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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.2 São Paulo abr./jun. 2016

 

EM PAUTA

 

Psicossomática psicanalítica hoje: o modelo pulsional da Escola de Paris

 

Psychoanalytic psychosomatics today: the instinctual model (drive theory) of the Paris School

 

Psicosomática psicoanalítica hoy: el modelo pulsional de la Escuela de París

 

 

Diana Tabacof

Psicóloga clínica formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), membro da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP), membro didata do Instituto de Psicossomática Pierre Marty (IPSO-Paris), membro da International Psychoanalytical Association (IPA)

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho, as linhas diretrizes do corpo teórico-clínico da Escola Psicossomática de Paris são esboçadas dentro de uma perspectiva histórica, desde a sua fundação nos anos 1960 até os dias de hoje. A partir dos trabalhos recentes de seus seguidores, o pensamento de Pierre Marty, pioneiro da psicossomática psicanalítica, é apresentado e articulado ao modelo pulsional freudiano pós-1920 e ao jogo de forças entre as pulsões de vida e a destrutividade, integrando-o assim ao movimento da psicanálise francesa contemporânea. Os transtornos da economia psicossomática são formulados à luz do problema do traumatismo, da função do objeto e dos riscos de desintricação pulsional e desorganização do sujeito. As falhas nos processos de elaboração psíquica (de mentalização), próprias à somatose, são situadas nas falhas da ligação do afeto à representação.

Palavras-chave: excitação; pulsão; desintricação pulsional; somatização; afeto; representação.


ABSTRACT

The author outlines, in a historical perspective, the guidelines for the theoretical and clinical framework of the Paris Psychosomatic School, starting from its foundation - in the Sixties - until nowadays. By studying Pierre Marty's follower's recent works, the author presents Marty's thinking. Marty was the pioneer of the psychoanalytic psychosomatics. The author also links Marty's thinking to the post-1920 Freudian drive theory, and to the balances between life drive and destructiveness. This emphasis places Marty's work within the contemporary French psychoanalytic movement. Disturbances of the psychosomatic economy are formulated in light of the trauma issue, the object's function, and the risk of instinctual extrication, and disorganization of the subject. The failures in the processes of psychic elaboration (mentalization) which are typical of somatosis lie on the failures of the connection between affect and representation.

Keywords: excitation; drive; instinctual extrication; somatization; affect; representation.


RESUMEN

En este trabajo las líneas directrices del cuerpo teórico-clínico de la Escuela Psicosomática de París se esbozan dentro de una perspectiva histórica, desde su fundación en los años 1960 hasta nuestros días. A partir de las obras recientes de sus seguidores, el pensamiento de Pierre Marty, fundador de la psicosomática psicoanalítica, es presentado y articulado aquí al modelo pulsional freudiano post- 1920 y al juego de fuerzas entre la pulsión de vida y la destructividad, integrándolo así al movimiento del psicoanálisis francés contemporáneo. Los trastornos de la economía psicosomática se formulan a la luz del problema del traumatismo, de la función del objeto y de los riesgos de desintricación pulsional y desorganización del individuo. Los fallos en los procesos de elaboración psíquica (la mentalización), propios de la somatosis, se sitúan en los fallos de la unión del afecto a la representación.

Palabras clave: excitación; pulsión; desintricación pulsional; somatización; afecto; representación.


 

 

Ha cinquenta anos, na Pitie-Salpetriere, onde Freud com a equipe de Charcot descobriu a histeria, um grupo de psicanalistas da Sociedade de Paris, reunido em torno de Pierre Marty, começou uma nova aventura.

A investigação psicossomática, obra fundadora publicada em 1963, assinada por Marty, Christian David e Michel de M'Uzan, foi o resultado desses primeiros anos de uma pesquisa psicanalítica estimulante e original, iniciada no meio hospitalar, com pacientes que apresentavam patologias somaticas diversas, e que levou à construção de um conjunto teórico inovador e de um pensamento clínico singular. Um novo objeto de estudo foi criado, inscrito no terreno já conquistado da meta-psicologia freudiana: a organização psicossomática.

Rompendo com as classificações psicossomáticas existentes ate então, sobretudo aquelas da medicina psicossomática, esses precursores não procuraram definir os perfis dos doentes em função de doenças específicas, como fazia a Escola de Chicago, nem estenderam, como nas outras correntes analíticas, o modelo da histeria às doenças somáticas. Para os precursores da Escola de Paris, nem as doenças nem os doentes seriam considerados psicossomáticos: o ser humano é psicossomático por definição. A abordagem de um psicanalista formado nesta clínica é que seria denominada psicossomática.

