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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.2 São Paulo abr./jun. 2018

 

OUTRAS PALAVRAS

 

A escuta das formas primárias de simbolização no trabalho analítico

 

Listening to primary forms of symbolization in psychoanalytic work

 

La escucha de las formas primarias de simbolización en el trabajo analítico

 

L'écoute des formes primaires de symbolisation dans le travail analytique

 

 

Anne BrunI; Tradução Marilei Jorge; Revisão técnica Eliane Rache

IMestre em psicopatologia e psicologia clínica. Desde 2009, é diretora do Centro de Pesquisa em Psicopatologia e Psicologia Clínica (CRPPC), Instituto de Psicologia, Universidade de Lyon 2

Correspondência

 

 


RESUMO

A exploração das novas formas da clínica contemporânea, especialmente das patologias graves, motivou os psicanalistas a conferir uma atenção cada vez maior à sensório-motricidade nas clínicas consideradas difíceis. A abordagem terapêutica dessas patologias narcísico-identitárias necessita de conceitualizações que permitam pensar a importância do sensorial, do corpo e da motricidade. De modo geral, constata-se que a maioria dos teóricos analistas do século XXI foi confrontada com a necessidade de introduzir conceitos específicos para pensar e se encarregar das clínicas decorrentes de situações-limite e extremas da subjetividade. O ponto em comum dessas novas contribuições teóricas consiste em explorar os efeitos das primeiras experiências sensório-afetivo-motoras na relação com o objeto, as quais representam um papel essencial na aplicação dos processos de simbolização ou em sua falência. Discutem-se diferentes modos de escuta e de intervenção do analista, que colocam em jogo as formas primárias de simbolização.

Palavras-chave: arcaico, interpretação, patologias narcísico-identitárias, sensório-motricidade, significante formal


ABSTRACT

Motivated by the exploration of new forms of contemporary practice, especially in cases of serious pathologies, psychoanalysts have paid an increasing attention to sensory motricity in practices that are considered difficult. In the therapeutic approach to these "narcissistic-identifying" pathologies, there must be conceptualizations which enable one to think of the importance of the sensory, body, and motricity. Most of the 21st-Century theoretical psychoanalysts have faced the need of introducing concepts which are specific to both think of and be responsible for the therapy of patients in limit/extreme situations of subjectivity. The common ground of these new theoretical contributions is the investigation of the effects of the first sensory-affective-motor experiences in the relationship with the object. These experiences play a vital role in either the use of processes of symbolization or their failure. The author discusses different ways of psychoanalyst's listening and intervention, ways which put the primary forms of symbolization at stake.

Keywords: archaic, interpretation, narcissistic-identifying pathologies, sensory motricity, formal signifying


RESUMEN

La exploración de las nuevas formas de la clínica contemporánea, especialmente de las patologías graves, motivó que los psicoanalistas presten una atención cada vez mayor al sensorio-motriz en las clínicas consideradas difíciles. El abordaje terapéutico de esas patologías narcisistas identitarias necesita contextualizaciones que permitan pensar en la importancia de lo sensorial, del cuerpo y de la motricidad. De manera general, se constata que la mayoría de los teóricos analistas del siglo XXI fueron confrontados con la necesidad de introducir conceptos específicos para pensar y encargarse de la clínica resultado de situaciones límites y extremas de la subjetividad. El punto en común de estas nuevas contribuciones teóricas consiste en explorar los efectos de las primeras experiencias sensoriales-afectivo-motoras en la relación con el objeto, las cuales representan un papel esencial en la aplicación de los procesos de simbolización o en su quiebra. Se discuten los diferentes modos de escucha e intervención del analista, que ponen en juego las formas primarias de simbolización.

Palabras clave: arcaico, interpretación, patologías narcisistas identitarias, sensorio-motriz, significante formal


RÉSUMÉ

C'est l'exploration des nouvelles formes de la clinique contemporaine et notamment des pathologies lourdes, qui a motivé l'attention de plus en plus grande portée par les psychanalystes contemporains à la prise en compte de la sensori-motricité, dans des cliniques réputées difficiles... L'approche thérapeutique de ces "pathologies narcissiques identitaires" (R. Roussillon) nécessite des conceptualisations permettant de penser l'importance du sensoriel, du corps et de la motricité, et, de façon générale, on constate que la plupart des théoriciens analystes du siècle XXI ont été confrontés à cette nécessité d'introduire des concepts spécifiques pour pouvoir penser et prendre en charge des cliniques relevant de "situations limites et extrêmes de la subjectivité". Le point commun de ces nouveaux apports théoriques consiste à explorer les effets des premières expériences sensori-affectivo-motrices, dans la relation à l'objet, qui jouent un rôle essentiel dans la mise en place des processus de symbolisation, ou dans leur faillite. Il s'agira de traiter de différentes formes d'écoute et d'interventions de l'analyste mettant en jeu les formes primaires de symbolisation.

Mots-clés: archaïque, interprétation, pathologies narcissiques identitaires, sensori- motricité, signifiant formel


 

 

Como definir as modalidades específicas do trabalho analítico em clínicas que nos confrontam com zonas de retraimento da subjetividade, com partes da vida psíquica não subjetivadas, até mesmo na expectativa de subjetivação, com vivências de apagamentos, de brancos, ou ainda com vivências de experiências catastróficas, que não se manifestam sob a forma de lembranças ou imagens, mas sob uma forma essencialmente sensório-perceptivo-motora? O fio condutor deste artigo será a exploração das chamadas formas primárias de simbolização para tentar tecer essas experiências na vida psíquica de um sujeito e fazer advir o ainda não advindo, paradoxo winnicottiano de tais experiências originárias. Trata-se, de certo modo, de questionar como fazer advir as origens no trabalho analítico, melhor dizendo, de interrogar o futuro terapêutico das origens.

