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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.50 no.3 São Paulo jul./set. 2016
OUTRAS PALAVRAS
Escrita e transmissão em Bion: modelo de grupo, modelo pictórico e modelo de transformação em "O"1
Writing and transmission in Bion's work: group model, pictorial model and transformation in O model
Escritura y transmisión en Bion: modelo de grupo, modelo pictórico y modelo de transformación en O
Adriana Salvitti
Psicóloga, psicanalista, pós-doutora pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, membro filiado do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
RESUMO
O artigo aborda o problema da transmissão da psicanálise na produção escrita e aponta como Wilfred R. Bion lidou com a questão por meio de seu estilo literário em momentos distintos de sua obra. Através da leitura de Experiências com grupos, "Mudança catastrófica" e o capítulo "Comentário" de Second thoughts, são identificados três modelos de transmissão nomeados por nós de modelo de grupo, modelo pictórico e modelo de transformação em O, respectivamente. O artigo mostra como, nesses modelos, há uma ligação estreita entre a teoria que estava sendo apresentada, a forma de Bion apresentá-la e o processo de leitura. Aponta ainda como Bion emprega a linguagem para estimular o leitor a lidar com questões clínicas, sobretudo com o método, durante a leitura do texto, mantendo-o comprometido com a psicanálise fora da prática analítica.
Palavras-chave: Wilfred R. Bion; transmissão; escrita; grupo; linguagem pictórica; transformação em O.
ABSTRACT
This paper approaches the issue of the transmission of psychoanalysis in writing, and shows how Wilfred R. Bion dealt with that matter through his literary style in his work at different times. By reading Experiences in groups, "Catastrophic change", and the chapter "Commentary" from Second thoughts, three models of transmission are identified and named as group model, pictorial model, and transformation in O model, respectively. This paper demonstrates the way Bion creates an interaction between the theory that was being presented, the way of presenting it, and the reading process in these models. The author also indicates how the use of language summons readers to deal with psychoanalytic issues, especially with the method, while reading the text.
Keywords: Wilfred R. Bion; transmission; writing; group; pictorial language; transformation in O.
RESUMEN
El artículo aborda el problema de la transmisión del psicoanálisis en la producción escrita y muestra cómo Wilfred R. Bion se ocupó de la cuestión con su estilo literario en distintos momentos de su obra. A través de la lectura de Experiencias con grupos, "Cambio catastrófico" y el capítulo "Comentario" de Second thoughts, se identifican tres modelos de transmisión nombrados por nosotros modelo grupal, modelo pictórico y modelo de transformación en O, respectivamente. El artículo muestra cómo en estos modelos Bion crea una interacción entre la teoría que se estaba presentando, la manera de presentarla y el proceso de la lectura. También señala cómo se emplea el lenguaje para estimular al lector a tratar los temas psicoanalíticos, sobre todo el método, durante la lectura del texto.
Palabras clave: Wilfred R. Bion; transmisión; escritura; grupo; lenguaje pictórico; transformación en O.
Introdução
É antigo o debate sobre a possibilidade de transmissão da psicanálise fora da prática analítica. Ele remonta aos seus inícios, sobretudo em função da natureza mesma de seu objeto, a saber, as produções do inconsciente. Não sendo possível reproduzir nem o objeto nem o tratamento em si, desde Freud se problematiza ora o ensino da psicanálise, ora as condições para a formação do analista, ora os desafios da escrita clínica e teórica.2
Com relação à escrita, as questões suscitadas vêm sendo discutidas de tempos em tempos com diferentes enfoques, por analistas de diferentes tradições. Uma vez que a lista é exaustiva, citamos Freud (1905/1957b 1909/1957a, 1909/1957c, 1918/2010), alguns autores de destaque no Brasil e no exterior que trataram do tema nas últimas décadas: Birman (2014), Mezan (1998), Ogden (1996, 2005), Pontalis (1991), e os seguintes periódicos: The International Journal of Psychoanalysis (2013), Revista Brasileira de Psicanálise (1992) e Revue Française de Psychanalyse (2010). Neles é abordada a forma da escrita, suas diferenças em relação ao discurso científico tradicional e sua proximidade com a ficção literária. Discute-se aquilo que pode ser transmitido, levando-se em conta o sigilo profissional e a natureza do objeto psicanalítico, e qual a dimensão do desejo na escrita e na leitura de textos de psicanálise, principalmente para a elaboração contratransferencial. Discute-se, também, se a escrita ela mesma teria alguma função analítica e como a leitura poderia contribuir para a formação sem proporcionar apenas um acesso intelectual ao saber.
