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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.53 no.2 São Paulo abr./jun. 2019
OUTRAS PALAVRAS
Winnicott, Khan, Lacan1: o ato interpretativo na clínica psicanalítica: teorias do transgênero
Winnicott, Khan, Lacan: the interpretive act in the psychoanalytic clinic: theories of the transgender
Winnicott, Khan, Lacan: el acto interpretativo en la clínica psicoanalítica: teorías del transgénero
Winnicott, Khan, Lacan: l'acte interprétatif dans la clinique psychanalytique: théories du transgenre
Luiz Eduardo Prado
Professor emérito de psicopatologia e diretor de pesquisas no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 - Denis Diderot. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Membro titular do Espace Analytique, em Paris
RESUMO
"O ódio na contratransferência" é um dos textos fundamentais de Winnicott e um dos mais lidos na história do movimento psicanalítico. Pouco se conhece, entretanto, de seus antecedentes e de seu ressurgimento na clínica desse analista, de seu contexto e de suas implicações. Este artigo visa a esclarecê-los, mostrando como o ódio se atualiza no ato interpretativo, quando analista e paciente se indiferenciam.
Palavras-chave: ódio, interpretação, identidade, gênero
ABSTRACT
"Hatred in Countertransference" is one of Winnicott's fundamental texts and one of the most read in the history of the psychoanalytic movement. Little is known, however, of its antece-dents and its resurgence in this analyst's clinic, its context and its implications. This article aims to clarify them, showing how hatred is updated in the interpretive act, when analyst and patient are undifferentiated.
Keywords: hate, interpretation, identity, gender
RESUMEN
"El odio en la contratransferencia" es uno de los textos fundamentales de Winnicott y uno de los más leídos en la historia del movimiento psicoanalítico. Sin embargo, se conoce poco de sus antecedentes y de su resurgimiento en la clínica de este analista, de su contexto y de sus implicacio-nes. Este artículo busca aclararlos, mostrando cómo el odio se actualiza en el acto interpretativo, cuando analista y paciente se indiferencian.
Palabras clave: odio, interpretación, identidad, género
RÉSUMÉ
"La haine dans le contre-transfert" est l'un des textes fondamentaux de Winnicott et l'un des plus lus de l'histoire du mouvement psychanalytique. On sait cependant peu de choses sur ses antécédents et sa résurgence dans la clinique de cet analyste, son contexte et ses implications. Cet article vise à les clarifier, en montrant comment la haine est mise à jour dans l'acte interprétatif, lors-que l'analyste et le patient sont indifférenciés.
Mots-clés: haine, interprétation, identité, genre
Terminando uma pesquisa sobre o ódio na psicanálise, baseado nas vidas complicadas de Donald Winnicott e Masud Khan (Prado de Oliveira, 2018), me deparei com uma pequena nota de Linda Hopkins (2006/2008), ao final de seu livro, mencionando três artigos citados numa outra nota, também sucinta, de Clare Winnicott, perdida em sua edição das obras póstumas do marido, na qual desordenadamente ela evoca a ligação entre alguns textos dele (Winnicott, 1989/1994c). Coloquei-os então em ordem cronológica. São eles: "Nada no centro" (1959), "Uma nota sobre um caso envolvendo inveja" (1963) e "A divisão entre elementos masculinos e femininos encontrados na clínica com homens e mulheres" (1966).2 Ao fim desse último, Clare acrescenta "Notas clínicas: 1959-1963" e "Resposta a comentários: 1968-1969", texto feito com as respostas de Winnicott aos comentários oferecidos por um grupo de grandes psicanalistas durante uma discussão escrita, ocorrida entre 1967 e 1969, sobre o texto de 1966 antes mencionado, lido na Sociedade Britânica de Psicanálise. Todos os comentários e as discussões subsequentes só apareceram impressos em 1972, depois do falecimento de Winnicott, em 1971. Como Khan também participou da discussão de 1967-1969, tecendo comentários para o debate do que sabemos agora ter sido sua própria análise, é justo mencioná-los aqui. Devemos ainda adicionar a esse arquivo uma página de 1968 do diário de Khan - seus Workbooks, inéditos - com o título de "Notas sobre Winnicott". Surge, desse modo, uma clara visão da análise de Khan com Winnicott, que nos permite melhor compreender a primeira menção feita por seu analista à impressão de ter ouvido uma menina quando na verdade escutava um homem. Essa experiência, anterior a 1959, é apresentada pela primeira vez em seu texto desse ano "Nada no centro". Ela aparece pela última vez no quinto capítulo do livro O brincar e a realidade (1971/1975b), com o mesmo título da conferência de 1966 na Sociedade Britânica. Assim, a interpretação de Winnicott, ao dizer a um paciente homem que, escutando-o, ouvia falar uma garota, tornou-se célebre. Minha reconstrução permitiu situar essa interpretação na totalidade da análise de Khan e, de fato, na vida de Winnicott, mostrando como a contra-transferência, ou seja, a transferência do analista para o paciente, vem moldar inteiramente a transferência do paciente para o analista, ou pelo menos o relato que dela é feito pelo analista.
Sessões preliminares e o destino de Khan
De acordo com Linda Hopkins, biógrafa de Khan, "antes de começar a análise, Winnicott insistiu que Khan fizesse uma cirurgia em sua orelha deformada" (2006/2008, p. 35). Judy Cooper, também biógrafa e amiga de Khan, lembrou-se da confissão que ouvira de sua parte em 1988: "Minha cultura é muito cruel com qualquer tipo de deformidade física" (1993, p. 10). Ela achava que havia uma ligação entre a família da mãe de Khan ser considerada socialmente inferior e inaceitável e essa orelha direita deformada, a qual se tornou um estigma.