Essa problemática remete de imediato a um importante distanciamento teórico-prático, segundo um conceito de Jean-Luc Donnet: uma modelização das formas primárias de simbolização, característica de cada autor, encontrase no centro da maioria das teorizações contemporâneas da psicanálise, mas permanece relativamente raro tratar de diferentes formas de escuta e de intervenção do analista que ponham em jogo especificamente as formas primárias de simbolização, enquanto a escuta dos fantasmas originários mantém-se uma preocupação constante das escolas analíticas. Como se pode reduzir esse distanciamento entre teoria e prática concreta, especialmente na prática padrão, no divã, em que se explora muito pouco essa referência às formas primárias de simbolização, no interior das sociedades de psicanálise? Essa preocupação motiva a escolha, aqui, de uma metodologia de apresentação ancorada na prática, a fim de permitir avançar na remodelagem de certos paradigmas de escuta analítica.

Inicialmente este artigo proporá um breve percurso pela história da psicanálise, para evidenciar os fundamentos freudianos relativos às questões do arcaico e da sensório-motricidade. Depois examinará inflexões epistemológicas devidas à passagem de uma teorização centrada nos fantasmas originários para uma metapsicologia dos processos de simbolização, com avanços especialmente sobre as formas primárias de simbolização. Em seguida, com base num tratamento típico no divã, três vezes por semana, buscará modelar algumas formas de escuta e de interpretação que põem em jogo as formas primárias de simbolização.

As clínicas que decorrem das patologias narcísico-identitárias, segundo o conceito de René Roussillon, precisam, em particular, recorrer a um trabalho baseado em formas primárias de simbolização. De fato, foram as modalidades de evolução da psicopatologia contemporânea, especialmente a clínica dos funcionamentos-limite, que impuseram a necessidade de inventar novas ferramentas para poder pensar e abordar as clínicas decorrentes de situações-limite e extremas da subjetividade, e para poder, com isso, fazer evoluir os modelos e paradigmas a partir dos quais se busca refletir sobre essas problemáticas, como as clínicas da psicose, a psicopatologia dos "agir" violentos, contra si ou contra o outro, e a psicopatologia do somático. De que maneira utilizar esses diferentes conceitos, que podem agrupar-se como formas primárias de simbolização, ao longo do fio condutor do encontro analítico?

 

Percurso pela história da psicanálise

Preâmbulos

Tais problemáticas clínicas estimularam os teóricos da psicanálise a pensar, especialmente, o papel central representado pelo corpo, pelos elementos sensoriais e pela motricidade, e de modo geral a propor conceitos específicos para tratar essas clínicas. O ponto em comum entre as novas contribuições teóricas consiste em explorar os efeitos das primeiras experiências sensório-a-fetivo-motoras na relação com o objeto, isto é, a maneira como a relação com o mundo apresenta, em todo sujeito, características relativas às experiências infantis primitivas, que representam um papel essencial na colocação dos processos de simbolização, ou em sua falência.

Assim, a maioria dos psicanalistas do século XX introduziu conceitos específicos para dar conta das primeiras experiências sensório-afetivo-motoras na relação com o objeto, como o ideograma (Bion, 1957/1983), o pictograma (Castoriadis-Aulagnier, 1975), o objeto aglutinado (Bleger, 1967/1981), as protorrepresentações (Pinol-Douriez, 1984) e o significante formal (Anzieu, 1987, 1990). Esses diferentes conceitos foram agrupados posteriormente sob o nome de formas primárias de simbolização, mas a teoria psicanalítica sempre se interessou pelos processos psíquicos precoces e pelos traços das experiências primitivas no funcionamento psíquico. Antes de evocar os trabalhos mencionados, é necessário, portanto, voltar a Freud, que definiu os fundamentos de uma teorização do arcaico na vida psíquica.

Freud e o arcaico

Retorno às origens da língua com a etimologia de arcaico: arkaïkôs - arkai, "começo", "mandamento", mas também "princípio", no sentido de "princípio organizador". O arcaico não remete somente à questão do início de tudo; segundo a dupla acepção etimológica, remete ao mesmo tempo a começo e a princípio: começo, designando a relação primeira da criança com seu ambiente, e princípio, a dimensão organizadora e estrutural do arcaico para o conjunto da vida psíquica.

Desse modo, o arcaico designa, em psicanálise, aspectos da psique organizados no passado mais longínquo, que serão retomados e reorganizados ao longo da vida. O conceito de arcaico remete à construção do vínculo com o objeto e aos processos de diferenciação com esse objeto, mas o arcaico também continua presente, o tempo todo, em cada um de nós. Logo, o arcaico não se confunde com a origem (Brun, 2017).

Para definir a noção de arcaico com base em Freud, precisamos retornar ao arcaico da obra freudiana, aos fundamentos da psicologia científica que ele escreve a partir de 1895, inspirados pelas teorias associacionistas do fim do século XIX e pela tradução do empirismo sensualista. Para resumi-los em poucas palavras, as impressões sensoriais combinam-se por associações. Freud se inscreve nessa continuidade filosófica; ele cita o célebre aforismo de Leibniz, que retoma o pensamento de Locke: "Nada existe no pensamento que não tenha primeiro existido nos sentidos" (1689/2006, citado por Roussillon, 2013b). Nessa linha de pensamento, Freud apresenta conceitos específicos para descrever os processos de transformação do registro sensorial até o registro das representações.

