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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.1 São Paulo jan./mar. 2019

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

O percurso moral dos primeiros psicanalistas vienenses1

 

The moral journey of the first Viennese psychoanalysts

 

La jornada moral de los primeros psicoanalistas vienenses

 

Le parcours moral des premiers psychanalystes Viennois

 

 

Louis RoseI; Tradução Luiz Eduardo Prado

IProfessor de história europeia moderna da Universidade Otterbein, de Ohio. Membro dos Trustees of the Sigmund Freud Archives, da Biblioteca do Congresso. Ex-editor da revista American Imago

Correspondência

 

 


RESUMO

Estudando as preocupações culturais dos primeiros discípulos de Freud, este artigo busca explicar como elas inspiraram tanto a convicção intelectual no freudismo quanto o compromisso íntimo com o movimento psicanalítico. Esclarece, dessa forma, uma identificação importante, e implícita, entre médicos e leigos do círculo de Freud. Ao mesmo tempo, traz à luz a tensão entre valores e ciência na psicanálise vienense.

Palavras-chave: Viena, cultura, moral, ciência, psicanálise


ABSTRACT

By exploring the cultural concerns of Freud's first Viennese disciples, this article explains how these concerns helped inspire both intellectual conviction in Freudianism and inner commitment to the psychoanalytic movement. In this way, it illuminates an important underlying identity between medical practitioners and laypersons within Freud's circle. At the same time, it brings to light the tension between values and science in Viennese Psychoanalysis.

Keywords: Viena, culture, science, Psychoanalysis


RESUMEN

A través de la investigación de las preocupaciones culturales de los primeros discípulos vienenses de Freud, este artículo explica cómo esas preocupaciones inspiraron tanto la convicción intelectual en el Freudianismo como el compromiso íntimo con el movimiento psicoanalítico. Aclara, de esta forma, una identidad importante que está implícita entre médicos y legos del círculo de Freud. Al mismo tiempo, saca a la luz la tensión entre valores y ciencia en el Psicoanálisis Vienense.

Palabras clave: Viena, cultura, moral, ciencia, psicoanálisis


RÉSUMÉ

Au moyen de l'examen des préoccupations culturelles des premiers disciples Viennois de Freud, cet article vient expliquer comment ces préoccupations ont-elles inspiré aussi bien la conviction intellectuelle dans la théorie de Freud, que le compromis intime avec le mouvement psychanalytique. Il élucide, de cette façon, une identité importante qui est implicite entre les médecins et les laïques du cercle de Freud, tout en apportant à la lumière la tension entre les valeurs et la science dans la psychanalyse Viennoise

Mots-clés: Vienne, culture, moral, science, psychanalyse


 

 

1.

A primeira organização para o estudo e a difusão das ideias de Sigmund Freud surgiu de um pequeno grupo de seguidores que, em 1902, começou a encontrar-se uma vez por semana na casa dele. Em 1908, esse grupo adotou o nome Sociedade Psicanalítica de Viena. As reuniões da Sociedade ocorreram de maneira contínua até o Anschluss (anexação político-militar da Áustria pela Alemanha), de modo que, mesmo durante a Primeira Guerra Mundial, a Sociedade permaneceu fiel ao compromisso que a fez tornar-se, em 1914, um movimento internacional. Seus membros sempre tiveram consciência de ser vanguarda, não apenas no mundo psicanalítico, mas na vida intelectual europeia.

Os psicanalistas vienenses frequentemente lembravam-se dos pensadores que, segundo acreditavam, eram seus precursores. De particular interesse era Friedrich Nietzsche. Os membros da Sociedade viam semelhanças consideráveis entre as teorias psicológicas de Nietzsche e as de Freud. Em 1.° de abril de 1908, durante o primeiro encontro da Sociedade dedicado à vida e ao pensamento de Nietzsche, Paul Federn observou que Nietzsche se aproximava tanto das opiniões deles que apenas caberia indagar em que ponto não o fazia.

Federn ressaltou que o filósofo tinha compreendido "o significado da abreação, da repressão, da fuga na doença, dos instintos - os sexuais normais e os sádicos" (Nunberg & Federn, 1962, p. 359). Todavia, no segundo encontro sobre Nietzsche, Freud advertiu sobre uma distinção entre sua própria obra e a do filósofo.

E assim ele começa, com grande perspicácia - com percepção endopsíquica, por assim dizer -, a reconhecer os estratos de seu eu. Faz uma série de descobertas brilhantes sobre si mesmo. Mas então a doença o controla. Nietzsche não se contenta em entender essas conexões corretamente, mas projeta o insight que teve sobre si mesmo como se fosse um imperativo geral [Lebensanforderung]. Soma-se a sua intuição psicológica o ensino, o elemento pastoral procedente de seu ideal de Cristo... O grau de introspecção alcançado por Nietzsche nunca tinha sido alcançado por ninguém, nem é provável que venha a ser alcançado novamente. O que nos incomoda é que Nietzsche transformou é em deveria, o que é estranho à ciência. Nisso ele continuou sendo, afinal, um moralista, incapaz de se libertar do teólogo. (Nunberg & Federn, 1967, pp. 31-32)

Freud exigiu que seus próprios seguidores se libertassem do moralista - o passo que Nietzsche não foi capaz de dar. Escolheu suas palavras cuidadosamente. Ele sabia que parte substancial de seus discípulos se tinha juntado ao movimento em virtude de um sentimento de indignação moral com o mundo. Esperava (até mesmo contava com) essa alienação, essa ira justa e esse sério e intenso sentimento vocacional. Freud assumiu a tarefa de transformar seus moralistas em psicanalistas. Para tanto, abriu uma nova fase na história da psicanálise. Moralistas transformados em psicólogos desempenhariam um papel indispensável na organização e na defesa do movimento freudiano de Viena.

O presente estudo tratará do percurso moral desses discípulos. Assim como seu aliado espiritual, o crítico Karl Kraus, os enragés [raivosos] morais do primeiro grupo de Freud perceberam uma crise de responsabilidade na sociedade, crise essa que o escritor Hermann Broch (1975/1984) descreveria em seu estudo sobre Viena às vésperas da Grande Guerra como um vácuo de valores. Em reação a isso, os psicanalistas, tanto quanto Kraus, buscavam destruir ilusões intelectuais que mascaravam a extensão e a profundidade da crise. Herdeiros autênticos do Iluminismo, acreditavam firmemente que a responsabilidade ética devia acompanhar a clareza intelectual. A exigência de clareza, no entanto, também promoveu a procura de verdades científicas. Nas origens do movimento freudiano em Viena está, desse modo, a transformação do estranhamento e da indignação moral em exigência de compreensão científica.

A indignação dos futuros psicanalistas pode ser atribuída ao impacto sobre eles das mudanças políticas e sociais no final do século XIX na Áustria. A Constituição Austríaca de 1867 tinha dado apoio e proteção à classe média, especialmente à classe média judaica, e impulsionado a agenda liberal de reforma política e cultural. As garantias constitucionais de direitos individuais, juntamente com as medidas visando uma maior secularização da educação e a nomeação de um ministério liberal, traziam a promessa de uma completa liberdade de consciência, algo de singular importância na Áustria clerical e aristocrática. Forças de reação, porém, suprimiram essa promessa e, em consequência, os membros da classe média, silenciosamente, pararam de acreditar nas mudanças. Buscaram, em vez disso, a assimilação cultural à aristocracia católica.

Na virada do século, surgiu um grupo formado de estudantes universitários e jovens escritores vienenses para o qual a preservação da responsabilidade moral num mundo hostil parecia particularmente urgente. Vítimas não apenas de reação política, mas também de traição moral, esses indivíduos sérios e justos sentiam-se não só encurralados, mas espiritualmente sós. Esse sentimento de urgência e alienação levou o jovem filósofo Otto Weininger à introspecção, à análise rigorosa da natureza da obrigação ética individual. Outros enfrentaram o mundo externo, seguindo o caminho de Karl Kraus. Na revista de Kraus, Die Fackel, os enragés burgueses atacaram a corrupção de toda a sociedade. O núcleo dos discípulos de Freud pertencia a esse grupo de intelectuais vienenses. A indignação moral com o mundo deu-lhes uma consciência dissidente e um sentimento de missão. No entanto, não lhes deu um método crítico nem um compromisso positivo. O movimento psicanalítico canalizou o sentimento vocacional de cada um deles, transformando-o em vocação profissional, enquanto sua ira moral tornava-se radicalismo intelectual. Nos níveis máximos de crítica moral, suas explorações e questionamentos levaram o grupo de Freud à ciência da psicanálise.

Quem era a vanguarda psicanalítica em Viena? Nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial, a Sociedade Psicanalítica de Viena tinha uma estrutura fluida e um quadro de membros inconstante. Fundamentava-se em profissões leigas e médicas e combinava diversos interesses culturais e clínicos. Além disso, a grande maioria de seus membros ficava às margens da organização, enquanto um número bem menor trabalhava no centro dela.2 Até depois da Grande Guerra, a Sociedade não representava uma escola oficial, com uma quantidade consistente de professores e alunos. No entanto, um pequeno número de membros ativos surgiu como uma vanguarda intelectual e profissional da psicanálise. Esses membros cumpriam funções essenciais, promovendo um novo movimento intelectual, seja pela participação nas reuniões informais na casa de Freud, seja pela publicação de artigos psicanalíticos, seja pela aplicação da teoria e do método freudiano em suas próprias atividades médicas ou literárias.

