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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.1 São Paulo jan./mar. 2019

 

RESENHAS

 

La haine en psychanalyse1: Donald Winnicott, Masud Khan et leur triste histoire

 

 

Olivier DouvilleI; Tradução Hélène Schmitt-Prado

IPsicanalista, membro do Espace Analytique, psicólogo clínico, professor da Universidade de Paris Oeste Nanterre - La Défense, membro do Centro de Pesquisas Psicanálise, Medicina e Sociedade (CRPMS) da Universidade de Paris 7 - Denis Diderot

Correspondência

 

 

Autor: Luiz Eduardo Prado de Oliveira
Editora: Liber, Quebec, 2018, 178 p.
Resenhado por: Olivier Douville

 

 

Este livro nasceu da leitura, feita pelo autor, de um artigo de Brett Kahr (2011), prolífico psicanalista britânico, sobre as raízes biográficas de "O ódio na contratransferência", de Winnicott. Intrigado pelas teses apresentadas, fascinado e horrorizado, Luiz Eduardo Prado de Oliveira começou a buscar outras interpretações acerca das fontes desse texto de Winnicott, encontrando-as em biografias escritas por autores diversos, entre as quais sem dúvida a mais importante é a de Robert Rodman (2003). Outras, porém, como a de Goldman (1993), não escaparam à sua curiosidade, assim como artigos esparsos. É uma pena que não tenha prestado atenção em Jacobs (1995), outro biógrafo de Winnicott, e também que pareça não gostar da biografia de Phillips (1988), não levando em consideração ter sido ela a primeira, redigida talvez sob o impacto de um luto difícil de ser feito - biografia que é mais uma série de impressões que um verdadeiro estudo sobre a vida de seu sujeito.

Essa impressionante quantidade de leituras serviu para aumentar a curiosidade do autor. Ele percebeu que algo não tinha sido dito a respeito de Winnicott, e que esse algo se escondia na análise de Masud Khan. Prado se pôs então a ler as biografias de Khan, fundamentalmente as de Hopkins (2006) e de Willoughby (2005), mas sem se esquecer da primeira, cujo título foi dado pelo próprio Khan à autora, Judy Cooper (1993), sua amiga íntima, que começou assim a escrevê-la e a fazer o luto de tal personagem enquanto o amigo ainda estava vivo. A identificação de Khan a Otelo de Shakespeare é verdadeiramente emocionante.

Permito-me fazer pequenas observações que escaparam a Prado, mergulhado no caldeirão de suas pesquisas. Khan faleceu em 1989, e quatro anos depois a biografia escrita por Cooper foi publicada. Winnicott morreu em 1971, e apenas 17 anos mais tarde um esboço de biografia veio a público. Rodman, por sua vez, teve que acelerar a escrita da biografia de Winnicott, a fim de publicá-la antes das biografias de Willoughby e de Hopkins sobre Khan. É verdade, contudo, que há muito Hopkins já publicava importantes artigos a respeito de Khan, e que boa parte deles integrou sua obra. Curiosidades editoriais.

Com La haine en psychanalyse, Prado apresenta o fruto de suas pesquisas, que é muito rico. Com tato e cautela, explica, analisa e critica cada um dos autores que leu, guardando o que lhe parece mais importante. Mas falta algo. Parece que suas pesquisas ainda não terminaram. No final do percurso, Prado abre mais uma pasta, em que se encontram os estudos de Julia Borossa (1997, 2012) sobre Khan e a tese de Benjamin Poore, com publicação prevista para 2019, que inaugura novas trilhas para a reflexão. Khan ultrapassa Masud e renasce enquanto encarnação do analista imigrado, denunciando a política de exclusão, mas não somente ela. A casa da psicanálise, que deveria ser de hospitalidade e acolhimento, parece ter sido bem diferente já na época de Freud.

 

Paradoxos da psicanálise

Vivemos um paradoxo: em carta a Jung, datada de 6 de dezembro de 1906, Freud define a psicanálise como "uma cura essencialmente efetuada pelo amor" (McGuire, 1976, p. 53); entretanto, sete anos mais tarde, em 1913, afirma que "a aptidão para a gênese da moral baseia-se na circunstância de no desenvolvimento o ódio ser precursor do amor" (Freud, 2010b, p. 336), e pouco depois, em 1915, de maneira mais incisiva: "Enquanto relação com o objeto, o ódio é mais antigo que o amor" (Freud, 2010a, p. 79). Eis o paradoxo: a psicanálise seria uma cura pelo amor, mas o amor se originaria no ódio.

Freud abordou o amor de transferência, mas evitou tratar do amor de contratransferência, embora tivesse sob os olhos a paixão de Jung por Sabina Spielrein, a partir da qual inventou o termo contratransferência, experiência reforçada pela paixão de Ferenczi pela própria enteada e paciente Elma Pálos, aliás alternadamente paciente de Freud e de Ferenczi. Nada disso levou Freud à conclusão de um ódio de transferência ou de contratransferência, apesar da presença de ódio em ambas as situações analíticas. Tanto no caso de Jung quanto no caso de Ferenczi, as paixões provocaram a destruição da análise. Para Winnicott, bastou deduzir o ódio na contratransferência a partir das teses freudianas sobre o amor e o ódio, bem como das experiências de Jung e Ferenczi, que sem dúvida conhecia pelas histórias contadas por Michael Balint, seu amigo.

