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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.52 no.1 São Paulo jan./mar. 2018
OUTRAS PALAVRAS
Autoerotismo, narcisismo e a função integradora da ilusão
Auto eroticism, narcissism, and the integrative function of illusion
Autoerotismo, narcisismo y la función integradora de la ilusión
Autoérotisme, narcissisme et la fonction intégratrice de l'illusion
Celso Halperin
Membro titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPDEPA)
RESUMO
O presente estudo sustenta o papel fundamental da ilusão no processo de integração do Eu (nova ação psíquica). Para tanto, questiona a possibilidade de a própria divisão (cisão) do Eu ser a manifestação de uma estrutura primária, não patológica, presente no desenvolvimento normal desde o autoerotismo, que busca a integração, em diferentes níveis, por meio da ilusão. Além disso, analisa a presença do fenômeno da ilusão em conceitos fundamentais da psicanálise, concluindo com uma leitura de Freud em que ele nos adverte não propriamente em relação aos perigos da ilusão, mas sim ao perigo de submissão a uma ilusão externa em vez de construir o próprio sistema ilusório (simbólico).
Palavras-chave: ilusão, autoerotismo, narcisismo, integração, cisão
ABSTRACT
This paper supports the fundamental role of illusion in the process of ego integration (new psychic action). To that end, the author wonders about the possibility of the splitting of the Ego itself being a manifestation of a primary structure, which is not pathological, and which exists in normal development since the auto eroticism. This primary structure seeks integration, at different levels, through illusion. Furthermore, this author analyzes the presence of the phenomenon of illusion in fundamental psychoanalytic concepts. The conclusion of this paper brings a reading of Freud in which he advises us not exactly about the dangers of illusion, but about the danger of submission to an external illusion instead of building one's own illusory system (symbolic system).
Keywords: illusion, auto eroticism, narcissism, integration, split
RESUMEN
El presente trabajo sostiene el papel fundamental de la ilusión en el proceso de la integración del Yo (nueva acción psíquica). Para esto, cuestiona la posibilidad de que la propia división (escisión) del Yo sea la manifestación de una estructura primaria, no patológica, presente en el desarrollo normal desde el autoerotismo, que busca la integración en distintos niveles a través de la ilusión. Además, analiza la presencia del fenómeno de la ilusión en conceptos fundamentales del psicoanálisis, concluyendo con una lectura de Freud en la que él nos advierte no exactamente en relación a los peligros de la ilusión, pero sí sobre el riesgo de sumisión a una ilusión externa en lugar de construir el propio sistema ilusorio (simbólico).
Palabras clave: ilusión, autoerotismo, narcisismo, integración, escisión
RÉSUMÉ
Cette étude soutient le rôle fondamental de l'illusion dans le processus d'intégration du Moi (nouvelle action psychique). Pour ce faire, il questionne la possibilité de la division (la scission) du Moi être la manifestation d'une structure primaire, non pathologique, présente au développement normal dès l'autoérotisme, laquelle cherche l'intégration dans des niveaux différents, au moyen de l'illusion. En plus, il analyse la présence du phénomène de l'illusion dans des concepts fondamentaux de la psychanalyse, en concluant par une lecture de Freud où celui-ci nous avertit, pas exactement sur les dangers de l'illusion mais, en effet, sur le danger de se soumettre à une illusion externe, au lieu de construire le propre système illusoire (symbolique).
Mots-clés: Illusion, autoérotisme, narcissisme, intégration, scission
1.
Se Marion Milner (1950/2010) foi a primeira psicanalista a reconhecer explicitamente os efeitos positivos da ilusão no desenvolvimento psíquico, deve-se a Winnicott uma rica compreensão de todo o alcance do processo de ilusão, quando o autor faz o que entendo ser uma particular interpretação do conceito freudiano de vivência de satisfação.