Dezesseis membros serão estudados aqui: Wilhelm Stekel, Alfred Adler, Max Kahane e Rudolf Reitler, médicos, fundaram com Freud a Sociedade de Psicologia das Quartas-Feiras em 1902; Paul Federn, clínico geral, juntou-se ao grupo no ano seguinte; David Bach, crítico musical, uniu-se à Sociedade nos primeiros três anos de sua existência; Eduard Hitschmann, médico, e Max Graf, crítico musical, tornaram-se membros no fim de 1905 (Graf ficou famoso entre psicanalistas posteriores como pai do pequeno Hans, tendo descrito a fobia animal de seu filho); Otto Rank, aspirante a escritor, entrou no grupo em 1906 e assumiu a tarefa de registrar as atas das reuniões; Maxim Steiner e Isidor Sadger, dois dos primeiros analistas praticantes, começaram a assistir às reuniões em 1907; Fritz Wittels, jornalista, entrou na Sociedade pouco depois de seu tio, Sadger, por indicação deste; Victor Tausk, antigo advogado e escritor, formado em medicina, apresentou-se a Freud em 1908 e, no ano seguinte, entrou para o grupo; Hanns Sachs, advogado com ambições literárias, tornou-se membro em 1910; Alfred von Winterstein, presidente da Sociedade de Viena após a Segunda Guerra Mundial, juntou-se ao grupo em 1910; Theodor Reik, estudante de psicologia e literatura, aderiu ao movimento em 1911. Não só as ocupações desses membros se dividiam igualmente entre médicas e não médicas, mas também vários médicos seguiram segundas carreiras como escritores e críticos culturais.

Com grande vigor, a visão de mundo dos críticos morais surgia a partir dos textos pré-psicanalíticos dessa vanguarda. Podia ser encontrada num médico, como Eduard Hitschmann, ou num leigo, como Theodor Reik; num crítico, como Max Graf, ou num jornalista, como Fritz Wittels. De forma ainda mais importante, podia ser vista em Otto Rank e Hanns Sachs, que em 1913 fundaram a Imago: Zeitschrift für die Anwendung der Psychoanalyse auf die Geisteswissenschaften [Imago: Revista para a Aplicação da Psicanálise às Ciências Culturais].

Para compreender as origens do movimento psicanalítico vienense, será necessário começar pelo contexto social e intelectual em que o círculo íntimo de Freud construiu sua noção da história. Estudaremos, então, a reação moral da vanguarda à Viena do fim do século XIX, concentrando-nos na atitude dos membros que continuaram a defender a causa após a ruptura com Alfred Adler. (A oposição de Adler à psicanálise já estava em curso, pelo menos, desde 1909, embora não se tenha desligado da Sociedade de Viena até 1911.) Daremos especial atenção à estreita ligação entre os pontos de vista dos membros e os de Karl Kraus, nos anos anteriores à adesão deles ao movimento. Pouco a pouco, como veremos, aqueles que se tornariam discípulos de Freud passaram do exame de consciência para a exploração científica da psique e, finalmente, para as reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena.

 

2.

Com as insurreições de 1848, os liberais austríacos lançaram uma batalha pela mudança política, tanto na monarquia dos Habsburgo como na cidade de Viena. Depois de aproximadamente 20 anos de negociações políticas e aventuras militares desastrosas dos Habsburgo, a Constituição de 1867 finalmente criou um ministério liberal, ampliou os poderes do parlamento e reconheceu formalmente a igualdade de todos perante a lei e a liberdade de consciência. O Partido Liberal, no entanto, manteve-se no poder fazendo concessões limitadas e dando algumas vantagens à aristocracia e aos funcionários imperiais. Em 1879, o ministério conservador do conde Taaffe derrotou definitivamente as reformas propostas pelo partido. Na cidade de Viena, o Partido Liberal conseguiu manter as rédeas do poder até 1897, quando foi destituído por Karl Lueger, à frente do movimento social cristão, populista e antissemita.

Ao longo desse período, as elites das classes médias liberais e a intelectualidade procuraram uma parceria política e cultural com a aristocracia. Esperavam que a instrução humanista e o autoaperfeiçoamento em termos de cultura, Bildung, criassem uma classe educada unificada, tanto para liderar um Estado reformado quanto para alimentar a vida cultural. Segundo Carl Schorske (1980), com a derrota da reforma política, a classe média lutou, cada vez mais vigorosamente, pela integração cultural. Consequentemente, a apropriação da cultura estética tradicional da aristocracia católica tornou-se componente essencial da assimilação. Para consolidar sua aliança com a pequena nobreza e com os administradores imperiais, industriais, banqueiros, advogados e professores vienenses, promoveram a cultura estética pela instrução e pelo patrocínio de artes plásticas, teatro e música. Uma "Gefühlskultur3 amoral" uniu esses estratos sociais na "segunda sociedade"4 de Viena. Conforme escreveu Schorske, "em outras partes da Europa, a arte pela arte implicava a retirada de seus seguidores de uma classe social; só em Viena essa ideologia reivindicava a lealdade de toda uma classe praticamente, da qual os artistas faziam parte" (p. 8). Nas classes médias e intelectuais, a arte pela arte serviu como ideologia de assimilação.

Em sua origem e formação, os psicanalistas vienenses aderiram totalmente à herança liberal e a seus dilemas. As ocupações de seus pais servem como amostra, oferecendo uma visão interna dos grupos econômicos e profissionais que apoiavam principalmente o liberalismo austríaco. Mais da metade deles trabalhava em profissões liberais ou no serviço público.5 Friedrich von Winterstein enquadrava-se no modelo da "segunda sociedade" de Viena, por sua riqueza e prestígio. Conselheiro particular e vice-diretor do Banco Austro-Húngaro, passou o título de Freiherr a seu filho Alfred. O pai e os tios de Hanns Sachs tornaram-se advogados de sucesso, e esperavam que ele os seguisse nessa vocação. O médico Salomon Federn tinha pacientes na "segunda sociedade", mas era entre reformistas, apoiadores de classe média do Partido Social-Democrata, que tinha amigos e associados. O velho Federn era a memória da tradição revolucionária de 1848, por ter lutado ao lado de colegas estudantes de medicina nas ruas de Viena (Federn, Urbach, Meng & Weiss, 1972). O avô de Eduard Hitschmann era médico; seu pai trabalhava com contabilidade; um de seus irmãos era diretor bancário e o outro advogado (Becker, 1966). Entre seis pais do ramo empresarial, conhecemos a profissão de Mathias Hitschmann, de Leopold Adler, comerciante de produtos agrícolas, e de Eduard Bach, proprietário de uma chapelaria. A mãe de David Bach tornou-se comerciante no ramo têxtil após a morte do marido (Kotlan-Werner, 1978).

A vitória da Constituição liberal de 1867 encorajou Marcellin Reitler, vice-diretor da Nordwestbahn, a dar significado prático às novas liberdades intelectuais. Em 1868, tornou-se editor do boletim da Sociedade para a Utilização do Trabalho Intelectual,6 uma associação de curta duração, cuja intenção era organizar atividades culturais e encontrar trabalho para escritores, artistas e linguistas. Em seu livro sobre a administração do sistema ferroviário, Reitler exigia que a burocracia ferroviária fosse entregue a especialistas legais, médicos e técnicos, com entrada e promoção para todos os cargos com base no Recht [direito].7 Hermann Tausk, convencido de que a monarquia dos Habsburgo era guardiã de um império liberal, aceitou um cargo no gabinete de imprensa do governo, em Sarajevo, após ter sido professor e editor de seu próprio jornal literário (Roazen, 1969). Otto Rank descrevia a ocupação de seu pai, Simon Rosenfeld, como funcionário público - na juventude de Rank, seu pai trabalhara como joalheiro (Klein, 1981; Lieberman, 1985). Enquanto Marcellin Reitler ocupou um cargo de direção na Nordwestbahn, Max Reik, pai de Theodor Reik, foi provedor de uma grande família trabalhando como inspetor ferroviário (Reik, 1949). Assim, um considerável grupo de pais dos psicanalistas participava das profissões liberais e do serviço público.

