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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.51 no.2 São Paulo abr./jun. 2017
FAMÍLIAS
Transgeracionalidade: sobre silêncios, criptas, fantasmas e outros destinos
Transgenerational identity ("transgenerationality"): about silences, crypts, phantoms, and other destinies
Transgeneracionalidad: sobre silencios, criptas, fantasmas y otros destinos
Transgénérationalité : sur les silences, les cryptes, les fantasmes et d'autres destins
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Membro titular com função didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPDEPA)
RESUMO
A autora apresenta os caminhos que podem conduzir às heranças transgeracionais no seio de muitas famílias a partir de traumas, segredos, vergonhas, lutos não elaborados, quando, através do silêncio e da cisão, usados como defesas, resultam na formação de criptas e fantasmas. Também apresenta as ideias de transmissão intergeracional e transgeracional.
Palavras-chave: cripta, fantasma, intergeracionalidade, transgeracionalidade, trauma
ABSTRACT
The author presents paths which start from situations of trauma, secret, shame, not elaborated mourning, and may lead to transgenerational heritages within several families. It happens when silence and splitting, used as defense mechanisms, end up creating crypts and phantoms. This paper also presents ideas of intergenerational and transgenerational transmission.
Keywords: crypt, phantom, intergenerational identity, transgenerational identity, trauma
RESUMEN
La autora presenta los caminos que pueden conducir a las herencias transgeneracionales en el seno de muchas familias a partir de traumas, secretos, vergüenzas, duelos no elaborados, cuando, a través del silencio y de la cisión, utilizados como defensas, producen criptas y fantasmas. También presenta un cuadro sinóptico con las transmisiones intergeneracionales y transgeneracionales.
Palabras clave: cripta, fantasma, intergeneracionalidad, transgeneracionalidad, trauma
RÉSUMÉ
L'auteur présente les voies qui peuvent conduire aux héritages transgénérationnelles au sein de plusieurs familles à partir de traumas, de secrets, de hontes et de deuils qui ne sont pas travaillés, lorsque ceux-ci, au moyen du silence et de la coupure employés comme moyens de défense, résultent dans la formation de cryptes et de fantasmes. Elle présente aussi les idées de transmission intergénérationnelle et transgénérationnelle
Mots-clés: crypta, fantasme, intergénérationalité, transgénérationalité, trauma
À medida que o tempo passa, a tinta velha em uma tela muitas vezes se torna transparente. Quando isso acontece, é possível ver, em alguns quadros, as linhas originais: através de um vestido de mulher surge uma árvore, uma criança dá lugar a um cachorro e um grande barco não está mais em mar aberto. Isso se chama pentimento, porque o pintor se arrependeu, mudou de ideia. Talvez se pudesse dizer que a antiga concepção, substituída por uma imagem ulterior, é uma forma de ver, e ver de novo, mais tarde.
(Lilian Hellman)
Introdução
Alguns anos após o final da Segunda Guerra Mundial, psicanalistas do mundo inteiro começaram a receber em seus consultórios os sobreviventes e/ou os descendentes do Holocausto judeu - Shoah, em hebraico - e passaram a observar fenômenos clínicos que guardavam alguma relação com aquela situação traumática do passado.
Nos anos 1960, foi descrita a síndrome do sobrevivente do Holocausto, em que predominava a culpa por ter sobrevivido, enquanto familiares haviam sido dizimados pelo nazismo. Nos anos 1970, as investigações recaíram sobre a segunda geração, e nos anos 1980 e 1990 o foco se abriu para a terceira geração. O denominador comum é o aparecimento de sinais relacionados aos traumas vividos pelos antepassados, e não pelo próprio sujeito.
Dizendo de outro modo, há uma forte presença da pré-história do sujeito na constituição de sua subjetividade ou sua conflitiva, o que ocorre de maneira inconsciente. Essa pré-história convive lado a lado com a sua conflitiva pessoal intrapsíquica. Os estudos psicanalíticos nascidos nos efeitos radioativos (Gampel, 2006) do Holocausto foram ampliados, sendo de muita valia para a compreensão dos desdobramentos emocionais de outras formas de violência e trauma, quais sejam:
violências familiares (abusos, filicídio mudo, segredos, vergonhas etc.);
traumas e lutos não elaborados;
violências de Estado (guerras, ditaduras etc.);
violência urbana;
outros.