Numa famosa carta que Freud envia a Fliess em 6 de dezembro de 1896, ele propõe um modelo dos diferentes tipos de traço no aparelho psíquico e de sua conexão. Nessa época, Freud distingue três tipos de signo, perceptivo, afetivo e conceitual, cuja definição ele elaborará posteriormente como três tipos de traço, o traço perceptivo e o traço representativo, registrado sob a forma de representação de coisa ou de representação de palavra. Roussillon (2001) assinalou, em particular, a importância de diferenciar os traços perceptivos de outros níveis de representação, assim como o retorno possível desses traços perceptivos na alucinação. De fato, Freud insistiu, desde o início de sua obra, na importância de uma primeira memória arcaica de natureza essencialmente perceptiva, composta de traços perceptivos, que não são traduzidos nem em representações de coisa, nem em representações de palavra. Portanto, para Freud, é possível definir o arcaico como o registro desses traços mnésicos perceptivos, que poderão ou não ser transformados em imagens e palavras.

Passemos do início ao fim da obra freudiana, para compreender o interesse da memória arcaica, composta de traços perceptivos. Em "Construções em análise" (1937/1985), Freud evoca o possível retorno alucinatório de um visto ou de um ouvido, na primeira infância, no enquadre do tratamento analítico clássico para pacientes não psicóticos. Em 1937, a alucinação não é mais a realização de um desejo, como no sonho; ela se revela constituída de elementos sensório-afetivos não simbolizados e permite a reatualização de traços perceptivos arcaicos. Pode-se aqui entender arcaico como o que precede a linguagem verbal.

Essa segunda teoria freudiana da alucinação mostra-se indispensável para compreender o retorno de traumatismos primários: com os traços perceptivos, as experiências primitivas aparecem articuladas aos estados do corpo e às sensações, e são experiências não rememoráveis, pois não podem constituir-se em lembranças - mas podem retornar na alucinação. Essas experiências traumáticas não integradas vão também ser encontradas na linguagem do ato e do corpo, isto é, nas formas de linguagem concomitantes a sua inscrição na psique, antes da linguagem verbal, segundo Freud.

No entanto, os traumatismos não dizem respeito somente às experiências precoces. Roussillon (2017) acrescenta que podem ser também experiências mais tardias, mas que apresentam as mesmas características das experiências precoces. Como diz Winnicott, o sujeito se retira da experiência para não vivenciá-la, e essa experiência não é integrada, transformada, nem subjetivada. Winnicott abriu caminho para uma forma de clivagem em que o sujeito se retira de sua subjetividade para não sentir terrores extremos e destrutivos, as agonias primitivas.

O comentário clínico que apresentaremos adiante desenvolverá, em especial, essa concepção do arcaico enquanto retorno de traços perceptivos com ausência ou apagamento do sujeito.

Inflexões epistemológicas pós-freudianas

A revolução epistemológica da qual é testemunha a introdução, pelos analistas contemporâneos, dos conceitos relativos às formas primárias de simbolização deve ser contextualizada com a evolução do conceito de fantasmas originários. Estes correspondem a questões sobre a origem, a origem do sujeito na cena primitiva, a origem da sexualidade nos fantasmas de sedução, a origem da diferença dos sexos nos fantasmas de castração; não remetem a uma temporalidade da origem, mas a uma dimensão estrutural, como organizadores da vida fantasmática. Quaisquer que sejam as experiências pessoais dos sujeitos, são estruturas fantasmáticas típicas.

Laplanche e Pontalis, em Fantasma originário, fantasma das origens, origem do fantasma (1985), introduzem a ideia fundamental de que o fantasma originário não é o objeto do desejo, mas a colocação em cena do desejo, na qual o sujeito pode aparecer sob uma forma não subjetivada. Essa releitura por Laplanche e Pontalis da noção de fantasma originário foi uma das etapas importantes de uma inflexão epistemológica nos anos 1970/1980, em que os psicanalistas passaram de uma psicanálise centrada nos conteúdos, como os das fantasmas originários, para uma psicanálise centrada nos processos, aqueles que dão forma às representações, e também na questão da metarrepre-sentação, da representação da representação, introduzida em 1973 por Donnet e Green, os quais se basearam muito em Bion como teórico dos processos, com sua teoria do pensamento.

Passa-se de uma psicanálise concebida como tomada de consciência do inconsciente para uma psicanálise centrada nos processos de subjetivação: "Wo es war, soll ich werden". Roussillon2 introduz uma diferença entre a metarre-presentação primária e a metarrepresentação secundária com a reconceitualização da teoria do médium maleável, entendido como uma representação da representação de coisa. Isso supõe uma coexistência da percepção e da alucinação, com a problemática do encontrado/criado abordada por Winnicott. De modo geral, os teóricos das diferentes formas de formas primárias de simbolização abrem, então, uma metapsicologia dos processos, processos de ligação, de transformação, de metabolização, que não buscam conteúdos originários considerados últimos, mas visam a apreender a dinâmica da emergência das representações, com o fato central de levar em conta o registro da sensório-motricidade. Na simbolização primária de Roussillon (2001), definida como ligação entre traços perceptivos e representações de coisa, coloca-se a questão do status da sensório-motricidade, que é igualmente pulsionalidade, pois o id põe em jogo a pulsão que investe os traços perceptivos. Assim, o traço também tem uma exigência de trabalho psíquico, pois ele é pulsionalizado; o id com a pulsão reinveste traços, como veremos na apresentação clínica.