Freud (1900/1972a) descreve a estruturação do aparelho psíquico a partir da necessidade de descarga. Essa descarga pode se dar de duas formas: por ações não específicas (reações emocionais, gritos etc.), que não permitem um alívio mais prolongado da tensão, ou por ações específicas, quando, por uma intervenção exterior, há o fornecimento do objeto adequado (comida no caso de fome, por exemplo), produzindo um importante e duradouro alívio da tensão. Esse objeto da ação específica assume, assim, um valor referencial na constituição do sujeito. Nasce aqui o desejo por aquele objeto original, que, tendo servido para a descarga, deixou marcas, deixou traços mnêmicos no aparelho psíquico. Diante da privação, ou seja, quando não for possível encontrar um objeto (ou um substituto) que permita a ação específica, uma possibilidade para a pulsão buscar a satisfação será a reprodução alucinatória do objeto e/ou das percepções obtidas em experiências primitivas com o objeto original. Procura, com isso, a satisfação alucinatória do desejo. Nesse processo, em cada nova tensão, em cada retomada da busca pelo objeto original, há um reinvestimento desse objeto (ou substituto) pelas novas experiências perceptivas, alucinatórias ou não. Na composição dessas experiências de satisfação, reais e alucinatórias, está o fundamento do desejo.
Suponho que Winnicott faça uma interpretação desse processo, promovendo certa condensação do modelo. Para o autor inglês, ante a premência da pulsão, originária de uma força vital presente nos tecidos e em outras partes do corpo humano, o bebê buscaria o alívio da tensão (a satisfação do desejo) alucinando algo que o atenda completamente. Ou seja, enquanto para Freud a tensão seria aliviada primariamente por um objeto (ação específica) e secundariamente por uma alucinação (satisfação alucinatória do desejo), para Winnicott (1958/1993) o processo de criação do objeto primário já é alucinatório desde o início, nascendo inclusive de forma simultânea com a necessidade de um id-ego (eu) ainda indiferenciado. Nesse sentido, há uma fantasia, uma alucinação, uma criação primitiva por parte do bebê de alguma coisa que atenda suas necessidades, que se configure em algo como um seio. Ocorre que essa experiência alucinatória, por si só, não atende plena e continuamente o problema da fome, do carinho, da atenção e do cuidado do bebê. Algo mais se faz necessário.
Na situação que estamos descrevendo, a mãe, por estar biológica e/ ou culturalmente adaptada às necessidades do bebê (identificação narcísica, preocupação materna primária), oferece o seu seio (esse real) exatamente no lugar e no momento em que o bebê está criando de forma imaginária o seu seio. Quem vê de fora vê apenas a coincidência entre esses dois fenômenos, a fantasia de um seio e o simultâneo oferecimento do seio por parte da mãe. Mas o que Winnicott (1971/1975) percebe é que, do ponto de vista da vivência do bebê, o seio que ele cria na fantasia e o seio que a ele é oferecido pela realidade, com consistência física, cheiro etc., são o mesmo; não são dois seios, mas um só (sua fantasia se materializa na realidade). Essa experiência, e aqui se faz importante notar que não é só uma experiência psíquica mas também vivencial, é denominada ilusão, pois, se para o bebê há um só seio, para um observador neutro, externo à relação mãe-filho, há dois: o da imaginação do bebê e o da realidade apresentada. No entanto, se esse mesmo observador, que está fora da relação, conseguir se colocar no lugar do bebê e depois sair dessa posição, dirá que, onde se vê uma coincidência entre o seio criado e o seio percebido, o bebê tem a ilusão de que há um só seio. Claro que não estamos nos referindo apenas a um momento mítico desse encontro, mas sim a um continuado processo em que a imaginação do objeto seio e os detalhes percebidos pelos sentidos, bem como pelos afetos derivados de experiências anteriores, se complementam permanentemente. Nesse processo constitutivo, mais do que união, mais do que fusão, o sujeito e o objeto são uma coisa só. Aqui há uma ilusão de unicidade, de unidade, de não separação, unidade essa que será ressignificada posteriormente com a sensação de eu sou. Esta é a base, o fundamento do ser (self). Sem a onipotente experiência da ilusão, o ser fica fragilizado na sua estrutura.
2.