Voltando aos anos 1960, um espírito de descoberta se impôs verdadeiramente no contato dos analistas com esses pacientes. Devemos lembrar que estes não se encontram espontaneamente nos consultórios dos psis, menos ainda naquela época, sendo portanto assíduos frequentadores dos serviços médicos.

Gisele W. ou Gilbert C., dois exemplos dentre as sete observações contidas em A investigação psicossomática (Marty, M'Uzan & David, 1963) - a primeira sofrendo de enxaquecas severas e esterilidade; o segundo, de uma cardiopatia -, se afastam muito das descrições de Augustine ou de Anna O. Neles, nenhum sintoma ruidoso ou grande eloquencia teatral se manifesta; o drama se passa em surdina. Esses casos se aproximam daqueles que foram denominados ulteriormente de normopatas - ou, dito de outra maneira, esses pacientes revelam uma sintomatologia psíquica negativa.

Apresentando sintomas propriamente orgânicos (funcionais ou lesionais), nem conversivos portanto nem hipocondríacos, esses pacientes são bem adaptados ao mundo que os rodeia, não manifestam sofrimento ou queixa na esfera psicoafetiva ou comportamental: eles consultam por seu sofrimento físico. Retomando os termos dos autores da investigação psicossomática: esses pacientes estão absorvidos por um objeto interior somático, opaco e resistente à interpretação, impressionantemente dissociados de sua subjetividade.

Em um comentário recente sobre Gisele W., M'Uzan (2009) evoca a contratransferência doutrinai, segundo a qual o psicanalista tende a "neurotizar" o paciente, privilegiar a inscrição da problemática no registro psicossexual e procurar o "sentido" do sintoma. Na releitura de Gisele W., ele cita sua tendencia inicial de interpretar o aparecimento das cefaleias no primeiro dia das regras da paciente como dependente do psíquico e da angústia de castração, para logo em seguida "cair na realidade", pois a visão de conjunto do material mostrou a fragilidade de seus esforços. Nesta paciente, a infiltração do pré-genital no seu funcionamento, suas limitadas possibilidades de simbolização e a restrita manipulação mental dos fantasmas denotavam uma problemática narcísica fundamental. A emergência dos conflitos na esfera genital teria reavivado sua oralidade primária, cujo teor agressivo tornava insolúvel a equação edípica e seu tratamento psíquico. As enxaquecas ocupariam o espaço do conflito intrapsíquico - este, inelaborável. Mulher hiperativa, tendo se organizado a partir de uma notória reivindicação fálica, "braço direito de seu pai" e "suplente" de sua mãe, nos seus próprios termos, sempre pronta a "ajudar os outros" e particularmente a "cuidar de crianças", desejando mesmo "possuir crianças": seu funcionamento conduziu os investigadores não em direção a um conflito inconsciente próprio à neurose, mas na pista de uma neurose de comportamento. O componente de descarga motora era indispensável no seu funcionamento e, ao invés de interna, a cena psíquica parecia se desenrolar externamente, mediante seus atos e seu comportamento, na ausência da culpabilidade ou da rivalidade manifestas através dos sintomas neuróticos clássicos. Por trás de sua aparente força e duvidosa capacidade de metaforização, ilustradas por expressões como "Eu sou como um leão!", em Gisele W. a ferida narcísica estava pronta a despertar e o risco de desabamento espreitava, fazendo dela uma paciente muito frágil. No final de seu comentário, M'Uzan se refere ao trabalho com esse tipo de paciente dizendo que este impõe uma política de beira de abismo. Foi o mesmo M'Uzan que propôs, nos anos 90, a eloquente expressão escravos da quantidade (M'Uzan, 1994), em referência a esta clínica.

Neste mesmo sentido, para dizer algumas palavras sobre Gilbert C., a atitude extremamente comedida, feita de "tensão e calma", desse paciente coronariano visava o domínio total de sua angústia durante a investigação psicossomática, vivida por ele como uma penetração intolerável e perigosa. A precariedade de suas defesas psíquicas, diante do contato caloroso criado pela proximidade do psicanalista, em vez de mobilizar, por exemplo, defesas obsessivas, desencadeou seus sintomas somáticos, anunciadores de uma crise de angina: transpirações, palpitações, problemas de dicção etc. Foram experiências desse tipo que conduziram Marty a recomendar aos psicossomaticistas a terem a prudência de um desarmador de minas, ou seja, a prudência de quem se aproxima de zonas explosivas do psiquismo.

