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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.1 São Paulo jan./mar. 2019

 

ÓDIO

 

Da fragilização dos vínculos ao retorno do mito: algumas reflexões sobre a psicologia de grupo de Freud, a democracia e a eleição de Jair Bolsonaro

 

From bond weakening to the return of myth: Some reflections on Freud's group psychology, democracy, and the election of Jair Bolsonaro

 

De la fragilización de los vínculos al retorno del mito: algunas reflexiones sobre la psicología de grupo de Freud, la democracia y la elección de Jair Bolsonaro

 

De la fragilisation des liens au retour du mythe - quelques réflexions sur la psychologie des groupes de Freud, la démocratie et l'élection de Jair Bolsonaro

 

 

Gustavo Dean Gomes

Psicanalista. Mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor do Centro de Estudos Psicanalíticos de São Paulo. Membro do Grupo de Estudos Sándor Ferenczi e da Sándor Ferenczi International Network. Advogado pela PUC-SP. Especialista em direito tributário pela Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão (Cogeae) da PUC-SP

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo procura compreender a eleição de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil utilizando a teoria psicanalítica, especialmente os estudos de Sigmund Freud sobre a psicologia das massas, em conjunto com elementos da teoria jurídica (especialmente a partir de Hans Kelsen) e da teoria da comunicação. Nossa hipótese é que a escolha de Bolsonaro, um político que durante sua vida pública mostrou-se em constante confronto com o pensamento democrático, está relacionada a uma concepção onipotente de grupalidade que aparece como resposta à fragilização da vinculação social e afetiva entre componentes da sociedade brasileira. Por sua vez, essa fragilização surgiria a partir do conhecimento público do que foi apurado pela Operação Lava Jato e, especialmente, a partir de como essa investigação foi tratada pelos formadores de opinião, desde as tradicionais empresas de comunicação até as redes sociais.

Palavras-chave: psicanálise, democracia, Bolsonaro, Freud, Kelsen


ABSTRACT

The aim of this article was to interpret the election of Jair Bolsonaro to the presidency of Brazil. To this end, the psychoanalytic theory was adopted, with a focus on Sigmund Freud's studies on the psychology of the masses, together with elements of the Theory of Law (drawing predominantly on Hans Kelsen's conception of democracy) and Communication Theory. Our hypothesis is that the choice of Bolsonaro, a politician who has consistently challenged democratic thought throughout his public life, relates to an omnipotent conception of grouphood arising as a response to the weakening of social and affective bonds among members of Brazilian society-a weakening stemming from public knowledge of the findings of the Operação Lava-Jato criminal investigations and, more importantly, from the manner these investigations were met by opinion makers, ranging from traditional communication enterprises to social networks.

Keywords: Psychoanalysis, democracy, Bolsonaro, Freud, Kelsen


RESUMEN

Este artículo es un intento de comprender la elección de Jair Bolsonaro a la presidencia de Brasil, utilizando la teoría psicoanalítica, especialmente los estudios de Sigmund Freud sobre la psicología de las masas, e conjunto con elementos de la Teoría Jurídica (especialmente a partir de las concepciones de Hans Kelsen a respeto de la democracia) y de la Teoría de la Comunicación. Nuestra hipótesis es que la elección de Bolsonaro, un político que se mostró en constante confrontación con el pensamiento democrático durante su vida pública, está relacionado a una concepción omnipotente de grupalidad que surge como respuesta a la fragilización de la vinculación social y afectiva entre los componentes de la sociedad brasileña. Por su parte, esa fragilidad surgiría a partir del conocimiento público de lo que fue investigado por la operación "Lava-Jato" y, especialmente, a partir de la forma en que esas investigaciones fueron tratadas por los formadores de opinión, desde los tradicionales grupos de comunicación hasta las redes sociales.

Palabras clave: Psicoanálisis, democracia, Bolsonaro, Freud, Kelsen


RÉSUMÉ

Cet article cherche à comprendre l'élection de Jair Bolsonaro à la présidence du Brésil, en utilisant la théorie psychanalytique, en particulier les études de Sigmund Freud sur la psychologie des masses, auxquelles s'ajoutent des éléments de la théorie juridique (notamment la conception de Hans Kelsen sur la démocratie) et de la Théorie de la Communication. Notre hypothèse est que le fait de choisir Bolsonaro, un homme politique qui au cours de sa vie publique s'est constamment opposé à la pensée démocratique, est lié à une conception toute-puissante de la formation de groupes qui surgit comme réponse à la fragilisation des liens sociaux et affectifs entre les composants de la société brésilienne. À son tour, cette fragilisation est née à partir du moment où tout ce que l'opération Lava-Jato a découvert est devenu publique et, en spécial, à partir de la manière comme ces enquêtes ont été traitées par ceux qui agissent sur l'opinion, des groupes traditionnels de communication jusqu'aux réseaux sociaux.