Há anos, com impressionante constância, "O ódio na contratransferência" é um dos textos mais lidos da história do movimento psicanalítico, como mostra o Psychoanalytic Electronic Publishing (PEP), incontornável base de dados para quem se interessa pelo panorama do movimento psicanalítico internacional. Esse texto, célebre entre os mais célebres, foi apresentado por Winnicott numa reunião da Sociedade Britânica de Psicanálise, no dia 5 de fevereiro de 1947, com o modesto título de "Notes on hate". Essa comunicação ficou esquecida nas gavetas do autor até ser publicada no número 30 do International Journal of Psychoanalysis, em 1949. A última edição francesa do texto apresenta comentários muito interessantes sobre as circunstâncias que o marcaram e sobre sua situação na linha dos estudos psicanalíticos a respeito da contratransferência (Smirou, 2014).

Prado discute e enriquece as teses do autor, tanto mais porque já havia estudado de perto a questão, o que parece ter esquecido em seu livro, pois não o menciona (Prado de Oliveira, 1997, 1999, 2000). Ah, esses pesquisadores... Olham para a Lua e nem percebem a pedra em que vão tropeçar. Em casa de ferreiro, espeto de pau. O que Prado traz, entretanto, é bastante rico: ele mostra que o observado por Winnicott em termos de conflitos transferenciais e contratransferenciais, somando-se a conflitos entre mãe e filha, era o que acontecia de terrível entre Melanie Klein e sua filha Melitta Schmideberg durante o período das Grandes Controvérsias,2 quando um ódio mútuo apareceu à luz do dia, a mãe adotando uma atitude de compaixão odiosa em relação à filha, a qual ela dizia estar louca.

Permito-me mais uma vez acrescentar duas observações às que fazem Smirou e Prado com muita pertinência. A primeira é a seguinte: o número 30 do International Journal of Psychoanalysis, em que aparece o texto de Winnicott em 1949, traz também alguns artigos de Sándor Ferenczi, entre os quais "Notas e fragmentos" , que inclui "O efeito traumático fundamental do ódio materno ou da falta de afeto", datado de 31 agosto de 1930, em que, de maneira pioneira em psicanálise, o analista húngaro apresenta a tese que será integralmente retomada por Winnicott em "O ódio na contratransferência" como um dos argumentos para afirmar o ódio do psicanalista para com o paciente, cuja origem, generalizada e justificada, seria o ódio recalcado da mãe para com o bebê, decorrente de 18 razões cuidadosamente listadas pelo meticuloso analista britânico. Em suas notas a respeito de Elizabeth Severn, Ferenczi foi o primeiro a mencionar o ódio do analista em relação ao paciente, como Prado indica com justeza. Mas teria ele esquecido o ódio de Clara Thompson para com seus pacientes, que Ferenczi menciona em "O médico odiando os pacientes", cujas primeiras linhas se referem explicitamente a Freud e a seus sentimentos negativos para com os próprios pacientes?

A segunda observação que acrescento é sobre a reação institucional aos textos de Winnicott e de Ferenczi, que não tardou. Logo em seguida, no número 31, de 1950, o International Journal of Psychoanalysis apresentou uma resposta organizada a tamanhas transgressões, girando quase que inteiramente ao redor do término da análise. Que James Strachey não havia terminado a sua quando analisou Winnicott era um fato bem conhecido, objeto de inúmeras fofocas na Sociedade Britânica de Psicanálise. Daí para a dedução de que Winnicott tampouco havia terminado a sua quando escreveu o artigo sobre o ódio, e que lhe faltava análise, foi um passo. Tivesse ele contra-argumentado que, após 10 anos de análise com Strachey (entre 1923 e 1933), havia retomado a análise com Joan Riviere (entre 1936 e 1941), seria evidente para todos que a insistência no ódio do analista em relação ao paciente, e mesmo a simples existência do fenômeno, só poderia resultar de uma análise não terminada.

Mais tarde, em 1969, Winnicott fez uma observação complementar à sua lista das 18 razões que teria uma mãe para odiar o filho, ainda que ele não associe o texto de 1969 a "O ódio na contratransferência", mas a outros artigos da mesma época. Depois de uma longa explicação sobre o ódio e a ambivalência das mães em relação aos filhos, Winnicott afirma: "No momento em que a mãe odeia, ela demonstra uma ternura especial, e não existe maneira para uma criança lidar com esse fenômeno" (1994, p. 194). Esse ódio e essa ternura existiriam igualmente na contratransferência do analista. Em seu livro, Prado os verifica na análise de Masud Khan por Winnicott. Mas talvez o ódio não elaborado pelo analista, que reaparece enquanto ódio na contratransferência, não fique restrito a ela, transbordando em relação às instituições psicanalíticas, campo de tantos conflitos, exclusões e anátemas. Pior: talvez ele resida também no centro da interpretação psicanalítica e no âmago da elaboração teórica dos psicanalistas. Essas questões, que o livro deixa no ar, têm certa tradição no pensamento psicanalítico francês. Lembremos, por exemplo, o magnífico trabalho de Piera Aulagnier (1975) ou o de Micheline Enriquez (1984). Entretanto, são obras que permanecem relativamente isoladas. Talvez agora este livro sobre o ódio na psicanálise e o peso dos acontecimentos no Brasil e no mundo levem os psicanalistas a se interessar enfim por esse capítulo de sua história, centrado em algo que age neles sem que o saibam, o ódio.

 

Referências

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Correspondência:
Olivier Douville
douvilleolivier@noos.fr

 

 

1 O ódio na psicanálise: Donald Winnicott, Masud Khan e sua história triste.
2 Prado, aliás, traduziu do inglês para o francês o volume Les Controverses: Anna Freud - Melanie Klein,1941-1945 (King & Steiner, 1996).

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