Um certo número de entidades clínicas provenientes dos estudos psicossomáticos foi desde então descrito - entidades hoje bem conhecidas e muitas vezes integradas à linguagem psicanalítica contemporânea. Assim, citamos o pensamento operatório, a depressão essencial, a reduplicação projetiva ou, mais recentemente, os procedimentos autocalmantes. A fenomenologia do factual e do atual, presente no discurso desses pacientes, foi amplamente reconhecida. Interessantes relações foram estabelecidas com outras pesquisas, como no caso da alexitimia.

Esse conjunto semiológico regularmente observado pelos psicanalistas em contato com doentes somáticos, caracterizado pela ausência de liberdade associativa, pela raridade de expressões afetivas e fantasmáticas espontâneas, pela relativa ineficácia do trabalho do sonho, dos processos sublimatórios e simbólicos diversos, permitiu que se pudesse constatar uma ausência de fluidez entre os processos inconscientes e a consciência, e postular a existência de falhas no tratamento psíquico das excitações corporais mobilizadas pelas experiências vividas e de sua ligação às representações mentais.

A emergência de angústias difusas e invasivas, uma intensa utilização do registro perceptivo e da sensório-motricidade como vias de regulação das tensões compõem também esse quadro, caracterizando o que se denomina de clínica da excitação (Tabacof, 2008).

O ponto de vista econômico é, deste modo, central no corpo teórico-clínico da Escola de Paris. Trata-se de um ponto de vista transformacional, que abarca as mutações energéticas nos dois sentidos: tanto das excitações de origem somática em material psíquico como da degradação dos materiais psíquicos em somático.

Em confrontação constante com o modelo habitual das neuroses de transferência e à luz de observações clínicas que se multiplicaram com a criação do Centro de Atendimento de Adultos e Crianças em 1978, nossos pioneiros psicossomaticistas distanciaram-se da linhagem das psiconeuroses de defesa e aproximaram-se da linhagem das neuroses atuais, assinaladas por Freud no início de sua obra, e das neuroses traumáticas mais tardias. Assim, surgiu uma nosologia mais adaptada às somatoses (para diferenciar das neuroses e das psicoses), distribuídas em dois grandes grupos: as regressões somáticas, que são as doenças funcionais ou passageiras, e as desorganizações progressivas, que constituem o quadro das doenças mais graves e/ou degenerativas. Três grandes grupos foram delimitados na classificação econômica de Marty (utilizada na investigação psicossomática do centro de consultas e retomada no fim do tratamento para a apreciação da evolução dos casos): as neuroses com sintomatologia psíquica, as neuroses de caráter com níveis variáveis de mentalização e as neuroses de comportamento - cada categoria desta classificação sendo associada a particularidades semiológicas oriundas da psicanálise, descritas caso a caso.

Marty (1976, 1980, 1984,1990) legou uma verdadeira chave para a compreensão da economia psicossomática, propondo três modos de transformação do fluxo das excitações: a mentalização (através das operações psíquicas, das mais simples às mais complexas), o comportamento (através dos atos e das descargas musculares e sensorio-perceptivas em geral) e a somatização (através dos sintomas mais passageiros até as doenças mais graves). Cada indivíduo disporia de uma gama pessoal - com a presença de gradientes variáveis desses modos de expressão (mentalização, comportamento e somatização) - mais ou menos constante no seu funcionamento habitual, mas sujeita a alterações em diversos momentos e circunstâncias da vida. Isto pode ser concebido igualmente como uma referência no interior de uma mesma sessão e a fortiori ao longo de um processo analítico, o paciente podendo privilegiar certas modalidades de expressão no início, ou num momento dado, vindo sensivelmente a modificá-las em contato com o analista e o trabalho analítico.