Questionamentos como esses são especialmente agudos em certos relatos de caso, quando se pretende narrar vivências de fragmentação, de vazio e morte psíquica, ou qualquer evento extremamente arcaico que escapa ao campo representacional e à linguagem verbal. Porém, isso apenas radicaliza uma dificuldade que é intrínseca à psicanálise. A impossibilidade de recriar o objeto psicanalítico e a experiência na qual ele se constituiu, até mesmo para o próprio analista, gera um embate no processo de transcrição, seja pela inadequação da linguagem, seja porque a memória engana e falha.
Quando se considera o papel do leitor, novas dificuldades aparecem. No Caso Dora, Freud (1905/1957b) havia mostrado o seu incômodo com o fato de o público especializado usar a narrativa como matéria de fofoca e especulação sobre a identidade da paciente. Uma vez que a vontade do leitor ajuda a determinar o sentido da narrativa, Dunker (2011) argumenta que se torna impossível fixar propriedades intrínsecas à escrita de caso. O psicanalista inglês Wilfred Bion (1965/1991) retomou essas colocações de Freud ao problematizar a relação entre a leitura de textos de psicanálise, a descrição de fatos clínicos e a sua interpretação, sabendo que nem a linguagem científica tornaria mais fidedigna ou crível uma narrativa, nem a linguagem artístico-literária necessariamente levaria à apreensão dos fatos que motivaram uma interpretação qualquer.
Bion tratou dos problemas da transmissão em diferentes trabalhos e fez de seu próprio estilo de escrita um meio de lidar com eles. Isso se deveu muito à sua prática clínica com pacientes psicóticos, bem como a uma grande sensibilidade aos desafios da comunicação fora da sala de análise. Não só na análise, mas igualmente na escrita e nas discussões de caso, as palavras podem faltar, soar excessivamente literais e perder a sua função metaforizante, tornar-se um jargão sem lastro com o vivido, e servir ao reasseguramento pessoal ou grupal. No entanto, a escrita também é um modo de o analista realizar trabalho psíquico com os restos não elaborados das sessões, ou mesmo um veículo para a autoanálise. Wisdom (1987), a partir de uma conversa informal com Bion, num momento avançado de sua vida, relata que a escrita seria uma forma de ele, Bion, lidar com dificuldades pessoais quando já não era o caso de retomar uma análise.
Desde os seus primeiros textos, Bion usou a linguagem para mostrar o processo de teorização do analista e criar uma série de efeitos no leitor. As expectativas, impressões e experiências emocionais geradas na leitura deveriam fazer parte da construção de sentido do texto. Esses elementos, que ultrapassam o discurso verbal e sua literalidade, têm grande proximidade com a prática clínica. Isso é particularmente significativo nos casos em que as características do analista e as suas funções mentais importam para certos pacientes tanto ou mais do que as palavras em si mesmas.
Mas, se a escrita e as exigências feitas ao leitor têm em Bion uma forte dimensão clínica, mesmo quando a prática não é abordada diretamente, é fato que grandes autores da psicanálise, a começar por Freud, possuem esse traço literário (Mahony, 1993; Loffredo, 2002). A contribuição de Bion, no entanto, incluiu tentativas deliberadas de usar a linguagem para convocar uma atitude analítica durante a leitura. Assim, sua escrita é fundamentalmente uma comunicação sobre o método. Isso, porém, não é autoevidente.
Ogden (2004), em um trabalho no qual introduziu a leitura da obra de Bion por meio da escrita do autor, demonstra haver uma demanda do texto e um tipo de experiência gerada que contrastam duas visões sobre a psicanálise. No assim nomeado "primeiro Bion" existe um movimento de esclarecer o obscuro e obscurecer clarezas, levando à convergência de significados discrepantes. Já no "Bion tardio" há um movimento contínuo de expansão do sentido, que deve ser tolerado. Leituras como essa, que pretendem identificar no estilo retórico de Bion elementos de sua prática e de sua visão sobre a psicanálise, são, a nosso ver, uma resposta às inúmeras tentativas do autor de promover a transmissão da psicanálise fora do consultório do analista.