Mots-clés: Psychanalyse, démocratie, Bolsonaro, Freud, Kelsen


 

 

1. Introdução

Era junho de 2013. Ao fim de uma reunião, um colega me convidou para uma manifestação que ocorreria perto de nossos consultórios. Declinei. Ainda assim, fui envolvido pelos acontecimentos. Quando alcancei a Avenida Paulista, percebi uma movimentação diferente. Não havia carros. Ela estava fechada e as pessoas caminhavam a pé. Também não havia muitos dos sinais de protesto a que estamos habituados. Nada de camisetas de sindicatos. Algumas poucas bandeiras vermelhas se misturavam a uma paisagem, até então, infrequente nesse cenário, que incluía desde trabalhadores em trajes sociais até adolescentes com roupas descontraídas, skates e bicicletas.

Desde então, passaram-se duas eleições presidenciais, uma eleição municipal, um processo de impeachment e uma investigação bastante representativa das relações ilícitas de funcionários do governo, empresas públicas, partidos e políticos com empresários, doleiros e outros membros da sociedade civil. Todo esse movimento foi acompanhado por um contingente crescente de insatisfação social, que culminou, na eleição de 2018, com a escolha de Jair Bolsonaro para o posto de mandatário máximo do Brasil.

Em vista da transição para o governo eleito, é extremamente oportuna a iniciativa da Revista Brasileira de Psicanálise de discutir o tema do ódio e as ameaças à democracia. Não foram poucos os que viram na eleição de Jair Bolsonaro o fim do ciclo iniciado com a Nova República, em que a presidência foi disputada predominantemente por candidatos do pt e do psdb. Esse traço torna o processo eleitoral do último ano invulgar, merecendo atenção especial de todos os que se interessam por refletir acerca dos destinos políticos e sociais do país.

Antes de ingressar em nossas hipóteses, vale fazer alguns alertas ao leitor, especialmente em tempos de acentuada polaridade. Nossas observações sobre o ideário bolsonarista de forma alguma devem ser compreendidas como elogio a um partido ou candidato diverso. Além disso, em nossa concepção, nem todo sufragista de Bolsonaro é um bolsonarista. Tal correlação nos parece a simplificação de um processo complexo, que é a escolha do candidato num âmbito eleitoral. A maneira de situar-se emocional e discursivamente diante dos atores políticos - a possibilidade de crítica e consideração de opiniões divergentes - mostra-se bastante significativa para determinar o grau de paixão que informa a relação entre um cidadão (ou grupo) e seu sufragado.

 

2. As narrativas sobre a crise institucional e a fragilização da política

A eleição de Bolsonaro chama a atenção em vários aspectos. Gostaríamos de conduzir esta argumentação refletindo sobre sua figura, formulando hipóteses que auxiliem a compreender como esse personagem, com aproximadamente 30 anos de vida pública, tornou-se, nos anos recentes, apto a representar uma via de mudança ansiada por uma parcela significativa dos cidadãos brasileiros.

Pesquisas divulgadas recentemente mostram que, em maior ou menor medida, eleitores de Bolsonaro afirmam-se desiludidos com o sistema político. Apurou-se que, para tais apoiadores, ele seria o novo, "um outsider e, mais ainda, um antissistema, alguém capaz de enfrentar uma lógica política totalmente corrompida" (Solano, 2019). De um lado, os pecadores. Do outro, um séquito desamparado em busca de um redentor. Certamente há aqui um pensamento pouco complexo, no qual cabe pouca ambivalência, contradição e efetiva humanidade.

Em nossa leitura, a compreensão de como Bolsonaro alçou-se (ou melhor, foi alçado) ao posto de líder com uma missão redentora só é possível pela união do descontentamento que começou a tomar as ruas em 2013 com os efeitos da Operação Lava Jato, deflagrada em 2014, e cuja maior repercussão deu-se apenas após o término do processo eleitoral daquele ano, que reconduziu Dilma Rousseff ao Planalto - eleita, é bom lembrar, sob a sombra de uma crise econômica que se avizinhava, enfaticamente negada em sua campanha, e sob condições de governabilidade um tanto instáveis.