Para ilustrar tais remanejamentos, podemos considerar como exemplo um paciente cujo discurso de tipo operatorio, invasivo e detalhado - sobre a doença, sobre os tratamentos ou os fatos cotidianos, cuja função defensiva e antitraumática deve, sem dúvida, ser preservada enquanto for necessária - dê lugar, no seio da relação transferocontransferencial, a uma redinamização significativa. O reinvesti mento libidinal progressivo, tanto narcísico quanto objetal, permitirá que o paciente, apoiado num tipo de relação inédita e identificado ao funcionamento do analista, venha a interiorizar o prazer do funcionamento mental, mobilizando sua associatividade e desenvolvendo novos recursos internos. A sintomatologia negativa de ordem psíquica e a ausência do afeto de dor psíquica propriamente dito vão ceder no mais das vezes, ainda que lentamente ou de forma descontínua, fazendo com que, a partir do regime econômico antitraumático, sequências psicodinâmicas se construam. Estaríamos aí no âmago do que, em termos atuais, chamamos de trabalho de somatização (Smadja, 2013). Analogamente à expressão de trabalho de luto ou de melancolia, o trabalho de somatização se desenrola à medida que, através do processo analítico, um encadeamento de eventos psíquicos significativos toma forma e se revela como precondição econômica à "solução somática" encontrada pelo paciente. O movimento de reorganização é assim impulsionado.

Voltando à nossa breve genealogia das ideias, o ponto de vista econômico baliza a obra freudiana desde os Estudos sobre a histeria (Freud & Breuer, 1895/1967) até o Moisés (Freud, 1939/2010), através do tema do traumatismo. Freud se refere à neurose traumática insistindo sobre o caráter somático (o choque do organismo provocando um afluxo de excitação) e o psíquico (o terror) do traumatismo. Foi a partir desse mesmo modelo que os processos de desorganização foram concebidos.

Desse modo, uma potencialidade traumática, trazendo em si uma potencialidade de desorganização psicossomática, existe ao longo de toda a vida e em cada um. Traumatismos precoces ou mais tardios, súbitos ou cumulativos, ou ainda reativados de modo inesperado: são esses choques que colocam à prova a capacidade das funções psíquicas para regular a homeostasia do humano.

O traumatismo na perspectiva psicossomática não se define pelo tipo ou extensão de um evento ou situação dada, mas pela gravidade de desorganização que produz em um indivíduo determinado. Quando a tensão interna gerada pelas excitações desencadeadas escapa ao tratamento mental e persiste em quantidade excessiva, uma função fisiológica ou um sistema funcional corre o risco de desorganização, pois, de acordo com Marty (1980), cada função só pode integrar uma quantidade limitada de excitações. A resistência aos impactos desorganizadores dependeria das capacidades defensivas e, no nível do aparelho psíquico, da funcionalidade das representações mentais disponíveis no pré-consciente, de sua quantidade e de sua qualidade, e da fluidez de sua circulação entre a consciência e o inconsciente.

O pensamento de Marty se apoia em uma teoria da representação que circula no interior da primeira tópica freudiana, sendo o pré-consciente a plataforma giratória da economia psíquica, lugar de enriquecimento recíproco entre as representações de coisa e de palavra. Esse pressuposto, que tem base na primeira tópica, foi ampliado com a evolução do pensamento da Escola de Paris, como será desenvolvido mais adiante.

Para compensar a insuficiência dos mecanismos mentais neuróticos, foi postulada pelos psicossomaticistas (e isto marca uma ruptura com Freud) sua substituição por mecanismos de defesa somáticos, muito arcaicos no plano evolutivo. Isso se embasaria na noção de uma energética comum às funções psíquicas e às funções somáticas. Um princípio de equivalência energética foi proposto por Marty (1963):

entre a atividade relacional com um objeto exterior, a atividade relacional com a representação [interna] de um objeto exterior; a atividade mental enquanto tal, intelectual ou fantasmática; e a atividade somática perturbada [...]. É por isso que se pode observar um problema visceral ou muscular substituir a relação do sujeito com uma pessoa significativa. (p. 13)

Do ponto de vista clínico, esse princípio de equivalência energética entre diversos registros de expressão nos conduz a ampliar a escuta dos conteúdos psíquicos - explicitamente formulados e ligados a representações - a todas as manifestações perceptivas e observáveis no face a face analítico: mímicas, gestuais, sensório-motoras, álgicas, neurovegetativas etc. A captação da expressão associativa do paciente (assim designada para diferenciá-la da associação livre) através da atenção flutuante perceptiva do analista (Botella, 2014) abre o campo das transformações do material emergente, inscrevendo-o numa dinâmica de figuração e de inteligibilidade. Nisto o papel transformador do analista, pela sua própria capacidade de regressão formal e de restituição progressiva ao paciente dos diversos estratos do material, torna-se central.