A nossa proposta é acompanhar em detalhes como Bion lida com os desafios da transmissão e como, para isso, ele cria diferentes modelos de escrita e leitura a partir das teorias que estavam sendo apresentadas. Para tanto, seguiremos uma ordem cronológica, começando por Experiências com grupos (Bion, 1961/2004); em seguida, passaremos a dois textos tardios: "Mudança catastrófica" (Bion, 1966/2014b) e o capítulo "Comentário" de Second thoughts (Bion, 1967/1993a).3
Por meio desses trabalhos é possível delinear três modelos de transmissão, nomeados por nós de modelo de grupo, modelo pictórico e modelo de transformação em O, respectivamente. Embora tenham uma estreita relação com as ideias apresentadas em cada um dos trabalhos, os modelos não são uma reprodução dessas ideias nem estão restritos aos textos citados. Eles refletem as tentativas de Bion de construir pontes entre a realidade da prática, o modo de pensá-la e a sua comunicação. Guardadas as devidas ressalvas, essas tentativas representam o que está em jogo durante uma análise, quando é preciso pensar experiências emocionais.
Modelo de grupo
Na década de 1940, Bion criou e participou de diversos grupos que tinham como propósito estudar as suas tensões emocionais. Os relatos e os achados teóricos foram reunidos no livro Experiências com grupos em 1961. Nele, Bion ofereceu descrições detalhadas das experiências em jogo e da maneira como as teorias foram sendo gestadas. Também mencionou as crenças e expectativas ilusórias que foram depositadas em seu trabalho, acompanhadas de sentimentos de oposição surgidos dentro e fora dos seus grupos, incluindo as reações do leitor. Ele diz: "Se a minha descrição do que é estar em um grupo do qual eu sou membro for de todo adequada, o leitor terá experimentado alguma apreensão, acolhido algumas objeções e reservado muitas questões para discussão futura" (1961/2004, p. 39).
Diversas interpelações são feitas ao leitor durante a construção dos seus argumentos, numa estratégia que muitas vezes se assemelha ao estilo literário de Freud. Ao comentar sobre as dificuldades de se apresentar um novo campo de conhecimento, Freud sugere como se deve lidar com o leitor: "pode-se fazer com que ele participe da construção de uma nova teoria [...] e pode-se lidar com as suas objeções durante o curso real do trabalho conjunto" (Freud, 1938/1957d, p. 281). Na apresentação de suas ideias, Bion não buscava adesão nem pretendia oferecer resultados e comprovações para as propostas, mas esperava que seu leitor, tal como os membros de seus grupos, utilizasse o material descrito "para chegar às suas próprias conclusões" (1961/2004, p. 40).
Apesar do esforço em descrever o que observava ocorrer nos grupos e indicar quais foram os seus achados teóricos, o procedimento de Bion rapidamente esbarrou na sensação de fracasso. Logo no segundo capítulo de Experiências com grupos ele desiste de oferecer mais e mais exemplos sobre uma característica da mentalidade grupal, pois até aquele momento não encontrara um método de descrevê-la. E conclui com a seguinte constatação: "suspeito que nenhuma ideia real possa ser obtida fora de um grupo" (p. 52). Aproximadamente vinte anos depois, ele continuava a dizer o mesmo sobre a formulação de uma experiência: "O que deve ser comunicado é bastante real; porém, todo psicanalista conhece a frustração de tentar tornar clara, mesmo a outro psicanalista, uma experiência que tão logo é formulada já não soa convincente" (1967/19933, p. 122).
Essa frustração também incluiu as tentativas de Bion de expor o seu método de observação de grupos. Não satisfeito em dizer que o analista deveria ser capaz de notar "o verso e o reverso" de uma determinada situação, recorre à imagem do cubo de Necker para ilustrar a "mudança psicológica" e a "alteração de perspectiva" requisitada (1961/2004, pp. 86-87). Essas analogias logo pareceram inadequadas, e Bion recorreu à matemática para oferecer exemplos que tivessem um maior grau de abstração. Os princípios da dualidade esclareceriam o que ele queria dizer com as suas observações. Porém, nada fica necessariamente esclarecido, e o que se segue no texto são mais descrições sobre as suas observações e, novamente, um comentário sobre a dificuldade que o leitor pode ter em notar a afinidade entre o fenômeno e o seu dual.
