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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.50 no.2 São Paulo abr./jun. 2016
EM PAUTA
Nomear, subverter, organizar. O corpo na clínica psicanalítica
Naming, subverting, organizing. The body in the psychoanalytic practice
Nombrar, subvertir, organizar. El cuerpo en la clínica psicoanalítica
Rubens Marcelo Volich
Psicanalista. Doutor pela Universidade de Paris VII - Denis Diderot. Professor do Curso de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. Autor de Psicossomática: de Hipócrates à psicanálise (Casa do Psicólogo, 2000), Hipocondría: impasses da alma, desafios do corpo (Casa do Psicólogo, 2002), Segredos de mulher: diálogos entre um ginecologista e um psicanalista (em coautoria com Alexandre Faisal; Atheneu, 2010), coorganizador e autor dos livros da série Psicossoma (Casa do Psicólogo)
RESUMO
Apesar da importância das hipóteses freudianas sobre o corpo e as relações entre o psíquico e o somático, por muito tempo o trabalho psicanalítico com as manifestações corporais teve como condição a mediação representativa e a inscrição psíquica dessas experiências. Muitos se empenharam em ampliar os recursos clínicos da psicanálise para lidar com manifestações mais primitivas, aquém da representação e do recalcamento. Este artigo analisa aspectos clínicos e metapsicológicos que sustentam essa ampliação, revelando a necessidade e a função do manejo do enquadre, da transferência, da contratransferência, dos modos de observação, escuta e interpretação para viabilizar o trabalho com pacientes que vivem desorganizações de sua economia psicossomática, crônicas ou momentâneas.
Palavras-chave: técnica psicanalítica; enquadre; contratransferência; não representado; desorganizações psicossomáticas.
ABSTRACT
Despite the importance of Freudian ideas about the body and the relationship between psyche and soma, for a long time the psychoanalytic work on bodily manifestations used to require the representative mediation and the psychic inscription of these experiences. Many psychoanalysts have striven to enhance the clinical resources of psychoanalysis in order to deal with more primitive manifestations, which are before representation and repression. This paper studies clinic and metapsychological aspects that sustain this enhancement. The author herein demonstrates the need and function of frame management, transference, countertransference, ways of observing, listening and interpreting in order to enable the psychoanalyst to work with patients who live chronic or temporary disorganizations of their psychosomatic economy.
Keywords: psychoanalytic technique; frame; countertransference; unrepresented; psychosomatic disorganizations.
RESUMEN
A pesar de la importancia de las hipótesis freudianas sobre el cuerpo y las relaciones entre lo psíquico y lo somático, durante mucho tiempo el trabajo psicoanalítico con las manifestaciones corporales tuvo como condición la mediación representativa y la inscripción psíquica de esas experiencias. Muchos se esforzaron por ampliar los recursos clínicos del psicoanálisis para lidiar con manifestaciones más primitivas, más acá de la representación y la represión. Este artículo analiza los aspectos clínicos y metapsicológicos que respaldan esta ampliación, revelando la necesidad y la función del manejo del encuadre, de la transferencia, de la contratransferencia, de los modos de observación, de la escucha y la interpretación para viabilizar el trabajo con pacientes que viven desorganizaciones de su economía psicosomática, crónicas o momentáneas.
Palabras clave: técnica psicoanalítica; encuadre; contratransferencia; no representado; desorganizaciones psicosomáticas.
Naquele dia, ao nos cumprimentarmos, Marlene aproximou-se em silêncio, substituindo por um beijo o habitual aperto de mãos.
Caminhou até o divã e, enquanto se deitava, murmurou: "É maligno.'"
Nem mais uma palavra. Intrigado com seu silêncio, passei a sentir sua angústia. Depois de um bom tempo, olhando para ela, comecei a perceber que passara a falar uma outra língua. Aparentemente imóvel, seu peito arfava, suas mãos se contorciam, seus olhos piscavam aceleradamente. Percebi, ainda, os tremores de seus lábios e os movimentos imperceptíveis de sua boca, como que articulando frases curtas, sem voz.
Diante de uma fala que me buscava sem poder me incluir, minha aflição crescia.
Eu compreendia o motivo de sua sideração. Algumas semanas antes, um sangramento urinário alertara para a necessidade de uma investigação ginecológica. Chegou a considerar que poderia ser algo mais grave, porém rapidamente descartou essa possibilidade. Há alguns meses, em suas sessões, vinha descobrindo, em longínquas paragens, fragmentos nunca percebidos de seu desejo de ser mãe. De início desviara seu olhar, refugara, estranhara, porém, por fim, passou a interessar-se por conhecê-los e, mesmo que hesitante, a investi-los. Aos 38 anos, acreditava ainda que poderia engravidar e vinha se preparando para conhecer-se vivendo as experiências nunca imaginadas de sua maternidade. O diagnóstico de malignidade de um tumor uterino e uma possível histerectomia significaram bruscamente para ela a impossibilidade daquele incipiente desejo.
Naquela sessão, Marlene se transfigurara. Em sua vida, sempre "otimista, forte e empreendedora", "nunca se furtara a enfrentar desafios e dificuldades". Investia aquela primeira análise que realizava. Cativada pelas descobertas que ela lhe propiciava, enfrentava com coragem os momentos de sofrimento, e mesmo as lembranças mais difíceis não pareciam intimidá-la.
Em muitos desses momentos, convocara explicitamente minha presença, minhas impressões, pedindo que "não a deixasse só": solicitava-me, interagindo tanto com minhas interpretações como com minha reserva. Sabendo-me ali, com ela, mesmo quando sentia que a decepcionava, continuava a associar.