Para compreender a importância do processo de ilusão, vamos recordar o entendimento de Freud sobre o curso do desenvolvimento psíquico, a partir do estado sexual mais primitivo de todos: o autoerotismo. Ao desenvolver o tema,1 Freud explora não só a questão do autoerotismo em termos de objeto sexual (a pulsão se satisfaria no próprio corpo, e não em outra pessoa) como também o desprendimento da pulsão sexual em relação à pulsão de auto-conservação. O autor enriquece esse conceito descrevendo aquela que será a característica fundamental do autoerotismo: um funcionamento ainda não integrado daquilo que se constituirá no eu (ego). No autoerotismo, as pulsões buscam sua satisfação nas próprias zonas erógenas em que são produzidas. Essas zonas funcionam como que de forma anárquica, independentes umas das outras, sem qualquer organização de conjunto. No autoerotismo, portanto, haveria um funcionamento a partir de zonas erógenas não integradas. Mas Freud nos fala de outro funcionamento, quando há uma unificação dessas pulsões sexuais, "desunidas" até então, em busca de um objeto comum, ainda que esse objeto seja o próprio corpo:
É uma suposição necessária a de que uma unidade comparável ao ego não esteja presente no indivíduo desde o início; e o eu precisa antes ser desenvolvido. Todavia, as pulsões autoeróticas estão presentes desde o início, e é necessário supor que algo tem de ser acrescentado ao autoerotismo, uma nova ação psíquica, para que se constitua o narcisismo. (1914/2004c, p. 99)
Seguindo essa citação, a constituição do narcisismo a partir do autoerotismo (não integração), ainda que parta de um ponto de vista econômico, permite a constituição de um eu como unidade psíquica.
Embora reconheça os importantes avanços do pensamento winnicottia-no na valorização da resposta ambiental e da intersubjetividade na constituição psíquica, acho que podemos tentar articular algumas ideias de Winnicott e de Freud, sem desconsiderar as especificidades de cada modelo de pensamento. Winnicott aponta um eu incipiente (na verdade, desenvolve a ideia de self),2 primariamente não integrado, mas que pode vir a integrar-se graças, basicamente, à presença de dois fatores: o primeiro é a tendência inata à integração, presente em todos os indivíduos; o segundo é a demanda por cuidados ambientais compatíveis com as necessidades do bebê.
Ao longo de sua obra, Freud nos fala de uma tendência à síntese presente no eu. Em "A cisão do eu no processo de defesa", porém, o autor relati-viza a constância dessa função: "essa função sintética do eu depende de condições específicas e é vulnerável a uma série de perturbações" (1940/2004a, p. 174). Suponho que Winnicott tenha se inspirado nessa ideia ao estudar o segundo fator necessário à integração, isto é, apresentar o mundo ao bebê de uma forma e com uma intensidade que não o obriguem a desviar-se do seu desenvolvimento natural. Aqui estão envolvidas as particularidades dos cuidados e dos manejos que os pais teriam com o bebê, além de certa constância e previsibilidade.
Segundo Winnicott, a integração com a mãe oferece condições para que haja a integração do eu do bebê.3 Para o bebê em um estado ainda não integrado, ou com uma integração parcial, existe um seio (uma realidade) que lhe é apresentado justamente da forma criada por ele. Logo, para o bebê, ele criou a realidade, ainda que para alguém de fora da relação essa criação seja uma ilusão do bebê. Mais do que isso: a criação da realidade é uma criação sua, primária, confirmando seu potencial criativo e a força e a validade da sua imaginação. É, portanto, um objeto subjetivo. Mas, sem a ilusão de que a realidade externa e o seu mundo criativo se conectam, não é possível estabelecer uma percepção de autenticidade. No seu funcionamento onipotente, é ele, e não a mãe (ambiente), que o provê de fato. Ele e a mãe adaptada a ele são uma coisa só. O bebê, sozinho, por não ter ainda uma integração estável que lhe permita ser, ou dizer eu sou, necessita do auxílio da mãe para completá-lo, para ter a ilusão de que ele é. Esse processo ocorreria justamente numa fase do desenvolvimento em que o eu ainda não está integrado, ou seja, na fase denominada autoerotismo. Nesse modelo, o início do processo de integração do eu com a realidade se daria primariamente pela relação com a mãe. Com o auxílio inicial da mãe (ambiente), o bebê chegará a ter a integração necessária que lhe permitirá, posteriormente, prescindir dessa própria mãe. Só com algum nível de integração (narcisismo) o bebê poderá buscar a independência, com uma rica vida de relações. Assim, a ilusão, com a sua função integradora, é uma catalisadora do movimento agregador de um eu ainda não integrado (autoerotismo) em direção a um eu mais integrado (narcisismo).