Embora essa dificuldade também possa ser atribuída ao entendimento ainda rudimentar sobre os fenômenos em questão, e não só à impossibilidade de descrevê-los, o fato é que as observações de Bion dão notícia da dimensão inapreensível e inominável da realidade presente na clínica. Anos mais tarde, referindo-se à realidade em sua dimensão última ou fundamental, Bion (1965/1991) cria o termo O e passa a dar grande destaque ao seu caráter impermanente e fugidio à domesticação por qualquer forma de linguagem.
De todo modo, a busca por formulações mais adequadas acerca das experiências e do método de observação de grupos traz o leitor para dentro de uma imprecisão de significados e definições. Isso certamente gera um estado de confusão e, na melhor das hipóteses, deixa-o intrigado. Em acréscimo, Bion estimula o leitor a acessar as suas impressões acerca do que significa estar em um grupo e, por vezes, tenta estabelecer alguma cumplicidade, especialmente quando quer expressar o que lhe é mais difícil.
Contudo, implicar o leitor nos relatos provocando estados emocionais diversos não seria um mero exercício literário impertinente e fútil. Bion convoca a sua participação com a expectativa de que ele acompanhe o modo de pensar as situações clínicas a partir de sua própria experiência. Como sugerimos em outro trabalho (Salvitti, 2013), Bion cria um grupo com o leitor e, assim, mostra o que significa ser parte de um grupo em que ele, Bion, enquanto autor do texto, é um dos membros. Ao ser incluído em um campo de experiência comum, mas não idêntico àquele vivido pelo próprio Bion e pelos membros de seus grupos, o leitor obtém mais do que resultados e explicações. Afinal, também são oferecidas condições para haver um contato vivo com o objeto do conhecimento.
Para finalizar, o paralelo mantido entre a atitude analítica de Bion nos grupos e a atitude do leitor com respeito às suas experiências recoloca, no âmbito da escrita e da leitura, a relação com o conhecimento per se. O processo de investigação e a curiosidade não raro são acompanhados por sentimentos de catástrofe e de hostilidade, levando a um esforço do grupo em preservar o status quo. Nesse caso, haveria um impedimento à entrada de ideias novas, rivalidade em relação ao método analítico e uma tendência a se apossar da verdade. Uma questão que se coloca, portanto, é como o grupo criado com o leitor favoreceria o movimento oposto, voltado ao seu desenvolvimento.
A implicação dessas ideias para a escrita e a leitura será retomada em "Mudança catastrófica" (1966/2014.0) e no capítulo "Comentário" de Second thoughts (1967/1993a).
Modelo pictórico
Em 1966, Bion apresentou na Sociedade Britânica de Psicanálise o trabalho "Mudança catastrófica". Sua intenção era descrever uma configuração emocional notada com frequência na análise, representada pela imagem de um continente e um conteúdo, e pelos sinais ♀ e ♂.
A fim de ilustrar essa configuração no texto, Bion recorreu a exemplos que abarcam desde observações clínicas à narrativa de eventos históricos. Retratou o cristianismo em suas origens, indicando como ideias novas são recebidas por um grupo, assim como por um indivíduo; examinou a relação entre pensamentos e o pensador, entre a palavra e o seu significado; e realizou uma discussão que nos interessa de perto, a respeito da forma como essas mesmas ideias são apresentadas no texto. A variedade de ilustrações pretendia facilitar o reconhecimento da configuração entre um continente e um conteúdo, sobretudo quando ela surgisse na análise. É nela, e não no texto, que o significado inconsciente da configuração deveria ser buscado.
Assim sendo, e ao contrário do que se poderia pensar, as narrativas históricas e os relatos de caso não teriam a natureza de um fato histórico nem deveriam ser tomados como eventos com uma historicidade própria. Eles são o que Bion nomeia de elementos categoria C, isto é, "descrições feitas de imagens sensoriais derivadas de um background de experiência ou de experiência relatada, reagrupada para meus propósitos" (1966/2014b p. 27).