Naquele dia, era diferente. Era outro seu silêncio. Nenhuma palavra. Inércia. Relutei e, depois de um certo tempo, decidi, eu, convocá-la, convidando-a explicitamente a dividir comigo o que sentia, o que pensava. Em vão.
Do divã, Marlene apresentava apenas o imobilismo de seu corpo, a aflição de suas mãos, a apreensão de sua respiração, o choro contido de seus olhos, as palavras balbuciadas sem voz e sem força para chegarem a quem quer que fosse. Um sofrimento intenso que não encontrava, naquele momento, outra forma de se manifestar.
Senti-me, eu, sozinho. Imaginei ser a solidão parte do que a aterrorizava. Compreendendo sua dificuldade em me responder, em me alcançar, decidi simplesmente descrever o que observava em seu corpo. Esperava sinalizar minha presença, por meio de algumas palavras às quais, quem sabe, ela pudesse se agarrar para sair de seu imobilismo e comigo retomar a elaboração de sua dor.
Sem interpretar ou me referir aos afetos que me sugeriam, apenas relatei em voz alta os movimentos de suas mãos, de sua respiração, de seus olhos, de sua boca. Como se tocasse e percorresse com minhas palavras cada um deles, convidando-a a me acompanhar. Ainda em silêncio, brotaram nela as primeiras lágrimas, interrompeu-se a agitação de suas mãos. Depois de alguns instantes, chorando, murmurou: "Eu não consigo..."
Esperei um pouco antes de lhe dizer: "Há muitas maneiras de ser mãe, Marlene."
Ainda balbuciando, com a voz ainda frágil, ela revelou que passara a sonhar com a gravidez "mais do que pudera reconhecer nas sessões"; que poucas vezes na vida não conseguira superar os obstáculos que encontrara a seus projetos; que acostumada a brigar pelo que desejava e a alcançar seus objetivos, nunca imaginou "que pudesse ser traída por seu próprio corpo", muito menos naquele sonho descoberto e tão investido recentemente.
Retomamos, juntos novamente, esse caminho...
A clínica do recalcamento
Um fio consistente perpassa a obra freudiana determinando as bases da técnica psicanalítica. Desde os primeiros artigos sobre o tratamento da histeria pela hipnose, passando pela associação livre e pela análise da transferência, até os últimos textos sobre as construções em análise, esse fio alinhava a clínica psicanalítica em torno do trabalho sobre o recalcamento, mecanismos de defesa e dinâmicas psíquicas.
Em diferentes momentos, Freud sustenta que o objetivo de todas essas técnicas sempre permaneceu o mesmo: "preencher lacunas na memória" e "superar resistências devidas ao recalcamento" (Freud, 1914/1975k, p. 193). Até seus últimos trabalhos, Freud permaneceu fiel a esse princípio, insistindo que a análise "visa a induzir o paciente a abandonar o recalcamento ([...] no sentido mais amplo) próprio a seu primitivo desenvolvimento e a substituí-lo por reações de um tipo que corresponda a uma condição psiquicamente madura" (Freud, 1937/1973d, p. 291).
A análise de lembranças, sonhos, lapsos, devaneios, fantasias, representações, fragmentos de memória, revelados na sessão por meio da associação livre, acompanhados por diferentes expressões afetivas, permite a superação do recalcamento e das resistências, a emergência dos conteúdos inconscientes, o restabelecimento de "conexões emocionais", a transformação e a superação dos conflitos e sintomas neuróticos.
Naturalmente, Freud também reconhecia os silêncios, as expressões e atitudes corporais, os sintomas e doenças orgânicas, as atuações dos pacientes, porém, na análise, esses elementos só podiam ser considerados na medida em fossem objeto de associações, relacionados a lembranças e elaborações.
Desde os anos 1890, essa condição passou a ser um critério diferencial para a indicação do tratamento psicanalítico. Por um lado, as psiconeuroses (histeria, neurose obsessiva, fobia e psicose), marcadas pelo recalcamento, por conflitos e mecanismos de defesa psíquicos, por relações entre afetos e representações, por formações de compromisso e por experiências infantis, seriam suscetíveis e responderiam bem ao processo psicanalítico (Freud, 1894/1975j).
Por outro lado, a neurastenia, a neurose de angústia, a hipocondria e as neuroses traumáticas (descritas em 1917), reunidas em torno da categoria de neuroses atuais, não implicavam o recalcamento, a dimensão representativa e a mediação de processos psíquicos. Nelas, a fonte dos sintomas não estaria relacionada a experiências infantis, mas a perturbações da vida sexual e dos afetos vividos no presente dos pacientes. Tais perturbações, "sem nenhuma derivação psíquica", seriam descarregadas por meio de diferentes funções corporais, como as cardiovasculares, respiratórias, digestórias e outras.1 Nesse grupo, "o afeto não se origina numa representação recalcada, revelándose não adicionalmente redutível pela análise psicológica, nem equacionável pela psicoterapia" (Freud, 1895/1975m, p. 99).
O corpo revelado
Durante muitas décadas, esses critérios pautaram as indicações de análise dos pacientes de várias gerações de psicanalistas. Porém, apesar de preconizar seu método apenas para o tratamento das manifestações neuróticas, organizadas em torno do recalcamento, das defesas e dinâmicas psíquicas, Freud sempre considerou as relações imanentes entre o psíquico e o somático. Apesar das restrições ao tratamento psicanalítico das neuroses atuais e doenças orgânicas, em 1923 ele afirmou que os médicos podem ser "amplamente recompensados [por] uma compreensão inesperada das complicações da vida mental e das interrelações entre o mental e o físico" (1923/1975e, p. 303).