Em 1975, com a publicação de A violência da interpretação, as contribuições de Castoriadis-Aulagnier renovam a concepção do originário. Ela introduz a ideia de um originário longe de qualquer diferenciação entre psique e soma, da mesma forma que entre espaço interno e espaço externo. O pictograma concebido pela autora caracteriza-se, de fato, por uma indis-sociabilidade entre espaço corporal, espaço psíquico e espaço exterior. Esse pictograma apresenta-se, portanto, sob a forma de uma sensação alucinada. No originário, o sujeito é autoengendrado: ele se torna "pura sonoridade", "luz brilhante", "superfície acariciada", mas também sonoridade, luz, experimento tátil. "Ele é esse ruído, esse odor, essa sensação. Ele é apenas isso, e isso é tudo" (Castoriadis-Aulagnier, 1986, p. 398). Esse processo originário se enraíza em uma modalidade de funcionamento segundo a qual o corpo e a atividade sensorial condicionam a emergência das representações. O originário não se confunde com a origem; ele coexiste com dois outros modos de funcionamento da atividade psíquica, o processo primário e o secundário.

Este artigo se limita à evocação do originário de Castoriadis-Aulagnier, mas reunimos em outra obra, sob o título de Formas primárias de simbolização (Brun & Roussillon, 2014), as principais concepções contemporâneas sobre esses conceitos.

A clínica permitirá esclarecer os pontos em comum entre as formas primárias de simbolização.

 

Quadro analítico e modalidades interpretativas específicas

Vou descrever um paciente de cerca de 30 anos, o Sr. A. Ele se apresenta anunciando que é hemofílico e que adquiriu o vírus da aids por transfusão de sangue, quando era criança, por volta dos 7 anos. Não lhe contaram isso na época; ele descobriu muito mais tarde. Além disso, teve um câncer, "um Hodgkin", há 10 anos, do qual se curou. Sua mãe partiu quando ele tinha 7 anos (não se lembra muito bem).

Repentinamente, não a vimos mais. Sem notícias durante 16, 18 anos, quando ela então fez contato. Meu pai estava triste, mas depois retomou a vida. Eu não me lembro de ter ficado triste. Estava habituado à vida com meu pai. Fui uma criança feliz. Meu pai depois estava em boas condições físicas.

Com o status de handicap, o Sr. A trabalha como funcionário público e, paralelamente, prossegue estudos de alto nível. Após o término de um relacionamento, ele chega com a questão de saber por que põe fim a todas as suas histórias de amor. No início, só quer uma sessão. Eu lhe proponho começar face a face, com duas sessões semanais, deixando claro que poderemos voltar a falar da análise com três sessões, e a análise se inicia um ano mais tarde.

RepresentAção3

Dois meses depois do início de sua terapia face a face, numa sessão de tom muito sombrio, ele se representa como um "cadáver que vai contaminar a terra"; diz que é proibido enterrar as pessoas que têm aids, pois podem contaminar tudo, inclusive a terra, e isso pode trazer prejuízos consideráveis. Ele corre o risco de contaminar todas as suas companheiras, sendo a aids um veneno que se transmite, e mesmo morto ele será sempre muito perigoso com seu cadáver, já que o vírus se espalha pela terra toda, sob todas as formas. "Sou um dejeto. Seria preciso trancar os cadáveres com aids em contêineres, como os dejetos radioativos."

Essa sessão me impressiona demasiadamente. Sinto-me contaminada pelo desespero e pelo horror que ele exprime, invadida por suas imagens de forte potencial alucinatório. Minha contratransferência se manifesta pela perda das anotações dessa sessão.

Na sessão seguinte, no início de novembro, ele me anuncia que acaba de decidir partir sozinho, no Natal, para um destino muito longínquo. Ele comprou as passagens e vai viajar durante 15 dias. É sua maneira de desafiar o destino, salienta. Fico estupefata diante dos riscos que ele assume, ele que está à mercê de sua hemofilia (com seus hematomas, suas compressas, seus sangramentos, seus problemas de próteses...), e intervenho somente na sessão que se segue ao anúncio da decisão:

AB: Observei que você tomou essa decisão repentinamente, após a sessão em que falou da morte, de seu cadáver e da contaminação da terra toda.

SR. A: Ah, não fiz a ligação. Mas, se você fez, é que há alguma coisa. Era sombrio, muito sombrio... É verdade, a morte.

AB: Você falou da morte, da contaminação, e logo em seguida decidiu partir para bem longe de sua sessão, de sua analista. Talvez tenha tido medo de me contaminar também?

Inicialmente, fica surpreso com essa pergunta. Nas sessões seguintes, porém, volta várias vezes a essa interpretação, que é mais uma interpretação,4 e a associa a sua certeza, quando era pequeno, de que a mãe tinha fugido por medo de sua aids. Eu interpretei, então, a reviravolta entre passivo e ativo: agora é ele quem foge, e justamente uma semana antes de minhas próprias férias de Natal.

Intervenho nessa sequência depois da análise de minhas vivências contratransferenciais, tão aterrorizantes que acabo por não saber onde colo-quei minhas anotações, dominada, eu mesma, por um acting de apagamento. Portanto, eu apago, eu o perco como sua mãe o abandonou, de repente. Percebi, com isso, seu terror inconsciente de me contaminar e a ligação que fará, nas sessões seguintes, entre ele mesmo e a partida inesperada da mãe.