A formulação elementos C surgiu em Elementos da psicanálise (1963/1989a) para representar fenômenos mentais que se manifestam como sonho, pensamentos de sonho e mito.4 Quando Bion afirma, em "Mudança catastrófica", que está em busca de ilustrações para o padrão "continente e conteúdo", classificando-as como categoria C, ele indica a proximidade que essa busca guarda, na escrita, com a atividade de sonho do analista na sessão (Bion, 1962/1989b. Quanto ao leitor, havia a expectativa de que o contato com essas formulações estimulasse a sua imaginação, mobilizando o seu repertório pré-conceitual, pré-verbal e não verbal.
Contudo, a formulação proposta por Bion também trazia algum risco. Muito embora a configuração "continente e conteúdo" pudesse ser relacionada às teorias conhecidas, Bion não pretendia dar às descrições categoria C o status de conceito e evitou inseri-las no corpo teórico estabelecido. A ideia era dar a elas o máximo de abertura e liberdade a fim de facilitar a investigação do analista e o seu reconhecimento em diferentes situações. Isso porque uma formulação categoria C não seria tão abstrata a ponto de perder o lastro com a experiência, dando margem à mera manipulação de conceitos, nem tão concreta a ponto de perder a capacidade de generalização. Na citação a seguir, tanto a forma da escrita quanto o seu conteúdo são um exemplo vivo da proximidade que Bion quer estabelecer entre o processo de elaboração de ideias e a experiência clínica.
Realmente, o que estou descrevendo é um bom exemplo do significado ♀ no qual está embutida a palavra desconhecida ou formulação ♂, pois o que eu gostaria de encontrar seria a palavra que a maioria das pessoas consideraria [itálicos nossos] apropriada para representar o significado que quero transmitir. (1966/2014b, p. 29)
A intimidade entre as ideias apresentadas e a prática clínica também se evidencia no caráter incerto e indeterminado da empreitada de Bion, reforçado pelo tempo dos verbos destacados por nós. Certamente, ele gostaria de tudo aquilo, e seria bastante vantajoso encontrar formulações apropriadas; mas será que haveria uma combinação ideal entre ♀ e ♂ que proporcionasse justamente a palavra que ele esperava encontrar? Será que essa combinação não significaria o fim da busca e da investigação? Ao transpormos essas questões à prática clínica, perguntamos se essa busca não estaria fadada ao fracasso, tendo em vista a natureza impermanente do objeto psicanalítico. Em Transformações (1965/1991), Bion havia ressaltado que a dimensão última de toda experiência é incognoscível e inominável. No limite, a palavra supostamente adequada implica uma falha na comunicação e a obstrução do processo analítico. Isso porque, em vez de haver estímulo ao pensamento (dado a partir da experiência de frustração), a completude levaria à satisfação e à gratificação do desejo.
Na verdade, essas questões têm como base a qualidade da ligação que estaria ocorrendo entre ♀ e ♂; no caso, entre a palavra e o sentido, e por extensão entre o paciente e o analista, entre o paciente e ele mesmo, mas também entre o autor e seu texto, ou entre o texto e o leitor. Bion identificou ao menos três ligações entre continente e conteúdo: uma nomeada de comensal, na qual continente e conteúdo coexistem de modo independente; uma ligação simbiótica, na qual há uma interação geradora de mudança e desenvolvimento em ambos; e uma ligação parasítica, em que a interação provoca o aniquilamento de um e/ou de outro.
A maior preocupação com a qualidade da comunicação recai, portanto, na ligação parasítica. Significados em excesso, em que tudo parece ficar claro, seja pela tradução em imagens, seja pela referência ao que já é conhecido, dariam pouco espaço ao indeterminado, à imprecisão, à dúvida e, consequentemente, à criação de novos sentidos. Nesse caso, as descrições produzem, segundo Bion, "tamanha penumbra de associação que as formulações se tornam saturadas e restringem a perspicácia do analista" (1966/2014.0, p. 31). Poderia ocorrer também de o significado que se quer comunicar ser intenso a ponto de não haver uma formulação capaz de contê-lo, ou a formulação encontrada ser demasiadamente rígida e retirar a vitalidade do significado.