Era natural que Freud reconhecesse que a existência do psiquismo tem como condição um substrato orgânico, anatômico e fisiológico. Toda a sua obra é marcada pela consideração dessas dimensões, reconhecendo no aparelho psíquico uma importante função de mediação de experiências, processos e estímulos provenientes tanto do organismo como do mundo externo.
Médico e interessado inicialmente pela neurologia, Freud muito cedo reconheceu os limites das concepções estritamente organicistas para a compreensão clínica. Desde seu estudo sobre as afasias (1891/2013) até seus trabalhos sobre a histeria, ele já criticava as leituras exclusivamente mecânicas e neurológicas desses distúrbios, ressaltando que a conversão histérica era independente da anatomia, fruto do conflito entre "grupos psíquicos separados" e da impossibilidade de integrar a concepção de órgão ou da função pelas associações do ego consciente (Freud, 1893/1975b; Freud & Breuer, 1895/1975).
O corpo se revela na teoria freudiana ora como fonte de experiências que podem ou não ser percebidas, representadas e elaboradas por instâncias e funções psíquicas, ora como destino possível para a expressão e descarga de excitações, afetos e libido, palco de vivências de prazer e desprazer, de gozo, de angústia e de sofrimento, articuladas ou não com as dinâmicas psíquicas.
No sonho, o corpo pode surgir como fonte, conteúdo e protagonista de imagens e experiências, porém, o próprio sonho se coloca a serviço de necessidades de repouso do organismo, preservando o sono, integrando percepções, sensações e excitações oriundas do organismo e também do mundo externo (Freud, 1900/1975h). Mais do que isso, o sonho pode também se prestar a uma função de representação "diagnostica" e "hipocondríaca", por meio da qual são apreendidas funções e sensações corporais geralmente imperceptíveis à consciência (Freud, 1917/1975n).
Freud revela o corpo como a cena da qual surgem e se articulam a sexualidade, a libido, a formação do psiquismo, o desenvolvimento do sujeito, seu encontro com o outro humano e com o mundo. Ao mesmo tempo fonte e objeto da pulsão, tanto os órgãos como todo o corpo e sua superfície se constituem como zonas erógenas, passíveis de excitação, de prazer e desprazer (Freud, 1905/1975o, 1915/1975g). A intensidade do investimento erógeno em um órgão pode, inclusive, modificar a função anatômica ou fisiológica desse órgão (Freud, 1910/19750) e igualmente a própria organização e funcionamento das instâncias psíquicas, do narcisismo e das relações objetais (Freud, 1914/1975l).
As relações íntimas e originárias são particularmente evidenciadas na metapsicologia, na segunda tópica e nos modelos pulsionais.
Freud (1915/1975g) concebe a pulsão como "um conceito-limite entre o psíquico e o somático", uma manifestação que surge do corpo, que se constitui também como um "representante psíquico das excitações e estímulos oriundos do interior [desse] corpo" (p. 127). Dessa forma, ele aponta para as raízes somáticas do psiquismo, mas também para a condição essencial do psiquismo como recurso de acesso, representação, organização e transformação da experiência corporal.
São igualmente enraizadas nas vivências corporais as forças que promovem a vida e o desenvolvimento, como as pulsões de autoconservação, as pulsões sexuais e a pulsão de vida, bem como as que a elas se opõem, como a destrutividade e a pulsão de morte, "marcadas pelo biológico" e "tendendo ao anorgânico" (Freud, 1920/1975a, p. 55). Ele compreende o ego "antes de mais nada [como] um ego corporal" (Freud, 1923/1975f, p. 39), "um ser de superfície", formado a partir de percepções e sensações vividas na superfície do corpo, voltadas tanto para seu exterior como para o interior, mas também como "projeção de uma superfície", uma representação mental desse corpo. A partir de processos somáticos predominantemente ligados ao id, instintos e pulsões caóticos e primitivos, o ego se constitui em uma instância psíquica mais organizada, parte consciente, voltada para a realidade, e parte inconsciente, associada ao corpo e ao recalcado.
Dilemas
Chama a atenção o contraste entre as restrições preconizadas por Freud para o tratamento psicanalítico de uma ampla gama de manifestações corporais e a riqueza das hipóteses freudianas sobre o corpo desenvolvidas justamente a partir dessa técnica.
Pautados pela perspectiva do recalcamento, os sintomas, os afetos, a libido, o prazer, o desprazer, o gozo, a angústia, vividos no corpo, só podem ser analisados a partir da associação livre, do discurso, de fantasias, dos sonhos, de formações substitutas dos conflitos inconscientes e através da transferência. O trabalho com a sintomatologia orgânica, sensações e percepções corporais teria como condição sua mediação pela linguagem e alguma forma de inscrição psíquica dessas experiências. A impossibilidade dessa mediação, a descarga corporal direta, sem elaboração mental, da excitação, como nas neuroses atuais, inviabilizaria o tratamento psicanalítico.
O próprio Freud se confrontou com esse paradoxo, aceitando os limites de seu método clínico:
a psicanálise é injustamente acusada de apresentar teorias puramente psicológicas para problemas patológicos. [...] [Porém] os psicanalistas nunca se esquecem de que o psíquico se baseia no orgânico, conquanto seu trabalho só os possa conduzir até essa base e não além [itálicos nossos]. (1910/1975c, p. 202)
Muitas gerações de psicanalistas conviveram com esse dilema: por um lado, a necessidade de balizar sua clínica pelo campo das psiconeuroses, da psicopatologia e das manifestações representativas; por outro, dispor de um aparato conceitual poderoso para a compreensão de inúmeras manifestações mais primitivas, aquém da representação e do recalcamento, experimentadas no corpo, em descargas comportamentais vazias de representação, também presentes nas análises de seus pacientes, sem poder utilizar plenamente essa compreensão no contexto do enquadre psicanalítico clássico.