Nesse sentido, não será a ilusão (com a devida participação do ambiente nesse processo) a nova ação psíquica que permite a constituição do narcisismo a partir do autoerotismo? Sem dúvida, essa questão, bem como a relação da ilusão inicial com a identificação primária, merece um debate mais aprofundado, a ser desenvolvido.
3.
Examinamos, até o momento, a relação da ilusão com o desenvolvimento emocional primitivo e com o processo de integração do eu. Vamos agora considerar certas características primitivas do eu, presentes desde o autoerotismo, que conferem plasticidade e vitalidade fundamentais ao processo de constante busca de integração do aparelho psíquico. Para tanto, seria interessante recorrermos a alguns estudos fundamentais sobre a divisão do eu.
O processo de cisão do eu é examinado por Freud em vários trabalhos. Em 1924, estudando as psicoses, ele já apresenta a possibilidade de, ante o conflito entre as instâncias psíquicas e/ou com a realidade, o eu deformarle "eventualmente, até o ponto em que abra mão de sua unidade e se fragmente ou se cinda" (2004d, p. 98). Em 1927 (2004b), estudando o fetichismo, Freud nos fala do processo de renegação (desmentida), em que, para manter a presença simultânea de uma crença (manutenção da mãe fálica) e de uma realidade de castração materna, a criança pode se utilizar da cisão do eu como forma de preservar ambos os elementos. Em 1940 [1938], com "A cisão do eu no processo de defesa" (2004a) e Esboço de psicanálise (1975), Freud amplia o conceito de divisão ou cisão do eu para além das psicoses e do fetichismo, percebendo a possibilidade de um "rompimento na tessitura do eu" (2004a, p. 174) mesmo em casos de conflitos neuróticos. Tratamos aqui de um processo de cisão em que parte do eu lida com a possibilidade de incompletude (castração) e segue seu desenvolvimento emocional, enquanto outra parte, que não aceita a possibilidade de castração, segue de forma cindida no eu, mantendo o primado fálico, ou seja, da onipotência. Esse processo, a renegação (há uma renegação, uma desmentida da castração), ocorreria na estruturação edípica.
Alguns autores contemporâneos, como Norberto C. Marucco e Myrta C. de Pereda, ao estudar a cisão do eu e a renegação, sustentam que esse processo poderá ocorrer de forma bem mais primitiva, tendo inclusive um papel estruturante na formação do eu.
Marucco (1978/1998) compreende que o indivíduo já chega cindido ao Édipo. Parte do eu aceita a castração, e outra parte funciona fundamentada na preservação do narcisismo primário, isto é, falicamente, não admitindo a castração. Enquanto a parte do eu que aceita a castração evolui através do processo simbólico daí decorrente, a outra parte tem um destino diferente, permanece estacionada dentro do narcisismo primário, cujo funcionamento é mantido tanto pela própria libido do indivíduo quanto pela identificação primária passiva, ou seja, pela manutenção do investimento libidinal dos pais (ou representantes). De acordo com o autor, a renegação (da castração) se daria de forma bem mais precoce que o Édipo, já na estruturação do narcisismo primário, sob o impacto da intersubjetividade.
Pereda (1995/1999), por sua vez, compreende a renegação como um mecanismo estrutural intersistêmico, portanto, intrapsíquico. Segundo a autora, a renegação já se mostra presente na gratificação alucinatória do desejo, quando haveria uma renegação da ausência do objeto. Primariamente, então, haveria uma renegação da ausência. Mas, para a autora, essa renegação estrutural não provoca uma cisão do eu. Somente haverá cisão se houver a persistência dessa estrutura fora de uma cadeia simbólica a ser desenvolvida. Na renegação estrutural, não existiria uma verdadeira cisão do eu, e a antinomia entre saber e não saber faria parte da divisão estrutural (não provocando cisão): enquanto um opera no plano da consciência, o outro permanece no inconsciente. Ou seja, a renegação se dá entre os sistemas inconsciente e consciente. De acordo com Pereda, a percepção da ausência do pênis materno e a renegação da castração seriam, na verdade, tão somente a ressignificação da renegação estrutural de uma ausência. Em resumo, enquanto Freud percebe o fenômeno e descreve o processo de renegação e de cisão do eu em termos edípicos, Pereda e Marucco pensam esse processo como estrutural e bem mais precoce.