Um olhar otimista poderia interpretar a Operação Lava Jato como um exemplo de maturidade do nosso sistema republicano, tendo levado à justiça agentes públicos e membros da elite econômica para que respondessem por seus supostos malfeitos. Várias críticas são feitas à operação, mas esse não é o ponto aqui. Não nos interessa discutir a condução da investigação no âmbito jurídico, mas seus efeitos sobre o psiquismo social brasileiro, especialmente sua apreciação sobre as instituições democráticas. Acerca desse aspecto, é interessante a leitura oferecida por Daniel Innerarity:

A democracia é um sistema político que gera decepção ... especialmente quando se faz bem. Quando a democracia funciona bem, converte-se num regime de desvendamento, em que se vigia, se mostra, critica, desconfia, protesta e impugna. Ao contrário dos sistemas políticos em que se reprime a dissidência, se obstaculiza a alternativa ou se ocultam os erros, um sistema em que existe liberdade política tem como resultado uma batalha democrática, em virtude da qual o espaço público se enche de coisas negativas . e é conveniente que de tudo isso se saiba retirar as conclusões corretas. (2015/2016, p. 85)

Da mesma maneira que o trabalho de análise só caminha na medida em que conseguimos atravessar nossa imagem narcísica para chegar a alguma transformação subjetiva, também uma investigação que se propõe a revelar os meandros de relações pouco republicanas entre participantes de nosso quadro político-social somente terá sucesso se trouxer à luz aspectos pouco louváveis da nossa vida institucional. Isso não se faz sem algum sofrimento. Além disso, tanto num caso como no outro, é necessária uma enorme capacidade de elaboração para que esse processo consiga vencer resistências sem pôr em risco a própria terapia. Na análise, isso se dá especialmente a partir de um bom manejo transferencial. No caso da Operação Lava Jato, tal elaboração parece-nos intermediada por todos os agentes produtores de discursos que sobre ela se debruçam. Em nossa leitura, é por meio deles que a polarização deve começar a ser estudada. O problema das narrativas.

Segundo nossa percepção, o discurso midiático, apesar de (ou justamente por) mostrar-se mais e mais presente, cada vez menos dá conta da complexidade das situações humanas. A estética truculenta e maniqueísta da retórica bolsonarista já era encontrada nos telejornais vespertinos que cuidam, quase exclusivamente, da cobertura de casos policiais. Enfatizamos aqui tanto o conteúdo quanto a forma com que se constrói a notícia, redundando na espetacularização. Essa abordagem de tom emocional espraiou-se ao longo dos anos, até atingir o noticiário político, no qual superlativos ("o maior caso de corrupção da história política brasileira") ou denominações ofensivas ("petralhas"), independentemente das intenções, contribuíram para aquecer o fogo da discórdia.

Com isso, queremos ressaltar que, em vez da busca pelo debate de valores democráticos e republicanos, optou-se sistematicamente pelo espetáculo e o apelo à crítica fundada em oposições radicais, reforçada pela farta distribuição de notícias falsas nas redes sociais, elegendo-se um outro para representar a vilania que teria atuado ao arrepio da lei e ser alvo do escárnio. Essa alternativa, como bem postula Adriano Charles Cruz, ampliou a crise política:

Em 2016, nos dias de manifestações contrárias ao governo Dilma, as transmissões jornalísticas eram realizadas ao vivo pelas principais emissoras de televisão de rede nacional, além dos sites de notícia. Na condução coercitiva do presidente Lula, os jornais da grande mídia estavam a postos para noticiar a possível prisão do político. Essas estratégias comunicativas intensificaram os movimentos de desconstru-ção política, característica do nosso tempo "líquido-moderno" (Bauman, 2000). Nas inúmeras matérias sobre a corrupção se construíam narrativas antagônicas: num polo estavam os políticos, e no outro a sociedade, vítima da corrupção dos primeiros. (Cruz, s.d., p. 5)

Prossegue o autor salientando, como resultado desse processo, um "tempo de 'jogos de um contra um', em que a pergunta principal ... passou a ser 'Quem vai ganhar?', a binarização da existência leva[ndo] a população a escolher lados e figuras redentoras" (Cruz, s.d., p. 7). Tais observações são confirmadas pelas pesquisas de Esther Solano sobre a apreciação da Operação Lava Jato. A autora afirma que as falas de seus entrevistados refletem um entusiasmo que

é menos do ponto de vista institucional e mais relacionado ao desejo de uma justiça messiânica do inimigo. O juiz Sérgio Moro aparece caracterizado nas entrevistas por conceitos como herói, salvador, alguém que "tem uma tarefa", "é um enviado" e, ainda mais, "vai limpar o Brasil" dos políticos corruptos, que, numa visão moralista e dualista da justiça, representam o mal, o inimigo a ser exterminado. (2019)

