienal de São Paulo, que incorporou sua obra e o confirmou, mais uma vez, como artista contemporâneo.
A curadora da 11ª Bienal de Lyon, Victoria Noorthoorn (2011), insere Bispo num eixo importante da Bienal, cujo sentido é pensar a produção artística como atividade intelectual que rompe as fronteiras do que se denomina artes visuais. Ou seja, essa curadora, entre outros profissionais, intervém no debate sobre a obra de Bispo, deslocando-a do campo do imaginário para o do conceitual (Cypriano, 2011).
Porém, diante dessa situação, cabe perguntar: qual o significado desse trânsito de obras produzidas num manicômio para os museus ou para as exposições de arte? Qual o motivo desse interesse contemporâneo por obras de pessoas psiquiatrizadas?
É necessário lembrar que, no período pós-Segunda Guerra, desenvolveu-se na Europa uma arte gestual, não somente como reação à onda crescente de materialismo, mas como alternativa à arte formalista, hegemônica na época; contra a criação plástica dominada pela estética cubista e suas derivações, em particular pela tendência neoconstrutivista oriunda da Bauhaus. Ao formalismo, muitos artistas responderam com uma arte dita informal, cujas numerosas variações se opõem a todo princípio geométrico, ao intelectualismo vazio e ao superficialismo estético. Ou seja, o conjunto da chamada "arte informal" é um fenômeno complexo, pluridimensional. E, no entanto, há um denominador comum a todos os artistas que se engajaram nesta corrente poética: a vontade de romper com uma tendência que lhes parecia opressora, autoritária, esterilizante. À geometria rigorosa, eles opunham as formas irregulares; à composição refletida, a improvisação e o acidente; à determinação, o indeterminado. Pronunciando-se a favor de toda manifestação livre da sensibilidade, dos instintos, da energia vital, os artistas e os críticos afiliados a eles denunciam a arte mediada por conceitos e repensam os caminhos da abstração. Esse novo modo de ser da arte contemporânea, em estado nascente, propunha um contato direto com o espectador, seja no nível das sensações, seja no nível das emoções. O gesto espontâneo é considerado expressão do ser primordial, pré-reflexivo, nos termos de Merleau-Ponty (1964); o autor, em seus escritos estéticos, revela ter acompanhado a elaboração dessa arte nova, momento no qual o pintor Jean Dubuffet (1967), em 1946, lança a ideia de art brut, qualificando artisticamente e pela primeira vez, do ponto de vista da crítica, as criações espontâneas dos não profissionais.
Nessa mesma época, Mário Pedrosa (1949, p. 15) escreveu a favor do que denominou arte virgem, que não leva em conta as convenções acadêmicas estabelecidas, os códigos visuais instituídos, "arte que pertence a todo ser sensível que além de artistas são alienados". São criadores virgens, artistas espontâneos, que começam a pintar "depois de adultos e doentes". E nada, no plano da arte, permite distingui-los dos profissionais. Nessa medida, as obras de "arte virgem são da mesma natureza fundamental das obras dos grandes artistas universais" (p. 161). Como Dubuffet (1967, p. 206), Mário valoriza nessas manifestações o caráter transgressivo da imagem com relação ao sistema das artes, considerado tão opressivo quanto os totalitarismos que, na primeira metade do século XX, acabavam de horrorizar o mundo.
Mas o que torna possível a passagem de uma obra do campo da loucura para o campo da arte?
Michel Thévoz (1980), conservador-chefe do Museu de Arte Bruta de Lausanne durantes décadas - instituição que recusou incluir obras de Bispo em seu acervo, por considerar seu trabalho corrompido pelas instituições da chamada arte culta, o que, tratando-se de arte contemporânea, supõe a mediação do sistema da arte -, indaga-se em que medida seria possível, hoje, subsistirem essas personalidades tão singulares, a ponto de inventarem suas próprias mitologias e linguagens figurativas, especialmente nos últimos trinta anos, em que se constata um extraordinário desenvolvimento da informática, dos meios de uniformização das massas, da pesquisa farmacológica e da consequente administração de drogas que docilizam os corpos e espíritos de indivíduos inquietos, potencialmente criadores. Nesse sentido, Thévoz constata que as fontes principais da arte bruta deixaram de ser os asilos psiquiátricos, passaram a ser os asilos para idosos. Nesse caso, mais do que nunca a arte bruta se opõe à arte culta, isto é, contemporânea, sobretudo jovem e anticonformista: "os idosos representam hoje os estrangeiros que não vêm de outro mundo, mas de outro tempo" (Thévoz, 1995, p. 52; tradução nossa). Para eles, a proximidade da morte ressignifica o passado distante e libera os compromissos com os códigos do presente. Indiferentes à "carreira artística", esses velhos inventores advertem-nos de que a essência da arte se concentra no ato inventivo, no corpo a corpo com a folha de papel, a tela ou o tricô (p. 57). A esse respeito, é emblemática a obra de Jacky Garnier, Tapeçaria interrompida (Coleção Art Brut, Lausanne): iniciada em 1976, ela atinge vários quilômetros de comprimento, segundo um modo de associação livre, plástico e mental, que questiona radicalmente os meios convencionais de difusão - ela é invendável, irreprodutível, resistente a qualquer tipo de exposição total. Essa obra interroga a rede mercantil e os modos de comunicação da arte, vinculando o fim da obra ao da própria vida do artista. Trata-se de uma imensa passadeira inconclusa que transcende este mundo, tornando a morte não o oposto da vida, mas o que a forra por dentro, um recurso imaginário, uma abertura para "outra cena" (Freud), um "entremundo" ao qual a arte bruta nos introduz de maneira explosiva (Thévoz, 1985).