Problemas como esses pareciam inevitáveis, e seria permanente o risco de a contribuição de Bion perder o seu potencial clínico. Porém, a capacidade de ♀ do leitor é colocada em teste a todo o momento também por outras qualidades formais do texto. Embora Bion discrimine uma configuração comum nas mais variadas situações humanas, as descrições vão se sobrepondo uma à outra e se expandindo enormemente, num infinito jogo de espelhamento entre as formulações apresentadas, a confecção do texto e as experiências do autor e do leitor. Ademais, contribui para uma sensação de instabilidade o fato de Bion não fazer qualquer ligação entre as suas ideias e as teorias psicanalíticas. O efeito gerado é muito bem descrito por colegas que estiveram presentes na reunião científica em que o trabalho foi apresentado. No interessante comentário do editor das Obras completas de Bion, ficamos sabendo que Meltzer se sentiu sem ancoragem e desconfortavelmente embriagado, mas também deliciado com o frescor do assunto (Bion, 1966/20146, p. 22).
O incômodo provocado pela ausência de uma base teórica conhecida que melhor situasse o leitor revela a ousadia, mas também o potencial, da proposta de Bion. Certamente havia a expectativa de que o leitor refletisse sobre a maneira como lê e usa as ideias apresentadas, ou como acolhe (♀) e emprega o conteúdo do texto (♂). Essa acaba sendo uma estratégia de comunicação bastante viva, em que Bion tenta encontrar um acesso ao leitor desde dentro de sua experiência com o texto e com sua prática.
Fazendo uso do conceito de transformação em O para pensar a relação entre escrita e leitura no capítulo "Comentário" (1967/19933), Bion encontrou novas maneiras de discutir sobre o método e a sua transmissão.
Modelo de transformação em O
Em 1967, Bion reuniu a maioria dos seus trabalhos escritos na década de 1950 e em 1962 no livro Second thoughts (Bion, 1967/1993b. Para essa publicação, redigiu um comentário crítico, comparando as suas ideias anteriores com as suas concepções recentes sobre o método. Porém, além de explicar e descrever essa nova abordagem, Bion mostrou quais seriam as suas características na leitura ela mesma, promovendo uma imbricação estreita e direta entre teoria, escrita e leitura.
Tal como havia apontado em "Mudança catastrófica" (Bion, 1966/2014b, os casos narrados não deveriam ser tomados em sua historicidade própria, e sim como formulações de diferentes qualidades, que estimulariam diferentes reações no leitor. Em vez de os casos servirem à comprovação de resultados ou se destinarem a consolidar as teorias que os fundamentaram, eles seriam tanto mais interessantes quanto mais favorecessem a capacidade de pensar do analista (tanto o que escreve quanto o que lê).
Se em seus artigos iniciais as narrativas eram consideradas como sendo um relato factual, havendo uma grande preocupação com a sua clareza e coerência, em sua nova abordagem Bion enfatiza que o registro do discurso do paciente ou do analista bem como os seus dados biográficos são informações irrelevantes do ponto de vista psicanalítico. O que importa é a realidade da sessão e aquilo que dela pôde ser apreendido. Não havendo um registro passível de reproduzi-la, as falhas na comunicação se tornam inevitáveis, até quando autor e leitor são a mesma pessoa.
No livro Transformações (Bion, 1965/1991), a questão da transmissão e do registro de experiências havia se tornado especialmente aguda com a noção de realidade última. Bion discutiu a impossibilidade de se alcançar a verdade final e o sentido definitivo de qualquer experiência. Criou o termo O para se referir à realidade em sua dimensão inominável, incomensurável e incognoscível. Com o termo, Bion indicava que crescer psíquica e emocionalmente ocorre não só em função do conhecimento adquirido a respeito de uma experiência, mas também no contato com a sua realidade. O acesso a ela nunca seria direto e dependeria de diferentes transformações ocorridas a partir de uma experiência original, que em si mesma é inacessível. Assim como a fala do paciente e a do analista seriam o resultado de transformações de uma experiência, também as narrativas de caso e as teorias psicanalíticas seriam transformações daquilo que já fora transformado na prática clínica.
Assim, duas das transformações identificadas por Bion são a transformação em K e a transformação em O - representadas a partir de agora por T(K) e T(O). T(K) diz respeito a todo o conhecimento que pode ser obtido dentro ou fora de uma sessão sobre a realidade de uma experiência. Porém, além de conhecê-la, é possível ser a realidade que se apresenta; isso porque a realidade também se dá a nós através da experiência do sendo, ou do que Bion nomeou de T(O).