Com exceção da família de Rank, cada família deu ao filho a educação de um ginásio clássico. Wilhelm Stekel e Victor Tausk estudaram em ginásios alemães em territórios não alemães do Império Habsburgo: Stekel em Bucovina, Tausk na Croácia. Rebelando-se contra sua educação judaica ortodoxa, a mãe de Stekel matriculou o filho numa escola de ensino médio coeducacional e protestante. Depois da formatura, Stekel foi para o ginásio alemão em Czernowitz (Stekel, 1950). No ginásio que frequentou, Victor Tausk liderou um protesto estudantil contra o ensino de religião (Roazen, 1969). Quatro psicanalistas vienenses formaram-se no Akademisches Gymnasium, localizado no bairro da Ringstrasse, na capital. Durante a Revolução de 1848, os liberais vienenses puseram o Akademisches Gymnasium em sua agenda política. Nesse ano, os reformadores obtiveram uma vitória com a eliminação do controle clerical da escola e, quatro anos depois, ela foi declarada pelo governo como Gymnasium do Estado. No fim do século XIX, industriais e empresários bem-sucedidos, médicos e advogados eminentes e altos oficiais do governo enviaram seus filhos para o Akademisches Gymnasium.8 Entre eles, podemos citar Rudolf Reitler, Paul Federn, Eduard Hitschmann e Max Graf. A classe média liberal transformou a instituição num reduto de educação secular, numa oposição consciente ao aristocrático Theresianum e ao religioso Schottengymnasium.9 Os pais dos psicanalistas garantiram que os filhos recebessem educação em profissões práticas, mas lhes proporcionaram também a oportunidade de adquirir cultura estética, tão altamente valorizada pela burguesia austríaca. Esperavam que a arte cedesse lugar ao direito ou à ciência na universidade. Seus filhos, todavia, recusavam-se a abandonar as aspirações criativas. Durante o ginásio, Wilhelm Stekel passou o máximo de tempo possível lendo e escrevendo poesia, mas decidiu que o estudo da medicina era o melhor caminho para sair de Czernowitz e ir para a Universidade de Viena. Na época em que iniciou sua carreira de clínica geral, começou também a trabalhar num romance (Stekel, 1950). Max Graf dedicou-se à música. Lembrava-se que, antes de entrar na universidade, "sem muito estudo, eu compunha músicas dia e noite, peças de violino, música de câmara, e como muitos jovens estava obcecado com um único pensamento: dar expressão ao meu sentimento musical" (Graf, 1945, p. 106). Quando se formou na Faculdade de Direito da Universidade de Viena em 1895, Graf procurou emprego como crítico musical (Graf, 1946). Hanns Sachs inscreveu-se devidamente na Escola de Jurisprudência, "um jovem que supostamente estudava direito, mas que não estava à altura da suposição" (Sachs, 1944, p. 3). Seus interesses estavam "centrados na literatura, quase que excluindo todo o resto" (p. 39). Sachs só fez o exame final para habilitar-se como doutor em direito em julho de 1907, quatro anos após a conclusão do curso. Em 1905, Victor Tausk deixou a carreira jurídica, a esposa e os filhos para tentar uma carreira como escritor, publicando suas primeiras obras na revista do pai. Depois de meses de pobreza em Berlim, abandonou a vocação literária (Roazen, 1969). Tendo passado no exame final de direito em 1909, Alfred von Winterstein imediatamente voltou-se à publicação de sua poesia.10 Esses psicanalistas conheciam bem o mundo de ambição literária e de devoção que envolvia a geração mais jovem dos liberais vienenses.

Todos os psicanalistas em discussão, exceto dois, eram judeus.11 No século XIX, em Viena, os judeus ocidentais de língua alemã, das terras dos Habsburgo, acreditavam que a reforma constitucional garantiria igualdade perante a lei, carreiras abertas ao talento, liberdade de consciência e educação. O programa político do Partido Liberal estava em conformidade com suas aspirações intelectuais e sociais. Nas palavras de Hanns Sachs, queriam "plena assimilação sem apostasia" (1944, p. 22). Algumas das famílias dos psicanalistas tinham sucessos significativos. Durante a primeira rodada de liberalização, após a controle da rebelião de 1848, Salomon Federn tornou-se um dos primeiros clínicos gerais judeus em Viena (Federn et al., 1972). Todavia, nas últimas décadas antes da Primeira Guerra Mundial, os triunfos de Lueger e do Partido Social Cristão exerceram uma pressão crescente sobre os judeus de classe média para que buscassem assimilação cultural e conversão religiosa. A burguesia judaica vivenciava profundamente o conflito histórico do liberalismo vienense entre a ideologia de progresso gradual, que se dava por meio da reforma política e educacional, e o impulso em direção à integração cultural e religiosa com a aristocracia.

Apesar de serem, eles mesmos, apóstatas da tradição, os futuros psicanalistas opuseram-se à assimilação religiosa plena.12 Também não participaram da luta pela integração cultural às classes superiores. Suas famílias tinham mantido um compromisso com a tradição reformista do liberalismo e a fé na ascensão social judaica através da educação e do avanço profissional. Com a proximidade da virada do século, porém, os filhos nutriam poucas esperanças de concretizar essas expectativas. Em meio à deserção e à derrota da classe média, o compromisso moral pessoal parecia-lhes indispensável por ser a última defesa contra as opções assimilacionistas. Sem uma forte base institucional para consolidar a causa liberal, e perante a crescente tendência à assimilação, elaboraram uma resposta altamente individualista e moralista. O desapontamento de uma intelectualidade jovem e liberal transformou-se finalmente num sentido profundo de alienação moral.

 

3.

Em sua posição social, em sua educação profissional e cultural, bem como em sua formação religiosa, os futuros discípulos de Freud mantiveram o legado do liberalismo austríaco. Seu radical desacordo moral, no entanto, criou uma profunda divisão entre eles e essa tradição. Essa ruptura com o passado iniciou o percurso que os levaria ao movimento psicanalítico. O descontentamento moral da juventude não só se expressou no que escreviam na época, mas também em suas memórias posteriores. Em ambos os escritos, os psicanalistas preocupavam-se, principalmente, com os valores da burguesia vienense em tempos de reação, enfatizando, de modo severo, que o ideal de integração com a aristocracia havia corrompido sua classe social.

As origens do esforço de assimilação, escreveu Max Graf, podem ser atribuídas à ascensão de uma "nova sociedade de nobreza financeira, os arrivés industriais e empresariais, e seus aliados, a velha aristocracia; uma sociedade com riquezas, atitude cosmopolita, amor ao prazer e, como toda casta ascendente móvel, energia para tomar posse dos recentes progressos" (1900, p. 148). Essa sociedade disfarçava suas origens humildes na "monstruosidade da decoração dos edifícios romanos, gregos, góticos e renascentistas" por toda a Ringstrasse (p. 150). As elites burguesas adotavam o comportamento da aristocracia e aspiravam a seus privilégios e honras:

Os novos industriais e homens da bolsa de valores, inundados de riqueza, enchiam a sociedade da corte para receber ordens e títulos do imperador. Quando davam festas em suas novas casas, convidavam aristocratas, preocupados com as aparências. Os jovens filhos de industriais vienenses vestiam-se de aristocratas e imitavam seu sotaque e estilo. (Graf, 1945, pp. 79-80)

Para consolidar sua identificação interior com a aristocracia, novos plutocratas juntaram-se à antiga nobreza na construção e no patrocínio dos palácios de arte vienenses.

Em suas memórias, Hanns Sachs recorda, com amargura, o modo pelo qual a nobreza, atuando como uma força silenciosa e corrosiva, esvaziava de sentido o processo parlamentar e o Estado de Direito:

A Áustria era uma monarquia constitucional com todos os ornamentos habituais: uma Carta de Liberdades, duas câmaras parlamentares, ministros responsáveis, tribunais independentes, a habitual máquina governamental. No entanto, sabia-se que nenhuma dessas instituições detinha real poder, nem mesmo a burocracia. Esse poder estava nas mãos das "80 famílias" austríacas. ... Aglutinadas como eram, mas sem nenhum vestígio de organização nem de liderança, esse seu poder amorfo, anônimo e irresponsável só poderia funcionar de uma forma: inibindo qualquer inovação, excluindo da cooperação todas as novas forças. (1944, pp. 25-27)

Os que estavam no poder e os que queriam o poder mantinham os moldes constitucionais e o ideal do direito como forma de acobertar o favoritismo, o clientelismo e a extorsão política:

Partidos políticos e eleições, debates parlamentares acalorados, a votação de leis e a criação de cargos públicos para executá-las, isso tudo continuava como se fosse uma democracia nota 10. Todavia, não passava de mera fachada, construída para quem era de fora e para os que sofriam de cegueira congênita. Para chegar a algum lugar, era necessário contar com ajuda vinda "de cima" dada diretamente ou, se não fosse possível, através de um dos colaboradores ou "braços direitos" a quem a classe dominante havia delegado a execução do poder. Sem essa "ajuda", por mais que estritamente dentro dos limites da Constituição, nenhum movimento poderia prosperar; com ela, porém, qualquer lei poderia ser ou infringida ou de alguma forma contornada. (pp. 27-28)

No processo de execução de sua estratégia de assimilação, a classe média sacrificou sua identidade cultural e sua responsabilidade ética:

O estilo de vida da classe privilegiada havia-se tornado, naturalmente, o padrão pelo qual a classe média tentava modelar sua conduta, imitando aquela classe, até mesmo nos mais pequenos maneirismos. (Os judeus ricos, depois de terem ultrapassado a barreira religiosa, ocupavam facilmente o primeiro plano.) O resultado oscilava entre o esnobismo puro e simples e o esteticismo forte e exacerbado; uma variante dessa atitude, chamada fin-de-siècle, gabava-se por preferir a "beleza" - mas a beleza entre aspas - à moral e, orgulhosamente, intitulava-se "decadente", (p. 28)