Ora, quando, há alguns anos, vi essa obra numa exposição, lembrei-me de Ela e da linda manta que eu jamais recebi. E pensei: Ela não era idosa; foi internada no começo dos anos 2000 numa clínica psiquiátrica e não teve a mesma sorte de Jacky Garnier. A pergunta, então, se repõe: a arte salva? até que ponto?
Não é possível ignorar que, ao serem reconhecidos publicamente como artistas, os velhos e os loucos são apanhados pela rede da cultura e trazidos para dentro de sua órbita, ainda que excêntrica. Como diz o psiquiatra e crítico de arte Jean Starobinski (1984, p. xv, tradução nossa), "ei-los incluídos após terem sido excluídos". Diante disso, pode-se pensar: em que medida a apropriação pela cultura do que é considerado não cultura não implicaria exorcizar a potencialidade subversiva das obras? Ou, ainda, até que ponto essa inclusão simbólica da arte de excluídos (loucos e idosos), que transita dos asilos para os museus de arte, nada mais é do que a expressão da necessidade ideológica de afirmar publicamente que a opressão social não anula a força da invenção?
Ao longo do processo em que um ato inventivo, instituinte de uma obra transgressiva, é assimilado pela arte instituída nas exposições e museus, há um impensado que demanda mais reflexão. Mas o que seria o impensado de uma obra? E como a psicanálise se posiciona diante dele?
Arte e psicanálise: tradição e invenção
Claude Lefort (1972), discípulo de Merleau-Ponty, demonstra em seus estudos que o impensado de uma obra é o trabalho que a própria obra realiza junto ao receptor (leitor ou espectador) e que, portanto, é do receptor que a obra de arte depende para se fazer pensar, para se consagrar como obra propriamente dita. A posição do receptor frente à obra é decisiva. É dele que partirá a pergunta "O que isto significa?". É o receptor quem irá interrogar a obra. Mas o que seria interrogar? Resumidamente, interrogar é descobrir que a obra contém a potência de fazer falar, é acompanhar os caminhos que ela própria abriu, é encontrar de novo a sua fundação. Ou seja, interrogar é tomar a obra de outrem como matéria-prima para a nossa própria reflexão (Lefort, 1979, p. 15). É, portanto, garantir a transcendência da obra com o trabalho da leitura entendida como interrogação.
Nessa medida, o impensado da obra não é aquilo que não foi pensado por seu autor, mas aquilo que a obra ao pensar dá a pensar. Não é, portanto, o menos; ao contrário, "é o excesso do que se quer dizer e pensar sobre o que se diz e pensa" (Chauí, 2002, p. 39). É o que, no pensamento, faz pensar; é justamente o fundo que permite diferenciar as figuras de leitor e escritor, de espectador e artista. É esse mesmo fundo, porém, que os relaciona e que nós chamamos de tradição fundada pela própria obra. Mas por que "a tradição é esquecimento da origem", como escreveu Husserl e como pensava Merleau-Ponty? E o que significa "esquecimento"?
Em primeiro lugar, ele é o modo pelo qual a origem se faz presente, e não haveria como ter acesso direto a ela sem a tradição interposta, o fundo comum entre espectador e obra. Ou seja, o campo comum no qual leitor e obra se relacionam é o que chamamos de tradição, aquilo que a obra funda. E por que a tradição é esquecimento? Já sabemos que ele é o modo pelo qual a origem se presentifica e que não haveria como ter acesso direto à obra sem essa tradição interposta, que é o campo comum entre nós e ela. Nesse sentido, como esquecimento da origem, a tradição é a obra sedimentada, pois o que era criação e inaudito torna-se, com o advento da obra, usual e corriqueiro; o que era novidade torna-se disponível. A obra inventiva, instituinte, torna-se instituída.