Na Inglaterra, Khan tentava esconder sua orelha com uma boina; às vezes, ele parecia claramente bizarro, e sua orelha prejudicava sua bela aparência. Foi ela enfim objeto de uma intervenção cirúrgica devido à insistência de Winnicott quando Khan começou a análise com ele em 1951. (p. 10)
Há uma ligeira diferença entre a primeira e a segunda versão: aquela afirma ter Winnicott insistido sobre a cirurgia da orelha como uma condição para o início da análise; esta diz que a intervenção médica ocorreu, devido à insistência de Winnicott, após o início da análise. Crivado de vários tipos de câncer, expulso da Sociedade Britânica de Psicanálise, da qual havia sido um farol e um membro didata durante cerca de 30 anos, acusado das piores coisas, de todas as transgressões em psicanálise, Masud Khan teve um final muito triste, apesar de ter sido um dos psicanalistas mais criativos já conhecidos. A psicanálise lhe deve o conceito de trauma cumulativo, uma nova abordagem no estudo das perversões, a descoberta da correspondência entre Freud e seu amigo íntimo Eduard Silberstein, e várias realizações clínicas e teóricas, como o conceito de orgasmo do ego, que pode ajudar a explicar o júbilo dos lgbts com a formulação de suas peculiaridades. Khan foi amigo íntimo de Anna Freud. Fez 15 anos de análise com Winnicott, além de análises anteriores com John Rickman e Ella Sharpe (dois dos mais famosos analistas da época) e outra breve análise prévia com Israil Latif em Lahore. Khan tinha amizade com muitos analistas importantes da Inglaterra, dos eua e da França, bem como com famosos do cinema, do teatro e das artes. Era amigo de Wladimir Granoff, Jean-Bertrand Pontalis, André Green, Victor Smirnoff e Jacques Lacan. Traído ou abandonado, o arcanjo caído tornou-se "um perverso narcí-sico", noção mais usada em ofensas do que na clínica.
A análise de Khan com Winnicott assim como suas análises anteriores não o ajudaram, nenhuma, em nada? Tentei encontrar resposta a essa pergunta. Podemos sempre imaginar que, sem elas, teria sido pior. Em contrapartida, cada análise trouxe para ele o peso de novos problemas. Mas será que o resultado final foi mesmo tão ruim? Como em toda análise, poderíamos perguntar-nos se não seria um mal menor que o paciente se tornasse analista. É o que pensava Winnicott, que via nessa passagem do divã para a poltrona o índice seguro de um fracasso da análise. Eis os problemas que Khan herdou: Latif o encorajou a emigrar para a capital do império; Rickman e Sharpe morreram durante sua análise; e o trabalho com Winnicott não se limitou à análise, tendo ambos colaborado na resenha de um dos livros de Fairbairn, bem como em artigos que formariam alguns dos livros de Winnicott, editados por Khan. Teria sido Khan inanalisável? Se Winnicott assim o pensava, isso não o impediu de lhe agradecer em O brincar e a realidade: "Devo muito também a Masud Khan, por suas críticas construtivas de meus trabalhos e por estar sempre (assim me parece) disponível quando uma sugestão prática se faz necessária" (1971/1975a, p. 7).
Winnicott faleceu no mesmo ano em que esse livro apareceu. Sem dúvida, Khan deve ter se sentido no direito de desempenhar um papel na edição dos textos póstumos de Winnicott. Não foi o caso. Seu antigo analista e colaborador nomeou claramente a esposa, Clare Winnicott, como única e exclusiva herdeira testamentária. A antiga rivalidade entre Clare e Masud, entre Masud e Clare, fez que esta o afastasse inteiramente de qualquer participação na edição desses textos.
As bonecas de Winnicott
A partir de uma das notas autobiográficas do marido, Clare Winnicott narra uma lembrança de infância. Depois de descrever uma paisagem de contos de fadas (embora assustadora e terrível, no estilo de Edward Lear, autor macabro que Winnicott admirava muito), ele se lembrou:
Peguei meu próprio e exclusivo malho de críquete (cujo cabo tinha uns 30 centímetros, pois eu tinha apenas 3 anos) e amassei com uma violenta pancada o nariz da boneca de cera de minhas irmãs, que se tornara uma fonte de irritação em minha vida, porque era com essa boneca que meu pai me apoquentava. A boneca era chamada Rosie. Parodiando alguma canção popular, ele costumava dizer (debochando de mim com a voz que usava): "Rosie disse a Donald/ Eu te amo/ Donald disse a Rosie/ Não acredito".