Alguns se dispuseram a enfrentar tais questões, repensando o enquadre, a transferência e a contratransferência para viabilizar a clínica psicanalítica das neuroses atuais, das doenças orgânicas e de outras manifestações mais primitivas da economia psicossomática, também encontradas com frequência em análises "clássicas", com pacientes neuróticos e bem organizados psiquicamente, em momentos críticos, como nos mostra Marlene.
Ferenczi insistiu na relevância e na possibilidade de utilizar as hipóteses psicanalí-ticas sobre as relações entre corpo e psique no tratamento de manifestações orgânicas não neuróticas. Ele defendia a necessidade de uma mudança na postura e na escuta do analista, bem como no dispositivo clínico, para lidar com traumatismos e dimensões mais primitivas, pré-verbais e corporais, do funcionamento desses pacientes (Ferenczi, 1926/1991). Muitos outros psicanalistas2 enveredaram por esses caminhos, ampliando a metapsicologia e os recursos clínicos da psicanálise para o tratamento das manifestações primitivas e não representativas da linhagem das neuroses atuais, das doenças orgânicas, dos problemas apresentados por pacientes borderline, adictos, com transtornos de caráter e alimentares, e vários outros quadros.
Essa ampliação clínica revelou a continuidade funcional entre manifestações mais desorganizadas da economia psicossomá-tica e os quadros clássicos da psicopatologia psicanalítica, do ponto de vista do desenvolvimento humano, da consistência da integração entre vivências corporais e o tecido psíquico, e da manifestação patológica.
Ela também promoveu um olhar mais acurado dos psicanalistas para o desenvolvimento infantil, as vivências iniciais do bebê, as primeiras relações objetais e seus desdobramentos na organização psicossomática.
Revelações do primitivo
Como destaca P. Aulagnier (1975/1979), a mãe tem uma função fundamental como mediadora, intérprete e organizadora das primeiras experiências sensoriais e perceptivas do bebê, de seu corpo e da realidade a sua volta. Acolhidas, intermediadas e nomeadas pelo outro humano, pulsões, funções e vivências corporais são transformadas em representações, fantasias, sonhos e símbolos, originando o universo representativo da criança. A qualidade do trabalho de representação do sujeito, equivalente psíquico da metabolização, própria à atividade orgânica, depende da qualidade dessas primeiras relações.
A continência e a mediação da experiência orgânica e erógena da criança pelas fantasias e desejos daqueles que dela cuidam são determinantes para a constituição de seu paraexcitações (Freud, 1920/1975a), para a maturação e a evolução das funções biológicas e também para o desenvolvimento e complexificação de seus recursos relacionais, psíquicos e emocionais (Marty, 1990/1994; Kreisler, Fain & Soulé, 1974/1981).
A partir da noção freudiana de apoio das pulsões sexuais sobre as pulsões de auto-conservação (Freud, 1905/1975o), Dejours (1989/1991) descreve a subversão libidinal do corpo biológico para a constituição do corpo erógeno. Tendo como condição a presença de um outro humano, ela corresponde ao processo por meio do qual a fisiologia e a anatomia reais, presentes no nascimento, podem ser transcendidas para a constituição de uma outra ordem, psíquica e imaginária, na qual o desejo pode ter primazia sobre a necessidade. Cada parte do corpo implicada na sobrevivência e na existência do sujeito pode também ser utilizada de uma forma diferente daquela programada para a função fisiológica - como a boca, que pode ser utilizada não apenas para a alimentação, mas também para beijar.
A subversão libidinal se processa por meio da experiência e do brincar (Winnicott, 1971/1975) da criança com seu próprio corpo, acompanhada e significada pela presença real ou imaginada do outro. A brincadeira possível com diferentes partes do corpo instaura uma latência libertadora daquilo que o instinto e a necessidade determinam como urgência, criando o espaço para a alucinação, o sonho, a fantasia e para o psiquismo. A partir dessas vivências no corpo real, anatômico, fisiológico, organiza-se o corpo erógeno (Leclaire, 1979), o corpo imaginário (Sami-Ali, 1984), uma outra dimensão daquelas vivências, fundamental para a integração psicossomática.
Dessa forma, advém a passagem do mosaico primordial (Marty, 1990/1994), marcado no nascimento pela primazia dos funcionamentos automáticos das funções orgânicas, para a integração, hierarquização e complexificação das dimensões orgânicas, comportamentais e psíquicas da economia psicossomática. Esse movimento depende das possibilidades de intricação entre as pulsões de vida e de morte (Freud, 1920/1975a), também ela determinada pela qualidade da função materna (Green, 1975/1988; Marty, 1990/1994).
Desde o nascimento, o desenvolvimento e as experiências do sujeito são modulados por movimentos de integração e de desintegração funcional, em íntima correlação com os de organização e de desorganização pulsional. São eles que, na infância, marcam a cadência e as possibilidades de organização das funções primárias, tais como os ritmos orgânicos (fome, sono, carência, satisfação), a sensorialidade, a motricidade, a linguagem, o narcisismo, as relações objetais e o psiquismo.