Se no assim chamado "primeiro Bion" há uma valorização da T(K) e da capacidade de dar sentido à realidade, no "Bion tardio" - marcado pelos trabalhos da segunda metade da década de 1960 - há uma ênfase na importância de se abandonar o já sabido e o já vivido. Isso não significa a simples suspensão do conhecimento, mas fundamentalmente abrir mão da inclinação para conhecer, e evitar preencher o espaço vazio da ignorancia com memórias ou qualquer compreensão prévia. Essa atitude facilitaria o contato com a realidade tal como esta se apresenta para uma pessoa, ou para a dupla analítica, num certo momento.
Bion descreveu a T(O) de diferentes maneiras, sendo que todas elas tentam abarcar diferentes aspectos do ser e do vir a ser. Fazendo um jogo com a palavra inglesa atonement, que significa redenção ou expiação, Bion a decompôs em at-one-ment, modificando o seu sentido para expressar o ato de ser-um-com a realidade de uma experiência emocional. Mas isso também comportaria a entrada em contato com camadas indiferenciadas da realidade, ou com a sua alteridade radical, provocando experiências de assombro e de espanto. Vermote (2011) ressalta que esse seria ainda um campo de potencialidades de onde a criatividade pode surgir. E Grotstein (2003) aponta o paradoxo existente na T(O), uma vez que a sua realização só é possível ao emprestarmos algo de próprio e pessoal ao que O tem de impessoal e inapreensível.
De todo modo - e não nos cabe aqui aprofundar os diversos significados associados a O e a T(O) -, Bion considerava necessário que o conhecimento adquirido fosse perdido e também que novos sentidos fossem criados e expandidos indefinidamente, a partir de oscilações entre T(K) e T(O).
Essas concepções foram retomadas no "Comentário" (Bion, 1967/19933) por meio do exame das transformações que estariam operando no texto e que deveriam fazer parte do processo de leitura. Como vimos no modelo pictórico, um formato de escrita valorizado por Bion seriam as afirmações de tipo categoria C. O seu potencial evocativo geraria imagens e impressões que dão forma e sentido às experiências emocionais. Isso requer uma capacidade para se tolerar um amplo espectro de pensamentos e emoções, e indica a existência de um continente (♀) que é receptivo, que não se torna ameaçado por seus conteúdos (♂) e que é capaz de produzir significados.
Vimos ainda como essas mesmas formulações poderiam prejudicar a ampliação na capacidade de pensar do analista. Nesse caso, Ç estaria recheado de ideias, imagens, teorias e conhecimentos, e sem o vazio necessário para a criação de novos significados. Também haveria o risco de que as formulações fossem consideradas uma descrição literal. Desse modo, elas poderiam adquirir uma concretude que seria típica do funcionamento mental dos pacientes psicóticos. Essas falhas no pensar foram discutidas por Bion em relação a esses pacientes, mas também em relação à capacidade de pensar do próprio analista (1962/19890). Todas essas considerações pertenceriam ao campo da T(K), em que os sentidos gerados favorecem ou obstruem o pensar. Porém, também indicariam reações defensivas a T(O), por exemplo, quando a sensação de incompletude é eliminada (Figueiredo, 2011).
No que diz respeito ao leitor, este deveria adotar uma atitude que evitaria a ligação parasítica com o texto. Para tanto, Bion sugere que a leitura seja feita sob as mesmas condições nas quais uma psicanálise é conduzida, a saber, sem a tentativa de preencher uma experiência com memórias e teorias, sem o desejo de ele ser um analista como Bion e sem buscar compreensões. Desse modo, esperava que o leitor não se prendesse aos significados e ao que se torna conhecido, e sim que fosse capaz de passar de T(K) a T(O). Para tanto, seria preciso abandonar o que foi lido e deixar que reaparecesse de modo espontâneo e autêntico em uma determinada experiência emocional.
Essa era a mesma atitude que Bion dizia ter em relação aos autores de sua própria tradição, como Melanie Klein e Freud. Somente desse modo, diz Bion, "é possível criar condições para que, na próxima leitura, [o texto] possa estimular a evolução de mais desenvolvimento" (1967/1993a, p. 156). Caso contrário, T(K) poderia fazer parte de uma "leitura defensiva" e substituir a experiência de ler o artigo (p. 156).