1. Destinos do traumático: o silêncio e o segredo são meus amigos
Elie Wiesel, a propósito de sua condição de sobrevivente do Holocausto, disse: "Calar-se era terrível, falar impossível" (citado por Benghozi, 2000, p. 92).
Os sujeitos vitimados em diferentes situações traumáticas de grande magnitude são impulsionados a buscar, por sua vez, defesas extremadas, na tentativa de manter um mínimo de homeostase emocional. Assim, torna-se intolerável falar, lembrar, rememorar, pensar, sentir, já que colocar o acontecimento traumático ou vergonhoso na rede de representações implica uma ameaça de "re-traumatizar", com desorganização e ruptura do psiquismo.
Dessa forma, os sobreviventes dessas violências buscam proteção para tentar sobreviver psiquicamente, para levar uma vida normal. Fazem uso da desmentida, da cisão e da clivagem do ego. Viver em mundos superpostos ou paralelos é um recurso de sobrevivência.
O silêncio e o segredo são amigos nessa hora.
Fica aberto, assim, o caminho para a formação de criptas.
2. Destinos do silêncio: criptas
Todas as palavras que não puderam ser ditas, todas as cenas que não puderam ser rememoradas, todas as lágrimas que não puderam ser vertidas serão engolidas, assim como, ao mesmo tempo, o traumatismo, causa da perda. Engolidos e postos em conserva. O luto indizível instala no interior do sujeito uma sepultura secreta ... Criou-se, assim, todo um mundo ... inconsciente que leva uma vida separada e oculta.
(Nicolas Abraham & Maria Torok)
Nicolas Abraham e Maria Torok, analistas húngaros radicados em Paris, precursores dos estudos psicanalíticos sobre transmissão psíquica entre gerações, guiados por pacientes que eram sobreviventes e/ou descendentes do pós-guerra europeu, resgataram a importância do trauma para o cenário psicanalítico, que estava relegada a um segundo plano desde as histéricas de Freud no final do século XIX.
Esses autores cunharam uma original terminologia no seio da linguagem psicanalítica, a cripta, esclarecendo que esta é o resultado de uma defesa extremada naqueles sujeitos traumatizados ou impossibilitados de processar lutos. São os sujeitos criptóforos, que fazendo uso da desmentida e da cisão do ego, juntamente com a repressão conservadora (que se diferencia da repressão dinâmica, que é pulsional), mantêm intactos, conservados e longe da consciência e dos afetos aqueles acontecidos dolorosos e potencialmente desorganizadores do psiquismo.
Na tópica, essa cripta corresponde a um lugar definido. Não é nem o inconsciente dinâmico nem o ego ... Seria antes como um território encravado ("tópica realitária") entre os dois, espécie de inconsciente artificial, instalado no seio do próprio ego. A existência de tal túmulo tem por efeito obturar as paredes semipermeáveis do inconsciente dinâmico. Nada deve filtrar para o mundo exterior. É ao ego que retorna a função de guardião do cemitério. (Abraham & Torok, 1995, p. 239)
A cripta é, portanto, uma potente defesa que pretende ser, em si mesma, de alta eficácia. E talvez o seja para o sujeito portador dela. Entretanto, essa história poderá ter muitos desdobramentos e não finalizar nessa geração.
Pensando nas séries complementares de Freud, bem como em algumas ideias recentes sobre resiliência, seguimos algumas trilhas possíveis da cripta. Dependendo de sua intensidade, malignidade e da resiliência familiar, o destino das criptas poderá ser o de fantasmas familiares.
TRADUZIR-SE
Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.Uma parte de mim
é multidão:
outra parte, estranheza
e solidão.Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.Traduzir-se uma parte
na outra parte
− que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?(Gullar, 1980/2015, p. 346)
3. Destinos da cripta: fantasmas
Ao se referir às ressonâncias do trauma não elaborado em uma dada geração, Abraham e Torok (1995) enfatizam que nada pode ser abolido completamente; algo aparecerá em gerações seguintes, como enigma ou como algo impensado.