Contida e estimulada pelo contato e pela interação com o corpo da mãe, organizare paulatinamente a experiência sensorial, cinestésica e motora da criança. Percepções dos cheiros, dos sabores, do timbre e das oscilações da voz, das variações de cor, sombra e temperatura experimentadas pela proximidade e pelo distanciamento desse corpo forjam os primeiros registros e padrões sensoriais da criança, a partir dos quais ela passa a distinguir outros cheiros, sons, toques e estímulos visuais provenientes do mundo e de outras pessoas, experiências incipientes da alteridade.
Os movimentos experimentados no contato com o corpo materno, a mobilização pela mãe de partes do corpo da criança ao cuidar, brincar e proteger, delineiam os limites de seus corpos, as primeiras vivências de seus músculos, tensões e relaxamentos que constituem a motricidade, também experimentada de forma espontânea e, inicialmente, descoordenada. Essas vivências promovem a diferenciação entre o interior e o exterior do corpo da criança. Como apontam Marty e Fain (1955), no bebê, tais interações por meio do movimento configuram as primeiras experiências de si mesmo, do outro e da relação, das quais se originam as relações de objeto.
Permeadas por palavras e por experiências de prazer e desprazer, próprias e do outro, todas essas primeiras formas de percepção, sensação e relação são nomeadas, significadas e marcadas por diferentes matizes de afeto, constituindo gradualmente o universo representativo do sujeito. Nesse processo, desde o desamparo vivido pelo recém-nascido, o olhar da mãe, do outro que cuida, tem também uma função estruturante. O encontro da criança com sua imagem especular, reconhecida naquele olhar, é atravessado pelo desejo materno, que unifica a experiência fragmentada que a criança tem de seu corpo e de todas essas vivências (Lacan, 1949/1992), organizando os primórdios de seu narcisismo, marcado pelo desejo do outro.
O conjunto dessas funções constitui os recursos da economia psicossomática de cada um para, ao longo da vida, lidar com experiências, conquistas, desafios, conflitos e vivências traumáticas. Em situações traumáticas, de excesso e de conflito, com vistas à preservação ou ao restabelecimento de um equilíbrio, a qualidade desses recursos e a consistência dos processos de integração que os constituíram determinam os modos mais ou menos organizados de funcionamento e sua capacidade para preservar a integridade dessas funções e do sujeito como um todo.
Marty (1990/1994) sustenta que, quando consistentes, os recursos psíquicos e representativos (mentalização) são os mais elaborados e capazes de proteger a economia psicossomática, por meio de dinâmicas que a preservam das desorganizações comportamentais e orgânicas, mais frágeis e primitivas. Por ocasião de vivências perturbadoras e traumáticas, as manifestações psicopatológicas, tentativas de reorganização em torno dos recursos psíquicos, procuram conter, ligar e organizar tais excessos através da sintomatologia psíquica, buscando impedir ou interromper movimentos desorganizadores da economia psicossomática que, persistindo, podem se expressar pelas vias da sintomatologia e doenças comportamentais e orgânicas, com maior risco à integridade física e, por vezes, à própria vida do sujeito.
Turbulências e desorganizações
Muitos fatores podem comprometer o desenvolvimento dos recursos integradores da economia psicossomática. A dificuldade do adulto em tolerar a experimentação corporal da criança, devido a sua própria história e às dimensões eróticas e fantasmáticas mobilizadas por essas vivências, perturba a subversão libidinal, produzindo falhas na constituição do corpo erógeno da criança. Algumas partes do corpo podem permanecer cristalizadas em "zonas frias", automatismos e funcionamentos restritos, da ordem das necessidades biológicas, excluídas da relação com o outro e desprovidas de potencialidade erógena (Dejours, 1989/1991). Ficam também comprometidos os recursos paraexcitantes do próprio sujeito para lidar com as excitações e intensidades pulsionais, conflitos internos e externos. As perturbações da função materna (Kreisler, Fain & Soulé, 1974/1981), excessos e violências vividos pela criança no meio familiar, os núcleos primitivos e vivências recalcadas ou forcluídas do adulto que dela cuida, dificuldades de continência, de mediação e de nomeação das experiências corporais dessa criança comprometem a intricação pulsional e, consequentemente, a organização da economia psicossomática e de seus recursos mais evoluídos. Assim, o desenvolvimento pode ser interrompido em níveis precoces de organização ou marcado por pontos de fragilidade, com menos recursos para a contenção e organização de excitações.
Nessas condições, é maior a vulnerabilidade a situações de conflito. A precariedade dos recursos mentais resulta em dificuldade ou impossibilidade de organizar os excessos de excitação pela via psicopatológica e de conter os movimentos regressivos e as desorganizações progressivas (Marty, 1976). Algumas das expressões dessas dinâmicas são o pensamento operatorio (Marty & M'Uzan, 1963), a depressão essencial (Marty, 1968) e o comportamento vazio da criança (Kreisler, 1992/1999), caracterizados principalmente pelo empobrecimento dos recursos representativos, pelo esvaziamento afetivo, da vitalidade e da subjetividade. Observa-se também a desorganização, a perda de qualidade e de especificidade de diferentes funções, como a motricidade, a sensorialidade, as relações objetais, bem como de funções orgânicas e metabólicas, como alimentação, sono, digestão e excreção. No extremo, esses processos podem resultar, de forma crônica ou transitória, em descargas comportamentais, pela impulsividade, pela sintomatologia e doenças orgânicas, fora do circuito erógeno e representativo.