Com a intenção de minorar essas "leituras defensivas", no "Comentário" Bion reiteradamente assinala o fracasso da sua comunicação, indicando o quanto as descrições não representam o estado de mente do paciente e o quanto não se pode acessar a experiência que originou uma interpretação. Porém, ele também acreditava que o analista não duvidaria da realidade das descrições, caso experimentasse por conta própria aquilo que se tornou real para Bion em sua prática. Numa afirmação que surpreendente pela expectativa de haver um uníssono entre os analistas, diz: "Se dois analistas têm sucesso em minimizar a operação da memória e do desejo, eles minimizam o risco do conluio e aumentam a chance de compartilhar a mesma experiência - de 'ver' os mesmos mecanismos em funcionamento" (p. 152).
Quando Bion escreveu Transformações (1965/1991) e "Mudança catastrófica" (1966/2014b), ele ainda não havia recorrido à expressão de Keats: capacidade negativa (Bion, 1970/ 2014a, p. 327). Identificada como a capacidade de estar na incerteza, na dúvida e no mistério, essa noção já se mostrava presente nas várias colocações de Bion sobre a prática do analista, assim como nas exigências que ele vinha fazendo ao leitor por meio de seu estilo. Pois foi justamente essa capacidade, associada ao abandono da memória, do desejo e do entendimento, que ganhou grande espaço em seu processo de teorização.5
Considerações finais sobre a escrita de Bion
A ideia nesse item não é retomar aquilo que foi trabalhado anteriormente nem estabelecer alguma conclusão sobre o que significa escrever sobre a clínica e ler textos de psicanálise. Encerramos o artigo com breves considerações a respeito da escrita de Bion. Há nela uma exigência e uma dificuldade que é dada pela aridez do discurso, pelo caráter impreciso e hermético de algumas passagens e pelo modo corriqueiro como ele discute ideias bastante complexas, extraídas das mais diferentes áreas do conhecimento.
No entanto, a sua escrita também perturba o leitor, gerando sentimentos de desamparo e confusão, pois Bion está constantemente mostrando o caráter transitório e impermanente das experiências clínicas, bem como de suas próprias ideias. Assim, o leitor recebe não apenas conhecimento, mas também uma experiência para ser vivida. Se essa escrita provoca e exige uma implicação emocional ativa na leitura, ela também oferece ferramentas para a investigação e elaboração das experiências geradas no texto e na prática clínica. A sua intenção, portanto, é que seja feito um retorno à prática, não por meio de uma adesão às ideias do autor, e sim pelo estímulo a que o leitor se aposse e desenvolva as suas próprias ideias. Se esse envolvimento emocional e intelectual promove de fato algum desenvolvimento, cabe a cada leitor responder.
Notas
1 Trabalho originalmente apresentado em Los Angeles na conferência Bion in la 2014. Apoio: Fapesp.
2 Em diferentes ocasiões, o Jornal de Psicanálise colocou em debate o tema da transmissão nessas diferentes vertentes. Abordou a questão do ensino (2012) e, recentemente, discutiu a formação do analista considerando a clínica atual (2013, 2014). Em anos anteriores (2002), a ênfase se deu sobre a natureza do material clínico e de sua narrativa.
3 "Mudança catastrófica" foi publicado em 1966 no Scientific Bulletin da Sociedade Britânica de Psicanálise, destinado à circulação interna. Posteriormente, sofreu ligeiras modificações e foi incluído no livro Atenção e interpretação (Bion, 1970/20143) com o nome de "Continente e conteúdo transformados". Nossa opção de usar o trabalho original se justifica, pois levamos em conta o desenvolvimento das ideias do autor e destacamos a sua proximidade com o capítulo "Comentário", publicado no ano seguinte.
4 A letra C corresponde à posição ocupada por esses elementos na assim chamada Grade. A Grade é um conjunto de linhas e colunas que expressam o tipo de emprego e o grau de desenvolvimento de um objeto psicanalítico, desde o mais concreto (A) ao mais abstrato (H) (Bion, 1963/1989a).
5 No livro Atenção e interpretação (1970/ 2014a), Bion aprofundará a discussão sobre o significado da T(O) na escrita e na leitura. Um exame detalhado e sensível desse tema foi feito por Ogden (2004).
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Correspondência:
Adriana Salvitti
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Recebido em 22.5.2015
Aceito em 3.7.2015