Após um comentário, prossegue:
Eu sabia que a boneca tinha de ser destruída, e grande parte de minha vida se fundou no fato indubitável de que eu realmente cometi esse ato, não apenas o desejei e planejei. Fiquei talvez um tanto aliviado quando meu pai pegou uns fósforos e, aquecendo suficientemente o nariz de cera, remodelou o rosto de maneira que voltasse a ser um rosto. Essa demonstração inicial do ato restitutivo e reparador certamente me impressionou e talvez tenha me tornado capaz de aceitar o fato de que eu próprio, uma criança querida e inocente, me tornara na realidade violento, diretamente com uma boneca, mas indiretamente com meu bem-humorado pai, que começava a entrar em minha vida consciente. (C. Winnicott, 1989/1994, p. 6)
Nem Winnicott, nem seus biógrafos, nem analistas que se interessaram por sua obra parecem ter explorado todas as possibilidades de interpretação dessa memória infantil; se o fizeram, não o mencionaram. Winnicott pode ter se sentido enganado pelo pai, que não aceitara da parte do filho, em relação à boneca, a agressão que ele próprio provocara, vindo assim a traí-lo uma vez mais, após tão frequentemente abandoná-lo sozinho entre mulheres. Outra interpretação possível seria questionar se o objetivo primevo do ato assassino não eram exatamente tais mulheres, e não as bonecas, hipótese aparentemente afastada. Talvez mesmo Winnicott tenha se surpreendido mais do que acreditara pelo resultado desse incidente, pois as possibilidades da restituição e da reparação nem sempre trazem apenas alegria e, com frequência, são acompanhadas de certa depressão ao inibir o contentamento da destruição. De fato, em seu caso, essas possibilidades da reparação vieram reprimir sua agressividade, que parece ter ignorado desde então, jamais reaparecendo de forma espontânea, mas tão somente em raras ocasiões, como vários analistas que o conheceram assinalaram, inclusive em seu elogio fúnebre, em que não deixaram de acentuar sua crueldade e sua brutalidade (ruthlessness) (Rodman, 2003). Na verdade, Rosie parece ter escondido, para Winnicott, Elizabeth, Violet e Kathleen, mãe e irmãs de Donald, que nunca se tornou pai ou tio. Seu próprio pai condenava sua relação demasiado íntima com as mulheres próximas e os brinquedos delas, sobretudo suas bonecas, e talvez também condenasse os presentes bastante femininos que a mãe de Donald dava ao filho. "Pôde ela considerá-lo uma menina?", pergunta-se seu excelente biógrafo F. R. Rodman (2003, p. 21). Seria exagero imaginar que a obra de Winnicott tenha sido uma formação reativa a essa antiga agressividade. Entretanto, devemos estar atentos aos aspectos aterrorizantes que as mães podem ocupar na obra do autor. Afinal, o ódio na contratransferência não passa de uma extensão do ódio original das mães.
Bonecas reaparecem numa carta de Winnicott à esposa:
Na noite passada, algo me veio de maneira bastante inesperada, sonhando, a partir do que você disse. Subitamente, você se juntou à coisa mais próxima a que posso chegar com meu objeto transicional: era algo que sempre soube, mas cuja lembrança perdi, e nesse momento fiquei consciente do que era. Muito cedo, houve uma boneca chamada Lily, que pertencia a minha irmã mais moça, e eu gostava muito dela e fiquei bastante aflito quando caiu e se quebrou. Depois de Lily, odiei todas as bonecas. Mas sempre soube que, antes de Lily, havia quelquechose [sic] de mim mesmo. Eu sabia, retrospectivamente, que devia ter sido uma boneca. Mas nunca me ocorrera que não era tal como eu próprio, uma pessoa, isto é, era uma espécie de outro eu, e um não eu feminino, parte de mim e ao mesmo tempo não, e absolutamente inseparável de mim. Não sei o que aconteceu a ela. Se te amo como amei essa (devo dizer?) boneca, amo você toda [all out]. E acredito que sim. Naturalmente, te amo de muitas outras maneiras, mas essa coisa me veio como algo novo. Eu me senti enriquecido, me senti mais uma vez com vontade de escrever meu artigo sobre os objetos transicionais (adiado para outubro). (Você não se importa, não - com isso a respeito de você e do ot?). (C. Winnicott, 1989/1994, p. 12)
Comparando Clare a Lily, Donald esconde Rosie,3 e Clare é mantida como uma companheira nunca mãe, pura exterioridade, all out, nunca all in, como talvez as mães. Ao evocar as lembranças dele, Clare parece tê-lo compreendido.
Seria ainda necessário lembrar a importância das contribuições de Winnicott para a psicanálise? Foram elas: a renovação discreta das inovações técnicas de Ferenczi com o brincar na sessão analítica; a aplicação da mutualidade das origens da psicanálise à abordagem das relações mãe-bebê (mutualidade é a palavra exata que Winnicott e Khan usam com frequência, embora raramente seja traduzida de maneira correta); o desenvolvimento de uma metapsicologia intergeracional; e por último, mas não menos importantes, as noções de objeto transicional, de espaço potencial, de uso de objetos e, acima de tudo, do squiggle, desenhos compartilhados entre analistas e pacientes - contribuições marcantes na história da psicanálise, que trouxeram criatividade e liberdade aos psicanalistas, até então prisioneiros de ideais mortíferos de suas práticas ultraidealizadas. Não obstante, sua criatividade teórica e clínica não o protegeu das surpresas contratransferenciais, nem permitiu que se mantivesse puro seu desejo de psicanálise. Nem sempre estamos protegidos por completo dessas ressurgências de passado em nossa vida profissional e pessoal, sobretudo quando somos psicanalistas e a regressão de nossos pacientes nos contamina, pois necessariamente os acompanhamos. Talvez nossa regressão, necessária à escrita de seus casos, se imponha no relato que deles fazemos. Entre transferência e contratransferência, o questionamento sobre a origem do relato do caso fica sempre sem resposta clara, em suspense. "Entre areia, sol e grama/ O que se esquiva se dá", sugere Carlos Drummond de Andrade. E completa: "Enquanto a falta que ama/ Procura alguém que não há" (2015, p. 11).
Khan, suas orelhas, problemas
Exigindo ou insistindo com Khan em uma cirurgia na orelha, Winnicott queria consertar Rosie novamente? Essa pergunta deve tê-lo atormentado ao longo da vida, pois suportava o insuportável da parte de Khan, em termos de implacáveis agressões públicas de seu antigo paciente e de condutas impróprias diante de pacientes bem anteriores ao escandaloso Mr. Luis, tratamento descrito em seu último livro, When spring comes (ou The long wait, dependendo da edição escolhida, norte-americana ou britânica).4 Provavelmente, entre as razões que o levaram a reparar o rosto de seu paciente Khan, como seu pai fizera há muito tempo com Rosie, alguma intenção destrutiva persistia, como sempre, no ato mesmo de reparação. Era o risco de encapsular a agressividade do paciente, assim como o tinha sido a sua própria, desde a infância. A orelha reparada transformou-se em núcleo incandescente de um vulcão. O par de orelhas teria sido um significante arcaico do casal parental, cuja violência fora reativada por injunção impensada e presunçosa? Nenhum dos três analistas precedentes de Khan pensaram em tal "reparação". Na Antiguidade, historiadores afirmavam que a alma do homem habitava suas orelhas, afirmação tão impressionante que Lacan (2004) lembrou-se dela alguns milênios depois, sublinhando a necessária incorporação da voz através da orelha para que o Outro se constitua.