Não à toa, Sérgio Moro foi um dos mais festejados personagens a compor o Ministério de Bolsonaro. O personalismo, como demonstraremos melhor adiante, é uma das características de sua eleição. Ele é o mito, uma designação própria de dimensões inéditas no período pós-reabertura. Com isso, não estamos nos esquecendo do enorme apelo popular da figura de Lula, nem de como Collor foi conduzido ao Planalto sob a alcunha de caçador de marajás, nem mesmo de como Dilma, em sua campanha eleitoral, foi incensada como a mãe do PAC. Mas, em nossa leitura, a figura do mito, que surge das ruas e da Internet, remete a algo anterior, a um ser onipotente, capaz de, com sua força e vontade, resolver todos os impasses e incorreções de nosso sistema político, de "mudar tudo o que está aí".

É nesse ponto que a psicanálise começa a auxiliar-nos, fornecendo instrumental para a compreensão do tipo de demanda que resulta na eleição de Bolsonaro e da natureza de relação grupal que lhe é subjacente. Refletiremos, a partir de Freud, acerca da formação das grupalidades. Além disso, pretendemos nos debruçar sobre a passagem do regime de confiança nas instituições para a ideia de restauração do pai onipotente.

 

3. A psicologia das massas: os grupos personalistas e as instituições

Ainda que a psicanálise tenha surgido como um método clínico para o tratamento das neuroses, sua profundidade de compreensão do ser humano permitiu a Freud estendê-la ao entendimento de fenômenos sociais. Demonstrando seu interesse no tema, em 1921 publicou Psicologia das massas e análise do eu, trabalho no qual se dedicou a compreender, a partir da psicanálise e do conceito de libido, o comportamento de agrupamentos humanos.

Nesse texto, há um pressuposto de que as relações de amor constituem "a essência da alma coletiva" (1921/2012, p. 45). Dessa conjectura surgem outras que contribuem para nosso argumento: Freud apresenta a psicologia de grupo ora como uma derivação, ora como o efeito de um rebaixamento das características psicológicas (e mesmo cognitivas) dos indivíduos.

No que concerne a isso, o autor faz uma de suas raras referências à democracia. Tomando como exemplos o exército e a comunidade católica, ele diz que a manutenção do sentimento de igualdade (democracia), necessário para a manutenção do grupo, deriva da percepção - ou da ilusão - de cada um dos liderados de receber o mesmo amor do líder. Essa ligação sustentaria, inclusive, a abdicação de si necessária para que o indivíduo se torne elemento do grupo: ele deve abster-se de seus impulsos de diversas naturezas, até mesmo eróticos e hostis.

Se por um lado Freud ressalta que a ligação se daria a partir de movimentos de vinculação bastante antigos - a identificação e a projeção da onipotência narcísica -, por outro ele questiona se seria possível o indivíduo desenvolver um vínculo semelhante ao que o liga a um líder encarnado com uma ideia, com um princípio ou com instituições em sua dimensão abstrata. O austríaco Hans Kelsen, um dos grandes juristas do século XX e antigo participante da Sociedade Psicanalítica de Viena, diz:

Supondo-se que são corretas as ideias de Freud de que o vínculo social tenha natureza de um laço emocional e sua teoria da estrutura libidinal do grupo e do duplo vínculo dos indivíduos entre si (identificação) e com o líder (substituição do ideal do ego projetado), a questão (crucial para o problema da concepção sociológica do Estado) de saber se o Estado é também grupo psicológico transforma-se na questão de saber se os indivíduos do Estado, ligados pelo Estado e que constituem o Estado, mantêm essa relação dupla, se o Estado considerado como grupo social, como realidade psicossocial, também apresenta essa estrutura libidinal. (1922/2001, p. 322)

Levando em conta o objeto de nossa pesquisa, acrescentaríamos duas outras questões: haveria particularidades que diferenciariam os vínculos com o líder dos vínculos com o Estado (mais especificamente, os preceitos, entidades e órgãos que configuram o Estado Democrático de Direito)? Em caso afirmativo, como se explicaria o deslocamento da libido do investimento de tais instituições para o investimento do líder personalista, e vice-versa?

Quanto à possibilidade de haver um investimento numa abstração semelhante ao que se declina ao líder encarnado, Freud a admite ao afirmar, por exemplo, que as ideias socialistas que agitavam as massas de então poderiam, ocasionalmente, ganhar uma dimensão religiosa - lembremos que um dos grupos que Freud toma como base para seus estudos é o dos cristãos.