Se voltarmos a Winnicott, ainda que ele não se refira ao processo de renegação, veremos que sua visão de desenvolvimento emocional sadio se dá a partir de um eu dividido primariamente, isto é, estruturalmente. Para o autor, há um estado primitivo do eu em que ele não está integrado; gradativamente, vai passando pelo processo de integração psíquica, psicossomática e com a realidade (através do processo de ilusão). Esse funcionamento não integrado primitivo, daquilo que se constituirá no eu, coincide com as descrições de Freud sobre o autoerotismo (zonas erógenas que funcionam de forma independente, sem organização de conjunto). Se houver concordância de que esses dois fatores se fazem presentes - a saber: 1) se desde o autoerotismo o eu tiver a capacidade de funcionar de forma não integrada, e 2) se, como dizem Marucco e Pereda, a divisão do eu se fizer presente de maneira precoce e estrutural -, poderemos aventar uma hipótese especulativa: a possibilidade de que a cisão do eu seja, na verdade, a simples evidência clínica da presença de um eu não completamente integrado, em condições normais de saúde mental. Na compreensão aqui apresentada, a cisão do eu refere-se não à divisão de uma unidade sólida e consolidada, mas apenas ao rompimento de certo padrão de integração alcançado. Estamos pensando o eu com um determinado nível de integração de zonas autoeróticas, que funcionam de modo não integrado, mas que tendem a buscar um funcionamento em conjunto, tanto na sua estrutura como nas pulsões sexuais. Usando as palavras de Freud, podemos dizer que a cisão do eu se dá quando este necessita "abrir mão de sua unidade" (1924/2004d, p. 98) ou quando há um "rompimento na tessitura do eu" (1940/2004a, p. 174), entendendo tessitura como a forma pela qual as partes do eu estão interligadas e entretecidas.
Nesse sentido, a divisão do eu (tornando possível a renegação) é estrutural, pois é a expressão de um eu que está permanentemente em processo de integração (inclusive pelas ressignificações), assim como descrito no funcionamento autoerótico. Ainda que a integração do eu caminhe na direção do narcisismo, do Édipo, das relações objetais etc., essa característica de funcionamento fragmentário defensivo não se perderia em condições normais. Pelo contrário, a possibilidade de o eu preservar a capacidade de funcionar dividido, tal como outras defesas, é um sinal da plasticidade do eu para lidar com duras realidades (abandono, invasões, falta de sintonia, castrações tirânicas etc.) quando elas parecem intoleráveis. Ao considerar a capacidade de divisão do eu como um legado do autoerotismo, pensamos na importância clínica de estudos cada vez mais aprofundados sobre essa fase do desenvolvimento. Seguindo o raciocínio desenvolvido até aqui, torna-se inevitável cogitar a hipótese de que não seria a renegação que provocaria a cisão do eu, mas sim o contrário. A não integração total (estrutural) do eu permite que algumas partes suas funcionem sob a órbita da crença, enquanto outras partes, que puderam passar pelo processo de ilusão/desilusão/transicionalidade, funcionam levando mais em conta a realidade.
Assim, para que haja a renegação, tem que haver a possibilidade de um funcionamento não integrado ou com uma integração apenas parcial. Não é que a necessidade de renegar seja a etiologia da cisão de um eu já previamente integrado. Nesse sentido, a possibilidade de funcionamento do eu de forma não totalmente integrada permite ao indivíduo lidar com diversas situações que seriam inaceitáveis se o eu se mantivesse unificado de maneira inflexível. Como seria possível lidar com situações paradoxais, como a presença de razão e de fé simultaneamente? Ou com um intenso temor à castração, ainda que a razão e os sentidos desmintam tal ameaça? Mas aqui, outra vez, abre-se um novo campo de estudos a ser examinado.
4.
A procura da ilusão (coincidência entre a fantasia e a realidade) como busca de integração está presente permanentemente em nossa vida: o que almejamos no esporte, numa competição, seja praticando, seja torcendo por determinada pessoa ou time? O que procuramos num show, num concerto ou numa exposição? O que esperam os praticantes de determinadas religiões, seitas ou credos, senão uma re-ligação, uma integração do seu próprio eu e/ou com um grupo, através de uma autoridade divina ou não? O que buscamos na paixão erótica (podendo ela evoluir para o amor ou não), senão a ilusão de comunhão de dois em um só? Ilusão nutridora, suporte para lidar com as fantasias e as realidades; difícil imaginar algo que a substitua nessa função.