Aliás, nos primeiros meses de terapia, ele não para de esquecer as sessões. Evoca sua "memória de peixe-vermelho", "um buraco na raquete". Digo que ele me faz viver desaparecimentos súbitos, e ele associa: "Desaparecimento, é isso, mas isso me faz pensar em minha mãe. Ela desapareceu assim, repentinamente. Não sabíamos onde ela estava. Mais tarde soubemos". Ele começa a se lembrar, pouco a pouco, por fragmentos, de cenas concretas ligadas à partida da mãe, que até esse momento ele tinha apagado (no início, o Sr. A me disse que não tinha lembranças da infância).

Em outras palavras, o agir intervém antes do retorno de lembranças apagadas. É minha contratransferência, com uma parte do próprio agir, que me põe na pista. Minha intervenção consiste em liberar uma representação, segundo o termo de Jean-Didier Vincent, ao qual Roussillon (2001) dá outro significado: representação ativada de modo alucinatório, com ação motora; ativação alucinatória de uma representação, que confere a esta uma equivalência do ato (uma das formas primárias de simbolização), numa ligação específica com o Agieren. Assim, o Agieren de meu paciente conta - bem antes de ele poder apresentar isto em palavras - o desaparecimento súbito da mãe, que seu fio associativo relaciona à questão da contaminação. Trata-se, de certo modo, de uma identificação com a mãe, cuja fuga súbita ele reproduz, exatamente quando é confrontado, no início do tratamento, com uma transferência materna.

Aqui, o acting do Sr. A, que parte repentinamente para longe da analista, corresponde à ativação alucinatória subjacente de traços perceptivos em torno da partida da mãe do paciente, associada à ideia de contaminação. É minha intervenção, na transferência, que confere um sentido a sua ação motora, à qual dou um valor de mensagem. É, de certo modo, uma interpretação (Prat & Israël, 2007). Melhor dizendo, a mensagem não era consciente, não adveio; foi minha interpretação que deu forma figurativa a essa representação de uma partida ligada à ideia de contaminação. Essa interpretação mostra-se como o preâmbulo do retorno fragmentado de lembranças esquecidas. Resumindo: é antes de tudo uma forma primária de simbolização, que dá início, em seguida, a uma possível figuração - uma figuração cênica, segundo a expressão de Castoriadis-Aulagnier (1986).

Do corpo de dor aos sonhos: importância dos significantes formais

Embora o Sr. A tenha me garantido, na primeira sessão, que era uma criança feliz, ao longo da terapia aparece, progressivamente, uma versão muito diferente de sua história, menos sob a forma de narrativa organizada, e mais sob a forma de impressões corporais, de vivências cenestésicas, cinestésicas, proprioceptivas.

Ele descreve seus berros de criança, o fato de que sempre lhe davam injeções, de que não podia se mexer e tinha de esperar que a perfusão passasse. Ele volta regularmente ao medo de se esvair em sangue (o sangue, em geral, na urina), a seus inchaços, ao medo, quando criança, de que sua cabeça explodisse no caso de um trauma craniano, a seu corpo de dor, com próteses que vão "se desfiar" e "isso será insubstituível"

Essas vivências corporais encontram-se em seus primeiros sonhos - raros no primeiro ano de trabalho face a face, mais frequentes em seguida - durante a análise. Eles aparecem após seis meses de terapia. Seu primeiro sonho: "Eu sonhei que era invisível. Eu via o resto a minha volta. Estava elétrico, como que crepitante. Ouvia o ruído das crepitações".

Depois, outro sonho em duas partes: "Era durante uma operação. Meu coração estava rasgado e minhas artérias jorravam, cheias de sangue". Em seguida: "Primeiro, estou com uma moça bonita. Eu me desloco até uma igreja branca com uma capelinha. É um crematório. ... Há um carro. Tinham tirado a bateria"

Mais tarde, sonha com ataques de zumbis:

Numa espécie de aldeia, em noite de lua cheia, há uma casa antiga, 1900, com o piso de terra batida, iluminada com lampiões. É uma festa entre vernissage e reunião de família. É muito vivo. ... Meu bisavô e minha bisavó também estão ali, diante de uma porta de madeira. Minha bisavó não pode mover as pernas e precisa de uma rampa de acesso. Eu manipulo essa rampa, mas ela se prende, e minha bisavó e eu vamos parar no chão. Tento subir a rampa novamente, mas aí chegam montes de zumbis. Estou acuado. Vou ser comido por eles.

Esses sonhos se articulam em torno de formas primárias de simbolização profundamente ancoradas em sua vivência corporal. Primeiro, um pictogra-ma, o pictograma engolindo/engolido com os zumbis, e significantes formais no sentido de Anzieu (1987): isto pica, isto jorra, isto explode, isto se difunde, isto desaparece, isto crepita (dejeto radioativo), isto cai, isto desaba, isto se arranca, isto se rasga... São, segundo Anzieu, sensações de movimento e de transformação, com imagens proprioceptivas, táteis, cenestésicas, cinestésicas, posturais e de equilíbrio. Essas sensações assaltam, perseguem o paciente e são sentidas pelo sujeito como estranhas a ele próprio. Daí as formulações com isto: elas correspondem a deformações do envelope psíquico. O desafio dos significantes formais, segundo Anzieu, é uma luta pela sobrevivência psíquica.