Nessa linha de pensamento, Benghozi (2000) utiliza o termo traumatismo como herança para designar situações em que o fato traumático, embora tenha se dado com o progenitor, é transmitido ao descendente sem que nunca tenha sido falado. Para esse autor, há um risco constante de que um traumatismo psíquico não metabolizado seja repetido depois de várias gerações.
O traumatismo, que pode ser um luto, vergonha, violência social etc. sem possibilidade de elaboração psíquica (com clivagem do ego e formação de cripta), constitui uma verdadeira pré-história para as gerações seguintes, pela qual estão compulsoriamente atravessadas. As gerações futuras têm que lidar com uma experiência traumática que não é própria, mas sim dos pais, de quem dependem psiquicamente. Serão possíveis prisioneiros de sua pré-história. Serão as gerações fantasma.
O fantasma resulta, então, sobre um sujeito, dos efeitos inconscientes da cripta de outro, de seu segredo inconfessável. Podemos dizer que o sujeito fantasma é, portanto, prisioneiro de outro sujeito, do sujeito cripta. Tisseron (1997) os descreve da seguinte maneira:
geração cripta: indizível;
geração fantasma 1 (filhos): inominável; os conteúdos são ignorados e apenas pressentidos, como um fantasma que ronda uma casa; essa geração poderá apresentar dificuldades de pensamento, de aprendizagem, temores imotivados;
geração fantasma 2 (netos): impensável; há impossibilidade de pensar os acontecimentos traumáticos ocorridos na geração cripta, podendo aparecer toxicomanias, delírios, transtornos psicossomáticos etc.
Depois da terceira geração, podem aparecer reações afetivas incongruentes, possíveis rupturas de laços de pertencimento ou tradição.
Por outro lado, também observamos que na ou nas gerações fantasma aparecem sinais de doença que funcionam como uma tentativa de salvar ou libertar a geração precedente de suas feridas não cicatrizadas, através da identificação redentora (Kancyper, 1997).
Muitas vezes, quando há algum grau de resiliência familiar, a criança pode apresentar um sintoma que a conduz a tratamento, permitindo assim um encaminhamento para a abertura de criptas e a consequente possibilidade de elaboração desse traumático não elaborado, silenciado e não representado de gerações anteriores.
Entretanto, em qualquer geração, o traumatismo não elaborado da geração cripta pode ser objeto de uma tramitação criativa. Por exemplo, em profissões que impliquem a busca do passado: historiadores, arqueólogos, artistas, psicanalistas.
4. Um pouco de microscopio...
Faimberg (1996) denomina telescopagem entre gerações o fenômeno que tem como modelo a carambola entre automóveis ou as bonecas russas (matryoshkas) que entram umas nas outras. Tal fenômeno resulta no que a autora chama de identificação inconsciente narcisista alienante. Essa forma particular de relação, cujo modelo é a identificação projetiva e que ocorre sob o domínio do narcisismo, sem respeito aos bordos ou limites da subjetividade, permite ao progenitor fazer uso do espaço psíquico do filho sem discriminá-lo de si próprio. O filho, vulnerável por sua necessidade de investimento narcísico, fica sujeito ao que os pais dizem ou calam, perdendo a liberdade de interpretar com seu próprio psiquismo as verdades familiares e vinculares. Torna-se depositário, cativo de um luto não elaborado, de um segredo ou de uma vergonha parentais (criptas, no dizer de Abraham e Torok) que o alienam de si mesmo, obrigando-o a viver uma história que, ao menos em parte, não é sua.
A identificação alienante, como é denominada mais amplamente na atualidade, não tem o mesmo caráter das identificações secundárias, que são, via de regra, de filhos para pais. Na identificação alienante, aquilo que não é tolerado no psiquismo dos pais é projetado para o espaço mental filial e, tal como nas identificações projetivas comuns entre sujeitos, liberta ao que envia e escraviza ao que recebe. Assim ocorre, inconscientemente, entre as gerações.
5. Transmissão intergeracional e transgeracional
Transmitir é fazer passar um objeto de identificação, um pensamento, uma história, afetos, de uma pessoa para outra, de um grupo para outro, de uma geração para outra. Quando falo de transmissão psíquica entre gerações, refiro-me a duas modalidades básicas: intergeracional e transgeracional.
