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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.4 São Paulo set./dez. 2014

 

RESENHAS

 

À ciel ouvert, entretiens: Le Courtil, l'invention au quotidien

 

 

Letícia Vier Machado

Psicóloga. Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista do Capes. Membro do Laboratório de Psicanálise, Processos Criativos e Interações Políticas LAPCIP

Correspondência

 

 

Organizadoras: Mariana Otero & Marie Brémond
Editora: Buddy Movies, Paris, 2013, 127p.
Resenhado por: Letícia Vier Machado1

 

 

À ciel ouvert e a experiência da invenção

O livro de entrevistas organizado por Mariana Otero e Marie Brémond perpetua o sucesso do documentário homônimo, À ciel ouvert,2 lançado em 2013 na França e na Bélgica, escrito e dirigido por Otero. O documentário, filmado na instituição Le Courtil,3 em Tournai, na Bélgica, conta o cotidiano de um lugar fronteiriço, que acolhe crianças em dificuldade, com intervenções pautadas pela psicanálise lacaniana. Enquanto aguardamos o lançamento do filme no Brasil, é possível tangenciar pelo livro o estrangeiro presente em À ciel ouvert, título que faz alusão a Lacan, quando fala do inconsciente "a céu aberto" do psicótico.

A proposta do conjunto de entrevistas é fazer-se um prolongamento do filme. Otero dá voz aos inventores do Courtil, antecipando respostas às perguntas que provavelmente surgirão ao espectador do filme. O livro pretende adentrar ainda mais no cotidiano do Courtil, compreender suas bases teóricas, conhecer sua pré-história, seu funcionamento institucional.

Se, de início, o desejo de Otero era fazer um filme sobre pessoas que se relacionam de outra maneira com o mundo, dando-lhes voz, À ciel ouvert foi um exercício de distanciamento que lhe permitiu lançar um olhar sobre a singularidade e a inventividade. Longe de encontrar respostas, Otero mergulhou no enigma e traduziu uma linguagem singular em outra, a cinematográfica. "É um filme sobre uma visão singular do mundo através do percurso de algumas crianças que têm uma relação, com elas mesmas, com o corpo e com o outro, radicalmente diferente" (p. 9). O livro se organiza em cinco capítulos. As entrevistas foram realizadas por Otero com os fundadores da instituição: Alexandre Stevens, Dominique Holvoet, Bernard Seynhaeve e Véronique Mariage.

No primeiro capítulo, "De Winnicott ao Courtil: alguns momentos históricos", Alexandre Stevens retoma feitos da psicanálise que a diferenciaram da psiquiatria clássica: desde a experiência de Winnicott com crianças evacuadas após a Segunda Guerra Mundial até a criação, por Bruno Bettelheim, da escola ortogênica, nos Estados Unidos. Aqui, um parêntese. Se Bettelheim ainda hoje é atacado por sua suposta culpabilização materna no caso de crianças autistas, Stevens ressalta o perigo de reduzi-lo a essa afirmação. É preciso considerá-lo em um contexto, diz ele, e reconhecer sua contribuição, quando afirma que "o amor não basta" (p. 14). Stevens ratifica a ética da psicanáli-se, quando diz que esta "considera uma criança não a partir do deficit, mas a partir de um sintoma" (p. 13), em que há um gozo.

A prática do Courtil não é propriamente uma psicanálise. Não se trata de um trabalho educativo, psicoterapêutico, mas antes de um trabalho "irrigado" pelo olhar do psicanalista. Ele se fundamenta na ausência de um a priori: "procuramos não antecipar o que é bom para o outro. Partimos antes dessa posição: não sabemos o que é bom para a criança" (p. 21). Trabalha-se a partir da desarmonia, do "realismo clínico": não há busca dos significados velados, tampouco interpretação. Há, antes, um desejo de encontrar respostas ao fora de sentido, ao Real.

O segundo capítulo, "A invenção do Courtil", retoma o surgimento da instituição, a partir de um trabalho anterior do psiquiatra Alexandre Stevens, quando decidiu se ocupar das ditas "crianças difíceis" da instituição, orientado pela psicanálise. Convida então o psiquiatra Bernard Seynhaeve para juntar-se a ele, como diretor, assim como Véronique Mariage, e o Courtil nasce do encontro de desejos e do desejo de inventar outros modos de atuar na instituição com base no trabalho com a linguagem.

Stevens situa o Courtil do lado das instituições esquizofrênicas. Estas, "suficientemente desorganizadas", aceitam que o saber se localiza do lado da criança e usam da psicanálise como perturbação da instituição. As crianças do Courtil não estão "coladas" a significantes diagnósticos, e o foco do trabalho é o sofrimento psíquico, a dificuldade na qual se encontram.