Podemos considerar, seguindo os recentes desenvolvimentos da Escola de Paris, que essa equivalência energética entre funções somáticas e funções psíquicas procede de elas terem em comum seu fundamento pulsional. Seriam as transformações qualitativas da energia pulsional que conduziriam a toda gama de expressões clínicas, das mais psíquicas às mais somáticas e comportamentais. Notemos que Freud indica em vários momentos esses movimentos de repartição libidinal, que têm por consequência o desaparecimento de uma sintomatologia psíquica com o aparecimento de um estado doloroso ou lesão corporal, e vice-versa (Freud, 1920/2002, 1924/1992).

Vemos assim a noção de energia pulsional se delinear na problemática aqui tratada, e de fato a questão da pulsão foi tornando-se central na continuidade dos trabalhos de nossos pioneiros. Vamos tentar declinar, em algumas palavras, os "avatares" e "destinos" dessa problemática, porque as posições divergem e o campo é vasto e complexo.

Pierre Marty era absolutamente monista. Ele jamais aderiu ao dualismo pulsional proposto na segunda teoria freudiana das pulsões. Evolucionista antes de tudo, concebeu a existência de uma energia vital única, que alimentava tanto os instintos quanto as pulsões. Para ele, o princípio evolucionista seria responsável pela mutação do instintual em pulsional.

Ele propôs um modelo no qual o movimento energético, em seu sentido evolutivo, ganharia mais e mais em qualidade libidinal, o nível mais alto deste modelo piramidal sendo a organização psíquica edipiana, tendência que se inscreve no movimento de vida. Esse mesmo tronco energético pode tomar um caminho contraevolutivo, regressivo, de desorganização e desqualificação libidinal, seu nível mais baixo sendo representado pelos processos orgânicos letais, inscritos no movimento de morte. Notamos que no interior do monismo martyniano estão incluídos os dois movimentos de vida e de morte, que recorta o dualismo formado pela pulsão de vida e a pulsão de morte, sem que, entretanto, este faça parte de seu modelo.

Para Smadja (2001, 2008), que representa hoje, de certa forma, a nova tendência do pensamento da Escola de Paris, o monismo psicossomático é indiscutível, porém deve ser articulado de forma resoluta com o dualismo pulsional. Finalmente, é através da pulsão que "se atam e se desatam as ligações psicossomáticas" (2008, p. 87). O corpo da psicossomática fica assim redefinido como um corpo pulsional, e nessa lógica as funções fisiológicas estão submetidas ao funcionamento das pulsões. Considerando o escrito de Freud de 1923, O ego e o id, em que afirma que "em cada pedaço da substância viva estariam ativas as duas espécies de pulsões, [...] em uma mistura em proporções desiguais" (1991, p. 270), a noção de energética pulsional se complexifica. Partindo dessa ideia, o psicanalista deve construir sua compreensão dos fenômenos psicossomáticos em referência aos movimentos pulsionais eróticos e/ou destrutivos em jogo, no seio da organização de seu paciente.

Observamos então que, ao longo do tempo, a noção econômica de excitação em excesso, presente na linguagem psicossomática desde o seu início para designar a origem das desorganizações, torna-se, no espírito dos psicossomaticistas contemporâneos, o equivalente a uma desintricação pulsional, trazendo a marca seja de uma insuficiência, seja de uma diminuição, seja de uma perda de libido, o que tem como consequência a liberação da destrutividade interna, rompendo desse modo o equilíbrio da unidade psicossomática (Aisenstein, 1990).

Assim sendo, nas teorizações mais recentes, o paradigma da excitação vai dar lugar ao paradigma da pulsão e do seu dinamismo.

Parece-me evidente que um novo retorno ao "conceito-limite" entre o somático e o psíquico fez-se necessário neste vasto campo que nos ocupa, pois o trajeto da pulsão inscreve nele mesmo o devir psicossomático, e as falhas nesse trajeto são também as falhas na ligação soma-psique.