Entretanto, entre aquilo que se sedimenta e o sedimentado, entre o instituinte e o instituído, entre a origem e a tradição, a relação não é de oposição, como o antes e o depois, ainda que possamos considerar essa imagem da sucessão e, portanto, a ideia de que tal relação se desenrolaria no tempo empírico. Por exemplo, no caso da linguagem, que, como sabemos, tem uma dupla face, a língua e a fala: a fala falante, instituinte de sentido novo, utiliza o material disponível da língua e lhe impinge uma torção, a partir da qual algo novo, que não estava disponível, é dito. Inventado o novo significado, ele logo se sedimenta e passa a fazer parte do corriqueiro, do disponível, torna-se fala falada. A impressão de sucessão parece vir naturalmente: aquilo que era invenção perde a novidade e se torna, depois de inventado, disponível. Então, o que achamos, hoje, que é algo dado, em seu tempo, foi criação. Porém, fundada a tradição, a origem é esquecida, não porque, não sendo considerada pelo presente, é da ordem do passado, mas porque, se a tradição é o visível de um invisível, se a relação dela com a origem não é de sucessão, será preciso reconhecer que mesmo o originário não era uma identidade, que ele próprio já era diferenciação, já era ato inaugural em relação a um presente interrogado, já era abertura reflexiva e não significação fechada, já era a instauração da diferença entre o que era e o porvir. A esse respeito, pode-se considerar, com Merleau-Ponty, que a noção de impensado interroga as relações entre invenção e tradição, na medida em que apresenta a questão do instituinte e do instituído. Como diz Merleau-Ponty, "as ideias muito possuídas já não são ideias, já nada penso quando as falo" (1964, p. 156; tradução nossa). E se quisermos reabilitá-las, só nos resta um caminho, que é "pensar de novo", isto é, "circunscrever um domínio para pensar que, portanto, ainda não foi pensado" (Merleau-Ponty, 1960, p. 260; tradução nossa).
Ora, a interrogação da tradição que uma obra sedimenta por intermédio da psicanálise, segundo André Green (1994, p. 97), pode se dar segundo dois pontos de vista muito diferentes: endopoiético e exopoiético. Sobre esses dois pontos de vista, já discorri anteriormente (Frayze-Pereira, 2012). Apenas para relembrar: o primeiro é sincrônico - reduz-se ao exame dos constituintes internos da obra; o segundo é diacrônico - aborda os fatores determinantes da obra em vários níveis, que incluem desde a consideração pela vida do autor até o exame das condições sociais e políticas que formam o contexto de produção da obra, para pensá-la para além dela mesma. Nessa medida, deve-se observar que, ao se adotar exclusivamente a perspectiva endopoiética, a impressão de autossuficiência da obra analisada que esse ponto de vista engendra pode nos fazer esquecer o vínculo da obra com o mundo, seu enraizamento nele e a possibilidade de sua abertura para ele. Quer dizer, o esquecimento da origem, característico do modo de leitura endopoiético, impossibilita a transcendência da obra, a verificação do seu valor enquanto obra de cultura. Afinal, como bem disse Winnicott (1975, p. 138), só é possível ser original no contexto de certa tradição. No entanto, se "a tradição, como pensava Husserl, é esquecimento da origem" (Merleau-Ponty, 1960, p. 260; tradução nossa), ao olharmos uma obra pelo vértice endopoiético, o risco que corremos é de esquecer o processo que inaugurou essa obra. Assim, o risco que tal modo de leitura implica é o de reforçar o caráter ideológico da tradição.
Arte e psicanálise: ideologia e saber, liberdade de pensar e de ser
Mas como definir ideologia? Resumidamente, pode-se dizer que ideologia é toda construção imaginária que ignora o seu fundo histórico-cultural com vistas à dominação de algo ou alguém: uma pessoa, um grupo, uma instituição (Zizek, 1996, p. 314). Desse modo, para haver articulação fecunda entre cultura e clínica, há que se ter clara a diferença entre a psicanálise como ideologia e a psicanálise como saber, "na medida em que, neste, as ideias são produtos de um trabalho, enquanto naquela as ideias assumem a forma de conhecimentos, isto é, de ideias instituídas" (Chauí, 1981, p. 5). Ou seja, enquanto instrumento ideológico, a clínica psicanalítica implica a repetição de teorias consagradas e a reificação dos conceitos: explica o novo pelo já conhecido. Ao contrário, na perspectiva do saber, o trabalho psicanalítico promove a interrogação da experiência e exige a elaboração de teorias ajustadas às novas experiências.