Sem detalhar o trabalho em torno desses sonhos, lembro simplesmente a maneira como uma interpretação sob a forma de significantes formais desencadeia a associatividade do paciente. Por exemplo, eu digo "Tornar-se invisível, sem corpo?" - o infinitivo exprime também o significante formal -, e o paciente associa com o sonho de cortar seu corpo de sua cabeça para não sentir mais a dor; ou "Isto crepita", e ele continua associando sobre seu corpo elétrico, crepitando com as próteses. De maneira semelhante ao Exterminador,5 ele vive como um homem-robô: todas as peças são intercambiáveis. Ele viu "um homem biônico que corre mais rápido com suas próteses" Retomo, em seguida, "a rampa se prende e cai" e ele fala dos avós, os quais ele se acusa de ter deixado para trás quando era adolescente. Em filigrana, é claro, suas vivências de desabamento, com o abandono da mãe, correlato a seu desabamento somático.

Desse modo, seu corpo se põe pouco a pouco em história, e as vivências de dor reanimam cenas de criança, odores de hospital, terrores ao cair da noite, a aspereza dos lençóis, os ruídos e "o mais duro, ouvir o choro de outras crianças". Ele fala das crianças-bolhas, sem cabelo. Evoca com frequência o sonho de anestesiar a dor. Geralmente, deve "picar-se" para acalmar a dor, e ressalta que, por anos, foi "hiperanastesiado pela tv", a que ele assistia sem parar durante as hospitalizações porque lhe permitia não pensar.

Ele se anestesia também para não sentir, processo que remete a uma co-alescência entre afeto e representação (Castoriadis-Aulagnier, 1975), ou a uma indiscriminação entre afeto e representação (Green, 1999), e que acompanha geralmente as formas primárias de simbolização. O trabalho no tratamento foi também a composição dos afetos para esse paciente.

Branco e caderno branco

No centro da análise, o caderno branco de seu pai. Ele se lembra do pai escrevendo tudo num caderno quando ele era hospitalizado, a intervalos regulares, para as transfusões, "tudo o que os médicos diziam', e de seu desencanto quando viu, adolescente, que não havia quase nada escrito nesse caderno, que seu pai o havia feito "para disfarçar a insegurança".

SR. A: Talvez seja por isso que estou aqui, fazendo análise.

AB: Escrever sua história ali onde havia espaços em branco?

SR. A: É por isso que eu queria me tornar enciclopedista. Não há espaços em branco numa enciclopédia, nenhum buraco. ... Isso me faz pensar nos buracos das injeções...

AB: Buracos na pele.

SR. A: Sim, estou feliz com minha análise, porque falo outra vez de tudo isso.

Desenha-se aí a ideia de que ele faz uma análise para preencher os buracos do caderno do pai, encontrar uma continuidade em sua história e reconstituir um envelope sem buracos na pele: os significantes formais isto esburaca e isto penetra aparecem numa indissociabilidade entre psique e soma, típica das formas primárias de simbolização. Emergem também outros significantes formais, como isto se apaga e isto desaparece, com uma materialização de seu desaparecimento como sujeito no médium maleável do caderno do pai. Ele sonha com frequência, em análise, que eu possa escrever sua história.

Um momento forte da análise será, após dois anos, sua aceitação de me pagar no fim da semana, e não a cada sessão. Ele me dizia pensar que ele podia desaparecer do dia para a noite, como sua mãe, que não queria dever nada a ninguém e que, portanto, gostaria de pagar após cada sessão. Sua mudança de modo de pagamento correspondeu à instauração, enfim, para ele, de uma continuidade sem ruptura, com a certeza de me encontrar de novo depois de suas ausências, geralmente hospitalizações inesperadas. "Pagar todas as semanas, isso me abre o campo dos possíveis" - aí ainda uma interpret ação de Agieren construída em conjunto.

Urdir os significantes formais

Nessa época, sinto-me tanto numa posição de confiança muito forte na análise, em parte sem dúvida porque o Sr. A mobiliza um fantasma de triunfo, de que é possível vencer a doença, o sofrimento físico e a morte, quanto desencorajada, arrastada para a catástrofe, especialmente com suas inúmeras sequências imprevisíveis de licenças médicas, ligadas à hemofilia. Vivi também certas sessões sob o modo da transfusão. O que ele me transfunde,6 então, é um sentimento de impotência e de petrificação. Assim, sinto-me condenada a experimentar a angústia da qual ele se protege. Eu lhe explicito "não sentir para sobreviver" e, às vezes, questiono-me sobre um trabalho analítico que poderia mergulhá-lo ainda mais na angústia.

Progressivamente, eu me dou conta de que compartilho com o Sr. A determinados significantes formais, que contaminam meus processos de pensamento e minhas vivências emocionais, como, segundo a situação, isto se aproxima/isto se afasta, isto se difunde, isto se apaga, isto penetra, isto irrompe, isto invade, isto grita sem som, isto se dispersa... Às vezes, encontro-os também na dificuldade de organizar meu pensamento, em fazer minhas anotações, em suportar suas imagens violentas de corpo aplainado, desarticulado, rearticulado, que sangra, entre homem e máquina. Por exemplo: "Se eu tiver um acidente de carro, as próteses me subirão à garganta com o airbag, serei comprimido e haverá rupturas".

Encontro nessa experiência o que propus chamar (Brun, 2015), no contexto de uma clínica de mediações terapêuticas, de significantes formais compartilhados de modo indistinto entre corpos e pensamentos, vivências corporais e psíquicas ao mesmo tempo, que aparecem sob a forma de sensações alucinadas. A tomada de consciência dessas impressões somatopsíquicas permite levar à figuração, primeiro na psique do analista, depois na dinâmica da análise, essas mensagens sensório-motoras que remetem geralmente a vivências de agonia primitiva (Winnicott, 1975).