A definição freudiana de 1932 esclarece de maneira precisa a trajetória somatopsíquica da pulsão:

Da pulsão, pode-se distinguir a fonte, o objeto e a meta: a fonte é um estado de excitação corporal; a meta, a supressão dessa excitação. É no caminho da fonte à meta que a pulsão torna-se psiquicamente eficiente. Em regra geral, nesse trajeto encontra-se interposto um objeto externo. (1995, p. 166)

Nessa definição, o objeto está situado no caminho do tornar-se psíquico da pulsão, entre a fonte corporal e a meta, que é a satisfação.

Para André Green (1997, 2002), que trouxe uma grande contribuição ao pensamento psicossomático nas últimas décadas, pulsão e objeto formam um par indissociável, um não pode ser concebido sem o outro. Para o autor, o objeto faz parte da montagem pulsional: seja porque ele falta, modificando seriamente seu trajeto, seja porque ele é o meio através do qual seu alvo pode ser atingido. O objeto, nessa perspectiva, é ao mesmo tempo o revelador da pulsão e o agente da intricação das pulsões. A dinâmica objetalização-desobjetalização, sobre a qual não posso me estender aqui, é equivalente à dinâmica intricação-desintricação pulsional e, a fortiori, à dinâmica organização-desorganização.

Em psicossomática, uma verdadeira teoria da relação de objeto se esboça, a meu ver, através da noção de função materna. Criada por Marty para situar a importância das interações precoces na construção da unidade psicossomática, mas também para designar a base do trabalho do analista nesta clínica, esta noção continuou sendo enriquecida por seus sucessores ao longo do tempo.

É no âmago da função materna que os processos transformacionais se produzem, permitindo que, a partir do corpo biológico, advenha o corpo pulsional. A metáfora proposta por Christophe Dejours (2001) da roda que transforma a água em energia descreve esse processo de apoio e transformação do corpo biológico em um corpo erógeno, o que esse autor prolífero no campo da psicossomática indica como sendo da ordem de uma subversão libidinal.

Da qualidade do investimento do corpo e dos sistemas funcionais somáticos da criança (alimentar, excretor, respiratorio, do sono e outros) dependerá a ancoragem de pontos de fixação somática e das tramas psicossomáticas ulteriores. Com a irrigação do corpo da criança pela libido, a energia sexual psíquica de Eros proveniente do mundo pulsional dos objetos, através dos diálogos táteis, tônicos, sonoros, verbais e pré-verbais, o trabalho de ligação das excitações somáticas e da destrutividade, sempre ameaçadora, torna-se eficiente. São essas trocas libidinizantes que asseguram a instalação das zonas erógenas e da dimensão psicossexual propriamente dita.

É com Michel Fain (1971, 1975, 1981, 1991) que o desenvolvimento pulsional individual será minuciosamente elaborado na teoria. Ele formulará a noção de imperativo de complexificação do instintual originário, a partir das negociações operadas entre a autoconservação e as pulsões sexuais, que conduz à organização genital edipiana. Somente ao longo desse caminho pode-se considerar que o destino da pulsão será concluído (acabado). Os obstáculos nesse caminho, devidos aos percalços do encontro com o objeto, dificultariam o movimento de complexificação, substituindo-o para fins defensivos por um imperativo de desenvolvimento prematuro das pulsões do ego. O amadurecimento etapa por etapa do aparelho psíquico e de suas instâncias se vê assim comprometido; o ego toma as rédeas, de modo que o destino pulsional permanece num estado "inacabado".

Os trabalhos conjuntos de Michel Fain e Denise Braunschweig (1975) vão fornecer os elementos para que se compreenda como essa complexidade do destino pulsional poderá advir ou fracassar.

A libidinização do sono do bebê pela mãe é apontada por esses autores como o prelúdio à vida fantasmática e onírica, em outras palavras, como abertura aos processos de mentalização. O investimento materno, paraexcitante e tingido da ternura que provém de sua pulsão sexual inibida quanto à meta, assegura à criança o rebaixamento do tônus corporal e a integração progressiva dos autoerotismos, dando acesso às satisfações passivas, indispensáveis aos processos de interiorização e de coexcitação libidinal. A instalação do sistema sono/sonho assegura as bases do narcisismo primário e representa a primeira forma autônoma de identificação. Esse movimento é marcado pela descontinuidade do investimento da mãe, que se desvia de sua criança para se voltar ao pai da criança. A mãe, tornando-se amante do pai, impõe à criança uma censura, equivalente a uma mensagem de castração, designada por Fain e Braunschweig como a censura da amante. Nessa configuração edípica precoce, altamente carregada de erotismo, a identificação da criança com sua mãe ou, mais precisamente, a identificação da criança com o prazer dos autores da cena primitiva, da qual ela é ao mesmo tempo excluída, torna-se o protótipo do traço mnésico inconsciente e dos primeiros recalques. A passagem do corpo a corpo da mãe com seu filho ao corpo a corpo com seu amante exige, de sua parte, uma sólida ancoragem superegoica, herdeira de seu próprio Édipo, que assegure o trabalho de dessexualização e de ressexualização no nível de seu pré-consciente.