Um dos amigos de Khan diz tê-lo ouvido falar de uma lembrança de infância: crianças na escola haviam transformado sua vida num inferno devido à orelha deformada. O pequeno Masud contou ao pai o que acontecera. Algum tempo depois, funcionários do pai de Masud foram à escola e estupraram as crianças que haviam zombado do filho por causa da tal orelha (Hopkins, 2006/2008). Era o castigo que lhes reservara. Alguns biógrafos ressaltam que, mesmo que isso fosse uma fantasia de Khan e não uma verdadeira lembrança, ainda assim mostraria o que pensava do pai, considerado por ele um verdadeiro deus sádico (Gazillo & Silvestri, 2008).5 A importância dessa orelha poderia justificar tamanha raiva? A fantasia "bate-se numa criança" transforma-se em "sodomiza-se uma criança (estuprada)". Essa fantasia ou lembrança indica o tipo de violência de Khan quando ofendido e as reações desencadeadas nele pela ofensa. A violência pode até aparecer com ternura, de acordo com seu analista Winnicott: "No momento em que a mãe odeia, ela demonstra uma ternura especial, e para uma criança não existe maneira de lidar com esse fenômeno" (1969/1994a, p. 194).
Winnicott já teria pensado nesse ódio 20 anos antes, ao redigir o artigo "O ódio na contratransferência"? O ódio do analista pelo paciente seria o mesmo que se exprime de modo atenuado por meio do que Lacan chamou de moralismo compreensivo, cerca de 10 anos mais tarde, no seminário sobre a ética na psicanálise.6 Em seus livros, Linda Hopkins, Maura Silvestri e Francesco Gazillo demonstram como a loucura de Donald e Masud toma forma paralelamente ao desenvolvimento da criatividade de Winnicott e Khan. Roger Willoughby (2005), outro biógrafo de Khan, aponta como as observações mencionadas se referem à Sociedade Britânica de Psicanálise e como surgiu a lenda de uma análise de 15 anos de duração, três a cinco vezes mais do que efetivamente durou, no melhor dos casos.
Outros estudos insistem no caráter paradigmático da história de Khan e Winnicott: entre descolonização e amizade (Borossa, 2012), entre clas-sicismo e pós-modernismo (Poore, 2015). Talvez Amardeep Singh (2007) tenha sido um dos primeiros a assinalar as origens indianas de Khan como fonte de suas dificuldades. No entanto, seria importante integrar aqui as contribuições de Frantz Fanon (1952). Espalhadas nas biografias de Khan, encontramos várias de suas afirmações sobre imigração e exílio. Ele contou a Joyce McDougall que, certa feita, Winnicott "de repente inclinou-se sobre ele, no divã, e disse: 'O problema com você, Khan, é que você não existe'. Ao que McDougall rapidamente reagiu: 'Então foi com você que ele descobriu o falso self" (Willoughby, 2005, p. 79).
As relações entre Winnicott e Khan parecem ter obedecido à estrutura geral das relações entre colonizadores e colonizados (Memmi, 1957). É o que sugere um raro estudo biográfico que associa a história de Winnicott à história de Khan (Goldman, 2003). Em outro lugar, Khan afirma nunca poder estar onde está. Mesmo sua autodestrutividade invasora parece às vezes ligada à imigração e ao exílio. A inexistência de Khan na Inglaterra se vincularia a sua presença persistente e encravada no Paquistão; seu falso ser (false self) britânico, a sua busca por suas verdadeiras origens; sua autodestruição inglesa, a seus sonhos de criação paquistanesa, da qual sua inventividade psicanalítica seria apenas a sombra pálida, bem aquém de sua onipotência em sua terra original. Não devemos excluir a hipótese de sua autodestrutividade ser compreendida como revolta do colonizado contra o senhor feudal, e mesmo sua pulsão de morte como desejo de morte de um contra o outro, inclusive nas relações entre judeus e austríacos na Viena imperial. Frequentemente, a psicanálise restringe sua busca com exclusividade ao psiquismo, mesmo quando problemas políticos são evidentes. A complementaridade entre o pensamento psicanalítico e o domínio político mereceria ser estudada, apontando para a psicanálise como uma metáfora do político. Assim, compreenderiamos melhor a abundância de termos econômicos em Freud; também poderiamos contextualizar a obra de Melanie Klein em relação às duas guerras mundiais vivenciadas pela autora, ou vincular a obra de Lacan e o estruturalismo com o pós-guerra na França.
Masculino e feminino: a análise de Khan
Além da injunção ou da insistência a respeito da orelha de Khan, Winnicott fornece elementos adicionais à compreensão de como se deu o tratamento de um rico paquistanês imigrado por um britânico também imigrado do campo para Londres. Lembramo-nos da espantosa e deslumbrante sessão de análise em que o analista disse ao paciente ter escutado uma menina, e não um homem, quando era um homem que lhe falava. Winnicott ressaltou ter sido ele quem ouviu, ter sido sua própria loucura que o levou a ouvir falar uma menina, e não um homem. O paciente sentiu-se compreendido e aliviado, pois fora Winnicott quem o dissera, e não ele. Ele próprio teria sido incapaz de fazer tais afirmações sem se sentir completamente louco, pois sabia ser um homem (Oudinot, 2015; Winnicott, 1971/1975b). Masud Khan era esse paciente. Confessou-o a dois de seus amigos, Eva e Dean Eyre (Hopkins, 2006/2008). Clare Winnicott aponta o fato de que três dos artigos do marido se referem ao mesmo paciente. Hopkins mostra semelhanças entre as descrições do paciente feitas por Winnicott e a vida de Khan. Finalmente, Hopkins menciona as confidências de Khan em carta a seu amigo íntimo Victor Smirnoff: "De certo modo, em minha identidade somática de ser-corporal, tenho toda a mística de autoproteção virginal de uma menina púbere. Digo isso literalmente, e não de maneira metafórica" (2006/2008, p. 437).