Com relação ao ordenamento jurídico, ao Estado e às suas instituições, é importante ressaltar que, em sua descrição, Freud contempla diferentes configurações grupais. Haveria aquelas mais instantâneas e transitórias, não organizadas, que caracterizariam as massas. Haveria também grupos estáveis e organizados, "que tomam corpo nas instituições da sociedade" (Freud, 1921/2012, p. 34). Nas configurações transitórias seria perceptível uma fortíssima tendência de esmaecimento das personalidades em favor da unidade do psiquismo coletivo. Os grupos estáveis, por sua vez, não só oferecem melhores condições de manutenção da autonomia como se alimentam das características dos indivíduos que pertencem a eles.

Na medida em que a singularidade é efêmera no primeiro tipo de grupo, ele deve ser compreendido como a representação de uma condição psicológica bastante inicial e precária e, num paralelo com a psicologia individual e sua psicopatologia, eventualmente como uma regressão. O oposto aconteceria com os grupos estáveis, que privilegiam e se enriquecem com a alteridade. Kelsen (1922/2001), ao ler Freud, não tem dúvidas quanto ao cerne da diferença entre os dois grupos: os organizados assim o são porque, neles, um sistema de normas regula as relações. Passamos, com isso, de uma grupalidade erguida no entorno de um líder para outra, regida por um código simbólico.

Trazendo isso para o nosso caso concreto. Por um lado, a partir das pesquisas mencionadas, notamos que o governo Bolsonaro tem um forte traço personalista, investindo como redentoras tanto a sua figura quanto a de outros membros de seu governo, ou mesmo a de apoiadores sem cargo oficial, mas com notoriedade e influência. Aqui, naturalmente, estamos no âmbito do vínculo com o líder personificado.

Por outro lado, as ideias republicanas e democráticas, impessoais em sua essência, explicitamente resguardadas pelo nosso ordenamento jurídico desde a Constituição Federal, bem como as instituições que dão aplicabilidade e materialidade à lei (e que, conforme destacamos, caíram em considerável descrédito no Brasil recente) constituiriam, com base nas ponderações de Freud, o cerne das grupalidades de caráter perene.

Nesse ponto, já deve estar clara nossa conclusão. Afirmamos antes que a eleição de Bolsonaro se deu por meio da desqualificação das instituições e da política, fortalecendo uma concepção personalista e onipotente de líder. Tal movimento, considerado a partir das concepções freudianas sobre organização grupal, configuraria uma regressão, de um estágio mais próximo de um grupo estável para outro, de natureza personalista, eventual e desorganizada.

Aqui duas observações podem parecer paradoxais. A primeira é que o discurso bolsonarista enfatizaria certas ideias que remeteriam à solidez das instituições e à tradição, reafirmando supostos valores cristãos e familiares. Ocorre, no entanto, que a interpretação dada a esses valores e instituições é legitimada unicamente pelo discurso do líder, ou daqueles que são por ele autorizados. Ou seja, importa menos, para os apoiadores mais apaixonados pela narrativa bolsonarista, a instabilidade das significações ou as diversas interpretações quanto ao que pode ser democracia (ou família, ou cristianismo) do que a concepção do líder sobre o que é democracia etc. Aquele que propõe uma interpretação distinta tende, imediatamente, a ser alvo de ira, na medida em que ameaça a onipotência do líder, o qual por sua vez sustenta a uniformidade do grupo.

O segundo paradoxo estaria no fato de o discurso bolsonarista apresentar-se como conservador e, nesse sentido, tendente mais à estabilidade e ao resguardo da tradição. Devemos observar, no entanto, que o ideário do atual presidente talvez esteja mais próximo do desejo de uma reviravolta, de um retorno ao status quo ante, refletido pelo pensamento reacionário, do que propriamente da cautela que rege o conservadorismo original.1

 

4. Rupturas institucionais e rupturas libidinais

Retomando as ideias de Freud sobre a ordem social, ainda antes de 1921 ele refletiu sobre como se deu a passagem da coletividade fundada no amor/terror inspirado por uma figura tirânica para um novo arranjo, regido pelo primeiro sistema normativo existente segundo ele, o do totem. Foi assim que, em 1913, estabeleceu a intersecção entre o complexo de Édipo e o surgimento da cultura.