O terceiro capítulo, "Lacan no Courtil", trata da psicanálise lacaniana como dispositivo de atuação na instituição. Partindo da articulação dos registros R.S.I., Dominique Holvoet explora a dificuldade das crianças do Courtil em se inscrever na linguagem, no simbólico. Sobre Amina, uma das crianças do Courtil, Holvoet comenta: "Ela não consegue, então é a linguagem que a habita e a instrumentaliza" (p. 40). Para explicar o conceito de Real em Lacan, Dominique Holvoet explora o conceito lacaniano de "estádio do espelho": nosso olhar é o que não vemos no espelho, é o não representável, é a perda, aquilo que escapa - é o Real.

E se a psicose é o inconsciente à ciel ouvert, se não há recalcamento, não há esquecimento. Diz Stevens: "Eles [os psicóticos] são, de alguma maneira, superdotados desse ponto de vista" (p. 47). E tal como o inconsciente na psicose é da ordem do Real, assim o é também o gozo. "O gozo deriva do Real na medida em que não é capturado pelo significante" (p. 48). É como Evanne, que é invadido pelo movimento de rodar sobre si mesmo, no gozo que o transborda e se torna incontrolável.

"Há cura para a psicose?", questiona Otero. Holvoet afirma: "toda a questão é saber o que chamamos de cura. [...] No fundo, quem diz cura diz que nos inscrevemos em uma lógica de sintoma" (p. 50). E erradicar o sintoma não é o que pretende a psicanálise lacaniana, mas é preciso fazer com esse sintoma, uma vez que ele é próprio ao sujeito: "há uma parte de morte e uma parte de vida em todo objeto sintomático" (p. 51). Nesse sentido, eliminar o sintoma é erradicar o que há de vida nele. É como os insetos de Alyson (p. 52), que ela adora resgatar da terra mas a aterrorizam em suas alucinações.

O quarto capítulo, "Uma instituição no cotidiano", traz elementos para compreender o funcionamento do Courtil: a admissão, as intervenções, os rituais. Bernard Seynhaeve esclarece as particularidades da admissão na instituição e a abertura para escutar a criança naquilo que a faz sofrer. A condição para a admissão no Courtil é única: que a criança seja capaz de suportar a presença dos outros (p. 63); assim como há uma única regra: a proibição da violência. Valoriza-se o sem-sentido do comportamento, o singular de cada criança, o que há de bizarro e de possibilidade inventiva em cada um.

Não há compartimentação dos saberes, porque não se entende a criança como um conjunto de fragmentos. Há um trabalho em conjunto, pautado pelo desejo, pela escuta do outro. Não se pode demandar algo das crianças do Courtil, e nesse sentido não se pode demandar amor, pois isso seria demasiadamente persecutório.

O quinto e último capítulo, "Retorno sobre uma experiência do olhar", recupera a experiência de Mariana Otero por trás da câmera, o lugar do qual ela fala, a montagem do filme, sua relação com a psicanálise e com as crianças do Courtil. Em À ciel ouvert, Otero subverte as preposições. Não é um filme "sobre" algo, mas um filme "com"; não é um filme "sobre" o Courtil, mas um filme "no" Courtil (p. 105). Para fazê-lo, Otero anexou a câmera ao seu corpo, criando o que ela denominou de um "corpo-câmera" (p. 110). A ideia desse acoplamento mulher-máquina teve um efeito organizador sobre os corpos desintegrados, como sobre Alyson, que parecia organizar seus "pedaços" quando diante da câmera.

Se foi possível a Otero mostrar o olhar da psicanálise sobre os enigmas das crianças do Courtil, foi porque seu próprio trabalho encontra semelhança com aquele do psicanalista: "vocês têm um saber que vocês esquecem diante da criança para acolher a surpresa, como as filmagens me permitem também acolher o acontecimento que virá esclarecer o conjunto" (p. 115). Assim como na análise, À ciel ouvert se construiu no a posteriori, no processo secundário que sucedeu a experiência. Em suma, À ciel ouvert parece ser isso: a experiência, a fronteira entre o sentido e o fora-de-sentido.

À ciel ouvert chega em um momento decisivo para a psicanálise, convidando a revisitar os discursos que se produziram sobre o tratamento psicanalítico do autismo nos últimos dois anos, na França, na Bélgica e também no Brasil. Sem assumir uma posição doutrinária defensiva da psicanálise, Otero propõe a experiência do olhar: não um olhar "sobre", mas um olhar "com" a psicanálise enquanto possibilidade de escuta da singularidade, do enigma.

 

 

Correspondência:
Letícia Vier Machado
Rua Joaquim Nabuco, 120, ap. 62
87014-100 Maringá, PR
Tel: 44 9952-5909
leticiaviermachado@gmail.com

 

 

1 Apoio financeiro Capes.
2 A céu aberto, em português.
3 Courtil, em francês, designa um pequeno jardim ao lado da fazenda, lugar onde originariamente se situava a instituição.

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