Nesse sentido, como alguns autores admitem (Pontalis, 1990, 2000; Bollas, 1992, 2007), é necessária uma permanente revisão dos conceitos psicanalíticos para manter viva a psicanálise.
Ora, se entendermos a liberdade humana como a capacidade para dar um sentido novo ao que parecia fatalidade, transformando a situação de fato numa realidade nova, criada por nossa ação e nosso pensamento, a liberdade não será uma condenação à qual está sujeito o ser humano (como pensava Sartre), mas uma conquista feita por ele (como pensava Merleau-Ponty). No entanto, como entender que o indivíduo é livre se, ao mesmo tempo, ele só existe por sua articulação, como projeto existencial, a um todo maior do que ele que é a cultura? Uma breve passagem, referente a Espinosa, pode nos ajudar a esclarecer esse paradoxo:,
a experiência nos mostra que os homens creem que são livres simplesmente porque são conscientes de suas ações e inconscientes das causas pelas quais essas ações são determinadas [...] cada indivíduo é uma concentração localizada de atributos da realidade, um quase indivíduo, dado que o único indivíduo verdadeiro é o universo em sua totalidade. E, na medida em que o quase indivíduo é governado por suas emoções, ele não é livre [...] Para tornar-se livre, o indivíduo deve, por meio da reflexão, compreender a cadeia causal extensa que liga todas as coisas, fazendo-as uma só. Tornar-se consciente da totalidade do universo é libertar-se não do determinismo causal, mas da ignorância sobre a natureza verdadeira de cada um (Stokes, 2012, pp. 154-155).
Enfim, refletir sobre a gênese do que nos determinou a ser o que somos é o que se pode fazer para alcançar a liberdade. E para realizar essa reflexão, a passagem pelo todo, isto é, pela cultura, todo do qual somos apenas uma pequena parte, é um caminho necessário. É a perspectiva necessária para todo aquele que aspira alcançar a humanidade, a liberdade de ser.
Nesse caso, o contato dos indivíduos em geral e do psicanalista em particular com a cultura de seu tempo, com o mundo interrogante e transgressivo da arte, pode ser uma experiência salutar para a sua liberdade de ser e de pensar. Quer dizer, é possível aprendermos com a experiência da arte (que pode nos salvar da prisão ideológica e do esquecimento da origem de nossa tradição) se, em contato com as obras, suspendermos nossa potência interpretativa e nos deixarmos interrogar. Só assim a origem da tradição - a da obra e a nossa - não será esquecida.
Foi assim que Vera, personagem de Almodóvar - e, enquanto tal, obra do cineasta -, foi salva por Louise Bourgeois, que, como uma referência ficcional importante dentro dela, a animou a manter acesa a lembrança da sua origem. Bispo do Rosário, apropriado pelos críticos à luz de certa tradição que ele certamente desconhecia, foi transformado à sua revelia em artista contemporâneo, dadas as intervenções de críticos que levaram em conta apenas os aspectos formais da sua obra. Esse foi um procedimento que, de um lado, instituiu essa obra no campo da arte e, de outro, garantiu um lugar para que ela pudesse interrogar os seus espectadores. Sem uma passagem análoga pela cultura, entretanto, Ela - paciente em análise que poderia ter se tornado artista (bruta?) - não encontrou condições para sobreviver. Ao ter surgido em um contexto familiar estéril, não conseguiu florescer... Nesse caso, sem o suporte da cultura, a psicanálise também encontra limites...
Referências
Bollas, C. (1992). Forças do destino (R. M. Bergallo, trad.). Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Bollas, C. (2007). The Freudian moment. London: Karnac. [ Links ]
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Correspondência:
João A. Frayze-Pereira
Rua Joaquim Antunes, 727, conj. 72
05415-012 São Paulo, SP
Tel: 11 4702-4781
joaofrayze@yahoo.com.br
Recebido em 8.6.2014
Aceito em 23.6.2014
1 Trabalho apresentado no Congresso da Federação Psicanalítica da América Latina (Fepal), realizado em São Paulo, em outubro de 2012.
2 Cândido Motta Filho foi advogado, ensaísta, professor da Faculdade de Direito da usp. Na mocidade, engajou-se no movimento modernista, tendo participado ativamente da Semana de Arte Moderna de 1922. Com Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia, promoveu o Movimento Verde-Amarelo, que procurava imprimir novos rumos à literatura brasileira.