Em Totem e tabu, Freud apresentou a ideia de uma origem ancestral do totemismo e da exogamia, baseando-se num mito construído a partir da hipótese de uma horda originária. Segundo essa construção, o pai da horda, que tinha acesso exclusivo às mulheres e mantinha sob seu jugo os filhos, teria sido assassinado e devorado pelos descendentes num banquete festivo. Todavia, ao atuar o ódio contra a figura paterna e sorver sua potência, os filhos teriam sido invadidos por um enorme sentimento de culpa, e também pelo receio de um novo confronto. Foi assim que se instituiu o totemismo, cujas duas proibições fundamentais, a do assassinato do pai e a do incesto, coincidem com os dois crimes de Édipo. A horda, obrigada a recalcar seus sentimentos destrutivos, formou uma "comunidade de irmãos" (Freud, 1921/2012, p. 84) e fincou os suportes sobre os quais se organizaria a cultura, o que se deu a partir da noção de castração, indicativa do abandono do sentimento de onipotência e da aceitação (e, com sorte, fruição) da incompletude, inclusive da incompletude das figuras de autoridade. Esse movimento, no entanto, implicou o humano num mundo de faltas, sem garantias e, em certa medida, sempre frustrante.

A formação e manutenção dos grupos estáveis antes mencionados estaria condicionada, então, a essa passagem, que naturalmente implicaria a possibilidade dos indivíduos de tolerar as dimensões de desencantamento que a realidade e a alteridade impõem.

No início do nosso raciocínio, a partir das pesquisas de Solano (2019), formulamos uma questão que, nesse ponto, estamos em condições de começar a responder: por que, de forma geral, a sociedade brasileira mostrou-se tão sensível às apurações feitas pela Operação Lava Jato e optou, nas eleições de 2018, por alguém que se mostrava um antissistema, justamente quando as instituições democráticas, em que pesem todas as possíveis críticas, davam sinais - a partir de uma interpretação otimista e republicana - de grande vitalidade, revelando ilicitudes cometidas por agentes públicos e empresários?

No estudo de Freud sobre a psicologia dos grupos, constatamos que a vinculação dos elementos que os compõem se dá pela via do investimento amoroso (da libido) e que uma das condições para a manutenção de um grupo é o fato (ou a ilusão) de que todos os seus participantes são amados igualmente pelo líder, hipótese na qual os indivíduos abdicam de seu narcisismo e de outras metas pulsionais visando o estabelecimento e a estabilidade da coletividade.

Trazendo essa hipótese para o plano das relações político-sociais, parece possível sustentar que o mal-estar sentido nas manifestações de 2013 denunciava certa tensão no vínculo grupal, e que as revelações trazidas à luz pela investigação da Polícia Federal puseram o equilíbrio em xeque, pois escancararam a diferença da relação entre determinados participantes de nossa elite econômica e alguns indivíduos investidos de papel institucional (não se trata das instituições em si, pois elas são entes abstratos legalmente definidos, mas de sua encarnação em alguém, de sua materialização) daquela com a população brasileira em geral. Rompe-se, assim, o lastro com o princípio da isonomia, crucial em qualquer democracia moderna, insculpido no notório artigo 5.° da Constituição Federal, que diz em seu caput: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".

Entretanto, não é somente a quebra da isonomia constitucional que acontece nesse cenário, mas também a do sentimento de isonomia. O lugar das classes médias merece destaque: sucumbindo a uma crise econômica, pressionadas pelo desemprego, tornando-se cientes (inclusive por vias parciais e espetacularizantes) da disparidade de tratamento legal que há em certas relações observadas no nosso contexto político-social, elas passam a reagir com indignação e raiva a toda diferenciação, inclusive àquelas que são legalmente estimuladas, justamente por consistirem no contrapeso formativo do princípio isonômico de maneira ampla - o tratamento desigual àqueles que se encontram, por condições específicas, em situação de desigualdade.

Surge assim um novo paradoxo: aqueles que defendem políticas em favor de minorias historicamente desprestigiadas (mulheres, negros, lgbts, religiões de matriz diversa da judaico-cristã), a fim de integrá-las a uma condição de maior igualdade e liberdade, são alvo da ira das camadas médias da sociedade, despertada pela conduta não republicana de um grupo que se revela uma elite não só econômica, mas também política e jurídica.