Voltemos atrás e reorganizemos os dados apresentados por Clare Winnicott; examinemos de perto os documentos de Winnicott. A cronologia da elaboração redacional, escriturária por assim dizer, do caso Masud Khan é explícita.
1. O artigo de 1959 "Nada no centro", acompanhado pelas "Notas clínicas" do mesmo ano. No artigo, Winnicott escreve:
Tinha a minha disposição uma quantidade muito grande de material que me permitiu efetuar a seguinte interpretação: ele me contava em termos físicos como sua mãe lhe transmitira, quando ele era ainda um pequeno bebê, que ele era de seu ponto de vista uma menina, e não um menino. (1994d, p. 43)
Nas "Notas clínicas", observa:
Em minha interpretação, acabei por dizer-lhe que, se ele fosse um bebê sendo tratado pela mãe tal como havíamos reconstruído na semana passada, não haveria absolutamente nenhuma saída para ele, nenhuma alternativa, fosse qual fosse, exceto que ele explorasse cada partícula de si próprio de ser mulher e de querer sê-lo. Qualquer coisa como protesto nesse período tão inicial teria sido completamente fútil. (1994f, p. 144)
2. Não existe coincidência perfeita entre o artigo de 1963 "Uma nota sobre um caso envolvendo inveja" e as "Notas clínicas" desse mesmo ano. Ambos os textos, porém, mencionam a identificação feminina do paciente. No artigo, Winnicott faz uma conexão entre os pensamentos hipocondríacos do paciente e essa identificação:
Isso por sua vez teve de ser liberado do amplo delírio que sempre teve de ser verdadeiramente mulher. O brincar de ser mulher da identificação feminina, que é muito mais flexível, surgira agora na análise e eu fizera a interpretação de que sua hipocondria era precursora da fantasia de impregnação. (1994e, p. 63)
Nas "Notas clínicas", trabalha uma observação de 1963:
Ele estava elaborando sua exasperação com a mãe e seu desespero absoluto em lidar com ela, exceto com esse método com que agora quase perdera o contato, mas que fora tão importante na semana passada, a exploração plena de seu ser feminino. (1994f, p. 146)
3. Finalmente, o artigo de 1966 "A divisão entre elementos masculinos e femininos encontrados na clínica com homens e mulheres",7 integrado em O brincar e a realidade, em que Winnicott insiste na importância de sua contratransferência.
Esse estado complexo de coisas tem uma realidade especial para esse homem porque ele e eu fomos levados à conclusão (embora incapazes de prová-la) de que sua mãe (que não vive mais) viu um bebê menina quando o viu como bebê, antes de aceitar pensar nele como um menino. Em outras palavras, esse homem teve de ajustar-se à ideia da mãe de que seu bebê seria e era uma menina. ... Temos muito boas provas vindas da análise de que, no manejo inicial dele, a mãe o segurava e dele tratava, de todas as maneiras físicas, falhando em vê-lo como um macho. Com base nesse modelo, mais tarde ele organizou suas defesas, mas era a "loucura" da mãe que via uma menina onde existia um menino, e isso fora trazido diretamente para o presente quando eu disse: "O louco sou eu". (1994b, pp. 135-136)
Encontramos aqui novamente as primeiras observações de 1959, das "Notas clínicas", que não mais servirão. A ideia da confusão e da separação entre masculino e feminino era tão importante para Winnicott que ele não hesitou em dar aos estudantes da Escola de Economia de Londres o seguinte tema de redação: "A partir de casos de seu conhecimento, ilustre: o menino na menina e a menina no menino (guarde o período de latência do desenvolvimento)" (Rodman, 2003, p. 252).
Clare Winnicott é de grande discrição quanto às discussões de 1967-1969 sobre o tema e assinala apenas as respostas do marido, omitindo os comentários. A segunda resposta de Winnicott é baseada no artigo de 1963 "Uma nota sobre um caso envolvendo inveja", que liga a hipocondria do paciente a sua identificação materna, o "amplo delírio que sempre teve de ser verdadeiramente mulher".
Winnicott, precursor da teoria de gênero? Ou da teoria queer? Os movimentos LGBT deram um extraordinário e importante destino à tese da coexistência de gêneros masculinos e femininos num mesmo sujeito, assim como a seu desvendamento em momentos propícios. Sabendo que a psicanálise afirma desde sempre a bissexualidade fundamental do ser humano como um de seus esteios, e que ela se inaugura com o estudo de dois pacientes trans, Rosa K por Ferenczi (1902/1994) e Daniel Paul Schreber por Freud, podemos afirmar que raramente uma teoria terá sido tão acolhedora a essas configurações humanas.
As discussões mais tardias do artigo de Winnicott de 1966 deram-se em 1968 e 1969 (sendo publicadas em 1972 no Psychoanalytic Forum), com a participação do próprio Masud Khan, de Margaret Mead, Richard Sterba, Herbert Rosenfeld e Décio Soares de Souza, e com respostas de Winnicott a seus comentários. Estes são de particular relevância para o estudo das questões de gênero na história da psicanálise. Também é importante chamar a atenção para os trabalhos de 1972 na Califórnia, ou seja, muito tempo antes das redes-cobertas atuais. Winnicott traz mais precisão sobre sua técnica. Em 1971, sua posição é ligeiramente diferente daquela de 1966. Agora, "o paciente buscava o tipo certo de analista louco [the right kind of mad analyst], e para atender suas necessidades tive de assumir esse papel" (1994g, p. 148).