As falhas nesse processo, resultantes dos mais diversos obstáculos, fazem a criança correr um risco permanente de desintricação pulsional, pois as massas de excitação são intensas e necessitam da força intricante de Eros para serem reguladas. A instalação do masoquismo erógeno primário tem aqui um papel estruturante, de guardião da vida, pois somente a ligação da libido às forças da destrutividade, desencadeadas pelos estados de frustração e de angústias das mais diversas magnitudes, pode assegurar o frágil equilíbrio.

Na ausência ou insuficiência dos processos intricantes, no lugar dos fantasmas originários organizadores e da riqueza da vida fantasmática, uma brecha se abre, na qual um autoerotismo irrepresentável se instala. Para tratar dessa excitação indiferenciada, que os autores chamam de sensorialidade traumática primária, são convocadas medidas calmantes para reduzir as excitações a zero, por meio das propriedades da pulsão de morte. Estaríamos aí no registro do chamado masoquismo erógeno mortífero, descrito por Benno Rosemberg (1995).

Nessa conjunção paradigmática de um estado traumático que coloca em perigo a construção das bases narcísicas da criança, de acordo com o modelo de Michel Fain uma prematuridade do ego se instala, apoiada pelo sistema percepção-consciência e pela sensório-motricidade. Diferentemente da configuração descrita, na qual a censura da amante é eficaz e alimenta o inconsciente recalcado, este sistema defensivo convoca a supressão e a clivagem, deixando em suspenso os "restos" não representados, os fueros evocados por Freud (195o[1896]/1986), numa configuração igualmente próxima da descrita por Ferenczi (1933/1990), em que prematuridade e clivagem sucedem ao trauma. Para A. Green (2002), processos dessa mesma ordem induziriam a uma introjeção do negativo.

Notem que as defesas antitraumáticas do ego e a tentativa repetitiva de redução da excitação descritas na linhagem traumática pela psicossomática estão na origem de uma série de procedimentos ditos autocalmantes, como propuseram G. Szwec (1998) e C. Smadja (2001), assim como do funcionamento operatório, considerado hoje em dia como um vasto sistema autocalmante.

Para Fain e Braunschweig, em conclusão, a função materna estrutura o aparelho psíquico e organiza as pulsões parciais da sexualidade infantil, criando uma reserva de representações mentais de natureza psicossexual, aptas a ligar as excitações sexuais, assegurando assim o equilíbrio entre Eros e a destrutividade, indispensável à conservação do equilíbrio psicossomático.

Nessa perspectiva, que integra a segunda tópica, não podemos mais conceber o funcionamento do pré-consciente, tão importante em nosso modelo depois de Marty, como sendo apenas o lugar das representações. No modelo pulsional da segunda tópica, o inconsciente abriga as moções pulsionais do id, "a mais velha província" nos termos freudianos de 1924, enraizadas na organização somática. No pré-consciente atravessam as cargas energéticas provenientes do id, que exercem uma pressão do inconsciente sobre o consciente e que estão em busca de qualificação, como enfatizou M. Aisenstein no recente artigo "As exigências da representação" (2010). Trata-se de cargas de afeto, presentes de forma rudimentar no id, verdadeira força pulsional em busca de significação e, através desse mesmo movimento, em busca do objeto.

A questão do afeto vem assim ocupar uma posição de destaque no léxico psicos-somático atual. Trata-se de restituir ao afeto seu lugar na teoria psicanalítica, enquanto quantidade psíquica vinculada às fontes somáticas da pulsão, e de redimensionar a importância da eficácia da ligação do afeto à representação no trabalho de elaboração psíquica - principalmente porque sabemos que este processo fracassa em uma clínica como a nossa, na qual o desligamento do afeto prevalece. C. Smadja (2011) indica, nesse sentido, uma passagem em O ego e o id em que Freud anuncia que as formações de afetos podem chegar diretamente à consciência sem estar associadas às representações e que, no plano clínico, elas têm a forma de descargas de afetos brutos e desorganizados. Estamos aqui outra vez no coração das problemáticas contemporâneas do irrepresentável, do "informe", da clínica da violência, do ato e da somatização.