Retorno de lembranças de infância: das sensações às imagens/lembranças

Evocarei apenas o fato de que a dinâmica da análise se caracterizou por uma transformação progressiva das impressões corporais em figuração, em imagens, em lembranças que afluem, a qual foi acompanhada por um enraizamento das lembranças no sensorial e nas emoções.

Por ocasião de uma sessão em que se lembrou de seu desejo, novo, de reformar um terreno que herdara em sua região de origem e que estava abandonado, e de sua paixão pelas árvores, cujas raízes ele descrevia, eu introduzi um jogo da palavra raiz com suas origens. Ele o desenvolve ao longo das sessões, dizendo, por exemplo, que com a análise lembra, de modo muito sensorial, os porões dos avós, "os odores, odor de gengibre, de madeira velha, de uva, o ruído da fechadura, o frescor, o bem-estar". Ele sonha em reconstruir, em seu terreno, barracões como os dos avós.

Então voltam, pela primeira vez, lembranças de momentos felizes nesse terreno com um barracão, churrascos em família, momentos alegres, todos reunidos. Eu o faço observar que ele se lembra, a partir de agora, dos momentos de felicidade em criança, o que não acontecia antes, "como se o fato de sua mãe ter partido tivesse jogado uma sombra sobre tudo o que havia antes". Ele diz que contar todas essas lembranças ruins o libertou e que agora pode rever esses momentos de felicidade, o que consegue com a análise.

Ele evoca muito os projetos de reforma do terreno nos meses que precedem o fim da análise, antes de seu retorno ao sul da França. Reaparecem, então, lembranças de infância em torno da terra e da ideia de desenvolver suas raízes. Pela primeira vez, conta que cozinhava terra e água, que amava quando isso se transformava, que gosta do trabalho com terra cozida, a cerâmica.

SR. A: Meus avós tinham um pedaço de terra. Éramos felizes em família, antes da partida de minha mãe. Meu avô e meu pai construíam a casa. Adoro plantar árvores, mas não sei plantar uma árvore que não seja alimentícia.

AB: Nada de árvores que não deem nada em torno delas, um pouco como sua mãe, que o abandonou sozinho, sem alguém que cuidasse de você.

SR. A: Sim, é simbólico.

Ele associa sobre seu projeto de plantar cana-de-açúcar. Tem vontade de se projetar no tempo: ele teria açúcar dali a 20 anos... "O que me agrada é transformar a matéria. Gosto de destilar a batata para fazer vodca. Se isso funcionar, poderei comprar outras terras... Começar com um pequeno terreno e o transformar numa terra símbolo de riqueza."

SR. A: Nesta análise, o que eu vim buscar são minhas raízes.

AB: O que é singular é que, de certa maneira, você ficou sem raízes com a partida de sua mãe.

SR. A: ... Quero semear novamente a terra, para que ela seja capaz de alimentar. É meu ideal de castelão com um terreno, um jardim.

AB: A terra-mãe nutriz.

SR. A: Efetivamente, minha mãe nutriz, ou melhor, minha avó materna, mais nutriz que minha mãe. [Ele continua falando de seu projeto de pôr no terreno uma cerca de plantas com espinhos.]

Parece-me que essa nova evocação da maleabilidade da terra e de seu gosto por massagear e modelar a terra, quando era pequeno, se associa com (e metaforiza) seu trabalho de análise, no qual ele esculpe de modo metafórico uma terra que se tornou maleável. Encontra-se aí a ligação subjacente com seu desejo de ter uma ação possível sobre o ambiente, de poder modelá-lo, transformá-lo, ele a quem tudo escapou, que com frequência passa por vivências de impotência e que foi confrontado com um ambiente que fugiu dele (sua mãe) ou rígido (sua avó). Não traduzo, evidentemente, suas metáforas, mas o acompanho nessa nova evocação de lembranças sensoriais. Está aí, em essência, um trabalho de ligação entre as sensações, as lembranças sensoriais e o retorno das imagens/lembranças.

Na sessão seguinte, ele evoca sua impressão de fazer os outros pagar pelo que sofreu na infância. Ele faz seus colegas pagar pelas zombarias, por seu sentimento de vergonha e de fraqueza quando era pequeno.

AB: Que minha vergonha e minha fraqueza se tornem minha liberdade e minha força! [Formulação baseada, é claro, no modelo do famoso "Que meu mal seja meu bem!", de Ricardo iii, de Shakespeare.

SR. A: Ah, vocês se sentiam fortes e inteligentes. Hoje sou eu quem é forte e inteligente! Mas me sinto tão mais sereno, mais livre! ... Eu era como um vírus. Penso na aids, que é representada pelas árvores com espinhos. Tratamos desse assunto. Tenho raiva do governo por me ter transmitido a aids. Ainda estou aqui. Queria processar o governo no lugar do processo que não pude abrir contra minha mãe. Considero o sistema injusto. [Ele retoma uma interpretação que eu lhe tinha apresentado a respeito de um processo que ele queria começar contra o governo de sua região, interpretação que pôs fim a essa ideia de processo.

AB: Você evoca um vírus com espinhos. Você falou muito, da última vez, que era preciso plantar espinhos em torno de sua propriedade. Você se torna espinhoso para se proteger de ser picado.

SR. A: É claro, fui atacado, picado... Esta manhã me fizeram uma densitometria. Tive outra vez as sensações do hospital.