Em nossa leitura, a percepção da quebra de isonomia (ou da desigualdade na distribuição de afetos, segundo a teoria de Freud) trouxe à tona todos os sentimentos que tinham permanecido recalcados na manutenção da estabilidade das relações no grupo - agressividade, inveja, preconceito etc. Esses sentimentos surgiram primeiro de maneira bastante difusa, mirando toda a classe política e as instituições republicanas, algo bastante perceptível nas manifestações anteriores à disputa presidencial de 2014. Após a eleição de Dilma, no entanto, visando alguma estabilização, instaurou-se um movimento de defesa de viés esquizoparanoide: diante do caos, a reorganização dos afetos fez-se pela escolha do inimigo, o Partido dos Trabalhadores. A crise econômica, a fragilidade do governo e as revelações trazidas pela Operação Lava Jato tornaram essa opção instantânea. A partir daí, um grupo anti-pt e outro antissistema puderam reorganizar-se na defesa do "bem" e de uma versão purificada de si, construindo dessa vez não um totem, mas um mito.

 

5. Uma hipótese sobre o mito

Levando em conta o contexto mencionado, gostaríamos agora de refletir um pouco mais sobre a figura de Jair Bolsonaro e sobre como ela auxilia na construção do mito.

Oriundo das Forças Armadas, instituição que detém, diante de boa parte da população, uma imagem ilibada no que diz respeito à corrupção, relacionada também à estrita manutenção da ordem, ele se apresenta como um "igual", um "homem médio". Nesse sentido vale citar a perspicaz articulação feita pela jornalista Eliane Brum:

Em vez de votar naquele que reconhecem como detentor de qualidades superiores, que o tornariam apto a governar, quase 58 milhões de brasileiros escolheram um homem parecido com seu tio ou primo. Ou consigo mesmos. Essa disposição dos eleitores foi bastante explorada pela bem-sucedida campanha eleitoral de Bolsonaro, que apostou na vida "comum", falseando o cotidiano prosaico, o improviso e a gambiarra nas comunicações do candidato com seus eleitores pelas redes sociais. Bolsonaro não deveria parecer melhor, mas igual. Não deveria parecer excepcional, mas "comum". (2019)

Corroborando essa interpretação, vale mencionar a passagem do presidente pelo Fórum Econômico Mundial de Davos, em janeiro: Bolsonaro deixou-se fotografar almoçando num prosaico "bandejão", em vez de partilhar de um repasto sofisticado com outros chefes de Estado. Para seus apoiadores mais entusiasmados, trata-se de uma imagem emblemática: "Não, ele não é como os outros. Ele é simples. Ele é um de nós". O contraponto fica ainda mais reluzente quando lembramos, por exemplo, a desventurada "farra dos guardanapos" promovida pelo ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, há dez anos, num dos restaurantes mais caros de Paris - revisitado a posteriori, esse episódio torna-se representativo de uma elite que se destaca e abusa de privilégios (ocasionalmente desejados pelo homem comum).

Mesmo a eventual inépcia do presidente para tratar de assuntos complexos, nesse sentido, torna-se uma qualidade. O bolsonarismo, enquanto cosmo-visão, mostra-se antielitista, o que explica seu repúdio ao conhecimento acadêmico, acusado de ser um braço do "marxismo cultural", ou a determinadas expressões artísticas, tachadas de comunistas, pervertidas, ou simplesmente recriminadas por onerar as finanças públicas com subsídios da Lei Rouanet.

Nossa análise nos conduz a outra constatação: o bolsonarismo surge, ou se apropria, das evidências de favorecimento de alguns diante das instituições públicas, o que produz o enfraquecimento do vínculo afetivo que sustenta certas relações sociais no Brasil. Essa situação de desigualdade e quebra de isonomia desencadeia uma torrente de forte afirmação de identidade entre seus apoiadores (a "gente de bem") e demarcação da diferença (aqui entendida como desumanização e repúdio, não como reconhecimento de singularidade), o que nos leva de volta ao que destacamos antes: primeiro, miram-se os políticos do pt; depois, todo o espectro da esquerda; por fim, a produção artística e intelectual. No bolsonarismo, não há espaço para a surpresa, a diversidade e o incomum. O mito bolsonarista é, fundamentalmente, um mito de apagamento do outro, de encerramento da alteridade.

 

6. À guisa de encerramento: um tema global, ou o bolsonarismo como representação do mundo de ontem

No segundo tópico deste texto, fizemos uma referência à hipótese de Daniel Innerarity de que toda democracia, especialmente aquela que funciona bem, traz certo grau de frustração.

A frustração é uma noção psicanalítica importante na medida em que participa das possibilidades de obtenção de satisfação e manutenção de um psiquismo menos tendente a sucumbir ao sofrimento e à angústia. Não só a democracia, mas a existência é frustrante, pois repetidamente nos põe diante da quebra da nossa onipotência e da experiência da falta.