A primeira delas, a intergeracional, é a que ocorre entre as gerações, havendo uma distância, um espaço entre o transmissor e o receptor, preservando-se os limites e as bordas da subjetividade.
A transmissão transgeracional, ao contrário, é invasiva e ocorre através dos sujeitos e das gerações.
a) Transmissão intergeracional
Nas transmissões intergeracionais, o sujeito não é somente beneficiário, herdeiro, servidor forçado, mas também adqui-rente singular daquilo que lhe é transmitido. Trata-se de um trabalho psíquico de elaboração que diz respeito ao sujeito e ao grupo, favorecendo transformações e conduzindo a uma diferenciação, a uma evolução entre o que é transmitido e o que é herdado. Esse trabalho permite a cada geração situar-se em relação às outras, perceber e respeitar as diferenças entre elas, tornar-se um elo e inscrever cada sujeito numa cadeia e num grupo. Nesse sentido, vale lembrar a célebre frase de Goethe, citada por Freud em Totem e tabu (1913/1986), sobre a necessidade de adquirir o herdado para realmente possuí-lo.
A transmissão psíquica intergeracional é estruturante, nucleada, portanto, na existência de um espaço de transcrição transformadora (Kaës, 1996), no qual se veicula uma herança intergeracional, constituída pelas fantasias, imagos, identificações etc., organizando uma história familiar, um relato mítico do qual cada sujeito pode tomar os elementos necessários para a constituição da sua novela individual neurótica. Exemplos desse tipo de transmissão são as tradições, as culturas, o núcleo de pertinência, uma filiação ou um sobrenome que tenham força de coesão.
Essa parece ser a trilha daquelas transmissões psíquicas entre gerações que são bem-sucedidas, exitosas, nas quais o escudo protetor materno cumpriu a sua meta a contento e a mãe pôde investir adequadamente seu bebê, sem invadir o campo da intersubjetividade com ansiedades ou lutos mal elaborados de sua história ou pré-história.
Trouxe o quadro de Leonardo da Vinci A Virgem e o Menino com Santa Ana porque a minha visão dele é a de um bebê olhado por sua mãe, que por sua vez está sendo olhada por sua própria mãe. Há uma troca de olhares, cuidados e holding envolvendo três gerações, o que pode ser um bom modelo para considerarmos que a presença dessa imagem na vida das famílias nos ajuda a pensar em transmissão intergeracional.
Várias situações podem destruir a capacidade e a função parentais: lutos não elaborados, segredos, histórias lacunares, histórias de violência, vazios, migrações - traumas, enfim, que não puderam ser transformados, simbolizados, historizados. Tais situações podem comprometer dramaticamente a capacidade parental de metabolizar as ansiedades primitivas do bebê (função
alfa, rêverie, mãe suficientemente boa), além de promover a inversão da linha geracional, pois o filho - ao contrário do que é esperado na primitiva relação mãe-bebê - passa a conter a ansiedade proveniente do irrepresentável e do não elaborado das angústias parentais.
O magnífico quadro de Frida Kahlo Autorretrato como tehuana (Diego em meu pensamento), no qual Diego Rivera aparece desenhado na testa de Frida, parece-me uma imagem ímpar para pensarmos a mente de uma mãe impossibilitada de olhar e investir integralmente seu bebê por estar ocupada (ela-mãe) com seus lutos e traumas não elaborados (criptas). Há uma forte tendência a utilizar identificações alienantes desses Diegos de sua mente para depositá-los na mente do bebê. Esse movimento parental inconsciente poderá traduzir-se em vazio irrepresentável para o bebê, ao mesmo tempo que o leva a carregar uma angústia que não é sua.
A nova geração será herdeira compulsória dessa vesícula que contém produtos tóxicos, será receptora singular de uma transmissão defeituosa. Por estar dominada por sua dependência e seu apego aos pais, bem como por sua necessidade de ocupar o lugar que lhe é determinado, se constituirá em verdadeira escrava de fantasmas.
Ao ser introduzida na constelação traumática dos pais, a criança cumprirá várias funções para eles. Poderá tomar o lugar dos mortos, identificando-se com eles para satisfazer a mãe, servindo assim de continente para as angústias excessivas do adulto, invertendo as posições na linha geracional, transformando-se, por exemplo, em pai de seus pais.