Agora é a loucura do paciente. Sua própria intervenção foi reduzida a sua contratransferência, induzida pela transferência do paciente. A este, alguns anos antes, Winnicott teria confessado, de maneira asseguradora, que o próprio analista era a única pessoa louca. É impossível saber ao certo onde começam e terminam a contratransferência e a transferência, ou ainda de quem é a ideia delirante de ser menina. Seria Rosie/Lily que volta novamente a Winnicott e o faz ouvir uma garota quando um homem se dirige a ele? Ou alguma inflexão na voz do paciente o levou a ouvir uma voz de menina?
Em 1968, Khan começa suas contribuições à discussão de seu "caso" afirmando:
Cada novo texto de Winnicott é fonte de insight, desafio e confusão. A razão para tanto reside bastante [lies largely] no fato de que ele só relata os momentos mais quentes da crise clínica e de sua resolução, por um lado, e pula para metaforizações de tipo mais abstrato e metafísico, por outro lado. Nem sempre é fácil criarmos sozinhos pontes sobre esse vazio, e talvez em nenhum outro texto de Winnicott como neste o vazio entre a clínica e a metaforização abstrata apresenta tal desafio. (Winnicott, 1972, p. 384)
Após contar o desenrolar de uma de suas análises, mostra ainda a influência na teoria de seu antigo analista - a distinção entre os elementos masculinos, ligados à ação, e os elementos femininos, ligados ao ser - de uma de suas leituras recentes, um livro de Robert Graves chamado Man does, woman is. Em suma, Khan acusa Winnicott de simplismo, de semear confusão e, como sempre, de não mencionar suas fontes, pecado comum entre psicanalistas. Em seu diário íntimo, na mesma época (1968), Khan acrescentava:
Quão sábio D. W. W. é e, entretanto, quão cego sobre si mesmo. Não pode aceitar que um outro trate de um caso. É um preconceito maligno da maior parte dos analistas. E sua incapacidade de acreditar que outros possam prejudicá-lo. Donde sua incapacidade de gratidão! E entretanto tem a mais verdadeira e profunda devoção para com seus pacientes, e seu autoquestionnement [sic] a respeito deles é o mais incisivo e austero. Mas enquanto homem não questionou sua malícia, sua inveja e seu ódio! (Rodman, 2003, p. 342)
Winnicott, por sua vez, respondendo aos comentários de Khan, insistiu no delírio da mãe do paciente (a mãe de Khan), delírio ausente do caso apresentado por Khan, em que fundamenta suas próprias afirmações.
Gênero, contratransferência, transferência
Marie Sophie von Brühl, nascida numa nobre família de Varsóvia, casou-se com Carl von Clausewitz, senhor da guerra na Prússia, detentor de títulos nobres contestáveis - e contestados. Graças a ela, que publicou os escritos dele após sua morte, suas formidáveis teorias sobre a guerra inspiraram Molotov, o senhor da guerra de Stalin, temido até mesmo por Hitler. No entanto, Carl afirmou que verdadeiros exércitos se inspiram na poesia, tanto quanto todo poder autêntico. Para Marie e Carl, não havia antinomia entre guerra e poesia, pelo contrário. Molotov dificilmente compartilharia essa opinião. Um ano antes de seu casamento, em 1810, Marie, de 30 anos, escreveu para Carl, 20 anos mais velho, sobre uma princesa, sua amiga:
Esta aliança rara de qualidades muito diferentes e tão frequentemente incompatíveis, que admiro em ti, é também o que me atrai invencivelmente nela; pois a profundidade de sua inteligência, sua força de vontade e a seriedade viril de todo o seu ser não a impedem de ter a delicadeza, a doçura e a piedade da mais feminina das mulheres; assim também contigo, meu Carl. (Von Clausewitz, 1976, p. 256)
Guerra e poesia, viril seriedade e gentileza feminina, o mais viril de todos os homens e a mais feminina de todas as mulheres reunidos numa só pessoa; essas figuras coexistiam para os românticos, tanto quanto outras séries contraditórias, ou que assim nos parecem, a nosso olhar de 2019.
Ao apresentar o texto de 1966, no qual dizia ter ouvido a voz de uma menina através da voz de um homem, Winnicott atualizou as bases românticas da psicanálise, localizando-as no hic et nunc da sessão, apoiado na bissexualidade fundamental do ser humano, sobre a qual Freud frequentemente escreveu. De maneira dramática e brilhante, Winnicott expressou, nessa única intervenção, em que vinham desaguar construções elaboradas durante várias sessões anteriores, a teoria romântica que por muito tempo estivera adormecida. Rodman, autor da mais completa biografia de Winnicott, acrescenta o seguinte sobre o artigo de 1966:
Essa meditação sobre a separação entre os elementos masculinos e femininos no entardecer de sua vida me sugere que ele encontrara uma maneira de apresentar seu próprio caso, ou de integrar seu próprio caso no caso de outro alguém, com o conceito de um homem visto como mulher. Ele teria compreendido que, no começo, ele fora visto pela mãe como uma menina, e que tratara disso sua vida inteira sem ter sido capaz de identificá-lo assim. (2003, p. 310)
Ao evocar a infância de Winnicott nos braços da mãe, Rodman provavelmente emprega as mesmas palavras usadas por Winnicott para falar com seu paciente, Masud Khan. Para se livrar dessa mãe, Winnicott esmaga o rosto de uma de suas bonecas. Desapontado tanto quanto tranquilizado pela intervenção do pai, surpreso, carrega ao longo da vida a cena fundadora, até que ela reapareça numa sequência de sessões com Khan e desague na sessão resplandecente da descoberta clínica. Para Khan, no entanto, a interpretação de Winnicott, vinda dos primordios de sua vida, tinha um significado completamente diferente, ligado à violência original de sua própria existência. Os gêneros provêm de fatores socioculturais e políticos tanto quanto da história individual, mesmo quando a contratransferência e a transferência se fundem.