Isso, porém, não deveria ser desesperador. Num psiquismo vitalizado e flexível, a falta serve de impulso para o desejo, para a criatividade e para o encontro com o outro. O apreço à alteridade. É somente com a legitimidade conferida ao outro que se faz política. Nesse ponto, retomamos Innerarity:

A política é uma atividade que gira em torno da negociação, do compromisso e da aceitação daquilo a que os economistas costumam chamar decisões subótimas, que não é outra coisa senão o preço que é preciso pagar pela partilha do poder e pela limitação da soberania. Todas as decisões políticas, a não ser que se viva no delírio na onipotência, sem constrangimentos nem contrapesos, implicam, mesmo que numa pequena medida, certa forma de claudicação. (2015/2016, p. 85)

Negociar envolve conferir legitimidade ao adversário político. O empenho para a supressão da alteridade no palco da política democrática é o início do seu fim. Essa é a busca, ainda que indireta e inconsciente, dos grupos políticos extremistas. Tais grupalidades estão afetivamente dispostas a enormes sacrifícios para alimentar seu líder e reexperimentar, por seu intermédio, o sentimento de onipotência que caracteriza as formações psíquicas menos complexas. A repulsa ao diferente é um traço comum da vida emocional, individual e grupal, mais precária - referimo-nos à precariedade em sua significação psicanalítica, que leva em conta um psiquismo mais sujeito a ser afetado por grandes quantidades de angústia e a usar mecanismos de defesa radicais para proteger-se.

A contemporaneidade, no entanto, seja pelo desenvolvimento das tecnologias de informação e transporte, seja pela maior atenção dada às demandas das assim chamadas minorias, seja pelo avanço da compreensão da humanidade como um tecido multiforme, coloca-nos, insistentemente, diante da alteridade - e, no Ocidente, diante da crise do modelo patriarcal, que tem no macho branco e cristão aquele a quem é prometida a vida com menos restrições e maior possibilidade de fruição. Essa promessa, contudo, traz consigo seu reverso: o fracasso da não realização - e o abismo de dor e falta de sentido que dele deriva. Michael Kimmel, ao estudar esse cenário nos Estados Unidos, descreve bem a situação:

Os "inimigos" dos homens brancos americanos não são realmente mulheres e homens de cor. Nosso inimigo é uma ideologia de masculinidade que herdamos de nossos pais e de seus pais antes deles, uma ideologia que promete uma aquisição incomparável, aliada a uma inteligência emocional tragicamente empobrecida. Aceitamos uma ideologia de masculinidade que nos deixa vazios e sozinhos quando fazemos o certo, e ainda pior quando sentimos estar fazendo errado. O pior de tudo, porém, é quando achamos que fizemos tudo certo e ainda não recebemos as recompensas às quais acreditamos ter direito. Então temos que culpar alguém. Outra pessoa. (2012, p. 20)

Para Kimmel, a possibilidade cada vez menor de esse sujeito corresponder ao ideal que lhe era destinado participaria de um enorme sentimento de frustração, que se expressaria pela raiva, dirigida a si ou ao outro, aquele que supostamente teria obturado sua escalada para a (re)aproximação do narcisismo perdido. É uma dor verdadeira, que mira no entanto as causas erradas.

Não pretendemos aprofundar esse ponto. Só o mencionamos porque, a partir dele, podemos aproximar o bolsonarismo de um fenômeno global: seu fetiche armamentista, sua obstinada afirmação de supostos valores familiares e cristãos, sua hesitação - para dizer o mínimo - quanto às novas identidades e à legitimidade das demandas das minorias, sua política externa que privilegia o Ocidente (e seus valores, a partir de uma leitura enviesada, quase pré-renascentista) buscam reacender a alquebrada chama das certezas que pacificavam a alma de alguns - às expensas da insignificância conferida aos demais - num mundo de outrora.

 

Referências

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Kimmel, M. (2012). Angry white men: American masculinity at the end of an era. New York: Nation Books.         [ Links ]

Solano, E. (2019). A bolsonarização do Brasil. In Democracia em risco: 22 ensaios sobre o Brasil de hoje [Livro digital]. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Gustavo Dean Gomes
Alameda Rio Claro, 95, ap. 203
01332-010 São Paulo, SP
Tel.: 11 99965-1960
gustavo.dean@gmail.com

Recebido em 18/3/2019
Aceito em 16/4/2019

 

 

1 Estaríamos aqui mais perto das concepções de Joseph de Maistre do que daquelas de Edmund Burke, por exemplo. Aos interessados em detalhes dessa distinção, ver Ball e Dagger (2009/2014).

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