Experiências silenciadas
As mãos trêmulas de Marlene. Seu corpo imóvel, sua respiração aflita, suas palavras sem voz. Os longos minutos de silêncio, sem que nenhuma ideia, nenhuma imagem, nenhum relato pudessem ser compartilhados comigo. Apenas sua presença muda, contida, enigmática, maciçamente dominada pela sombra maligna de algo que parecia maior que o diagnóstico que recebera. Sentia que me buscava, que, quase sem forças, tentava me alcançar, capturada por alguma outra história que, naquele momento, eu não tinha como entender.
Vivendo o vazio de sua presença e a ausência de suas associações, sentia em mim a aflição, a angústia e a solidão que talvez ela experimentasse sem conseguir me dizer. Poderia ter lhe descrito minhas fantasias, meus sentimentos, minha compreensão do que imaginava ser seu desamparo. Poderia ter tentado transformar tudo isso em uma interpretação plausível de seu medo diante do diagnóstico e suas implicações, de sua frustração por uma gestação que jamais ocorreria e com a qual começara a sonhar. Pela intensidade dos afetos em mim mobilizados por seu silêncio, senti que tinha poucas chances de ser escutado.
Quando descrevi em voz alta suas mãos, sua respiração, seus lábios e seu silêncio, ela me ouviu. Hesitante, respondeu retomando um frágil fio associativo que revelou uma dor antiga, intensa e negada em sua história...
Quando chegou à análise, Marlene era uma mulher satisfeita, realizada profissionalmente, com uma vida social preenchida por boas relações familiares e de amizade. Feliz com seu marido, há 15 anos seu companheiro, não tinha filhos. "Não os desejava", dizia, "não encontrava lugar para eles", em sua vida tão preenchida pelo trabalho, por amigos, viagens e pela sensação de liberdade de não ter quem dela dependesse.
Porém, após dois anos de uma análise rica em lembranças e associações, turvaram-se suas "claras certezas" de que não desejava ser mãe. Surgiram aos poucos cenas esquecidas de sua infância, com irmãos, primos e amigos, marcadas pelo prazer de brincadeiras, passeios e travessuras. Passou cada vez mais a evocar a presença de sua mãe, dedicada a ela e a seus irmãos, seus olhares firmes e determinados, impossíveis de não serem obedecidos, impossíveis de não serem perdoados.
Com dificuldade, começou também a evocar outros olhares, imprecisos e distantes - aqueles que, durante alguns anos de sua infância, "nos meses de fevereiro'", acompanhavam o desaparecimento do sorriso nos lábios de sua mãe, que ficava reservada, taciturna, pouco disposta ao convívio, às conversas, refratária até mesmo às folias do Carnaval. Seu rosto tornava-se sombrio, seu olhar, esquivo. Marlene temia aquele olhar desconhecido, que transformava sua mãe em uma estranha, que a privava de sua companhia, que a abandonava. Família e amigos pareciam respeitar aquele recolhimento que ela não compreendia, mas sentia-se proibida de questionar. Sua irmã e seu irmão, um pouco mais velhos, aparentemente menos assustados, também se sujeitavam silenciosos àquelas mudanças. Com o tempo, desapareceu aquele olhar do rosto de sua mãe e apagaram-se as lembranças de Marlene de seus temores solitários dos meses de fevereiro. Até aquela sessão.
Naquele dia, transtornada com o diagnóstico do tumor uterino, sentindo-se "traída por seu corpo'", forçada por ele a renunciar violentamente a uma gravidez por anos impossível de ser desejada, reencontrou aqueles terrores incompreensíveis. Perdida e imóvel por um longo tempo, sentiu-se tocada pelas palavras que percorreram seu corpo e, ao percebê-lo, reencontrou-me. Ainda titubeante, encontrou também o olhar distante, perdido e silencioso de sua mãe e os temores que ele lhe provocava.
Lembrou-se dos meses de fevereiro de sua infância, do véu silencioso que recobria sua família, da profunda tristeza de sua mãe. "Lembrou-se" de José, irmão mais novo que nunca chegou a conhecer, pois a gravidez fora interrompida por um aborto espontâneo no quinto mês de gestação. Marlene tinha 1 ano e meio naquele momento.
Só bem mais tarde, por acaso e entre meias-palavras, soube de José. Nomeado desde a concepção para homenagear o avô materno, caso fosse menino, seu nome não podia ser evocado, mas fazia-se aflitiva e silenciosamente presente por sua ausência nos meses de fevereiro, mês em que a mãe abortou. Marlene tinha cerca de 8 anos quando ouviu uma conversa entre a avó e a mãe, referindo-se a uma "criança que não nasceu" e à homenagem que a mãe "não conseguira fazer" a seu próprio pai. Tentou compreender, perguntar, mas as evasivas da mãe e da avó falaram mais forte. Apenas percebeu no rosto da mãe as feições transfiguradas por uma tristeza longínqua e familiar.
Só na adolescência compreendeu por si mesma que a mãe sofrera um aborto e, também, a tristeza fugidia de seu olhar. Apenas uma vez perguntou diretamente à mãe o que acontecera, buscando confirmar seu entendimento. Acabrunhada e esquiva, a mãe aquiesceu, admitindo sua dor e sua impossibilidade de falar a respeito da perda daquele bebê.
Naquele momento, apesar de aliviada da dúvida que vivera por tantos anos, Marlene não conseguiu se desvencilhar da tristeza da mãe, que nela se infiltrara, e voltou a silenciá-la. Nunca mais falou disso, nem com ela nem com ninguém. Com o tempo, também aquela dor insuportável, fugidiamente compartilhada, desapareceu sob o vistoso manto de suas conquistas e experiências de mulher adulta, "feliz e realizada".