Ocorre que várias experiências primitivas e/ou muito intensas não encontram um eu razoavelmente integrado para se alojar. Não sendo apropriadas pelo eu ou por aquela estrutura que deverá ser o eu, essas vivências podem passar sem que seja possível memorizá-las, representá-las através de palavras ou de outras simbolizações. Nesses casos, a pessoa talvez necessite vivenciar um estado de vazio, ou mesmo de aniquilamento, que seja o mais próximo possível daquele estado de não integração já experimentado, com a esperança de que o ambiente agora lhe dê condições de retomar sua trajetória rumo à integração, que não pôde antes ser percorrida. Mas essa integração precisa ser percebida como própria e verdadeira. Podemos aqui entender a insistência de muitas pessoas em revisitar, continuamente, certos estados clinicamente graves, como que perseguindo a tradução dessas experiências primitivas através do pânico, do vazio, das doenças psicossomáticas e mesmo da melancolia. Buscam percorrer um novo caminho, na esperança de que, em condições mais favoráveis, encontrarão uma integração entre seu psiquismo, seu corpo e o ambiente. Pontalis, discorrendo sobre o tema, afirma poeticamente:
O que se repete - não falo do que se rumina, mas do que insiste - é aquilo que não teve lugar, que não encontrou seu lugar e que, por não ter conseguido advir, não existiu como acontecimento psíquico. Repetimos como nos ensaios de teatro, mas na ausência e vazio de todo texto. Repetimos o que está fora do texto, o incrustado, o não impresso. (1997/2005b, p. 19)
O repetidor procura um sentido para aquilo que ainda não tem sentido. Repete, mas sempre com a expectativa de que ocorra uma pequena alteração, em um pequeno detalhe, que faça toda a diferença. Embora seja repetição, nunca é exatamente igual. Como no Bolero de Ravel, em que a melodia se repete constantemente, mas a orquestração vai progressivamente incluindo cada vez mais instrumentos. Aquele que repete busca um cenário, uma conjuntura que lhe dê a esperança de que algo de novo possa acontecer.
5.
Gostaria agora de considerar alguns aspectos de como Freud examina a questão da ilusão em sua obra. Entendo que ele aborda o tema da ilusão de duas formas. Nas suas referências mais diretas, analisa a ilusão seguindo uma tradição racionalista, como algo enganador, próprio do mundo dos sonhos, das fantasias, das doenças imaginárias, das paixões, dos mitos, dos rituais e das religiões. Nesse sentido, a ilusão deveria ser vista como um falseamento da realidade criado pela necessidade de proteção ante o desamparo infantil, portanto, algo a ser evitado. Freud discorre sobre essas questões em vários de seus trabalhos chamados sociais, mas onde parece estar mais concentrado em desconstruir a ilusão é em O futuro de uma ilusão (1927/1974b). Nessa obra, Freud nos fala da religião como uma construção psicológica que busca um reasseguramento ilusório para lidar com o desamparo humano diante da natureza e das imposições do processo civilizatório. A partir dessas formulações, criou-se um entendimento psicanalítico que tende a reduzir, em Freud, a importância do processo de ilusão, tomando-o quase como sinônimo de infantilismo (Usuelli, 1991).
Poderiamos, no entanto, observar outros aspectos, presentes nesse e em outros textos de Freud, que nos permitem perceber a ilusão como algo positivo. Se examinarmos o desenvolvimento clínico da psicanálise, veremos que o fenômeno da transferência, por exemplo, que nos seus primórdios era considerado um obstáculo, uma resistência ao tratamento, passou a ser percebido também como um poderoso instrumento de cura:
Não se discute que controlar os fenômenos da transferência representa para o psicanalista as maiores dificuldades; mas não se deve esquecer que são precisamente eles que nos prestam o inestimável serviço de tornar imediatos e manifestos os impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente. Pois quando tudo está dito e feito, é impossível destruir alguém in absentia ou in effigie. (Freud, 1912/1969a, p. 143)
Se a transferência passa a ser o palco em que jogam os elementos do conflito infantil, com seus desejos e fantasias, igualmente se torna o cenário de expressão das várias facetas do processo de integração do eu, inclusive com a realidade. É impossível pensar que o processo de ilusão (e desilusão) não esteja permanentemente presente na cena transferencial, pronto a revelar tanto a busca por uma integração mais satisfatória do eu como seus impedimentos. Talvez um lindo exemplo esteja no trabalho analítico que a psicanalista Zoé/Gradiva faz com Norberto, quando possibilita que, pela análise da transferência, o jovem delirante Norberto integre4 sua paixão reprimida por Zoé com o interesse pelo peculiar caminhar da Gradiva, vista em um alto-relevo.