Nenhum psicanalista sentira maior indignação com esse derrotismo moral do que Fritz Wittels. Em 1904, ano de sua graduação na Escola de Medicina de Viena, Wittels publicou sua primeira polêmica, Der Taufjude [O judeu batizado]. Para o jovem panfletário, a conversão religiosa revelava a crise que consumia o liberalismo. Praticamente todos os batismos, escreveu Wittels, tinham no fundo a motivação principal da ambição social (Strebertum). O docente desejava ascender na carreira acadêmica, o advogado mirava um cargo de juiz ou o ministério, e o parvenu queria, desesperadamente, assistir à caça e às festas da alta nobreza. A Constituição de 1867, Wittels lembra ao leitor, garantiu a igualdade perante a lei, estabeleceu a liberdade de religião e declarou os cargos públicos abertos a todos os cidadãos. No entanto, os judeus eram muitas vezes excluídos de cargos no ministério, na burocracia, no judiciário, no corpo de oficiais e na universidade. Sua promoção era com frequência tolhida nessas instituições, e viam-se permanentemente excluídos das administrações locais e das empresas privadas. Um grande número de judeus fez as pazes com a nova política e sociedade. No parlamento, nas assembleias locais e na imprensa, renunciaram à "batalha pelo Recht" (Wittels, 1904, p. 30).

Na visão de mundo de Wittels, a mais grave consequência do ideal de assimilação era o crime contra si mesmo. O batismo oficial marcou a última vitória sobre a consciência: "Assim como alguém pode cometer uma injustiça porque a tolera, os judeus foram considerados muito mais culpados que o Estado, pois foram eles que permitiram que tudo isso acontecesse, e assim sacrificaram sua personalidade" (p. 30). Para o jovem Wittels, o aspecto mais perturbador da assimilação dentro da classe média judaica residia no autoengano. Essa violação da fé definiu a forma como Wittels via a sociedade. A vida social dependia de um pacto moral:

Cada cidadão tem o direito de exigir que sua confiança, sua crença na honestidade, não seja ferida, pelo menos não por uma afirmação falsamente solene, e portanto o perjúrio que engana um único indivíduo é tão culpável quanto aquele que derruba gerações. (p. 19)

Desilusão, desconfiança e desarmonia com a sociedade dominavam a consciência da juventude judaica ocidental. Na vida espiritual desses jovens, a negação absoluta minou permanentemente o impulso para a afirmação moral:

[A consciência judaica ocidental] é, por um lado, o método da razão analítica, o espírito da crítica implacável, minando tudo, uma orgia mefistofélica da destruição de tudo o que se tornou obsoleto, desgastado, tradicional, "pois todas as coisas que vieram do nada invocado merecem ser destruídas". Por outro lado, ela se lança com paixão cega sobre todo o novo, agarra-o, trabalha-o, espalha-o pelo globo, pois, como ele [o jovem judeu ocidental] destruiu o velho, deve procurar felicidade e satisfação no que ainda está inexplorado, no que mal se compreende, até que furiosamente decepcionado captura, com a espada de arlequim, as estrelas que há pouco tempo ele próprio fixou nos céus. (p. 35)

Em Wittels, a raiva muda e o anseio pela virtude combinavam-se, produzindo um sentimento de desespero e estranhamento. Sentindo-se traído por sua classe e por seus companheiros de religião, imprimia seus julgamentos como uma advertência à consciência individual e uma acusação pública para o dia do ajuste de contas.

Entre os futuros discípulos de Freud, Wittels expressava, da forma mais ardente e ameaçadora, a desilusão e o amargor compartilhados pelos enragés morais. Com a confiança traída, esses futuros discípulos viam a sociedade e a política vienenses como um elaborado jogo de espelhos. Palavras brilhantes e superfícies morais polidas refletiam e distorciam umas às outras indefinidamente. Desorientados e perplexos, buscavam profunda integridade e autenticidade no mundo a seu redor. Embora conscientes das finalidades sociais e das estratégias políticas da classe dominante e de seus aliados assimilacionistas e de classe média, assumiram inicialmente uma obrigação ética individual como antídoto para o sistema de corrupção. Sua decepção e sua indignação moral marcaram o primeiro importante desvio do caminho que lhes foi traçado pela tradição liberal.

 

4.

Os psicanalistas não se encontravam sozinhos em sua intensidade puritana. Na mesma medida e por razões semelhantes, os escritores Otto Weininger e Karl Kraus foram tomados por justa indignação. No entanto, apesar da raiva comum pela destruição política de suas esperanças morais, e da fúria perante a torpeza da classe média, os enragés morais não caminharam na mesma direção. Weininger introverteu-se para encontrar alívio e reflexão, enquanto Kraus e seus aliados, na revista Die Fackel, lançaram-se à esfera pública. As reações dos futuros psicanalistas também se dividiram entre introspecção e engajamento. Os freudianos, contudo, mais tarde se distanciaram tanto de Weininger quanto de Kraus, abandonando o julgamento moral e buscando os campos da ciência.

Ao longo de sua formação universitária, o filósofo Otto Weininger viveu em autoexílio intelectual. Saindo, aos 21 anos de idade, de extremos de re-traimento e distanciamento, ele afirmava ter encontrado a chave para salvar o ego da corrupção moral. Ao mesmo tempo, também dizia ter desvendado o caminho entre a filosofia moral e a psicologia científica, tornando-se, dessa forma, para os futuros psicanalistas, uma figura a levar em consideração.

Nos círculos intelectuais vienenses, Weininger encarnava o penitente que, isolado da sociedade e de suas influências corruptoras, esperava garantir sua própria salvação. Na visão maniqueísta do jovem filósofo, as forças da moralidade e da imoralidade disputavam permanentemente o domínio de sua alma. Seu livro Geschlecht und Charakter [Sexo e caráter], publicado em 1903, definiu essas forças opostas em termos sexuais. Os homens incorporavam os princípios de caráter, autoconhecimento e independência moral. O princípio da sexualidade regia as mulheres, tornando-as incapazes de ter consciência intelectual e orgulho moral. Weininger chegou a essa conclusão tendo primeiro estabelecido sua psicologia das diferenças individuais, fundada numa análise do equilíbrio entre as forças psíquicas masculinas e femininas dentro do indivíduo. No capítulo "Begabung und Gedãchtnis" [Talento e memória], ele explica que essa nova ciência da caracterologia, ou biografia teórica, "tratará da investigação das leis permanentes que regem o desenvolvimento mental de um indivíduo. ... O novo entendimento procurará pontos de vista gerais e o estabelecimento de tipos" (1903/1906, pp. 130-131).

A preocupação central de sua caracterologia, no entanto, tornou-se não a psicologia das diferenças individuais, ou leis de desenvolvimento, que Weininger pensava poder sempre determinar em cada caso, mas o estudo do caráter como "força dominante do ego" (p. 83). O ego, escreveu Weininger, tinha de ser entendido como "a vontade de valorizar". Para expressar essa vontade, o artista ou o filósofo escolheriam viver separados do mundo, deixando de lado a raiva e "aquiescendo em sua solidão" (p. 162). O capítulo "Begabung und Genialität" [Talento e gênio] explicava que o gênio poderia suportar tal isolamento porque sua personalidade continha a gama completa de tipos psicológicos humanos.

O pensamento do próprio Weininger não mostrou tal complexidade, degenerando antes em maniqueísmo e misoginia. Sua independência moral tornou-se uma negação da vida, e sua iconoclastia intelectual cedeu à introspecção piedosa. Na mulher que, dominada pelo princípio da sexualidade, vivia sem consciência moral, encontrou uma força destrutiva contra a qual lutar. De acordo com Weininger, os judeus, seus antigos companheiros de religião, também não tinham clareza moral, mas guardavam a possibilidade de autorrenúncia e de retorno ao ideal ascético.

O nascimento da ética kantiana, o acontecimento mais nobre da história do mundo, foi o momento em que, pela primeira vez, chegou a ele a concepção terrível e atordoante: "Sou responsável apenas por mim mesmo; não devo seguir nenhum outro; não devo esquecer-me de mim mesmo em meu trabalho; estou sozinho; sou livre; sou senhor de mim mesmo", (p. 161)

Weininger nutria desprezo por aqueles para quem "a terra só pode significar a turbulência e sua pressão sobre aqueles que nela estão" (p. 346). O tormento, apenas oculto em seu ideal, levou-o ao suicídio.

Em 24 de fevereiro de 1904, dois anos antes de participar das reuniões de quarta-feira de Freud, Otto Rank escreveu em seu diário:

Agora estou lendo Otto Weininger, Sexo e caráter. O que me ocorreu ao ler as seções "Talento e gênio" e "Talento e memória" destaca-se, de forma única, como um evento na minha história enquanto leitor. Tudo o que é expresso como especial nesses dois capítulos eu mesmo já tinha vivenciado antes em mim e, em muitos pontos, pensei que Weininger poderia ter ainda acrescentado uma coisa ou outra que pertence ao domínio desse complexo de pensamentos. Mal tinha eu pensado nisso e formulado meu suplemento quando o encontrei, de fato, também no livro; estava lá quase em minhas próprias palavras.