A escuta do corpo
Mesmo nas análises de pacientes neuróticos e, segundo Marty (1990/1994), bem mentalizados, frequentemente observamos oscilações nos investimentos transferenciais, no ritmo, no conteúdo e na coloração afetiva da associação livre, de sonhos e de fantasias, que refletem as vivências libidinais, representativas, afetivas e objetais do sujeito. Algumas vezes, como vimos com Marlene, nos deparamos com mudanças bruscas em padrões associativos, emocionais e transferenciais característicos do paciente, bem como com rupturas profundas do vínculo com o analista e da possibilidade de elaboração do material e das vivências da sessão. Outras vezes, podemos constatar momentos mais ou menos prolongados de desorganizações da economia psicossomática, acompanhadas ou não de sintomas ou doenças orgânicas e atuações.3
O diagnóstico de tumor uterino maligno, a perspectiva da histerectomia e a provável impossibilidade da gravidez que passara a acalentar, o sentimento de "traição" deslocado para o seu próprio corpo, mobilizaram em Marlene marcas primitivas não apenas dos efeitos do aborto sofrido e por tantos anos silenciado pela mãe e pela família, mas também de suas aflições infantis diante da periódica tristeza e distanciamento da mãe, provavelmente não somente "nos meses de fevereiro".
A desorganização provocada pela mobilização dessas marcas manifestou-se na profunda alteração de sua postura na sessão, em seu silêncio, na paralisação de suas ideias, na impossibilidade de preservar o contato e, mesmo, de recuperá-lo quando a convidei explicitamente a se conectar comigo e com as ideias que lhe ocorriam. Senti, em mim, o peso daquelas vivências, da solidão e do medo que, naquele momento, era ela (e não a mãe) que não conseguia nomear. Intuí que, naquelas condições, as interpretações que me ocorriam seriam inócuas, pois Marlene não tinha como me ouvir.
Esperei muito tempo por palavras e associações que, naquelas circunstâncias, não tinham como emergir. Foi então que percebi a tênue mas aflita expressão do que ela vivia em seu corpo. Ao tocá-la de outro modo foi possível, a ela, reconectar-se a mim e dar forma e palavras a suas vivências congeladas. Com meu comentário ("Há muitas maneiras de ser mãe"), conseguiu se desprender do núcleo de sua sideração, libertando-se, aos poucos, de uma das ideias que a transtornaram e a emudeceram: a indiscriminação entre sua histerectomia e o aborto vivido pela mãe, questão que foi trabalhada ao longo de muitas sessões.
Marlene descobriu, então, como suas vivências, antigas, repetitivas e impossíveis de serem nomeadas, a impediram durante muito tempo de entrar em contato com seu desejo de ser mãe, negado e racionalizado pelas "claras certezas" de que não encontrava lugar para filhos em sua vida "tão bem-sucedida social e profissionalmente".
* * *
Assim como as desorganizações psicossomáticas crônicas, muitas vezes observadas em pacientes mal mentalizados (Marty, 1990/1994), também os momentos de desorganização momentânea convocam mudanças significativas no manejo do enquadre, da escuta, da contratransferência e da interpretação, para sintonizar com as dimensões mais primitivas, não representativas, e com as oscilações evolutivas e contraevolutivas da economia psicossomática.
As dinâmicas mais primitivas, aquém do recalcamento e da resistência neurótica, confrontam o analista com descargas pulsionais diretas sem mediação representativa, impossíveis de serem trabalhadas por meio de associações, geralmente inexistentes, rarefeitas ou vazias. As palavras, esvaziadas de suas dimensões pulsional, afetiva e simbólica, perdem a capacidade de evocar lembranças, por meio das quais poderiam se revelar conteúdos inconscientes, no caso de defesas neuróticas. Rompe-se, assim, uma importante via de acesso ao infantil e às primeiras experiências de vida do paciente.
Desaparecem também sonhos, fantasias, devaneios e lembranças encobridoras (Freud, 1899/1975i), bem como formações de compromisso e mecanismos de defesa, que podem dar lugar a atuações comportamentais, expressões e sintomas corporais, tentativas mais rudimentares do paciente para ainda manifestar sua dor e seu afeto anestesiados. Pela intensidade dos movimentos de desorganização e da desintricação pulsional, a repetição passa a operar praticamente em circuito fechado, como pura expressão da compulsão à repetição e da pulsão de morte (Freud, 1914/1975k; 1920/1975a), com poucas possibilidades de ligação e de transformação em lembranças.
Essas manifestações coexistem com o empobrecimento da trama transferenciai e o retraimento libidinal, algumas vezes extremo, aquém do narcisismo (Marty, 1968), que sidera, silencia e isola o paciente, como vimos com Marlene. O trabalho analítico fica restrito a elementos sensoriais e corporais brutos e fragmentados, matéria-prima rarefeita que resta para ser investida, na esperança de constituir ou resgatar a trama relacional do tratamento.
A fragilidade do laço transferencial, a porosidade representativa e a carência de um terreno psíquico consistente dificultam a constituição e a sustentação de interpretações e construções, muitas vezes claras para o analista, mas impossíveis de serem figuradas e elaboradas pelo paciente. Contrariamente à metáfora arqueológica utilizada por Freud (1937/1975d), observamos que, com muitos pacientes, não se trata de descobrir ou reconstruir o que foi destruído ou perdido pelo recalcamento ou pela censura, mas de algo ainda mais complexo e primordial: construir, efetivamente desde o início, recursos, funções e instâncias que nunca se constituíram no sujeito. Essas condições são impróprias para interpretações mais profundas e regressivas, de natureza pulsional, uma vez que, sem sustentação representativa, elas podem, inclusive, potencializar a desorganização do paciente.