E se Lacan...
De 1967 a 1968, na França, na mesma época da discussão internacional sobre o artigo de Winnicott de 1966, Lacan dedicou seu 15.° seminário ao ato psicanalítico. Curiosamente, Winnicott desempenha nele um papel importante. Lacan critica sua noção de contratransferência, mostrando que ela leva a um ato. Na lição de 29 de novembro de 1967, Lacan anuncia que, "da próxima vez", falará de seu amigo britânico. Winnicott recusou seu pedido de readmissão à Associação Psicanalítica Internacional. Ele forneceu a Lacan o exemplo da passagem da contratransferência ao ato. Conhecera Lacan o destino da orelha na análise de seu amigo de Londres com Winnicott, Masud Khan, cujo nome ecoa o seu? Poderiamos até dizer que em Londres, ao menos uma vez, constituiu-se um "Lakhan". "Da próxima vez", afirma Lacan na lição de 6 de dezembro de 1967, quando porém não revela nada de extraordinário sobre Winnicott, mas fala a respeito do ato entre o eu e o falso eu.
Esse self que, de ter sido congelado, constitui o falso self, ao qual é preciso que o Sr. Winnicott leve num processo de regressão, o que será objeto de meu discurso da próxima vez para lhes mostrar a relação com o agir do analista.
Portanto, rebote: a revelação é novamente adiada. Na próxima lição, contudo, o nome de Winnicott nem aparece. Ou será que sim? Em filigrana, escondidoferto dadescapando? Pois Lacan então discute longamente a noção de self, que rejeita, antes de concluir que a psicanálise exclui o ato. Se ignorava a história da orelha, por que precisou buscar Winnicott em particular para discutir a contratransferência e fazer essa afirmação banal relativa à exclusão do ato pela psicanálise (banal e generalizada, mas jamais confirmada pelos fatos de sua história, de Freud a Lacan, sendo a instituição que a garante um campo privilegiado de precipitação da psicanálise no ato)?
O império, o Outro, a colônia
Parece que a psicanálise se restringe a essa afirmação da exclusão do ato, contrária ao que mostra sua história. Lembremo-nos de Spinoza: nem rir, nem chorar, mas compreender. Há outra abordagem do que aconteceu entre Winnicott e Khan, que levanta questões difíceis para a psicanálise, ligadas a sua articulação com o pensamento político. Se o ato é um dos Outros da psicanálise, se a colônia é o Outro do império, e se Masud o foi de Winnicott, a política desde sempre foi o Outro da psicanálise. O destino de Khan, como o destino de todos nós, foi totalmente atravessado pela política. Quando Sylvia Payne pergunta a Khan se ele é membro do Partido Comunista, ele responde, com raiva, ser feudal. Quando Karl Menninger pede-lhe que descreva seus antecedentes, prontamente responde: "Feudal, Sir]" Na biografia de Hopkins há um capítulo chamado "A feudal upbringing" [Uma criação feudal] e na de Willoughby outro chamado "A colonial education" [Uma educação colonial]. Khan deixa seu país de nascimento no momento da partição, solução violenta imposta pela coroa britânica, último ato de sua presença na região, separando assim o Paquistão e a Índia segundo critérios relacionados à demografia religiosa, sendo um deles predominantemente muçulmano e o outro hinduísta. No entanto, já em 1853 Karl Marx (1968) contestava esse "feudalismo" em seus estudos sobre o domínio britânico na Índia, mostrando a submissão dos "senhores feudais" aos interesses do imperialismo britânico. Ao se considerar feudal, Khan afirmava especialmente sua alienação, à qual respondia a alienação de seus interlocutores, que acreditavam nele.
Há uma forma de alienação do colonizado que o faz se imaginar como colonizador, uma forma de alienação de quem imigra da colônia para a metrópole que o faz reivindicar ser metropolitano. Com efeito, Khan era tão alienado que nunca mencionava psicanalistas de seu país e nunca lhes dedicava algo de seu trabalho. Num justo retorno das coisas, os psicanalistas indianos ou paquistaneses o ignoram. Livros muito completos sobre o assunto raramente o mencionam. Na verdade, Khan não era nem paquistanês nem britânico, e especialmente não era indiano. Reivindicando com frequência sua cultura original, era cego para sua situação real. Sua reivindicação já era alienada. Preso num vazio da história de seus países, caído num poço sem fundo da tempo-ralidade de sua família, em meio à diferença de idade de uns 60 anos entre seu pai e sua mãe, em certo sentido tendo existido enquanto falso ser, Khan inexistiu, e sua inexistência é em si própria uma denúncia.
É surpreendente que esse aspecto da relação de Khan com a Sociedade Britânica ou com a Nouvelle Revue de Psychanalyse não tenha sido discutido. A alienação de Khan era parte da alienação mais ampla dos psicanalistas quanto à política e à história. As pesquisas sobre Khan, longe de terminadas, acabam de começar, num esforço para continuar a integrar essas dimensões entre subjetividade e política (em muitos casos distantes umas das outras), desta vez a partir de novas bases epistemológicas. Pesquisas sobre Khan são pesquisas sobre os jogos de intimidade e extimidade dos psicanalistas entre subjetividade e política. Khan é nossa sombra, melancolia dos psicanalistas e da psicanálise, entre o exílio e o reino.