O que mais atraiu Rank na filosofia de Weininger foi a concepção moderna de uma moral inconsciente e a possibilidade de reafirmar-se como integrante dessa nova vanguarda moral por meio da introspecção.

Rank cresceu numa família judia batalhadora, de classe média baixa, em Leopoldstadt. Seu pai, que sofria de alcoolismo, frequentemente era violento com a esposa e com os dois filhos. O irmão mais velho de Rank frequentou o Gymnasium e formou-se em direito. Contudo, quando Rank terminou os estudos de primeiro grau, o pai o inscreveu num programa de instrução técnica, concluído em três anos, na seção de máquinas de uma escola técnica avançada.13

Os diários de Rank, escritos após 1903, enquanto trabalhava como aprendiz e, depois, como balconista numa fábrica de máquinas, expressavam desânimo e confusão. Ele iniciou vários projetos literários entre 1903 e 1904: um caderno de poemas, uma peça de teatro em um ato e um conto. Repetindo Weininger, Rank descreveu o artista como a personificação do ideal de autoconfiança intelectual e moral: "Espíritos altamente dotados são sempre bons observadores da humanidade, psicólogos profundos, porque concentram em si mesmos todo o conceito de humanidade; têm em si ten-dencialmente todas as possibilidades da humanidade e podem desenvolvê-las em pensamento" (3 de maio de 1904). No âmbito da filosofia, a "vontade de valorizar" de Weininger sucedeu à "vontade de viver" de Schopenhauer e à "vontade de poder" de Nietzsche (3 de abril), proporcionando uma sensação de conforto e de independência: "A ética de KaNT: apenas deveres para consigo mesmo. Só tenho de responder por mim para mim mesmo. Estou sozinho, sou livre, sou senhor de mim mesmo. Weininger" (22 de fevereiro).14 Tal qual Weininger, Rank escolheu distanciar-se da sociedade como condição para a liberdade moral.

Pouco a pouco, Rank afastou-se do programa de Weininger. Influenciado pelo trabalho de Freud, abandonou lentamente o objetivo de transcendência espiritual, empenhando-se, em vez disso, em entender o mundo interior do conflito psíquico. Depois que seu médico de família, Alfred Adler, lhe apresentou A interpretação dos sonhos, Rank deixou de lado suas investigações morais sobre o gênio. Seus diários transformaram-se em rascunhos de um livro sobre as fontes libidinais da criatividade, publicado em 1907 com o título de Der Künstler [O artista]. Segundo Rank, o conflito humano entre a libido insatisfeita e as forças de resistência é mais intenso nos artistas, os quais, no processo criativo, nunca medem esforços para acalmar em si mesmos o sentimento de necessidade.

Wilhelm Stekel usou uma concepção semelhante de luta psíquica para explicar a vida e o trabalho de Otto Weininger. Segundo ele, suas batalhas internas não o levaram a uma tranquilidade temporária, mas a um desequilíbrio frenético. Sua raiva contra a sexualidade e as mulheres, escreveu Stekel (1904), resultou por fim numa ilusão patológica de grandeza. Enquanto isso, outro médico, Eduard Hitschmann, buscou separar o trigo psicológico do joio moral na filosofia de Weininger. Na visão de Hitschmann, o método psicológico de Weininger precisava ser distinguido da missão redentora que consumiu o filósofo. Em sua resenha da patografia de Arthur Schopenhauer de P. J. Mobius, Hitschmann afirmou que a caracterologia de Otto Weininger, em contraste com a psicopatografia, constituía "uma psicologia genuína e prática", fazendo justiça tanto à personalidade do indivíduo quanto às exigências da ciência: "Essa psicologia pretendia tornar-se biografia teórica, cuja tarefa consistia na pesquisa de leis constantes do desenvolvimento mental do indivíduo [Individuum], a determinação de tipos" (1905, p. 317). O que causou o colapso desse projeto científico? A divisão do mundo, feita por Schopenhauer, entre vontade e ideia fornece uma resposta: "Hipersexualidade com luta idealista, poderoso impulso instintivo em guerra contra o ascetismo, anseio por paz mental, por clareza e por capacidade de trabalho intensa e livre de perturbações levaram-no, gradualmente, a acumular ódio e desprezo - pela mulher essencial" (p. 317). A própria vida e obra de Schopenhauer foi dominada pela mesma batalha por redenção e por transformação dos impulsos sensuais em poderes espirituais, o fenômeno psicológico "característico desse 'tipo Schopenhauer'". (p. 318).

Os psicanalistas vienenses estabeleciam diferenças entre seu trabalho e os esforços dos pensadores, passados e presentes, que buscavam na psique um caminho de salvação. Psicólogos como Weininger, que almejavam encontrar um caminho para a redenção pessoal, abriram perigosos caminhos morais. Para os discípulos de Freud, a verdadeira vocação da psicologia era explorar e tornar inteligível o conflito interno, sem transcendê-lo.

 

5.

Embora Weininger tenha ficado rapidamente célebre e de maneira avassaladora, ele nunca buscou propositadamente a exposição pública. No entanto, outros do grupo dos críticos morais, sob a liderança de Karl Kraus, procuravam com assiduidade expor ao público as diversas formas de corrupção incrustadas em toda a sociedade. Se os psicanalistas se definiam como opostos a quem buscava redenção (Weininger, por exemplo), muitos deles viam em Kraus um potencial companheiro de lutas. Entre os adeptos mais leais de Freud havia quem transformara a intensidade de suas críticas morais em campanha contra a corrupção da cultura. Estes, como Kraus, ampliaram sua ofensiva em ataque contra a ética sexual dominante e suas consequências sociais e psicológicas. Nessa luta, um de seus membros, Fritz Wittels, uniu-se formalmente à Die Fackel. Não só Wittels, mas Sachs, Reik e Graf também enveredaram pelo caminho rumo à psicanálise como "anticorrupcionistas", para usar a descrição que Wittels fez de seu mentor Kraus. Apesar de logo terem tomado um caminho diferente do de Kraus, progrediram muito graças a ele antes de ingressarem no movimento psicanalítico.

Como satirista e polemista, Karl Kraus canalizava a revolta moral da juventude vienense, dando-lhe método e alvos. Sua sátira não se baseava no exagero ou na invenção para expor seus objetos. Ao contrário, ele usava as próprias palavras dos adversários contra eles. Na frieza dos textos de Kraus, as verdadeiras intenções por trás das expressões infladas e distorcidas de escritores venais, políticos e propagandistas foram reveladas. Durante toda a sua vida, Kraus depurou incansavelmente a prosa vienense, a fim de devolver às palavras seus significados autênticos, tanto no texto impresso como no teatro e nas artes. Kraus tornou-se o líder dos chamados últimos puritanos, esses críticos "que rejeitam o uso cosmético da arte com o intuito de exibir a natureza da realidade" (Schorske, 1980, p. 363). Sendo um muckraker15 zeloso e guardião austero do trabalho, Kraus buscava, acima de tudo, preservar a santidade e o imediatismo da linguagem.

Assim como a raiva dos psicanalistas, a ira de Kraus, especialmente sua fúria contra os liberais, alimentava-se de um sentimento de traição. O furor e o desencanto em relação ao jornalismo descuidado e aos compromissos políticos do liberal Neue Freie Presse foram responsáveis por algumas das controvérsias mais acaloradas do início de sua carreira. Embora a amargura de Kraus refletisse decepção e distanciamento, sua maior expressão era a completa absorção na luta. Walter Benjamin resumiu em poucas palavras as origens do método de Kraus:

Aqui encontramos a confirmação de que todas as energias beligerantes desse homem são virtudes cívicas inatas; só na mêlée é que assumem seu aspecto combativo. Mas já ninguém as reconhece mais; ninguém pode compreender a necessidade que levou esse grande caráter burguês a se tornar um comediante, esse guardião dos valores linguísticos goethianos a tornar-se um polemista, ou por que esse homem de honra irrepreensível ficou louco. No entanto, isso inexoravelmente aconteceria, uma vez que ele se achava capaz de mudar o mundo, com sua própria classe, em sua própria casa, Viena. E, quando reconheceu a futilidade de seu empreendimento, rompeu abruptamente com eles e devolveu a questão às mãos da natureza - dessa vez, destrutiva, não criativa. (1931/1978, p. 271)

Kraus iniciou sua própria odisseia moral com uma condenação do retrocesso e da introversão da nova cultura estética burguesa. Seu primeiro panfleto, Die demolirte Literatur [A literatura demolida], atacava os representantes literários vienenses da arte pela arte - Hugo von Hofmannsthal, o jovem Arthur Schnitzler e os artistas, críticos e bajuladores da Jung-Wien16 - por seu distanciamento moral e resignação psicológica. O trabalho deles, Kraus prosseguia, exaltava a virtude da personalidade sem entender sua importância ética, além de não compreender o confronto do indivíduo com o mundo. O naturalismo não os influenciou: "A expressão nervos secretos agora funcionava; lançaram-se à observação de 'estados mentais' e quiseram fugir da clareza ordinária das coisas" (Kraus, 1897/1979, p. 278). A ira de Kraus concentrou-se contra o "impressionismo superficial" de seu porta-voz, Hermann Bahr, cujos julgamentos críticos continham "pancadas vagas" sem "agressão intencional" (p. 281).