A partir dos trabalhos de Green, tomando aqui como referência o seu livro O discurso vivo (1973), o afeto e a representação são considerados como duas modalidades do sistema representacional. Esse processo primitivo de qualificação da quantidade de excitação no interior da célula afeto-representação foi enfatizado por Green, que nota que isto pode ser alterado, objeto de desqualificação e de requalificação, em função das oscilações do equilíbrio de Eros e da destrutividade. No cerne desse processo, manifestam-se as diferentes figuras do trabalho do negativo.

Ora, a depressão essencial, o estado que precede a desorganização somática descrita por Marty e encontrada regularmente em nossa clínica, é caracterizada por uma abrasão dos afetos. Em certas organizações, essa desafetação pode ser uma marca de funcionamento instalada muito precocemente. Joyce McDougall (1989) não cessou de apontar a questão da desafetação do "antianalisando", paciente para ela vulnerável à somatização. Na perspectiva greeniana, a neutralização de afeto corres-ponderia a uma repressão radical de todo espectro representacional. C. Delourmel (2014), em um texto publicado há pouco tempo, elaborou essas questões à luz da Escola de Paris. Eu o cito: "este processo de desqualificação do afeto ataca a raiz do pulsional, produzindo uma degradação da excitação que vai até os confins do id, isto é, [o] soma" (p. 54). Neste sentido, a desorganização somática é concebida como uma figura do negativo.

Uma pequena digressão se impõe aqui.

É curioso observar que foi pela clínica das organizações não neuróticas (dos estados-limite principalmente) e por seus impasses que a noção de trabalho do negativo surgiu e que a questão da destrutividade tornou-se um centro de preocupações na paisagem psicanalítica francesa contemporânea. Recordemo-nos que foi convocando os fatos clínicos que colocavam em dificuldade o método analítico - a neurose traumática, a compulsão à repetição, a reação terapêutica negativa, o masoquismo - que Freud (1920/2002) avançou a ideia de um além do princípio do prazer, em que dominam as forças destrutivas.

Notamos assim a continuidade existente entre nossas pesquisas psicossomáticas e o movimento evolutivo do pensamento psicanalítico. Essa evolução da teoria não deixa de afetar o pensamento clínico, inclusive em sua dimensão técnica. Infelizmente, não posso aprofundar aqui essas questões fundamentais.

Gostaria de concluir citando um trabalho de Claude Smadja (2011) em que ele afirma: "O ponto de convergência conceitual entre as diversas correntes psicossomáticas é o dos laços existentes entre a vida afetiva e os sintomas do corpo" (p. 148). Ele constrói esse artigo através de um hábil desenvolvimento acerca da metapsicologia do afeto, da montagem pulsional e da formação da dupla primordial afeto/representação.

Vou extrair desse texto duas asserções que sintetizam muito bem nossa proposta: "Eu qualifico de trabalho de psiquização do corpo o processo de transformação do afeto que o conduz do seu estatuto inconsciente ao seu reconhecimento consciente" (p. 155). Em seguida:

O destino do trabalho de psiquização do corpo depende do equilíbrio entre os mecanismos de união e desunião no interior da ligação do afeto e da representação. [...] E mais fundamentalmente e precocemente ainda, isso repousa na formação inicial da célula pulsão-objeto, isto é, da união do corpo com o mundo dos objetos. (p. 155)

Tudo isso nos pareceria muito abstrato se não tivéssemos nossa clínica psicosso-mática, mas não somente, na qual se reconhece imediatamente essas implicações metapsicológicas. A clínica contemporânea nos convida continuamente a discriminar estes encadeamentos e desencadeamentos.1

 

Nota

1 Agradeço a Ana Maria Baccari Kuhn por sua colaboração na adaptação deste texto ao português.

 

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Correspondência:
Diana Tabacof
11, Boulevard de Clichy
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Tel: + 33 620523499
ditabacof@free.fr

Recebido em 25.01.2016
Aceito em 29.03.2016

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