Continência e função organizadora do enquadre
O enquadre e a relação transferencial são os principais elementos a partir dos quais se processa o trabalho psicanalítico. Eles constituem um espaço relacional de continência, com potencial de elaboração e transformação das experiências do paciente, que remete às condições originárias de organização do desenvolvimento humano. A função terapêutica do analista4 tem como paradigma a dimensão relacional estruturante da função materna (Marty, 1990/1994; Kreisler, 1992/1999).
O enquadre psicanalítico "clássico" - frequência e duração das sessões, a utilização do divã, a abstinência e a neutralidade do analista, as associações livres do paciente e a atenção flutuante, a análise das resistências e da transferência (Etchegoyen, 1989), mediadas predominantemente por comunicações verbais - é propício ao trabalho com as psiconeuroses, pautado pela dinâmica do recalcamento e de mecanismos de defesa psíquicos, porém, como vimos, é inadequado para o trabalho com funcionamentos mais primitivos e desorganizados.
A clínica psicanalítica das desorganizações psicossomáticas convoca o analista ao encontro com o paciente em territórios frágeis e primitivos, aquém de palavras, instâncias e funcionamentos psíquicos estruturados. Para que esse encontro seja possível - e, espera-se, minimamente transformador -, mudanças no enquadre, na relação e nos modos de observação e comunicação com o paciente são necessárias. Elas visam, justamente, preservar a função estruturante desse enquadre, para resguardar, desenvolver e organizar os recursos mais consistentes do sujeito. Como aponta A. Green (1982), o manejo do enquadre busca fomentar a função de representação.
Para lidar com os movimentos de desorganização do paciente, o enquadre e a transferência devem também ser continentes para as manifestações corporais, perceptivas, sensoriais e motoras não verbalizadas. Muitas vezes, trata-se de uma análise minimalista, com níveis bastante incipientes de comunicação, a partir de tênues sinais (referência a ruídos, luzes, frio, calor), comportamentos, sintomas e doenças orgânicas. A sintonia do analista com essas manifestações passa não apenas por sua escuta, mas também pelo olhar (a apresentação, os gestos e movimentos do paciente), e mesmo por outras dimensões sensoriais, como o olfato (seus odores), o tato (a umidade, a vitalidade do aperto de mãos), formas de expressão possíveis para afetos e vivências não representados pela palavra. O corpo do analista é particularmente solicitado pelas dinâmicas primitivas do paciente (Fontes, 1999; Fernandes, 2003). As vivências contratransferenciais (sensações corporais, sentimentos, imagens) também se constituem como um importante recurso para a apreensão dessas dinâmicas (Volich, 2002/2015).
As condições regressivas promovidas pelo divã, pelo enquadre e pela regra de abstinência do analista, fatores importantes para o trabalho com pacientes psiconeuróticos, não apenas têm poucas chances de mobilizar os pacientes em momentos de desorganização, mas podem, inclusive, intensificar essa desorganização. A posição face a face, um corpo a corpo à distância (Aisenstein, 1998), promove o contato e a função especular pelo olhar, uma maior atenção aos gestos e expressões faciais tanto do analista como do paciente, favorecendo o estabelecimento e a manutenção da relação terapêutica.
A partir da função materna e do holding, busca-se promover a reanimação libidinal (Braunschweig, 1993), a reorganização narcísica e objetal, bem como viabilizar a intricação entre as pulsões de vida e de morte e os núcleos masoquistas erógenos primários, necessários para lidar com sofrimentos, perdas e frustrações (Rosenberg, 1991). Pelo acompanhamento das oscilações dos movimentos de organização e desorganização do paciente, as vivências primitivas compartilhadas na relação podem ser nomeadas, traduzidas em palavras e imagens por meio de um trabalho ativo de figuração, para, como observamos com Marlene, adquirirem aos poucos densidade representativa, (re)organizando-se, por esse caminho, a economia psicossomática.
* * *
Há mais de um século, o fio do recalcamento orienta a clínica psicanalítica, revelando funcionamentos psíquicos requintados, que aperfeiçoaram os recursos para o tratamento das psiconeuroses e de outras manifestações psicopatológicas. Atravessados por esse fio, recordar, repetir, elaborar são operadores fundamentais da análise. Nos limites dessa clínica, um outro fio revelou-se aos psicanalistas. Desvelado por aqueles que se aventuraram no território do primitivo e do não representado, esse fio, tal como o de Ariadne, pode orientar o psicanalista pelo sombrio, tortuoso e incerto labirinto das desorganizações psicossomáticas. Ao longo desse caminho, evidencia-se a importância de um outro paradigma clínico, nomear, subverter, organizar.
Pela trama desses dois fios, ampliam-se os recursos da clínica psicanalítica para lidar com sofrimentos que sequer podem dizer seu nome, desassistidos pelo desejo, alienados da alteridade.
Notas
1 Vertigem, dispneia, taquicardia, cefaleia, sudorese, transtornos digestivos, parestesias etc.
2 F. Alexander, Ballint, W. Reich, M. Klein, D. W. Winnicott, R. Spitz, P. Marty, L. Kreisler, C. Dejours, J. McDougall, P. Fédida, A. Green, M. Aisenstein.
3 Cf. o caso de Sofia em "A clínica das desorganizações" (Volich, 2000/2010) e o de Jean em "Desafios" (Volich, 2002/2015).
4 E também de outros profissionais de saúde - cf. "A função terapêutica" em Volich (2000/2010).
Referências
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Recebido em 02.05.2016
Aceito em 16.05.2016