Com um objetivo não diferente do de Kraus, Hanns Sachs publicou uma tradução das Barrack-room ballads [Baladas da caserna], de Rudyard Kipling, para disponibilizar poesia que "se recusou a curvar-se ao princípio da arte pela arte" (1910, p. 1). Do trabalho de Kipling, aprendeu-se que a fundação do Império Britânico era obra de criminosos, de jovens insatisfeitos com a "vida burguesa limitada", dos pobres, dos marginalizados que serviam ao governo, mas que, por sua vez, eram abusados por ele. Nas Baladas da caserna, segundo Sachs, "a forma artística é apenas a expressão de uma luta pelo factual" (p. 1).

Da mesma forma, a primeira publicação de Theodor Reik, um estudo sobre o escritor vienense Richard Beer-Hofmann, seu contemporâneo, alertava contra a introversão e a amoralidade da cultura estética de Viena. Em matéria de assunto, as primeiras histórias de Beer-Hofmann centravam-se em reflexões e memórias do "favorito do salão", um "homem do mundo" sem compromissos nem apegos. Como em Anatol, de Arthur Schnitzler, o herói de Beer-Hofmann permanecia o "observador frio de seu próprio ego" e o "dissecador refinado de seu próprio humor" (Reik, 1911, p. 3). Nessa fase inicial de sua carreira literária, Beer-Hofmann

correu o risco de seu íntimo fértil, mas casto, se perder no elegante, no delicioso, no "meramente belo"; de ver a arte como um refúgio para pessoas inadaptadas à confusão da vida, como um lugar de asilo para vagabundos psicológicos. (pp. 18-19)17

Com uma moral semelhante, os caminhos de Kraus e dos psicanalistas acabaram por divergir acentuadamente. Assim, Theodor Reik concluiu que Beer-Hofmann tinha-se salvado recorrendo à psicologia. Obras como "Miriams Schlaflied" [Canção de ninar de Miriam] descreviam a sobrevivência, através das gerações, de identidade espiritual judaica. A introspecção de Beer-Hofmann levou-o finalmente ao reconhecimento dos laços silenciosos entre indivíduos e gerações. Sua interioridade produziu "o discernimento da legalidade [Gesetzlichkeit] de nossa vida, a física e a espiritual" (p. 39).

A própria luta de Hanns Sachs pelo factual, seu esforço para ver a psique como se vê, nas palavras de Kraus, "a clareza ordinária das coisas", afastou-o do trabalho de crítica moral. A literatura levou Sachs para uma direção imprevista, terminando nas palestras noturnas de Freud na Universidade de Viena.

O elo foi minha admiração sem limites por Dostoiévski. Eu queria encontrar, guiado pela mão da ciência, os segredos da alma em sua nudez. Esperava percorrer em plena luz do dia os caminhos obscuros e labirínticos da paixão que ele tinha traçado. (Sachs, 1944, pp. 39-40)

Com o propósito de desnudar a realidade de seus artifícios, Karl Kraus mergulhou ainda mais na corrupção da sociedade. Travando suas próprias batalhas, voltava a encontrar um terreno comum com os psicanalistas. A seus olhos, a sociedade revelava a profundidade de sua corrupção e a insaciabilidade de seu apetite atacando simultaneamente a liberdade moral e os impulsos naturais. Assim, o moralista pregava a liberdade sexual, pois, no domínio da sexualidade, a intervenção das autoridades "sempre produziu a antimoralidade mais perversa" (1905, p. 19).

Os crimes perpetrados nos tribunais, a arena em que a sociedade procurava completar sua vitória sobre a liberdade individual, tornaram-se alvo da irritação e do desespero de Kraus. Em 1906, o processo contra a cafetina de um bordel, Regine Riehl, provocou a crítica inflamada de Kraus, em parte por ser um exemplo do desvio da reflexão moral sobre questões de genuína importância pública:

A sociedade despreza [a prostituta] mais profundamente do que o funcionário público corrupto, o burocrata venal e o jornalista facilmente subornado. Sente raiva contra a prostituição das mulheres como se pusesse em perigo os interesses sociais mais importantes, e considera a corrupção dos homens uma questão de ética individual. (1906, p. 9)

O caso Riehl, no entanto, demonstrou a Kraus mais do que a insistente confusão entre preocupações cívicas e questões de moralidade privada. A interferência do Estado na vida sexual permitia a exploração criminosa do desejo sexual.

Apesar de Riehl ter sido processada e finalmente condenada por exploração econômica e por maus-tratos físicos de suas funcionárias, seu estabelecimento, apontou Kraus, existia há anos com a proteção e o patrocínio das autoridades. O julgamento de Riehl desmascarou um sistema de controle social. Havia enfermarias para segmentos explorados da população - nesse caso, prostitutas: "A proprietária usurária do bordel é assistente das autoridades, um órgão executivo de moralidade". Para a vigilância, o Estado também nomeou "guardiões da moral" e uma "polícia moral": juízes, promotores e magistrados (p. 10). A cafetina ocupava a posição anômala e perigosa de intermediária entre os membros da sociedade e o Estado. A qualquer momento, o Estado podia escolher fazer dela um exemplo. Os abusados e alienados não recorriam à justiça. Na realidade, os costumes sociais eram as regras com as quais a sociedade mantinha confinada uma população banida:

A posse inestimável da humanidade de graciosidades e naturalidades elementares é ilegal. Em torno dela, uma cerca de arame farpado, por trás da qual começa a ordem da sociedade. Provenientes dessa última, quando escurece, hordas de homens desdenhosos correm para o distrito profano. Para aqueles, porém, que vivem no interior, nenhum caminho conduz à ordem da sociedade. Muitas vezes, o sangue daqueles que não se orgulham em ser ostracizados cola no arame farpado. Mas sempre que os representantes da ordem social surgem desprezam quem é expulso de dia, porque devem submetê-los a seu amor à noite. Assim, os do outro lado da cerca conservaram durante séculos uma passividade heroica para com a ordem social, que contra eles, diariamente, inventa um novo e malicioso jogo. (p. 25)

A moralidade e a sexualidade eram reféns das mesmas forças corruptas.

A causa da Die Fackel conquistou jovens escritores vienenses que partilhavam da crítica inflamada e da indignação de Kraus. Victor Tausk explicou a seus colegas psicanalistas que o "maior mérito" de Kraus era sua luta contra a "vulgarização do pensamento e do sentimento" (Nunberg & Federn, 1967, p. 388). De 1907 a 1909, Fritz Wittels contribuiu para a Die Fackel com uma série de artigos que defendiam a legalização do aborto, o tratamento das doenças venéreas, a educação sexual esclarecedora e a liberdade sexual irrestrita para casados e solteiros. Através da associação com a Die Fackel e da filiação à Sociedade Psicanalítica de Viena, Wittels foi um dos primeiros a unir os trabalhos de Kraus e Freud. Na introdução à publicação de seus ensaios em forma de livro, Wittels dizia que a miséria sexual criada pela "quietude artificial da paixão" constituía o sofrimento invisível da "sociedade burguesa". A psicanálise confrontava a supressão sexual e a "luta individual". No entanto, os ensinos de Freud confirmavam a acusação de Kraus contra a sociedade e tinham de ser apresentados ao público:

[Freud] deve tolerar que outros levem para a vida as verdades que descobriu. Os homens têm de viver sua sexualidade, senão tornam-se aleijados. Certamente não se suprimirá essa bendita verdade pela consideração de sua impopularidade. Freud apontou novos caminhos para a psicologia. Talvez seja virtuoso percorrer logo esses caminhos recém-abertos. (1909, pp. IX-XIII)

Segundo Edward Timms (1986), biógrafo de Kraus, Wittels se afastou das opiniões de Kraus e Freud sobre esse ponto. Para Kraus, a naturalidade da sexualidade opunha-se à fome de sensacionalismo do público e de Wittels. Escreveu:

Quem quer que coloque, na primeira página de um livro, o lema "Os homens têm de viver sua sexualidade, senão tornam-se aleijados" é um homem honesto, que leva a sério o esclarecimento da sexualidade e para quem nada é mais importante do que ela, com a possível exceção de seu sucesso. (Kraus, 1908, p. 20)

Da mesma forma, como Wittels esperava, Freud opôs-se à defesa feita por seu seguidor da licença sexual ilimitada. Numa reunião da Sociedade de Viena dedicada às propostas de Wittels, Freud explicou que o livro

provém de duas fontes diferentes - por assim dizer, de uma origem paterna e de uma origem materna. A primeira, representada pela Fackel, comunga em parte com nossa orientação quando afirma que a supressão da sexualidade é a raiz de todo o mal. Entretanto, nós vamos além e dizemos: libertamos a sexualidade através de nosso tratamento, mas não para que o homem seja a partir de agora dominado pela sexualidade, mas para tornar possível uma supressão - uma rejeição dos instintos guiada por um trabalho superior. A Fackel defende "viver" os desejos instintivos até a saciedade [ausleben]; distinguimos, no entanto, entre um processo patológico de repressão e um processo que deve ser considerado normal. (Nunberg & Federn, 1967, p. 89)