Graña (1994) chama a atenção para vários segmentos na obra de Freud em que já se fazia presente a importância de uma terceira zona, que podemos nomear hoje de zona da ilusão, dentro do setting analítico. Um desses exemplos se encontraria na obra "Recordar, repetir e elaborar", em que Freud diz:
A transferência cria assim uma zona intermediária entre a doença e a vida real, através da qual a transição de uma para outra é efetuada. A nova condição assumiu todas as características da doença, mas representa uma doença artificial, que é, em todos os pontos, acessível à nossa intervenção. Trata-se de um fragmento de experiência real, mas um fragmento que foi tornado possível por condições especialmente favoráveis, e que é de natureza provisória. (1914/1969b, p. 201)
Sobre esse artigo, Graña ressalta não só o uso textual por Freud de uma "zona intermediária" entre a enfermidade e a vida como também a descrição de que essa "doença artificial" (ilusória) é sustentada por "um fragmento de experiência real", em "condições especialmente favoráveis". O autor relaciona diretamente a compreensão que Freud tinha do fenômeno da transferência com a que foi desenvolvida mais tarde por Winnicott, com os conceitos de espaço e objeto transicional.
Mas a que Freud poderia estar se referindo quando fala dos perigos da ilusão? No meu entender, não está considerando o mesmo processo de ilusão visto até aqui como fundamental na psicanálise. Em minha opinião, Freud está argumentando justamente sobre o perigo de o indivíduo perder, ou mesmo não desenvolver, uma capacidade ilusória e um sistema simbólico que sejam percebidos como próprios e pessoais. No final do trabalho O futuro de uma ilusão, após discorrer longamente sobre aspectos psicológicos da religião, Freud observa: "os crentes devotos são em alto grau salvaguardados do risco de certas enfermidades neuróticas; sua aceitação da neurose universal poupa-lhes o trabalho de elaborar uma neurose pessoal" (1927/1974b, p. 58). Podemos depreender desse estudo sobre a religião uma grande preocupação de Freud em não aprisionar o homem, a mente humana, em qualquer ordenamento coletivo que provoque a substituição da singularidade de cada um (ou da neurose de cada um) pela alienação num sistema baseado em crenças impostas pelo coletivo. Pontalis, ao referir-se a esse tema, comenta: "O que deprecia a ilusão religiosa é, poder-se-ia dizer, o fato de que ela aliena numa simbólica preestabelecida e comum o jogo livre e criativo da ilusão" (1977/2005a, p. 107). Isto é, a religião, como uma ilusão coletiva e organizada, seria condenada por impedir ou dispensar que cada indivíduo vivencie o seu próprio processo de ilusão, pessoal e intransferível, imprescindível para poder desenvolver a própria capacidade simbólica e, em última análise, a liberdade de pensamento.
Referências
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Correspondência:
Celso Halperin
Rua Mostardeiro, 157/905
90430-001 Porto Alegre, RS
Tel.: 51 99954-7788
halperin@uol.com.br
Recebido em 28.03.2017
Aceito em 17.11.2017
1 Principalmente em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1972b).
2 Para Jan Abram (1996/2000), Winnicott nunca esclareceu suficientemente a diferença entre self e eu/ego. Poderiamos, resumidamente, pensar que o self diz respeito a como o indivíduo se sente subjetivamente, enquanto o eu tem uma função bem particular no self: a de organizar e integrar a experiência.
3 Sempre que mencionamos o processo de integração do eu, estamos na verdade nos referindo ao processo de integração das representações do eu.
4 Zoé: "Tu não tinhas olhos para ver, boca para falar e nem memórias para lembrar-te de nossa amizade infantil" (Freud, 1907/1974a, p. 36).