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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.1 São Paulo jan./mar. 2019

 

RESENHAS

 

A mente de Adolf Hitler

 

 

Luciana Saddi

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Autora dos livros O amor leva a um liquidificador (Casa do Psicólogo), Perpétuo Socorro (Jaboticaba), Alcoolismo (Blucher) e Educação para a morte (Patuá)

Correspondência

 

 

Autor: Walter C. Langer
Editora: Leya, Rio de Janeiro, 2018, 248p.
Resenhado por: Luciana Saddi

 

 

Em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, Walter C. Langer (1899-1981), psicanalista americano que estudou com Freud em 1930, em Viena, tendo sido analisado por Anna Freud, recebeu a missão de elaborar um estudo psicológico de Hitler. Langer foi procurado, pessoalmente, pelo general William Donovan, então chefe do Escritório de Serviços Estratégicos (órgão de inteligência anterior à CIA), que acreditava na psicologia como ferramenta de informação de guerra. O objetivo era a vitória o mais rápido possível.

O sucesso dos Aliados foi construído por variadas ações conjuntas de inteligência e estratégia militar, esforço industrial, conhecimento científico, gestão de recursos humanos e naturais, logística e contribuições que exigiram sangue, suor, lágrimas e vidas. Faltava ainda acrescentar a psicanálise ao arsenal de guerra.

Acrescido de um prefácio, o relatório virou livro, lançado agora no Brasil. Ele atesta que, em tempos de conflito, todo e qualquer conhecimento é relevante e, principalmente, que não se deve economizar ou desprezar esforços para derrotar o inimigo.

Antecipar-se às ações do Führer era o principal objetivo do estudo. Os Aliados sabiam que ganhariam a guerra, que a vitória era uma questão de tempo. Mesmo assim, precisavam prever os movimentos de Hitler e também dos alemães depois da derrota. Como o ditador reagiria sob intensa pressão?

Langer previu que Hitler se isolaria, até o suicídio, à medida que os fracassos nazistas se tornassem evidentes; também, que se afastaria dos generais mais profissionais e inteligentes, capazes de confrontá-lo, para manter intactos seu poder e as próprias ilusões de onipotência. Anteviu ainda a possibilidade de golpe e atentado por parte de militares alemães bem preparados e menos ideológicos. O comando Aliado considerou o estudo uma valiosa fonte de informação estratégica. O relatório foi se mostrando acertado com o desenrolar dos acontecimentos.

O estudo está dividido em seis partes: "Como ele acredita ser", "Como o povo alemão o conhece", "Como seus colaboradores o conhecem", "Como ele se conhece", "Análise e reconstrução psicológica" e "Seu provável comportamento no futuro". É um relatório de fôlego, bastante amplo e bem detalhado, escrito sem jargões ou conceitos técnicos, com uma linguagem simples e acessível. O conteúdo é muito interessante - afinal, quem nunca teve curiosidade a respeito da mente desse monstro?

Para o jornalista Eurípides Alcântara, que assina o excelente prefácio, é questionável a importância de estudos psicológicos a respeito de mandatários e políticos com vocação para arrebatar as massas. Langer, porém, acreditava que algumas tragédias poderiam ter sido evitadas se o estudo tivesse sido feito antes.

O psicanalista percebeu que não era suficiente descrever a personalidade, listar as idiossincrasias, formular hipóteses patológicas para daí prever atos; era necessário penetrar na natureza da relação entre líder e povo, demonstrar como os alemães, imersos na humilhação e na derrota da Primeira Guerra, encontraram seu messias. Embora Langer não cite textualmente o ensaio Psicologia das massas e análise do eu, sabe-se que Freud percorre o caminho que vai da análise do indivíduo à compreensão da sociedade, afirmando: "A psicologia individual é também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas inteiramente justificado" (1921/2011, p. 14).

O encantamento e a sujeição do povo ao líder - tese cara ao ensaio freudiano - originam-se na relação infantil de submissão ao pai, que tudo sabe e tudo pode. Em Minha luta, segundo Langer, Hitler diz que o povo é análogo às mulheres, que buscam um homem forte para dirigi-las e submetê-las. As massas se sentiam possuídas por seus arrebatados discursos, que prometiam gozo, poder e glória. Cegas, jamais questionaram sua aparência afeminada, tão pouco ariana, por exemplo, ou a distância da própria família, com quem Hitler não se comunicou por uma década. Nunca perguntaram que tipo de homem renunciaria ao sexo por considerá-lo uma fraqueza a converter os homens em tolos. O povo simplesmente transformava as anormalidades e esquisitices em virtudes, com o auxílio da engenhosa propaganda e da infantilização característica da psicologia das massas. É espantoso saber que o povo alemão via Adolf Hitler como um homem da paz.