Mais tarde, Freud informou a Wittels e à Sociedade Psicanalítica de Viena que sua própria "relação pessoal com Kraus era tal que, mesmo antes de Wittels tornar-se um de nossos colaboradores, ele já pensava que a causa [da psicanálise] poderia ter um colaborador efetivo em Kraus" (p. 391). Em outubro de 1904, na época em que Freud começou a buscar ativamente discípulos fora da profissão médica, ele entrou em contato com Kraus. Depois de uma troca esporádica de cartas e informações durante dois anos, Kraus enviou a Freud uma cópia de "Der Prozess Riehl" [O processo Riehl]. Freud aproveitou a oportunidade para levantar a possibilidade de uma colaboração mútua. Numa carta datada de 11 de novembro de 1906, escreveu:

Meus sinceros agradecimentos pelo exemplar. Li, obviamente, sobre o caso Riehl na Fackel. Alguns trechos são indescritivelmente belos. Mais uma vez, as pessoas vão elogiá-lo por seu estilo e admirá-lo por sua perspicácia; mas não se envergonharão de si mesmas, que é o que você de fato visa alcançar. São extremamente numerosos e demasiadamente seguros em sua solidariedade para isso. Os poucos de nós devemos, portanto, permanecer unidos. (citado por Szasz, 1976, pp. 21-22)

O projeto de uma aliança, contudo, banhava-se na natimorta vida cultural vienense. Na ética e na ciência, a união entre Freud e Kraus havia-lhes sido temporariamente imposta pelos antagonistas que tinham em comum.

 

6.

O processo de formação na Sociedade Psicanalítica de Viena pode ser interpretado, em parte, como um esforço para transformar a indignação moral em consciência científica. Como Freud escreveu a Jung, com referência a possíveis aliados na Suíça, ele esperava "ser capaz de atrair os moralistas para a TA em vez de deixar os psicanalistas tornar-se moralistas" (McGuire, 1974, p. 295). Embora a aliança de Freud e Kraus não se tenha concretizado, Freud continuou, nesses primeiros anos de existência da Sociedade de Viena, em busca de discípulos entre críticos culturais. Quando Max Graf entrou para a Sociedade em 1905, Freud pressionou-o a trazer para a causa seus colegas de profissões literárias (Graf, 1942). O próprio Graf encarnava o crítico-psicólogo que Freud tanto valorizava entre seus seguidores. Sua odisseia pessoal simbolizava o percurso moral dos primeiros discípulos da psicanálise vienense.

A psicologia completou a viagem de Graf pela cultura wagneriana de sua juventude vienense. Renunciando à busca de poderes proféticos ou de salvação pessoal, tão ardentemente buscados pelos wagnerianos, Graf voltou-se para a investigação psicológica. Wagner já não lhe parecia um messias visionário ou particular, mas um problema histórico e psicológico. O problema histórico consistia na tentativa do compositor de assumir o papel de profeta e restaurar a ligação supostamente perdida entre arte e sociedade. O problema psicológico estava nos conflitos internos que produziram a necessidade de redenção pessoal de Wagner.

Na década de 1870, a meta de Wagner de regenerar a vida cultural alemã com uma nova arte encontrou, em Viena, seguidores entusiastas entre os estudantes universitários. Desiludidos com as reformas políticas do liberalismo e insatisfeitos com a visão racionalista do homem, esperavam uma sociedade na qual a população desfrutasse de plena participação política, igualdade econômica e unidade social. Os laços de comunidade seriam sustentados pelas emoções que a arte traria ao centro da vida social. O movimento foi de curta duração. Após deixar a universidade, os estudantes genuinamente comprometidos com os direitos humanos ajudaram a fundar a social-democracia austríaca. Como o próprio Wagner, os que não seguiram esse caminho caíram no nacionalismo alemão de direita e no antissemitismo.

Graf atribuiu ao idealismo dessa primeira geração a imagem distorcida do compositor: "De acordo com suas próprias imagens, os guerreiros das batalhas alemãs fizeram esboços da imagem de Wagner: a imagem do poeta épico alemão, o arauto das emoções heroicas, o mestre de toda arte forte e triunfante" (1900, p. 7). A força de regeneração cultural na arte de Wagner provou ser artificial:

[Sua] obra de arte não estava, como a tragédia grega, no início de uma era, uma civilização, um povo, mas no final, como uma grandiosa síntese. ... Baseia-se nos fragmentos de uma cultura antiga e tenta, mais uma vez, tornar inconscientes suas forças conscientes mais elevadas. (pp. 21-22)

A geração universitária da década de 1890, o grupo de Graf, perdeu o interesse na ideia de transformação cultural do compositor. Adotaram, em vez disso, a mensagem de salvação pessoal proclamada em Parsifal:

Nenhuma música no mundo falava tanto a nossas paixões, a nossos anseios, a nossos tormentos. ... Assim, vimos em Wagner não, como a velha geração, o poeta das emoções heroicas, mas o grande feiticeiro musical de todas as feridas e sofrimentos mentais. (p. 8)

Os novos românticos, como os primeiros wagnerianos, agarraram-se a uma crença no poder da arte de transcender o conflito, fosse ele social ou psíquico.

De acordo com Graf, a psicologia pôs fim às ilusões wagnerianas. A ciência da mente descobriu o significado da arte nos fundamentos interiores da criatividade. À luz da análise psicológica, as obras de arte revelaram o "tipo psíquico" de seu criador. No caso de Wagner, a criação musical expressava o desejo de libertação da luta interior. A fonte de sua criatividade, desde a concepção de O holandês voador até a conclusão de Parsifal, residia em seu incessante esforço para escapar do conflito psicológico entre as forças da sensualidade, do poder e da saúde e as da negação, da repugnância e da doença. Em Parsifal, Wagner finalmente abraçou a prescrição schopenhaueriana para a liberdade interior: extinguir o desejo.

Por trás da análise de Graf a respeito de Wagner, da arte e da psicologia estava a figura de Friedrich Nietzsche. Em O nascimento da tragédia (1872/1967), o jovem Nietzsche exaltou o objetivo de Wagner de regenerar a sociedade através da arte e de reviver a força do instinto dentro da música. Os seguidores vienenses de Wagner, no entanto, observavam o afastamento do filósofo em relação ao compositor e sua renúncia ao idealismo wagneriano. Graf, juntamente com outros vienenses de sua geração, incorporou os novos ensinamentos de Nietzsche: "Um grande guia, nosso instrutor nas batalhas da vida espiritual mergulhou com força violenta no abismo da noite eterna. Honra à memória de Friedrich Nietzsche!" (1900, p. 6).

Segundo Graf, Nietzsche enfrentava lutas internas semelhantes às de Wagner. O nascimento da tragédia apresentava o drama trágico grego como a interação construtiva de forças que se enfrentavam furiosamente dentro do filósofo:

Dionisio é o princípio em movimento - a luta, o tumulto dos instintos, o turbilhão da paixão; Apolo ordena e obriga. ... Um submundo dionisíaco passional, em relação ao qual os olhos de Apolo acautelam-se com abençoada lucidez: assim lhe apareceu a imagem do mundo grego, em grande semelhança com seu ser interior. (p. 78)

Esquilo, o "dramaturgo dionisíaco", deu voz ao sofrimento do filósofo. Para o jovem Nietzsche, Wagner parecia ser a trágica encarnação moderna do poeta. No entanto, à medida que seu conflito interior se tornou mais grave, o ponto de vista de Nietzsche em relação ao mundo e ao compositor tornou-se mais incisivo. Bayreuth não sublimou o desejo inconsciente, mas encorajou perigosas ilusões. No fim, Nietzsche renunciou completamente ao objetivo de transformação cultural: "Nietzsche tinha visto o mundo como um romântico dionisíaco; agora parecia desencantado com ele; a fantástica nuvem parecia ter-se rompido e, com visão dura e clara, ele via as forças que moviam o mundo" (pp. 83-84).

O grau de introspecção alcançado por Nietzsche nunca tinha sido alcançado por ninguém, nem é provável que venha a ser alcançado novamente. O que nos incomoda é que Nietzsche transformou é em deveria, o que é estranho à ciência. Nisso ele continuou sendo, afinal, o moralista; não foi capaz de libertar-se do teólogo. (Nunberg & Federn, 1967, p. 32)

Com esse comentário, Freud não apenas separou as ideias de Nietzsche das da psicanálise, mas lembrou a seus seguidores o passo radical que tinham dado ao ingressar na Sociedade de Viena e a vigilância interna necessária para proteger a independência intelectual do movimento. Aqueles que permaneceram com ele abandonaram definitivamente a anterior vocação sagrada para abraçar uma vocação científica. A retidão moral e o protesto marcaram a ruptura inicial desses psicanalistas com a sociedade e o passado, enquanto seu compromisso com o movimento marcou a segunda e decisiva ruptura.