Recordemos que a psicanálise chegou a Viena vinda de uma espécie de terceiro mundo - que os psicanalistas muitas vezes vinham da Galicia sonhando em abandonar a posição de colonizados e em tornar-se colonos, trocando o shtetl pela capital do império. Como Khan, às vezes com as mesmas características, os psicanalistas eram estranhos à cultura em que se estabeleciam, sua origem sendo bastante modesta.8 Mais tarde, eles se esqueceram disso, perdidos em sua nova situação e em sonhos de ascensão social.
A Outra clínica: conclusão
O que evidencia o estudo de como se constitui um momento da clínica de Winnicott com Khan - momento de uma intervenção resplandecente, em que o psicanalista confessa ao paciente seu pensamento sobre sua própria loucura, afirmando ouvir uma menina quando um homem lhe fala - é em primeiro lugar a história de tal intervenção. Podemos afirmar que essa história obedece a uma sobredeterminação.
Primeiro, ela corresponde a um procedimento técnico proposto inicialmente por Freud, qual seja, a análise mútua, o autodesvendamento do analista, praticado por todos os analistas até pelo menos 1909 - por exemplo, quando da viagem de Freud com Jung e Ferenczi aos Estados Unidos (Prado de Oliveira, 2014).9 Recalcada em teoria por Freud, que entretanto a praticava, ela constitui um elemento-chave da prática de Jung e de Ferenczi com pacientes particularmente difíceis, como meio de contornar as resistências que apresentavam.
Em seguida, sem que seja restrita a um único paciente, a intervenção de Winnicott tem uma história própria no interior do tratamento de Khan, desenrolando-se de fato ao longo de várias sessões antes de desaguar no esplendor da descoberta. Nesse desenrolar, a contratransferência se precipita sobre a transferência, dando-lhe forma e expressão, tornando-a possível, criando um efeito de sideração. É a história de Winnicott que se precipita sobre a história de Khan. Nessa precipitação reside o ódio na contratransferência. Inspirado nos relatos clínicos de Ferenczi, o qual pela primeira vez assinalou esse ódio tanto nele próprio, em sua relação com a paciente Elisabeth Severn, quanto em Freud, que declarava odiar os pacientes psicóticos, Winnicott nos alerta para essa questão, sem no entanto conseguir ele próprio evitar ou mostrar-se atento ao ressurgimento do ódio em pelo menos duas ocasiões, a da cirurgia na orelha e a da construção teórica imposta ao paciente, o que ecoava as práticas de Freud, por exemplo, com Serguei Pankejeff, o Homem dos Lobos de triste memória, com Herbert Graf, o pequeno Hans, e com a mãe deste, Olga Hoenig, sua antiga paciente, todos eles muito solitários.
O refluxo da ressaca deixa-nos com uma pergunta: e se Lacan soubesse o que ocorrera entre Khan e Winnicott e, tendo-o sabido, algo o tivesse imobilizado, o espanto diante do que ignorava, o sem-fim das histórias de Winnicott e de Khan, de duas pessoas reunidas para uma análise?
Enfim, o desenrolar de uma cura, onda que prossegue sua trajetória muito além de sua própria história, fundindo-se na história da psicanálise, expõe seu fundo político: a arqueologia da psicanálise transforma-se em sua genealogia e nos questiona mais uma vez.10 Cada sessão de análise é uma condensação de histórias múltiplas, nas quais política, subjetividades e corpos se confundem, recebendo uma estrutura dinâmica através do ordenamento dos discursos e dos significantes.
Ainda um esforço, psicanalistas, para fazer da psicanálise uma disciplina plenamente revolucionária, articulando essas histórias.
Referências
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Correspondência:
Luiz Eduardo Prado
Rue Mouffetard
75005 Paris, FR
ledprado@gmail.com
Recebido em 24/9/2018
Aceito em 24/1/2019
1 Em colaboração com Paula Salomão Broch para esta versão e com Hélène Schmitt para a versão francesa.
2 Baseamo-nos aqui na edição publicada pela Artes Médicas em 1994, modificando a tradução sempre que nos pareceu necessário, essencialmente por razões de estilo e de obediência à pontuação do original, mas não apenas.
3 O que Hopkins (2016) já observara.
4 Esse tratamento, durante o qual propósitos inadmissíveis são proferidos, termina bem, apesar de tudo. Afirmações racistas e antissemitas são bastante comuns na cultura britânica, podendo ser consideradas parte do universo da colonização, estudado hoje na psicanálise por J. Borossa e B. Poore, cujo trabalho mencionarei mais adiante.
5 Infelizmente, só soube da existência da obra de Gazillo e Silvestri quando meu livro já estava no prelo.
6 Sabemos que a observação do ódio do analista em relação ao paciente tem uma longa história na psicanálise, que começa com Sándor Ferenczi. Ver as referências de Ferenczi a RN, na verdade Elizabeth Severn, em seu Diário clínico, que estudei e serializei em L'invention de la psychanalyse (Prado de Oliveira, 2014).
7 Na edição brasileira de Explorações psicanalíticas, o título foi traduzido por "Os elementos masculinos e femininos ex-cindidos encontrados em homens e mulheres" (1994b), criando-se um neologismo onde em inglês apresenta-se simplesmente uma variante inconsequente. Vale assinalar que, em The language of Winnicott (1996), Abram não considera split-off um termo que requeira explicação particular.
8 Ver o International Forum for Psychoanalysis, volume 24, número 1, 2015, com o tema Freud in Príbor.
9 Max Eitingon e Max Graff, entre outros, testemunham a prática da análise mútua por Freud.
10 Ver a discussão do uso desses termos em Revel (2010), cuja indicação agradeço a Laurie Laufer.