Vemos como se desenvolve uma constelação associativa em torno do significante formal isto pica, no que diz respeito à apropriação subjetiva: tenho espinhos e compreendo por que eu picava, por que eu fazia mal a minhas companheiras; eu lhes infligia meus sofrimentos e me sentia no direito de fazê-lo porque sou - como ele dizia com frequência - uma exceção!

Esse tratamento está terminado. Ele adquiriu, parece-me, durante o processo, o senso de continuidade, algo primordial e que se manifesta de múltiplas maneiras no fim, assim como um verdadeiro prazer em pensar, em sentir, em lembrar-se das emoções sem ser destruído por isso - em resumo, em apropriar-se progressivamente de sua história e experimentar, pouco a pouco, o prazer de se tornar o seu sujeito. Ele também tornou suas defesas mais maleáveis, para poder sobreviver, e conseguiu, aos poucos, compor seus afetos no vínculo com a analista, em vez de ficar sobrecarregado com eles e/ou ficar na impossibilidade de senti-los.

Outro aspecto essencial: ele pôde, em parte, enfrentar e conviver melhor com seu ódio, com seu desejo de vingança, com sua busca da exceção. Ele adquiriu a possibilidade de certa reflexividade em relação a seu handicap, especialmente sobre a justificativa da dor que ele pode causar em seus próximos pela amplitude de seus sofrimentos. Com isso, ao longo do tratamento, pouco a pouco, ele equilibrou melhor sua oscilação entre o sentimento de tudo poder e o de impotência, e atualizou melhor, na realidade quotidiana do trabalho, dos estudos, da vida com M, suas aspirações à exceção, em parte remodeladas e ajustadas à realidade.

 

Pontos em comum com as formas primárias de simbolização

Para resumir, propomos definir os pontos em comum entre as diferentes formas primárias de simbolização em quatro características.

1. Retraimento do sujeito: as formas primárias de simbolização não são fantasmas, mas impressões corporais, sem distinção entre o sujeito e o espaço exterior. A forma é sentida como estranha, o que implica uma formulação sem sujeito humano. É uma ação que se desenrola num espaço bidimensional, sem espectador, diferentemente da ação do fantasma, que se desenrola num espaço em três dimensões.

2. Papel central da alucinação ou forma alucinatória: as formas primárias de simbolização se impõem como uma vivência alucinatória e correspondem a uma sensação de movimento e de transformação. São sensações alucinadas.

3. Articulação com as vivências sensório-motoras primitivas, em ligação com o objeto: as formas primárias de simbolização remetem à articulação dos elementos sensoriais primitivos do bebê com seus objetos primeiros. Stern (1985/1989) designa como coreografia primeira o ajuste dos gestos, das posturas, das mímicas entre a criança e seu objeto primeiro. É a harmonização com o ambiente que permite ao bebê ter acesso às primeiras formas de simbolização.

Assim, o destino dos elementos sensoriais primitivos depende da resposta do ambiente, que permitirá, se ele for suficientemente bom, a emergência de formas primárias de simbolização. No caso contrário, com falhas no ambiente primário, os elementos sensoriais não se organizarão e perderão sua virtualidade simbolizante.

4. Formas primárias de simbolização pré-verbais, inscrição na linguagem corporal, linguagem sensório-motora e linguagem do afeto: as formas primárias de simbolização instalam-se antes do advento da linguagem verbal. Elas não podem se inscrever no aparelho da linguagem, mas permanecem sob a forma de traços perceptivos e exprimem-se em outros tipos de linguagem, além da verbal. Elas reaparecem na linguagem da época em que se inscreveram, em linguagem corporal e do ato. São especialmente solicitadas nas formas-limite e extremas da psicopatologia.

Desse modo, as formas primárias de simbolização são particularmente solicitadas nas clínicas que têm origem em situações-limite e extremas da subjetividade, que necessitam levar em conta formas de linguagem sensório-motoras e respostas terapêuticas que integrem essas formas de linguagem sensório-motoras, melhor dizendo, modalidades de interpretação do corpo e da sensório-motricidade.

Considerar a questão da escuta e da sensório-motricidade na sessão permite urdir a vida sensorial numa figuração, na linguagem pictural do analista, que possibilita transformar os traços perceptivo-sensoriais brutos em figuração. A especificidade de uma escuta analítica das formas primárias da simbolização consiste em construir cenas evocatórias da ligação com o objeto, a partir da reatualização de sensações alucinadas no paciente.

Portanto, nesse tipo de interpretação, não se trata, em primeiro lugar, de buscar uma representação perdida, recalcada, latente, mas uma representação não apreensível, inacabada, não subjetivada, com modalidades interpretativas baseadas em formas sensório-motoras de simbolização, a fim de permitir uma apropriação subjetiva dos processos de representação.

 

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Correspondência:
Anne Brun
5 avenue Pierre Mendès-France
CP 11 - 69676 Bron Cedex
Tel.: 04 78 77 24 90
annebrunlyon@orange.fr

Recebido em 21/5/2018
Aceito em 4/6/2018

 

 

1 Para uma síntese dessa questão, conferir Roussillon (2013a).
2 NT: no original, représentaction, unindo os termos représentation e action.
3 NT: no original, interprétaction, unindo os termos interprétation e action.
4 NT: personagem interpretado por Arnold Schwarzenegger no filme O exterminador do futuro (Cameron, 1984).
5 NT: o termo transfunde é empregado aqui com sentido de "transfere".

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