Os primeiros discípulos vienenses da psicanálise percorreram um longo trajeto, em que deixaram de lado o absolutismo moral para adotar um posicionamento de interpretação científica do dualismo da psique. Contudo, a consciência da dinâmica entre repressão e desejo, bem como da dualidade do ego e do id, nunca foi apenas uma questão científica. Com exceção de Karl Kraus, os moralistas vienenses procuraram desesperadamente descartar o dualismo psíquico, quer exaltando os ditames da consciência, quer glorificando as exigências do instinto. Nietzsche tornou-se para eles uma linguagem secreta, na qual traduziam tudo o que compreendiam. Dentro do movimento psicanalítico, entretanto, Freud lentamente levou seus discípulos não somente ao entendimento intelectual, mas à aceitação interior do dualismo inelutável da alma humana. No processo, sua percepção moral e sua consciência científica ficaram impregnadas, cada vez mais profundamente, de uma consciência trágica. Desse modo, os psicanalistas, que finalmente completaram seu percurso, seguiram um caminho que conduziu não só às descobertas de A interpretação dos sonhos, mas também à conceitualização final da eterna luta entre Eros e a morte, em O mal-estar na civilização.

Talvez seja irônico o fato de que essas pessoas aderiram ao movimento originalmente graças a sua consciência. No entanto, a justa indignação certamente forneceu ímpeto e confiança para a revolução intelectual de Freud. Também não se pode ignorar a importância do engajamento apaixonado, ainda que as rupturas, constantes entre os psicanalistas de Viena, refletissem o caráter intransigente de seus membros. Todavia, de forma mais significativa, o movimento utilizou e afirmou sua vocação, dando-lhe novo conteúdo e direção. Entre os membros da Sociedade de Viena, a intensidade de seu engajamento moral tinha-se preservado ao dedicarem sua vida ao movimento psicanalítico. Para os vienenses, a psicanálise significava "a causa", uma odisseia que se tornou um trabalho de vida.

Um percurso vienense: jovens insatisfeitos tornaram-se moralistas, moralistas tornaram-se psicanalistas. Assim, o movimento de Viena transformou-se em seu oposto.

 

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Correspondência:
Otterbein University
History & Political Science
1 S Grove St, Westerville, oh 43081, USA
Towers Hall, Room 217
Tel.: 614 823-1311
lrose@otterbein.edu

Recebido em 18/3/2019
Aceito em 1/4/2019

 

 

1 Trabalho original publicado em 1992: Psychoanalytic Quarterly, 61,590-623. Um relato ampliado sobre este período da história psicanalítica vienense pode ser encontrado no livro The Freudian calling: early Viennese psychoanalysis and the pursuit of cultural science (Rose, 1998)..
2 O número de membros em 1906-1907, quando as minutas, a frequentação e o recrutamento anual começaram a ser registrados, era 17. Cresceu para 30 em 1910-1911, o ano da ruptura entre Freud e Alfred Adler, chegou a 32 em 1912-1913 e caiu para 22 no começo da Primeira Guerra Mundial. A frequentação das reuniões era muito menor, com uma média de 10 pessoas em 1906-1907, 19 em 1910-1911 e 14 em 1912-1914. Esses dados foram obtidos a partir do que mostram as minutas e excluem os convidados da Sociedade ou membros visitantes das Sociedades de outras cidades.
3 NT: cultura dos sentimentos.
4 NT: a "primeira sociedade" era a aristocracia, enquanto a "segunda sociedade" era formada por cerca de 200 famílias da elite comercial, financeira, industrial e cultural de Viena no fim do século XIX (P. Madsen, Challenging identities: European horizons, New York, Routledge, 2017, p. 109).
5 Os registros do percurso universitário dos psicanalistas e de seus diplomas mostram dados da profissão de 14 pais: três comerciantes, dois funcionários públicos, dois jornalistas, um diretor de banco, um diretor ferroviário, um advogado, um médico, um inspetor ferroviário, um produtor comercial e um contador de uma empresa de vendas. Outra fonte mostra que o pai de David Bach, falecido no ano que este entrou na universidade, começou trabalhando como bibliotecário e, depois, foi proprietário de uma pequena chapelaria (Kotlan-Werner, 1978). O pai de Isidor Sadger, cuja profissão ignoramos, faleceu antes que o filho ingressasse na universidade. Para mais informações, ver Rose (1986).
6 O Central-Organ des Vereins für Verwertunggeistiger Arbeit [Órgão Central da Sociedade para a Utilização do Trabalho Intelectual] (1868) encontra-se na Biblioteca Nacional Austríaca, em Viena.
7 Ver Reitler (1879). Reitler foi também compositor de operetas com o pseudônimo de Emil Arter. Pode-se achá-las na Biblioteca Nacional Austríaca e na Biblioteca Firestone, da Universidade de Princeton.
8 Ver Mayer (1953). Max Graf lembrava-se de Karl Kraus como um companheiro de classe no Akademisches Gymnasium (ver Nunberg & Federn, 1967).
9  Cinco membros - Max Kahane, Isidor Sadger, Maxim Steiner, David Bach e Theodor Reik - moravam e foram à escola no bairro de Leopoldstadt, onde vivia a maioria dos judeus vindos do Leste Europeu estabelecidos em Viena a partir de 1850. Kahane, Sadger e Steiner foram do Sperlgymnasium, ginásio dos estudos secundários de Freud. Alfred Adler, nascido em Funfhaus, bairro de classe média baixa e operário nos subúrbios de Viena, frequentou o Gymnasium no subúrbio de Hernals. Hanns Sachs e Fritz Wittels frequentaram o Maximilliansgymnasium, situado no bairro universitário. Um único membro da Sociedade Psicanalítica de Viena rejeitou o prestigioso Theresianum. Segundo seu curriculum vitae, Alfred von Winterstein o abandonou no final do primeiro ano para inscrever-se no mais popular Franz Josefgymnasium.
10  Em 27 de julho de 1909, Winterstein publicou o poema "Der Stundenzeiger" [O ponteiro das horas] na Die Fackel. Em 1910, reinscreveu-se em filosofia na Universidade de Viena. No número 338 da Die Fackel, de dezembro de 1911, figura o anúncio de uma coletânea de sua poesia, Gedichte [Poemas]. Não consegui localizar o livro.
11 Em suas inscrições universitárias, Reitler e Winterstein se declaram católicos. Segundo Ernst Federn (comunicação pessoal, 1979), a família de Reitler, judia, se havia convertido.
12 Um dos biógrafos de Alfred Adler (Bottome, 1939) afirma ter ele se convertido ao protestantismo. Em sua inscrição universitária, entretanto, Adler se apresenta como judeu. Embora seu pai fosse judeu, a esposa de Victor Tausk se converteu ao cristianismo. Tausk escolheu ser batizado protestante antes de se casar. Contudo, nunca deixou de se identificar como judeu, e poucos conheciam sua conversão (Freud, 1901/1960; Roazen, 1969). Ainda que judeu, Otto Rank se apresentou na universidade como sem religião em 1908. No mesmo ano, converteu-se ao catolicismo, justificando para o governo sua mudança de nome de Rosenfeld para Rank, dissociando-se assim de seu pai. Em 1922, ele voltou ao judaísmo (ver Klein, 1981). Max Graf lembrava: "Quando meu filho nasceu, eu me perguntava se não devia protegê-lo do ódio antissemita dominante, na época apregoado em Viena por um homem muito popular, o Dr. Lueger. Eu não tinha certeza se não seria melhor que meu filho crescesse na fé cristã. Freud me aconselhou a não fazê-lo" (1942, p. 473).
13 A respeito do pai de Rank, sua família, sua escolarização e seu trabalho, ver Klein (1981).
14 Para as ideias iniciais de Rank sobre a renovação cultural, ver Klein (1981).
15 NT: termo inglês usado para referir-se a jornalistas norte-americanos que, no começo do século XX, denunciavam publicamente a corrupção política e institucional (en.wikipedia.org/wiki/Muckraker).
16 NT: sociedade literária vienense do fim do século XIX (en.wikipedia.org/wiki/Young_Vienna).
17 No social-democrata Arbeiter Zeitung, em que ele era editor musical, David Bach exprimiu preocupações morais e estéticas com a ideologia da arte pela arte. Em março de 1909, escreveu que "o grito dos que denunciam como reacionária e filistina até mesmo a palavra moralidade, como um perigo para a arte livre, nada muda. Na verdade, nada há de mais perigoso e reacionário, e perigoso também para a arte, que esse esteticismo extremista. Certamente, a arte tem suas próprias leis que apenas o artista, e mais ninguém, pode mudar ou recriar. No fim das contas, as condições fundamentais de toda arte devem ser respeitadas. A autonomia da arte é a condição de sua existência. A autolegislação [Selbstgesetzlichkeit] admite literalmente o caráter compulsivo da lei como um pressuposto dado, a moralidade em seu sentido mais elevado, através do qual sua autonomia é garantida desde sempre" (p. 1).

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