O estudo mostra como, ardilosamente, os judeus, que eram segregados e bastante malvistos na Europa, foram transformados em bode expiatório de todos os problemas da nação e do próprio Führer. Os mecanismos de defesa mais primitivos observados pela psicanálise foram parte do enredo trágico e imoral. Acredito que o mecanismo de projeção, além de ser extremamente frequente - muito simples de entender -, seja aceito por todo e qualquer psicanalista e/ou psicólogo. Não há mistério nem complexidade na sua mecânica e ação; no entanto, seu potencial destrutivo é gigantesco.

É chocante constatar que milhões de pessoas, mesmerizadas, tenham se deixado levar por um discurso raso e obscuro, a ponto de autorizarem ações criminosas em escala industrial. Enviaram seus filhos à guerra, facilitaram a própria destruição e tornaram realidade o assassinato de milhões de inocentes. O poder do ódio projetado na figura do bode expiatório e a idealização do salvador continuam, ainda hoje, a exercer fascínio nas massas.

O conhecimento das formas de pensar do Führer - seus medos, fraquezas, qualidades, segredos, traumas, maneiras de tomar decisões -, combinado ao estudo da dinâmica que havia entre ele, seus colaboradores e o povo, tornou-se um valioso instrumento da inteligência de guerra. Infância, sexualidade, relações com progenitores e irmãos foram minuciosamente investigadas, revelando um quadro bizarro e desolador. Pai de humor lábil, alcoolista, agressivo, capaz de dar surras homéricas no filho num momento, digno e justo em outro, um comportamento impossível de prever. Mãe sempre submissa, enteada do pai, deprimida, mimara e superprotegera Adolf para compensar perdas e faltas. Vários filhos, irmãos de Hitler, natimortos ou mortos na tenra infância. Ele foi um garoto inseguro, medroso, preguiçoso, deprimido e desamparado. Sua sexualidade permaneceu infantilizada e grotesca por toda a vida. Langer aproxima Hitler do leitor. Em alguns momentos, nós nos percebemos mais compreensivos em relação ao monstro do que seria tolerável.

O estudo jamais justifica o ditador e suas ações criminosas. Ao contrário, elabora um retrato detalhado das características psicológicas de Hitler, retrato que viria a ser corroborado por biógrafos e estudiosos. Há também, no relatório, uma hipótese diagnóstica - bastante discutível - de psicopatia neurótica, o que hoje seria considerado personalidade dissocial. Tipificações diagnósticas são menos importantes do que realidades psíquicas. Mais relevante é saber o que homens vivenciam e como pensam para agir. Traduzir a subjetividade do indivíduo - angústias, sofrimentos e defesas - em linguagem compreensível foi o desafio de Langer, algo plenamente realizado.

Para aqueles familiarizados com a metodologia da psicanálise, não é estranha a elaboração de um estudo psicológico na ausência do paciente. É frequente psicanalistas realizarem tais tipos de estudo, cujos resultados vão muito além de meras especulações. De fato, alguns saltos no conhecimento psicanalítico foram dados dessa maneira. É que o método psicanalítico permite inferências, estabelece relações com casos semelhantes, aplica teorias a dados, procura padrões e, sobretudo, organiza reconstruções a partir de elementos dispersos em sonhos, textos ficcionais, ensaios ou autobiografias, bem como em relatos de familiares e amigos. Esse é o material do presente estudo. Psicanalistas e arqueólogos recolhem os mais diversos dados. Fragmentos, detalhes, restos, elementos inicialmente desprovidos de importância, os quais, após engenhoso e criativo esforço de interpretação, permitem a composição de perfis psicológicos e teorias sobre o funcionamento da psique.

A análise de Hitler não é diferente, e o resultado é fascinante e profundo. O estudo permanece vigoroso e significativo depois de tantos anos. E vai além: ele nos faz ver que há muitos Hitlers espalhados pelo mundo. Conhecemos tantos homens e mulheres com perfis semelhantes! Da leitura do estudo surge uma certeza (e um medo subsequente): inúmeros Hitlers vivem ao nosso lado, à espera de circunstâncias históricas para emergir e espalhar o caos.

 

Referências

Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 15, pp. 13-113). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Luciana Saddi
Praça Morungaba, 66
01450-090 São Paulo, SP
Tel.: 11 99983-7195
lusaddi@uol.com.br

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