Essa é uma transmissão psíquica geracional que, do ponto de vista da natureza e da essência do elo criativo entre as gerações, tornou-se defeituosa, foi interrompida; as histórias de seus personagens estão colapsadas, coladas umas às outras - estão sob o predomínio da repetição e do narcisismo.
Assim, encontraremos, em ambas as gerações, o impensável, o indizível, o negativo, o processo do segredar, os restos insensatos, os passados em silêncio, as histórias vazias. Estará fundada a cadeia traumática transgeracional (Gomel, 1997).
Dessa forma, o trauma pode inaugurar, na história de muitas famílias, as condições para as transmissões transgeracionais, carentes do espaço de transcrição transformadora. O trauma não elaborado tem poder para interromper a transmissão intergeracional, aquela que se dá entre os sujeitos. Com isso, passa a existir outra, dessa vez defeituosa, transgeracional, que ocorre através dos sujeitos, atravessando o psiquismo, invadindo-o violentamente, numa passagem direta de formações psíquicas de um sujeito a outro, de uma geração a outra, sem preservação dos espaços subjetivos ou intersubjetivos.
Essa história, ou não história, repleta de não ditos, que necessita ser dissociada ou clivada pelo sujeito, habitando uma cripta firmemente lacrada, necessitará encontrar um depósito fora dele próprio. O indivíduo expulsa de dentro de si seu próprio fardo, as partes alienadas/clivadas de si mesmo, e as coloca em alguém narcisicamente selecionado, da geração seguinte. Essa identificação projetiva - identificação alienante (Faimberg, 2000); identificação mórbida (Pereira da Silva, 2003); identificação radioativa (Gampel, 2006, 2014); identificação traumática (Trachtenberg et al., 2013) - liberta o representante dessa geração, enquanto escraviza o representante escolhido da geração seguinte. Este, vivendo uma história que, ao menos parcialmente, não é sua, tendo uma parte de seu psiquismo alienada, estrangeira a si mesmo, é um dos protagonistas daquilo que Faimberg (2000) denominou telescopagem de gerações.
Nessa linha de compreensão psicanalítica, Kestenberg (1993) chamou de transposição o fenômeno encontrado em descendentes de sobreviventes do Holocausto que descreve uma forma de viver em duas épocas distintas simultaneamente: a presente e a passada. Rosenfeld (1993) observou ainda fenômenos de encapsulamento autista, derivados da necessidade de preservação de identificações infantis.
A esse respeito, Yolanda Gampel (2006, 2014), ao referir-se aos sobreviventes do Holocausto e seus descendentes, diz que os traumas encapsulados são convertidos em restos radioativos que não podem ser transformados em pensamento simbólico, em palavras, e surgem sob a forma de enfermidades psíquicas ou físicas, no próprio sujeito ou nas gerações seguintes.
Imre Kertész, escritor húngaro, sobrevivente do Holocausto e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2002, manifestou em seu romance Kadish1 por uma criança não nascida a sua decisão de não ter filhos, pois entendia que sua herança emocional estaria muito comprometida com potencial patogênico graças a seus traumas não processados.
Lembrando Ferreira Gullar (1980/2015, p. 346): "Traduzir-se uma parte na outra parte ... será arte?".
Cabe a nós, psicanalistas, por meio de diferentes abordagens terapêuticas, realizar um trabalho preventivo de saúde mental, bem como um trabalho que permita a elaboração de criptas e fantasmas, contribuindo para um nascimento psíquico não alienado nas crianças e nas famílias; ajudar no difícil trânsito dessa transformação de heranças transgeracionais em novas heranças intergeracionais.
Para finalizar, apresento um quadro comparativo entre as duas formas de transmissão psíquica entre gerações - intergeracional e transgeracional -, que busca destacar as diferenças, assim como assinalar alguns pontos que suscitem inquietações capazes de criar novos pensamentos.
Referências
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Correspondência:
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Rua Mostardeiros, 5/806
90430-001 Porto Alegre, RS
anarosact@gmail.com
Recebido em 22.05.2017
Aceito em 07.06.2017
1 Reza que os judeus fazem para os mortos.